UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM NEUROCIÊNCIAS
Marília Nunes Silva
Investigações sobre a modularidade do processamento
cognitivo musical
Belo Horizonte
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM NEUROCIÊNCIAS
Marília Nunes Silva
Investigações sobre a modularidade do processamento
cognitivo musical
Tese apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Neurociências da
Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Neurociências, sob orientação do Prof. Dr. Vitor Geraldi Haase.
Área de Concentração: Neurociência clínica.
Belo Horizonte
A todos aqueles que seguem seu caminho,
mantendo vivos os sonhos dentro de
si mesmos e vislumbrando um
AGRADECIMENTOS
Por mais que a jornada seja individual nós nunca caminhamos sozinhos. Tudo o
que produzimos só é possível graças à colaboração de muitas pessoas. Portanto, minha
conquista, não só minha, mas sim de todos. É por isso que penso que a parte dos
agradecimentos é uma das mais importantes. Sei que posso não contemplar a todos, então
incluirei as pessoas que considero chave em minha formação e conclusão do doutorado.
Agradeço primeiramente ao meu professor, orientador e grande mestre Vitor
Geraldi Haase. Nesses anos de convivência pude aprender muito com ele. Com certeza
minha carreira terá muito dele. De sua postura ética, seu comprometimento e dedicação
ao trabalho. Ele nos orienta não somente na pesquisa, mas também em nosso futuro
profissional. Se pude estudar o que eu estudo hoje foi graças a ele, que me deu todas as
ferramentas para que eu pudesse desenvolver este caminho.
Agradeço à professora Isabelle Peretz, que me deu a oportunidade de trabalhar
durante um ano no International Laboratory for Brain, Music, and Sound Research
(BRAMS). Lá tive acesso ao que tem de mais avançado no estudo de música e
neurociências. Aprendi bastante e também pude trocar informações com muitos
pesquisadores da área vindos de diversas partes do mundo. Sou grata a Isabelle por ter
me aberto esse novo horizonte que foi transformador para mim tanto profissional quanto
pessoalmente. Agradeço também à Mihaela e a todos que trabalham no suporte técnico
do BRAMS e que não mediram esforços em me auxiliar.
Agradeço à minha família, principalmente aos meus pais, Raimundo e Regina, e
aos meus irmãos, Thiago e Gustavo, que sempre estiveram comigo, me apoiando nos
momentos mais difíceis e que toleraram minha ausência nestes anos dedicados ao trabalho
a mim, que conhecem meus defeitos e qualidades e que sei que estarão comigo mesmo
quando ninguém mais estiver. Agradeço de coração por tudo.
Agradeço aos amigos que me proporcionaram momentos de alegria, que me
permitiram relaxar em momentos mais difíceis, que me fizeram vislumbrar soluções
aonde antes havia problemas. Agradeço aos amigos do kung fu, em especial Bárbara,
Igor, Fábio, Karina, Renato e Júlio e aos amigos da música, em especial, Graciela, Natália,
Aline, Augusto, Alice, Ernane e Ana Roberta. Agradeço aos amigos do LND, em especial
Ricardo Moura, Pedro Pinheiro e Flávia Almeida. Agradeço aos novos amigos que tive o
prazer de conhecer no Canadá, em especial, Benjamin Zendel e Dominique Vuvan com
os quais aprendi muito, não somente sobre pesquisa mas também sobre o Canadá e a vida.
Agradeço em especial ao Pedro Henrique Santos, Leonardo Araújo e Ana Lana
que sempre estiveram ao meu lado na pesquisa em música e neurociências. Trabalhamos
muito desde sempre com um interesse comum na área. Organizamos cursos, palestras,
eventos culturais, além de poder contar com eles para o desenvolvimento deste trabalho.
Agradeço à Bianca e Marina, da iniciação científica, e à Juliana Bruckner pelo
auxílio imprescindível na coleta de dados. Agradeço também à todos os que participaram
voluntariamente da pesquisa pela cordialidade e cooperação. Agradeço às coordenadoras
das escolas que sempre foram muito solícitas conosco.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), por ter me concedido uma bolsa de doutorado durante os três anos de estudo
no Brasil, e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
por ter me contemplado com uma bolsa de doutorado sanduiche, durante o período de um
ano em que estive no Canadá. Sem estes subsídios não seria possível realizar a pesquisa.
Agradeço a Deus e à natureza pela vida que, apesar dos desafios e obstáculos, me
RESUMO
A modularidade é uma das principais questões abordadas dentro da ciência
cognitiva. A música, por ser uma função cognitiva complexa, se constitui em um modelo
para investigação da hipótese da organização modular do cérebro. As evidências a favor
da modularidade do processamento cognitivo musical indicam que as funções musicais
fazem parte de um módulo mental distinto, com seu próprio sistema de processamento de
informações e substrato neural específico. A presente tese teve por objetivo investigar a
hipótese da modularidade do processamento cognitivo musical a partir de uma estratégia
multi-método e multi-amostra. Para o desenvolvimento das questões de pesquisa, a tese
foi dividida em cinco artigos científicos. O primeiro artigo teve por objetivo investigar as
evidências relacionadas à modularidade do processamento musical a partir de uma
revisão integrativa. O segundo artigo teve por objetivo verificar as características
psicométricas da versão traduzida e adaptada da Montréal Battery of Evaluation of
Amusia (MBEA) para o Brasil. O terceiro artigo consiste em uma metanálise com o
objetivo investigar a natureza do déficit da amusia congênita, relacionado à codificação
musical da frequência de altura a partir do tamanho do efeito da diferença de desempenho
entre amúsicos e controles nas tarefas de discriminação de frequência. O quarto artigo
teve por objetivo investigar se há associação entre dificuldades do processamento de
magnitudes numéricas e de frequência de altura em amúsicos congênitos. O quinto artigo
investigou a relação entre o processamento musical e numérico em crianças e
adolescentes com Síndrome de Williams (SW). A partir dos estudos realizados pôde-se
observar que os resultados encontrados para os amúsicos congênitos de que o déficit de
discriminação de frequência de altura se relaciona a déficit acústico geral e de que há
associação entre percepção musical e dificuldades em comparação de magnitudes
simbólica, bem como a associação encontrada entre senso numérico e percepção musical
nas crianças e adolescentes avaliados se constituem em evidências a favor da existência
de mecanismos compartilhados ou amodais para o processamento cognitivo musical. Em
contrapartida, a dupla dissociação encontrada entre o processamento acústico e o módulo
de codificação tonal, e a dissociação entre o processamento de magnitudes nos domínios
musical e numérico encontrada nos amúsicos congênitos, bem como o padrão de
percepção musical relativamente preservada e senso numérico comprometido em
indivíduos com SW fornecem evidências a favor da hipótese da modularidade do
para o sistema de processamento musical durante o período de desenvolvimento estes
processos poderiam ser moldados pela seleção natural de modo a produzir resultados
funcionalmente organizados e com função evolutiva específica.
Palavras-chave: Modularidade, Amusias, MBEA, Processamento musical,
ABSTRACT
Modularity is one of the main issues in cognitive science. Because music is a
complex cognitive function, it constitutes in a model for investigating the hypothesis of
brain modular organization. Evidence in favor of modularity of musical cognitive
processing indicate that musical functions are part of a distinct mental module with its
own information processing system and specific neural substrate. This thesis aimed to
investigate the hypothesis of modularity of musical cognitive processing from a
multi-method and multi-sample strategy. For the development of research questions, this thesis
was divided into five scientific papers. The first paper aimed to investigate the evidence
related to the modularity of musical processing from an integrative review. The second
paper aimed to verify the psychometric properties of the translated and adapted version
of MBEA to Brazil. The third paper consists in a meta-analysis that aimed to investigate
the nature of the deficit in congenital amusia, related to the musical encoding of pitch,
from the effect size of the difference in performance between amusics and controls in
pitch discrimination tasks. The fourth paper aimed to investigate whether there is an
association between difficulties in processing numerical and pitch magnitudes in
congenital amusics. The fifth paper investigated the relationship between musical and
numerical processing in children and adolescents with Williams syndrome (WS). The
fifth paper investigated the relationship between musical and numerical processing in
children and adolescents with Williams syndrome (WS). From studies conducted,
constitute evidence for the existence of shared or amodal mechanisms for cognitive music
processing: 1) the relation of pitch discrimination deficit with a general acoustical deficit
in congenital amusics; 2) the association observed between music perception and
difficulties in symbolic magnitudes comparison in congenital amusics and; 3) the
association observed between number sense and music perception in children and
adolescents. In contrast, constitute evidence for the hypothesis of the modularity of
musical cognitive processing: 1) the double dissociation found between the acoustic
processing and tonal encoding module in congenital amusics; 2) the dissociation found in
the magnitude processing between numerical and musical domains in congenital amusics
and; 3) the pattern of musical perception relatively preserved and compromised number
sense in individuals with WS. Even though there may be processes of modularization for
natural selection to produce functionally organized results with particular evolutionary
function.
Key words: Modularity, Amusias, MBEA, Musical processing, Numerical processing,
CENTROS DE PESQUISA
O trabalho foi realizado em dois diferentes centros de pesquisa listados a seguir:
1) Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil:
a) Programa de Pós-Graduação em Neurociências, Instituto de Ciências Biológicas e,
b) Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento (LND), Departamento de
Psicologia. Trabalho realizado sob orientação do professor Dr. Vitor Geraldi Haase e
com bolsa de doutorado CAPES-REUNI, subsidiada pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) dentro do Programa de Apoio
a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI).
2) Université de Montréal, Montréal (UdeM), Quebéc, Canadá: Département de
psychologie, International Laboratory for Brain, Music and Sound Research
(BRAMS). Trabalho realizado sob orientação do professor Dr. Vitor Geraldi Haase e
supervisão da professora PhD. Isabelle Peretz e com bolsa de doutorado sanduiche
financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
1. INTRODUÇÃO
Figura 1. Esquema relacionando as áreas e mecanismos envolvidos na percepção e
compreensão musical (adaptado de Warren, 2008)... 22
2. ESTUDO I: Amusias and modularity of musical cognitive processing.
Figura 1: Cognitive-neuropsychological model of music processing, sketching the components
and processes involved in music recognition (adapted by permission from Macmillan
Publishers Ltd: [Nature Neuroscience] (Peretz, I., & Coltheart, M. Modularity of music
processing. Nature Neuroscience, 6(7), 688-691), copyright (2003)………47
3. ESTUDO II: Montreal Battery of Evaluation of Amusia: validity evidence and norms for
adolescents in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil.
Figura 1. Cognitive-neuropsychological model of music processing (Adapted by permission
from Macmillan Publishers Ltd: [Nature Neuroscience] (Peretz, I. & Coltheart, M. Modularity
of music processing, 6 (7), 688–691). Copyright (2003)...58
Figure 2. Distribution of global composite scores obtained on the MBEA for 150 normal
adolescents………61
4. ESTUDO III: Modularity of Pitch Processing in Congenital Amusia: A Meta-Analysis.
Figura 1. A modular model of music processing, reproduced with permission from Peretz &
Coltheart (2003)……… 67
Figura 2. Forest plot showing performance gap effect sizes (r) by study………...79
Figura 3. Forest plot showing all performance gap effect sizes (r)……….. 80
Figura 4. The effect of size of pitch change on the performance gap between controls and
amusics………...81
Figura 5. The effect of participant age on the performance gap between controls and
Figura 6. Forest plot of effect sizes for the correlation data……….. 84
Figura 7. Montreal database acoustic pitch discrimination plotted against MBEA scale
scores.………..………..85
5. ESTUDO IV: Magnitude Processing in Numerical and Musical Domains.
Figura 1. Plots for means of reaction time obtained by the participants in Non-Symbolic
numerical magnitude comparison task on the eight different ratios……….. 108
Figura. 2. Plots for mean performance (% of correct responses) obtained by the participants in
the Non-Symbolic numerical magnitude comparison task on the eight different
ratios………...…..109 Figura. 3. Plots for means of reaction time obtained by the participants in the Symbolic
numerical magnitude comparison task on the four different distances……….… 111
Figura. 4. Plots for mean performance (% of correct responses) obtained by the participants in
the Symbolic numerical magnitude comparison task on the four different
distance………....…112
Figura. 5. Plots for the difference value obtained by the participants on the Mental Number Line
task on the four different scales………. 114 Figura. 6. Plots for difference value (absolute values) obtained by the participants on the
LISTA DE TABELAS
1. ESTUDO I: Amusias and modularity of musical cognitive processing.
Tabela 1. Case studies of acquired amusias, published from 1990 to 2003, showing selective
deficits in musical processing……….,……….49
2. ESTUDO II: Montreal Battery of Evaluation of Amusia: validity evidence and norms for
adolescents in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil.
Tabela 1. D indexes for MBEA Tests………...…. 60
Tabela 2. Principal component analysis of MBEA………... 61
Tabela 3. Norms of MBEA for single case studies (Belo Horizonte-MG)…………...62
Tabela 4. Norms of MBEA for adolescents aged 14 to 18 years………..62
Tabela 5. Proposal for a short version of the MBEA………... 63
3. ESTUDO III: Modularity of Pitch Processing in Congenital Amusia: A Meta-Analysis. Tabela 1: Pitch discrimination tasks included in meta-analytic database……….………..73
Tabela 2. Continuous moderators of the control-amusic performance gap……….…..73
Tabela 3. Dichotomous moderators of the control-amusic performance gap………..…. 73 4. ESTUDO IV: Magnitude Processing in Numerical and Musical Domains. Tabela 1. Characteristics of the participants and their mean percentage of correct answers on musical tests………105
Tabela 2. Correlation between w and musical tasks for the amusic group……….109
Tabela 3. Correlations between non-symbolic task and musical tasks for the control group……….…..110
5. ESTUDO V: Investigação da relação entre o processamento musical e o processamento
numérico na Síndrome de Williams.
Tabela 1. Média e desvio padrão dos participantes do grupo controle no TDE e Raven...134
Tabela 2. Teste t para diferença entre o grupo SW e os grupos controle (IM e IC)...135
Tabela 3. Dados demográficos e QIs dos adolescentes com SW...138
Tabela 4. Resultados dos adolescentes nos testes de avaliação neuropsicológica...139
Tabela 5. Resultados dos adolescentes dos testes de avaliação da linguagem...139
LISTA DE GRÁFICOS
1. ESTUDO V: Investigação da relação entre o processamento musical e o processamento
numérico na Síndrome de Williams.
Gráfico 1. Média e desvio padrão da percentagem de acerto para cada grupo em cada domínio
musical...135
Gráfico 2. Média e desvio padrão da fração de Weber para cada grupo...137
Gráfico 3. Diagrama de dispersão com ajuste linear da relação entre o valor w para a tarefa de
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
9-HTP Nine Hole Peg Test
ABSW Associação Brasileira de Síndrome de Williams
ANOVA Analysis of variance
ANS Approximate number system
ATOM A Theory of Magnitude
BRAMS International Laboratory for Brain, Music and Sound Research
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
DP Desvio padrão
DTI Diffusion tensor imaging
EFA Exploratory factor analysis
e.g exempli gratia, por exemplo
FA False alarm
fMRI Functional magnetic resonance imaging
GH Giro de Heschl
HIPS Segmento horizontal do sulco intraparietal
i.e. id est, isto é
IC Idade cronológica
IM Idade mental
IPS Intraparietal sulcus, sulco intraparietal
JND Just noticeable difference
K-R20 Kuder-Richardson Formula 20
KMO Kaiser-Meyer-Olkin test
LILACS Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde
LND Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento
M Média
MBEA Montréal Battery of Evaluation of Amusia
MBEMA Montréal Battery of Evaluation of Musical Abilities
MD Mão dominante
ML Maximum-likelihood
MND Mão não dominante
MRI Magnetic resonance imaging
ms. Millisecond
PASW Predictive Analytics SoftWare
PCD Pitch change detection task
QI Quociente de inteligência
RAN Rapid automatized naming
REML Restricted maximum-likelihood
RT Reaction time
SciELO A Scientific Electronic Library Online
SD Standard Deviation
SE Standard error
SMARC Spatial-Musical Association of Response Codes
SNARC Spatial-Numerical Association of Response Codes
SW Síndrome de Williams
TDE Teste de desempenho escolar
TNVA Transtorno não-verbal de aprendizagem
UdeM Université de Montréal
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
VBM voxel-based morphometry
vs. versus, contra
w Weber`s fraction
WAIS-III Escala de inteligência Wechsler para adultos
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ... ...20
1.1. Questões de pesquisa ... 27
1.2 Referências ... 37
2. ESTUDO I: Amusias and modularity of musical cognitive processing ... ...44
2.1 Introduction ... 44
2.2 Amusias ... 44
2.3 Cognitive-neuropsychological model of musical perception and memory ... 46
2.4 Validity of the model ... 47
2.5 Congenital Amusia ... 50
2.6 Conclusion ... 52
2.7 References ... 53
3. ESTUDO II: Montreal Battery of Evaluation of Amusia: validity evidence and norms for adolescents in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil ... ... ...56
3.1 Introduction ... 56
3.2 Methods ... 59
3.2.1 Participants ... 59
3.2.2 Materials ... 59
3.2.3 Procedures ... 60
3.2.4 Statistical analyses ... 60
3.3 Results ... 60
3.3.1 Item dimensionality ... 60
3.3.2 Item difficulty ... 60
3.3.3 Item discrimination ... 60
3.3.4 Reliability ... 61
3.3.5 Factor validity ... 61
3.3.6 Participant performance profile on the MBEA. ... 61
3.3.7 Establishment of norms for the MBEA ... 61
3.3.8 Proposal for a short version of the MBEA ... 61
3.4 Discussion ... 62
3.5 Acknowledgments ... 64
3.6 References ... 64
4. ESTUDO III: Modularity of Pitch Processing in Congenital Amusia: A Meta-Analysis ... ...65
4.1 Introduction ... 66
4.2 Methods ... 71
4.2.1 Search Procedure ... 71
4.2.2 Inclusion and Exclusion Criteria for Database ... 71
4.2.3 Performance Gap Analysis ... 72
4.2.4 Correlation Analysis ... 77
4.3 Results ... 79
4.3.1 Performance Gap: Overall Effect Size ... 79
4.3.2 Performance Gap: Moderator Analysis ... 80
4.3.3 Correlations: Meta-analytic Database ... 83
4.4 Discussion ... 86
4.5 Acknowledgments ... 90
4.6 References ... 90
5. ESTUDO IV: Magnitude Processing in Numerical and Musical Domains ... ...96
5.1 Introduction ... 98
5.2 Method ... 105
5.2.1 Participants ... 105
n.s. non-significant. ... 105
5.2.2 Material ... 105
5.2.3 Procedures ... 107
5.3 Results ... 107
5.3.1 Non-symbolic numerical magnitude comparison task ... 107
5.3.2 Symbolic numerical magnitude comparison task ... 110
5.3.3 Mental Number Line task ... 113
5.4 Discussion ... 115
5.5 Acknowledgments ... 118
5.6 References ... 118
6. ESTUDO V: Investigação da relação entre o processamento musical e o processamento numérico na Síndrome de Williams ... ...124
6.1 Introdução ... 126
6.2 Método ... 128
6.2.1 Participantes ... 128
6.2.2 Instrumentos de coleta de dados ... 129
8.1.3. Procedimentos ... 132
6.3 Resultados ... 133
6.3.1 Resultados obtidos no TDE e Raven ... 133
6.3.2 Resultados obtidos nas tarefas musicais ... 134
6.3.3 Resultados obtidos na tarefa de avaliação do senso numérico ... 136
6.3.4 Relação entre as tarefas musicais e numéricas ... 137
6.3.5 Análise de série de casos clínicos ... 138
6.4 Discussão ... 140
6.5 Agradecimentos ... 145
6.6 Referências ... 145
7. DISCUSSÃO GERAL ... ...150
7.1. Referências ... 156
20
1. INTRODUÇÃO
O estudo da música a partir de uma perspectiva neurocientífica tem recebido cada vez
mais atenção por parte de pesquisadores de diferentes áreas, tais como a psicologia, a música e
a biologia (Levitin & Tirovola, 2009). Dentro deste contexto a música não é considerada
somente uma atividade artística e social, mas também uma função cognitiva complexa. Nos
últimos anos, os estudos sobre o processamento cognitivo musical e suas bases
neuroanatômicas tiveram consideráveis avanços que permitiram a evolução de seu
conhecimento teórico e dos construtos a ele relacionados (Stewart, Kriegstein, Warren, &
Griffiths, 2006). A percepção e a execução musical têm fundamentos biológicos (Peretz, 2006)
e há evidências de que o processamento musical se constitua em um domínio cognitivo
específico, com redes neurais especializadas (Zatorre, 2001; Peretz, 2003; Peretz & Coltheart,
2003). Por se tratar de uma função cognitiva complexa, o estudo do processamento musical
pode fornecer insights também para a compreensão de outras funções cognitivas e das redes
neurais envolvidas no funcionamento cerebral de alta ordem.
Estudos utilizando técnicas de neuroimagem e estudos sobre indivíduos com déficits
seletivos de habilidades musicais contribuíram para a compreensão dos mecanismos
subjacentes ao processamento musical evidenciando sua complexidade e levantando a hipótese
da organização modular da música no cérebro. De acordo com Peretz e Coltheart (2003), nesta
perspectiva, as habilidades musicais fazem parte de um módulo mental distinto composto por
subsistemas de processamento, cujos domínios são restritos a aspectos particulares da música.
Sendo assim, uma anomalia neurológica pode tanto danificar um ou mais componentes de
processamento musical quanto interferir na passagem de informações entre eles.
Os déficits seletivos de habilidades musicais são agrupados sob o termo amusias e
podem afetar tanto o reconhecimento quanto a reprodução das melodias ou de seus
componentes (altura, intensidade, timbre, duração e harmonia). As amusias podem ser de dois
tipos: a amusia adquirida, como consequência de doenças ou lesões cerebrais; e a amusia
congênita, presente desde o nascimento e que pode ocorrer devido a fatores hereditários (Hyde
& Peretz, 2004; Peretz, Cummings, & Dubé, 2007). Os estudos realizados com indivíduos
amúsicos favoreceram a construção de modelos úteis para a compreensão e avaliação dos
componentes envolvidos no processamento musical, tais como o que será abordado no primeiro
artigo desta tese, o qual foi desenvolvido por Isabelle Peretz (Peretz & Coltheart, 2003) e
21
Outros modelos cognitivos foram propostos para elucidar os componentes do
processamento musical não somente em indivíduos que sofreram lesões cerebrais como
também em indivíduos sem alterações neurológicas. Warren (2008), por exemplo, propôs um
esquema de organização do cérebro musical, ou seja, das áreas e mecanismos envolvidos na
percepção e compreensão da música pelo ouvinte típico que sugere como os componentes do
processamento musical se relacionam tanto funcionalmente quanto anatomicamente. Neste
esquema, indicado na Figura 1, a música, enquanto um estímulo auditivo complexo, segue uma
organização hierárquica anatômica e funcional com componentes acústicos mais básicos
(frequência fundamental, sons harmônicos, duração e intensidade) sendo codificados primeiro,
passando por estágios sucessivos de processamento das características perceptuais, acessando
o conhecimento e memória musical armazenado, importando informações de outros domínios
e, por fm, elaborando a resposta comportamental. A música é processada inicialmente nas vias
auditivas ascendentes, nas quais são codificadas as estruturas acústicas elementares como, por
exemplo, no caso da altura, a energia de uma onda de frequência específica. Já a altura,
considerada enquanto percepto e resultante dos padrões totais do sinal acústico, é processada
em regiões corticais.
De acordo com Warren (2008), os padrões perceptuais são inicialmente processados no
córtex auditivo primário localizado na parte medial do giro de Heschl (GH), na porção superior
do lobo temporal dentro da fissura lateral. Em torno do GH estão redes de áreas corticais de alta
hierarquia que processam propriedades específicas dos sons complexos, representadas pelos
lobos temporal, frontal e parietal. O planum temporale fica localizado posteriormente em
relação ao GH, sendo uma área de associação auditiva implicada na análise de atributos como
localização espacial, características identificáveis tais como sílabas e timbres de vozes e
instrumentos. O giro temporal superior é anterior ao GH e participa da análise de fluxos de
informação auditiva (fala e melodia). A identificação de melodias familiares envolve a ínsula e
áreas adjacentes à porção anterior do lobo temporal. Os lobos parietal e temporal fazem a
associação entre a informação auditiva e de outras modalidades sensoriais, principalmente a
visão. Já a memória de trabalho para música e respostas ao som são mediadas por circuitos dos
lobos frontal e parietal. Portanto, várias regiões cerebrais, que se relacionam em uma hierarquia
funcional, estão envolvidas no processamento dos componentes musicais.
22
FIGURA 1. Esquema relacionando as áreas e mecanismos envolvidos na percepção e compreensão musical (adaptado de Warren, 2008).
Evidências recentes de estudos voltados para a especialização cerebral em música
advêm também de pesquisas realizadas com distúrbios congênitos de habilidades musicais
(Peretz, 2003). A amusia congênita, só tem sido sistematicamente investigada recentemente
(Ayotte, Peretz, & Hyde, 2002) e é definida como uma incapacidade vitalícia para o
processamento musical, a despeito de habilidades normais de inteligência, memória e
linguagem (Hyde e Peretz, 2004). Estudos recentes sobre a amusia congênita mostram
evidências de alterações estruturais e funcionais do giro temporal superior e da porção inferior
do córtex frontal, que indicam a ocorrência de conectividade anormal entre essas áreas (Peretz,
Brattico, & Tervaniemi, 2005; Hyde, Zatorre, Griffiths, Lerch, & Peretz, 2006; Hyde, Lerch,
Zatorre, Griffiths, Evans, & Peretz, 2007; Mandell, Schulze, & Schlaug, 2007). Estudos
utilizando potencial evocado de longa latência relacionado a evento também evidenciam que a
atividade elétrica do córtex auditivo de amúsicos é intacta e que os padrões de alterações
eletrofisiológicas encontrados se localizam provavelmente ao longo de vias fora do mesmo,
23
no entanto, estarem conscientes disso (Peretz et al., 2005; Peretz, Brattico, Järvenpää, &
Tervaniemi, 2009). Loui, Alsop e Schlaug (2009) identificaram, a partir de um estudo de
neuroimagem utilizando tractografia de difusão, anormalidades da substância branca no cérebro
de amúsicos com redução no volume e alterações na estrutura do fascículo arqueado (trato de
fibras que liga o córtex temporal ao córtex frontal inferior), principalmente no hemisfério
direito. A redução de volume correlacionou-se com maior grau de incompatibilidade
(mismatch) entre a percepção e produção do som musical, medida através de testes psicofísicos
de discriminação da altura (Loui et al., 2009).
Em um estudo utilizando estimulação direta transcraniana (transcranial direct current
stimulation – TDCS), uma técnica de intervenção ativa e não-invasiva de estimulação cerebral,
Loui, Hohmann, & Schlaug (2010) observaram redução na acurácia da percepção da altura do
som após a estimulação das áreas frontal inferior e temporal superior em indivíduos normais,
demonstrando que a função e conectividade intactas entre estas duas áreas são necessárias para
a percepção das alterações melódicas. Hyde, Zatorre e Peretz (2011), por sua vez, utilizando
imagem de ressonância magnética (IRM) em tarefas de audição de sequências melódicas
montadas com tons puros, nas quais a distância entre tons consecutivos variava
parametricamente, mostraram que a atividade cerebral aumentava com a distância entre os tons
no córtex auditivo direito e esquerdo de amúsicos e controles. Em contraste, o giro frontal
inferior direito mostrou baixa atividade e evidência de redução da conectividade com o córtex
auditivo nos amúsicos, em comparação com os controles. Todos estes estudos têm levantado
evidências para sustentar a hipótese de que a amusia congênita constitui-se em uma síndrome
de desconexão entre o córtex auditivo direito e o giro frontal inferior direito.
As amusias podem ser avaliadas a partir de baterias de testes como a Montreal Battery
of Evaluation of Amusia (MBEA) e através de testes psicofísicos de discriminação da altura
com limiar superior a meio semitom (Foxton, Dean, Gee, Peretz, & Griffiths, 2004; Loui,
Guenther, Mathys, & Schlaug, 2008). A MBEA é uma bateria de testes que avalia habilidades
musicais referentes a seis componentes do processamento musical (contorno, escala, intervalo,
ritmo, métrica e memória musical) e permite o diagnóstico de diferentes amusias. O
desenvolvimento da MBEA foi norteado pelo modelo cognitivo-neuropsicológico do
processamento musical proposto por Isabelle Peretz (Peretz, Champod, & Hyde, 2003). A
MBEA foi traduzida e adaptada para a população brasileira a partir de um estudo realizado com
adolescentes de 14 a 18 anos da cidade de Belo Horizonte do estado de Minas Gerais (Nunes,
24
De acordo com Sloboda, Wise e Peretz (2005), a amusia congênita se revela como um
transtorno de aprendizagem musical, sem nenhuma dificuldade neurológica ou cognitiva
associada, que aparece precocemente e persiste até a idade adulta. Apesar disto, quase não há
estudos sistemáticos sobre a amusia em crianças. Um estudo sistemático foi realizado por
Lebrun, Moreau, McNally-Gagnon, Goulet e Peretz (2012), no qual é descrito um caso
documentado de amusia congênita na infância em uma menina de 10 anos (AS). AS apresentou
um perfil semelhante ao de adultos com amusia congênita, obtendo resultados baixos para
memória e percepção melódica e rítmica em uma versão para crianças da MBEA, a despeito de
prática musical regular e resultados normais de audiometria, inteligência, linguagem e atenção.
Ao contrário de amúsicos adultos, AS apresentou alterações na resposta cerebral elétrica para
pequenas mudanças de frequência (25 cents, que corresponde a um quarto de semitom),
apontadas pelo Mismatch Negativity (MMN), o que pode indicar, segundo os autores, que há
um atraso de maturação do córtex auditivo, sugerindo que há diferença entre o perfil do amúsico
em desenvolvimento e o fenótipo estável do amúsico adulto. A amusia congênita pode se
figurar, portanto, como um transtorno de aprendizagem específico para a música.
Estudos realizados tanto com indivíduos normais, músicos e não músicos, quanto com
indivíduos amúsicos também permitem uma maior compreensão, não somente das bases
neuroanatômicas do processamento musical, como também de sua especificidade ou, em
contrapartida, dos mecanismos compartilhados com outras funções cognitivas. Pesquisas
utilizando neuroimagem indicam que há diferenças entre o cérebro do músico e do não músico,
em relação à lateralização (músicos têm maior ativação do hemisfério esquerdo) e diferenças
em regiões cerebelares e calosas e em áreas somatosensoriais, motoras e auditivas (Gaser &
Schlaug, 2003; Amunts, et al., 1997; Schlaug, Jancke, Huang, Staiger, & Steinmetz, 1995;
Schneider, Scherg, Dosch, Specht, Gutschalk, & Rupp, 2002; Hutchinson, Lee, Gaab, &
Schlaug, 2003). Estudos demonstram que músicos podem apresentar desempenho superior a
não músicos em tarefas de memória verbal, tarefas visuoespaciais, de atenção, além de
produção mais rápida de movimentos sacádicos (Brochard, Dufour, & Despres, 2004; Sluming,
Howard, Downes, & Roberts, 2007; Brandler & Rammsayer, 2003). Além da investigação das
diferenças funcionais, estruturais e comportamentais entre músicos e não-músicos a relação
entre música e outras funções cognitivas têm sido investigada também por estudos que
relacionam o treinamento musical com o desenvolvimento de outras habilidades cognitivas, tais
como verbais, visuoespaciais, consciência fonológica, leitura, inteligência e habilidades
25
Cheung, & Chan, 2003; Schellenberg, 2006). Estes estudos também contribuem para
compreensão de quais mecanismos do processamento musical são específicos e quais são
compartilhados.
Especificamente considerando a relação entre música e matemática, os estudos são
escassos e geralmente visam testar a hipótese de que o treinamento musical pode melhorar o
desempenho em tarefas matemáticas (Vaughn, 2000). Em uma busca realizada em março de
2013 nos bancos de dados da PubMed, com os termos “music” ou “amusia” e “arithmetic” ou
“dyscalculia” ou “mathematical learning disability”, não foram encontrados estudos que tivessem como objetivo investigar se há alguma relação entre os déficits de cada um destes
domínios, a partir da avaliação do processamento musical em indivíduos com transtorno de
aprendizagem na matemática, ou, em outra via, da avaliação do processamento numérico de
indivíduos amúsicos.
O transtorno de aprendizagem da matemática, também denominado discalculia, é um
transtorno específico deste domínio, de provável etiologia neurogenética, que ocorre a despeito
de nível de inteligência normal e oportunidade de aprendizagem escolar adequada (Butterworth,
2005; Geary, 2011). Em relação aos mecanismos cognitivos propostos para caracterizar a
discalculia e déficits associados, há duas abordagens principais (Mazzocco, Feigenson, &
Halberda, 2011). A primeira é a de domínio geral, que defende que os déficits subjacentes não
são especificamente relacionados à aprendizagem matemática, mas sim resultantes de
disfunções de sistemas cognitivos gerais, tais como memória de trabalho, memória de longo
prazo e processamento visuoespacial (Geary, 2011). A segunda é a abordagem de domínio
específico, cujos déficits são associados a disfunções do processamento numérico ou do senso
numérico, que é a capacidade de perceber e se adaptar à quantidade de objetos de um
determinado conjunto e está associado a um substrato neural específico (Dehaene, Piazza, Pinel,
& Cohen, 2003; Butterworth, 2005; Wilson & Dehaene, 2007).
De acordo com Wilson e Dehaene (2007), os déficits da discalculia do senso numérico,
relacionados à representação analógica de magnitudes, são associados a prejuízos funcionais e
estruturais do segmento horizontal do sulco intraparietal (HIPS). Estudos evidenciam também
o envolvimento do sulco intraparietal (IPS) em diferentes tarefas relacionadas ao
processamento de magnitudes numéricas (Dehaene, Piazza, Pinel, & Cohen, 2003; Hubbard,
Piazza, Pinel, & Dehaene, 2005). Porém, o IPS pode estar relacionado não somente a
magnitudes numéricas. Dados de neuroimagem mostrando padrões de ativação compartilhados
26
mecanismo geral para o processamento de magnitudes no sulco intraparietal (Fias et al. 2003,
Kadosh et al., 2005). Walsh (2003) também argumenta a favor da existência de um mecanismo
comum para o processamento de magnitudes e propõem a teoria da magnitude (ATOM), na
qual espaço, tempo e quantidade fazem parte de um sistema de magnitude generalizado. De
acordo com estes pressupostos, tarefas que envolvem um componente de discriminação de
magnitudes, independente da modalidade sensorial, ativariam o sulco intraparietal, o qual
poderia ser considerado como uma região cerebral especializada no processamento amodal de
magnitudes.
Estudos utilizando estímulos musicais, principalmente altura (pitch), têm mostrado que
o IPS pode desempenhar um papel importante no processamento de magnitudes e manipulação
das informações relacionadas a estes estímulos (Schwenzer e Mathiak, 2011; Foster e Zatorre,
2010), sugerindo que o processamento de identificação de alturas no domínio auditivo possa
estar relacionado ao processamento de numerosidade no domínio visual. Estudos
comportamentais também evidenciam efeitos similares aos dos estímulos numéricos para os
estímulos musicais. São observados muitos paralelos entre os desempenhos comportamentais
em tarefas de discriminação envolvendo magnitudes numéricas, não-numéricas e percepção de
altura (Rusconi et al., 2006; Cohen Kadosh, Lammertyn, & Izard, 2008; Cohen Kadosh,
Brodsky, Levin & Henik, 2008; Bonn & Cantlon, 2012).
A despeito de evidências que sugerem haver uma relação entre o processamento de
magnitudes numéricas e de magnitudes de altura, uma dissociação entre os domínios de
processamento musical e de processamento numérico parece ocorrer na Síndrome de Williams
(SW). A SW é um transtorno genético do desenvolvimento caracterizada por retardo mental
leve a moderado, dismorfias faciais, anormalidades nos sistemas cardiovascular,
musculoesquelético e gastrointestinal e um perfil cognitivo constituído de habilidades sociais,
musicais, verbais e de reconhecimento de faces relativamente preservadas, e de habilidades
visuoespaciais e numéricas comprometidas (Levitin & Bellugi, 1998; Mervis et al., 2000;
Paterson & Schultz, 2007). Indivíduos com SW apresentam déficits na representação de
magnitudes numéricas (Paterson, Girelli, Butterworth & Karmiloff-Smith, 2006, Ansari,
Donlan & Karmiloff-Smith, 2007), mas por outro lado, parecem apresentar habilidades
musicais preservadas (Levitin & Bellugi, 1998, Levitin et al., 2004, Levitin, 2005). Isto indica
que pode haver, em determinado nível, uma dissociação entre os domínios de processamento
27
Dentro deste contexto, a presente tese teve por objetivo investigar a hipótese da
modularidade e especificidade do processamento cognitivo musical, abordando as bases
teóricas da modularidade do processamento cognitivo musical, a avaliação das habilidades e
déficits do processamento musical e a relação entre a cognição musical e outros domínios
cognitivos, tais como o processamento acústico e a cognição numérica. O presente trabalho
constitui-se em uma tese de doutorado elaborada dentro do Programa de Pós-graduação em
Neurociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Espera-se que os resultados
obtidos nesse trabalho sirvam para as seguintes finalidades: 1) contribuir para a maior
compreensão do processamento cognitivo musical em geral, das características de seu
desenvolvimento e dos déficits de habilidades musicais; 2) fornecer instrumentos validados
para a avaliação da percepção musical e diagnóstico dos déficits relacionados ao processamento
musical; 3) possibilitar uma maior compreensão da natureza do déficit na amusia congênita; 4)
contribuir para elucidação da relação entre funções musicais e outras funções cognitivas, no
caso a cognição numérica; 5) auxiliar na caracterização do perfil neuropsicológico musical de
crianças e adolescentes com SW; 6) contribuir para o aperfeiçoamento de medidas terapêuticas
coadjuvantes que utilizam a música, tais como a musicoterapia 7) fornecer subsídios
teórico-metodológicos para a educação musical e medidas educacionais que se utilizem da música para
treinamento de habilidades matemáticas.
1.1. Questões de pesquisa
A modularidade mental refere-se à noção de que a mente é composta por múltiplos
processos distintos e não de somente um processo geral e indiferenciado. A modularidade é
uma das principais questões abordadas dentro da ciência cognitiva sendo alvo de intensos
debates nas últimas décadas (Barrett & Kurzban, 2006). O conceito de modularidade em ciência
cognitiva remonta à publicação do livro The Modularity of Mind escrito por Fodor (1983), que
propõe, a partir de uma perspectiva inatista, uma alternativa à visão interacionista da arquitetura
cognitiva, que era dominante na época. Fodor (1983) introduz o conceito de processos
psicológicos verticais e modulares, diferenciando-os dos processos horizontais (i.e. memória,
julgamento), e questionando a ideia de continuidade entre percepção e cognição proposta pelos
cognitivistas da época, que pressupõe que toda a informação prévia está disponível para a
execução da integração perceptual. Para Fodor, a tese principal da modularidade é a de que a
28
encapsulados. Isto quer dizer que o sistema modular não tem completo acesso às expectativas,
crenças, suposições e desejos do indivíduo, pois deve garantir a velocidade de processamento
da informação e a automação. Portanto, de acordo com Fodor (1983), para um sistema ser
considerado modular, as seguintes características devem ser observadas: 1) especificidade de
domínio, na qual as operações mentais não atravessam outros domínios de conteúdo; 2)
inatismo, que corresponde à extensão em que a estrutura pode ser considerada inata ou é
desenvolvida a partir da aprendizagem; 3) não são montados (not assembled), ou seja, não são
resultado da agregação de subprocessos mais elementares; 4) são pré-programados (hardwired),
ou seja desenvolvidos para trabalhar de maneira especializada e relacionados a uma rede neural
específica, localizada e estruturada; 5) são autônomos, ou seja, não compartilham recursos, tais
como memória e atenção, com outros sistemas cognitivos.
A análise sobre a modularidade cognitiva proposta por Fodor (1983) teve uma grande
influência sobre os trabalhos posteriores em ciência cognitiva, mas também foi alvo de
mal-entendidos, principalmente em relação às características principais propostas por Fodor para os
sistemas modulares. Apesar da observação das características principais propostas por Fodor
ser importante para se considerar um sistema como modular, muitos subtendidos ocorreram ao
se tomar todas estas características como condições necessárias para a modularidade do sistema.
Ponderando sobre estes mal-entendidos, Coltheart (1999) propõem, a partir do trabalho de
Fodor, uma definição reformulada do conceito de modularidade no contexto da neuropsicologia
cognitiva, e argumenta que a principal característica e condição necessária para um sistema ser
modular é a especificidade de domínio, na qual o sistema só responde a um determinado tipo
de input. Coltheart evidencia que as outras características propostas por Fodor não são
absolutamente necessárias para definir o termo modular, sendo que o sistema, por exemplo,
pode ser modular mas não inato, tal como o sistema de leitura. O autor sugere que as
características propostas deveriam ser consideradas como questões empíricas a serem
consideradas para cada módulo. Além disso, Coltheart argumenta que a presença de top-down
feedback nos módulos não violaria a característica de encapsulação de informação, uma vez
que não interfere em sua implicação principal que é a de permitir aos módulos processarem
rapidamente os inputs recebidos. Adicionalmente, o tipo de informação a que o módulo não
teria acesso seriam as crenças, desejos e suposições do indivíduo. O autor também indica que a
característica do módulo de não ser agregado não foi totalmente desenvolvida por Fodor. De
acordo com Coltheart, a ideia geral de que os módulos poderiam ter subníveis de representação
29
Fodor (1983) já havia sugerido ao identificar dentro dos módulos, níveis distintos de
processamento que comunicam entre si. Deste modo, dentro do contexto da neuropsicologia
cognitiva, o conceito de modularidade foi adotado como base para a construção de modelos
cognitivos-neuropsicológicos que buscam compreender o processamento cognitivo de
indivíduos com desenvolvimento típico e dos padrões de déficits congênitos e adquiridos de
vários domínios cognitivos. As características propostas por Fodor são consideradas como
questões empíricas a serem testadas para cada módulo, e este pode conter subníveis de
representação que comunicam entre si.
A abordagem inatista da modularidade dos sistemas cognitivos, portanto, busca
identificar os comprometimentos de módulos específicos e estuda as duplas-dissociações
observadas a partir dos padrões de habilidades comprometidas e preservadas. Como
consequência, esta abordagem inatista da modularidade acaba por subestimar o papel dos
processos de desenvolvimento na formação da arquitetura cerebral. Esta crítica é evidenciada
principalmente por Karmiloff-Smith (1995), que adota uma visão neoconstrutivista da
modularidade, mas levando-se em conta as predisposições inatas do indivíduo. A autora
considera o desenvolvimento como uma construção ativa a partir da interação entre genes,
cérebro, comportamento e ambiente. Nesta visão, o desenvolvimento da mente não partiria de
módulos pré-especificados, mas envolveria um processo gradual de modularização.
Karmiloff-Smith (1998) argumenta que a especificidade de domínio inata seria uma característica chave
do desenvolvimento humano. Porém esta característica seria apenas um ponto de partida para
o módulo e poderia ser considerada inicialmente como domínio-relevante, somente
tornando-se domínio-específico a partir dos processos de detornando-senvolvimento e de determinadas interações
ambientais, sendo resultado do processamento de diferentes tipos de inputs.
Thomas e Karmiloff-Smith (2002) ressaltam que o conceito de modularidade ainda é
controverso, havendo divergências sobre o que seria a propriedade principal do módulo. Além
disso, afirmam que a utilização de modelos cognitivos explicativos dos déficits adquiridos em
adultos com desenvolvimento típico para avaliar e identificar componentes preservados ou
comprometidos em indivíduos com transtornos do desenvolvimento não levaria em conta os
processos ocorridos durante um desenvolvimento atípico e as diferenças entre os dois tipos de
sistemas, uma vez que pressupõe que os módulos são pré-determinados. Como os transtornos
do desenvolvimento envolvem um dano anterior à aprendizagem, Thomas e Karmiloff-Smith
consideram que os processos do desenvolvimento seriam o componente chave para explicar o
30
uma ferramenta mais útil para modelar o desenvolvimento humano e seus transtornos, uma vez
que, ao contrário dos déficits adquiridos que ocorrem por lesões no sistema maduro, aparecem
durante problemas no desenvolvimento. Karmiloff-Smith (1998) argumenta que, nestes casos,
as causas dos comprometimentos comportamentais seriam provavelmente encontradas em
propriedades computacionais de baixo nível, e que os genes não codificariam diretamente os
módulos de alto-nível. Sendo assim, o desenvolvimento atípico da estrutura modular emergente
não seria o mesmo de um caso adulto típico. Mesmo que um dano precoce seja limitado a um
componente específico, se a estrutura modular é dependente dos processos de desenvolvimento,
compensações podem ocorrer no sistema, alterando a função de componentes previamente
intactos. Portanto, o desenvolvimento por ele mesmo, desempenharia um papel crucial nos
resultados fenotípicos observados nos transtornos do desenvolvimento. Como os módulos
aparecem tarde no desenvolvimento seria esperado que fossem encontrados déficits de
desempenho que não são ligados à um domínio em particular, mas que são preferencialmente
espalhados por toda uma gama de diferentes tipos de prejuízos no desempenho.
Outros autores também levam em conta a relação entre a limitação genética e os padrões
emergentes da experiência ao longo do desenvolvimento na organização cerebral e funções
cognitiva mas situam a modularidade dentro do contexto evolucionário. Geary & Huffman
(2002), por exemplo, a partir de uma revisão teórica de estudos genéticos e neurobiológicos
sobre a arquitetura cerebral e considerando os níveis neural, perceptual, cognitivo e funcional,
argumentam que os graus de limitação e de abertura à modificação pela experiência são o
resultado evolutivo dos padrões de informação invariantes (informações confiáveis e
consistentes sobre as condições da espécie e do ambiente, com grau de continuidade entre
diferentes espécies) e variantes (informações inconstantes, que podem mudar durante o tempo
de vida e entre diferentes gerações) respectivamente, que covariaram com a sobrevivência ou
reprodução durante a história evolutiva das espécies. Portanto, a evolução dos sistemas
cognitivos modulares limitados geneticamente é favorecida pelos benefícios de um
processamento rápido e eficiente dos padrões de informação invariantes e o custo potencial de
não atender a estes padrões ou não diferenciá-los de padrões irrelevantes. Ao contrário, uma
organização aberta à modificação pela experiência implicaria em uma alta habilidade para
adaptar a mudanças nos padrões de informação (Geary & Huffman, 2002). Além disso, os
autores propõem tipos de modularidade suave (soft modularity), nos quais a plasticidade
31
variabilidade das condições sociais e ecológicas, porém dentro das restrições dos sistemas
prévios e comuns entre diferentes espécies.
Por sua vez, Barrette e Kurzban (2006) também consideram a compatibilidade entre as
visões evolucionária e modularista e, além disso, defendem a tese da modularidade maciça, na
qual considera-se, contrariamente à visão de Fodor (1983) de que só os sistemas periféricos
poderiam ser considerados modulares, que os processos centrais, tais como os sistemas
subjacentes ao raciocínio, julgamento e tomada de decisão, também poderiam ser considerados
modulares. A modularidade maciça argumenta que a cognição opera a partir de módulos, não
havendo um processador central geral. Os autores se propõe a avançar o debate sobre a visão
moderna de modularidade analisando suas críticas e elucidando os pontos principais para
debates futuros. Para os autores, o conceito de modularidade deve ser fundamentado na noção
de especialização funcional, no sentido de que, para realizar suas funções especializadas, os
módulos operariam em apenas determinados tipos de inputs ou inputs privilegiados relevantes
para essa função. A especificidade de domínio seria uma consequência necessária desta
especialização funcional e os domínios seriam individualizados pelas propriedades formais da
representação. Isso implica em que, mesmo sendo modular, um sistema pode receber mais de
um tipo de input, e que até mesmo os sistemas não periféricos, como a memória de trabalho por
exemplo, poderiam ser considerados modulares. Portanto, os autores abordam a modularidade
tendo por foco o input e a função e consideram principalmente as operações específicas
desempenhadas pelos módulos sobre as informações recebidas.
Para Barrette e Kurzban (2006), os módulos evoluem a partir de um processo de
descendência com modificação, sendo que os sistemas de desenvolvimento também são
incluídos dentro da perspectiva evolucionária. Neste contexto, os sistemas de desenvolvimento,
incluindo processos interativos e dinâmicos que ocorrem neste período, são moldados pela
seleção natural de modo a produzir resultados funcionalmente organizados, da mesma maneira
que promoveram a sobrevivência e a reprodução no ambiente natural associados a problemas
adaptativos enfrentados por nossos ancestrais. Para os autores, os sistemas modulares também
lidam com estímulos novos e permitem que estes estímulos sejam agregados e combinados de
novas maneiras. Consequentemente, as arquiteturas modulares de nível mais alto, tais como a
leitura, seriam provavelmente representações dos processos de desenvolvimento geradores de
módulos destinados inicialmente para outras funções. Sendo assim, Barrette e Kurzban
contrapõem o argumento de Karmiloff-Smith (1998) de que o desenvolvimento por si só
32
origem evolutiva. O papel da seleção natural seria moldar o critério de input de modo que o
módulo processe inputs de determinados domínios de uma maneira confiável, sistemática e
especializada. Qualquer estímulo que preenchesse o critério do input, mesmo que não estivesse
presente no ambiente natural, poderia ser processado pelo sistema modular. Portanto, os autores
consideram que a modularidade providencia esquemas úteis para direcionar pesquisas e debates
sobre os sistemas cognitivos individuais e sobre a evolução da cognição humana.
Apesar do debate constante, há ainda muitas questões em aberto sobre o estudo da
modularidade mental. Entre inatistas e interacionistas há controvérsias sobre o que poderia ser
considerado de domínio geral e o que seria de domínio específico. Mesmo entre os inatistas há
discussões sobre o grau de modularidade, variando-se de poucos módulos mais generalistas até
muitos módulos altamente especializados. Dentro deste contexto, a música, por ser uma
habilidade cognitiva complexa com função específica, se constitui em um excelente modelo
para investigação da hipótese da organização modular do cérebro. As evidências sobre a
modularidade e especificidade do processamento cognitivo musical indicam que as habilidades
musicais fazem parte de um módulo mental distinto, com seu próprio sistema de processamento
de informações e substrato neural específico (Zatorre, 2001; Peretz, 2003; Peretz, & Coltheart,
2003; Peretz, 2006). Peretz e Coltheart (2003) afirmam que a hipótese da modularidade é
compatível com o conhecimento atual acerca de como a mente processa a música. Para os
autores, ao se considerar a existência de um módulo de processamento musical deve-se
pressupor que há um sistema de processamento de informação cujas operações são específicas
para o processamento da música. Contestando a ideia de que as habilidades musicais poderiam
ser produto de uma arquitetura cognitiva de propósito geral, Peretz e Coltheart propõem uma
arquitetura funcional para o processamento musical que apreende as propriedades típicas da
organização modular e que compreende um grupo de componentes de processamento isoláveis
neurologicamente (ou subsistemas de processamento) cada um sendo potencialmente
especializado para o processamento musical. Os autores baseiam-se principalmente em
evidências de casos de indivíduos com déficits seletivos de habilidades musicais para identificar
a especialização neuronal, ou separabilidade neuroanatômica de outros domínios cognitivos.
Há evidências para a diferenciação entre música, linguagem e sons ambientais (Besson, Faïta,
Peretz, Bonnel, & Requin, 1998; Marin & Perry, 1999; Peretz, Belleville, & Fontaine, 1997;
Peretz, et al., 1994; Piccirilli, Sciarma, & Luzzi, 2000; Warren, Warren, Fox, & Warrington,
2003); entre duas rotas paralelas e dissociadas para o input musical: a rota temporal e melódica
33
2003); para a existência de dois mecanismos distintos dentro da dimensão melódica: contorno
e intervalo melódico (Ayotte et al., 2000; Peretz, 1990); e dentro da dimensão temporal: ritmo
e métrica (Liegeois-Chauvel, Peretz, Babai, Laguitton, & Chauvel, 1998; Peretz, 1990).
Peretz (2006), a partir de uma revisão de literatura, salienta que os estudos sobre a
especificidade de domínio da música, inatismo e localização cerebral que buscam entender a
música a partir de suas bases biológicas, e não a partir de uma abordagem cultural, contribuem
para sustentar a hipótese da organização modular da música no cérebro. A autora aponta que a
música é distribuída universalmente entre culturas e possui universalidades cognitivas.
Características musicais comuns podem ser encontradas em diferentes culturas, tais como a
produção de melodias, percepção de intervalos consonantes e dissonantes, organização de notas
em escalas e organização temporal. Além disso, destaca que o comportamento musical não é
recente na evolução humana e se constitui em uma habilidade ontogeneticamente precoce,
sendo que a percepção musical de bebês possui características similares a de adultos (Trehub,
2003). Adicionalmente, os mecanismos para percepção musical poderiam ser filogeneticamente
antigos e, adotando-se uma perspectiva evolucionária, terem evoluído a partir de seleção natural
por melhorar a capacidade reprodutiva no ambiente ancestral fortalecendo relações
interpessoais e grupais (Hauser & McDermott, 2003; McDermott & Hauser, 2005). Evidências
recentes de estudos voltados para a especialização cerebral em música advêm também de
pesquisas realizadas com distúrbios congênitos de habilidades musicais (Ayotte, Peretz, &
Hyde, 2002; Peretz, 2003; Hyde & Peretz, 2004). As amusias congênitas são concebidas como
presente desde o nascimento, podem ocorrer devido a influências genéticas (Hyde & Peretz,
2004; Peretz et al., 2007), e se apresentam como um transtorno específico do processamento
musical (Hyde & Peretz, 2004).
Porém, há algumas controvérsias em relação à especificidade do processamento
musical, como por exemplo, na diferenciação entre o processamento musical e o processamento
de linguagem (Patel, Peretz, Tramo, & Labreque, 1998; Nicholson, Baum, Kilgour, Koh,
Munhall, & Cuddya, 2003). Considerando a percepção melódica musical, por exemplo, os
mecanismos envolvidos na percepção do contorno melódico são compartilhados com o domínio
do processamento da linguagem (Peretz & Coltheart, 2003). Domínios temporais musicais
como ritmo e métrica e o componente emocional da música também podem não ser de domínio
específico (Peretz & Coltheart, 2003). Além disso, Trehub e Hannon (2006), a partir de uma
revisão de estudos sobre a percepção musical na infância, comparando com a percepção musical
34
musical, em relação a diferentes idades e espécies, os paralelos entre a percepção musical de
adultos e crianças poderia ser atribuído a limitações biológicas sobre o processamento de
informação, o qual operaria em consonância com vieses específicos da espécie e com a
aprendizagem. Os autores consideram que isto não iria contra a importância biológica da
música, e ressaltam que a manutenção do comportamento musical nas sociedades humanas
poderia dever-se a mecanismos motivacionais. Apesar de concluírem que as habilidades
musicais são produto de mecanismos perceptuais gerais que não são específicos nem da música
nem da espécie humana, Trehub e Hannon consideram que o processamento musical pode se
tornar modular ou automatizado, com o módulo sendo o resultado do desenvolvimento ou
treinamento, tal como sugerido por Karmiloff-Smith (1998). Adicionalmente, estudos que
investigam a relação entre as habilidades musicais e outras funções cognitivas tem encontrado
que as amusias podem apresentar-se associadas a déficits gerais tais como na memória de
trabalho, flexibilidade mental, cognição visuoespacial e funções executivas (Douglas e Bilkey,
2007; Särkämö et al., 2009). Há estudos que relacionam o treinamento musical com o
desenvolvimento de outras habilidades cognitivas, tais como verbais, visuoespaciais,
consciência fonológica, leitura, inteligência e habilidades matemáticas, também em crianças
(Rauscher & Zupan, 2000; Hetland, 2000; Vaughn, 2000; Anvari, Trainor, Woodside, & Levy,
2002; Ho, Cheung, & Chan, 2003; Schellenberg, 2006).
Considerando o debate existente na literatura, o presente trabalho teve por objetivo
investigar a hipótese de que a música é organizada modularmente no cérebro. As evidências
indicam que o processamento musical é constituído de um módulo mental de processamento de
informação cujas operações são específicas para este tipo de input, com subníveis de
processamento para diferentes aspectos da música (Zatorre, 2001; Peretz, 2003; Peretz &
Coltheart, 2003). Porém, questões relacionadas à diferenciação dos componentes específicos e
compartilhados da cognição musical ainda não foram respondidas e requerem mais estudos e
discussões. Portanto, as principais questões deste trabalho referem-se ao que pode ser
considerado como domínio específico do processamento musical e o que pode ser
compartilhado com outros domínios.
Para investigar a hipótese da modularidade do processamento cognitivo musical foi
adotada uma estratégia de pesquisa multi-método e multi-amostra. A tese foi dividida em cinco
estudos apresentados em forma de artigos científicos. No primeiro artigo são evidenciadas as
questões teóricas relacionadas à hipótese da modularidade do processamento cognitivo musical
35
brasileiro um instrumento validado para avaliação das habilidades e déficits do processamento
musical. O terceiro artigo levanta a questão sobre o que pode ser considerado de domínio
específico e o que é compartilhado em relação à percepção de altura nos domínios acústicos e
musicais. O quarto artigo investiga a hipótese da modularidade a partir da relação entre a
cognição musical e a cognição numérica em amúsicos congênitos. O quinto artigo também
investiga a relação entre a cognição musical e a cognição numérica, porém em indivíduos com
Síndrome de Williams (SW). Os artigos são apresentados a seguir juntamente com as hipóteses
a serem testadas:
1) O primeiro artigo, intitulado “Amusias and modularity of musical cognitive processing”, consiste em uma revisão integrativa, com o objetivo de investigar as evidências relacionadas à modularidade do processamento musical. Para isto são abordados os estudos
sobre o processamento cognitivo musical e seus déficits adquiridos e congênitos, os quais
forneceram evidências para a concepção da música enquanto um domínio específico com redes
neurais especializadas. Estes estudos permitiram a construção de modelos cognitivos
importantes para a compreensão e avaliação dos componentes envolvidos na percepção e
memória musical, que por sua vez, permitem testar as hipóteses relacionadas à modularidade
do processamento cognitivo musical. A revisão foi publicada em 2013 na revista Psychology
and Neuroscience, 6(1), 45-56.
2) Elucidados os componentes do processamento musical e seus déficits, o segundo
artigo, intitulado “Montreal Battery of Evaluation of Amusia: Validity evidence and norms for adolescentes in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil”, teve por objetivo verificar as
características psicométricas da versão traduzida e adaptada da MBEA para o Brasil (Nunes, C.
Loureiro, M. Loureiro & Haase, 2010), em uma amostra de 150 adolescentes de 14 a 18 anos
da cidade de Belo Horizonte, além de desenvolver normas específicas para esta população. O
estudo traz para o contexto brasileiro um instrumento para avaliação da percepção e memória
musical e diagnóstico de diferentes tipos de amusias e propõe, baseado na análise de seus itens,
uma versão reduzida da MBEA. Em relação à questão da modularidade, o estudo contribui para
identificar quais domínios musicais estão comprometidos e preservados nos indivíduos
avaliados, além de permitir comparações interculturais sobre a percepção musical,
identificando universalidades e diferenças culturais. O artigo foi publicado em Dezembro de