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ASUBLIMAÇÃOJURÍDICADAFUNÇÃOSOCIALDA
PROPRIEDADE
RafaelLazzarottoSimioni
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simbolicamente.MascomoafunçãosocialdoDireitonãoé aprestaçãomaterialdepropriedades,essasimbolizaçãonor-mativadafunçãosocialdapropriedadeacabamistificando oconflitopolíticoatravésdasuageneralizaçãosimbólica, conquistadapelautilizaçãodoDireitocomoestruturade codificaçãosecundária.
ArespeitodessarelaçãoparasitáriaentreDireitoePolí-tica(Luhmann,1994),oqueacomunidadecientíficatem feito na grande massa das publicações foi desviar o foco daobservação:aoinvésdoDireito,observa-seojurista.As questõescríticasdafunçãosocialdapropriedadeentãose resumemàdescriçãodospapéisdecadacategoriaprofissio-nalcomooperadoresdoDireito,analisandoasinfluências ideológicasnasdecisõesjurídicas.Entãotodasasquestões giramemtornodoseguinte:funçãosocialdapropriedade dequem,paraquemeamandodequem.Essatentativa decontroledasexpectativasdepapéiséumassuntointe-ressanteporsisó,masnãoésuficienteparaadescriçãode possibilidadesfuturasdiferenciadaseprincipalmentepara adescriçãodecomooDireitoresolvecriativamenteosseus paradoxos. Por outro lado, a grande massa da doutrina jurídicaquenãopretendesercrítica,descreveajuridiciza-çãodafunçãosocialdapropriedadeapartirdatradicional atribuiçãonormativadedireito/deverpeloEstado,confor-meateoriadosdireitossubjetivosdamatrizneokantiana1.
“Quem,comquaisrequisitos,podeoquê?”Assim,aaná-lise(crítica)depapéispermiteboasdenúnciasarespeito docomprometimentoideológicodasoperaçõesjurídicas. Eaanálisenormativapermiteobásico,queéacapacitação dojuristanoentendimentodossentidospossíveisdanor- majurídicaparaumadecisão.Masnenhumdessesposicio-namentosepistemológicospermiteobservarosproblemas
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operacionaisinternosaosistemajurídicodecorrentesda simultaneidadenasconexõesqueocorrementreoDirei-toeaPolíticadasociedade.Esimultaneidadenãosignifica sincronização,massimincontrolabilidade.
AsociedadeindustrialexigiudoDireitoasuapositivi-dade,istoé,exigiuumDireitoseguroeaomesmotempo modificávelparaasuaconstanteadaptaçãoàssemprepenúl-timasexpectativasdasociedade.Asconquistasevolutivasda sociedadecontemporânea,contudo,exigemmaisqueisso: exigemumadiferenciaçãoentreosistemajurídicoeosiste-mapolíticodasociedade.Tratam-sededoissistemassociais altamentecomplexos,cujaestruturaçãodasrespectivascom- plexidades(auto-organização)forçouumarelaçãocomu- nicativasimultâneadeautonomiaoperacionalededepen-dênciacognitiva.Afunçãosocialdapropriedadeéapenas umdosexemplosdessefenômenoqueexigedoDireitouma autonomia operacional em relação à Política e, também, umaautonomiaoperacionaldaPolíticaemrelaçãoaoDirei-to.Autonomia,contudo,nãosignificaindependência.
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Uma segunda etapa será a descrição daquilo que se denominarásublimaçãojurídicadoconflitopolítico,ouseja,a transferênciadoproblemapolíticoparaosistemajurídico comomeiodesimbolização–oumistificação–deexpec-tativas sociais depositadas na Política que, quando trans-formadasemlei,transformamoconflitopolíticoemum conflitojurídico.Valedizer:esvaziamosentidopolíticodas expectativassociaisatravésdasuasubstituiçãoporumoutro sentidoformalmentecodificadopeloDireito:“quem,sob quaiscondições,temdireitoaquê”.
Aonipresençadossistemasdasociedadenasociedade
Umaprimeiraquestãoàoperacionalizaçãojurídicadafun- çãosocialdapropriedadeéaprópriaambigüidadedosenti-dodeumafunçãosocialdapropriedade.Oconceitojurídico depropriedadepodeserdeduzidodoart.1.228doCódigo Civil,comoaatribuiçãonormativadepoderes(uso,fruição, disposiçãoereivindicação)sobreumbemaotitulardodirei-todepropriedade.Umaidéia,portanto,dedireitosubjetivo. Masquandoosistemapolíticoaprovaleisqueconectamessa idéiadepropriedadeàidéiadefunçãosocial,ocorreuma radicalaberturanosentidojurídicodapropriedade.Apartirdapositivaçãodafunçãosocialdaproprieda- de,qualquerdecisãojurídicatorna-sejuridicamentepossí-vel,desdequefundamentada.Oespaçoparaacriatividade dojuristaseampliadrasticamenteeseampliatantoqueas decisõessobreassituaçõesfáticasqueconfiguramocumpri- mentodafunçãosocial,comadistinçãodasquenãocon-figuramessecumprimento,passamaserindeterminadas, aleatóriasecontingentes.Verdadeiroshardcases(Dworkin, 2002,p.127).Aproliferaçãodocasuísmojurisprudencial entãosetornainevitávelnoDireitoeapossibilidadedepos-turascríticasumdeleitetedioso.
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alternativasparaosalternativos(Warat,1997,p.134)equal- querposicionamentopodeserigualmentejustificadojuridi-camenteeperigososocialmente.Pode-seoptaremassumir qualquerpapelnasociedadearespeitodapropriedade,até mesmoporqueaidéiadedemocraciaestáobrigadaaassu-miroparadoxodeescutarasdiferentesexpectativassociais e,inclusive,asexpectativasdequemnãotemexpectativas. Valedizer:odireitodeparticipaçãopolíticadasociedade deveabrangerinclusiveodireitodequemnãoquerparti-cipar,dequemdecidepelanomansland(Lyotard,1996,p. 110),desdequesejagarantidapelomenosaoportunidade aessaparticipação.
Uma postura marxista sobre o papel do Direito na manutençãodascontradiçõessociaisarespeitodaproprie-dade,porexemplo,levaàsíntesedarevolução:seodireito depropriedadeestámoldadopelosinteressesdosproprie-tários,asuamodificaçãosópodeocorrernaformadeuma revolução.ApropostadeMarx(1999),apósobservaratran-siçãodoprimadopolíticodosentidodasociedadeparaa economia,foiasubstituiçãodaformadeorganizaçãodistri-buição/planejamentodapropriedadesegundocategorias de interesse (classes) por uma racionalidade econômica ondeoplanejamentoeadistribuiçãodaproduçãoedapro- priedadepudessemvariarindependentementedosinteres-sesclassistas.Nofundo,emboraistonãoapareçanostextos baseados no marxismo, a dialética marxista (“materialis-mohistórico”)demonstrou,naformadeinjustiçasocial,a impossibilidadedoacessoàprodução-propriedadeconti- nuarasercondicionadoporinstânciasdeautoridadeeco-nômico-hereditariamentelegitimadaspeloDireito.Grosso modo,acríticamarxistaé,pois,umacríticaàsformasestra-tificadorasesegmentáriasdeorganizaçãosocial.
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classesoustatussociais,eapersonalidadejurídicapassoua seratribuídaaoserhumanonãoporsuahereditariedadeou podereconômico,masatravésdeumnovoinstrumentodis-tributivochamadocontrato(Luhmann,1983,p.25).Ainda queossereshumanossempodereconômicoficassemforado sistemacontratual,apossibilidadedisponibilizadaaqualquer serhumanodecontratarprovocoualteraçõesprofundasna formaapartirdaqualasociedadeganhavasentido.
Esse desenvolvimento foi visto por Durkheim (1989) comoumasubstituiçãodaorganizaçãosegmentáriaporuma organizaçãofuncionalmentediferenciada.Nessecontexto,o Direitodeixadeserumsistemapredominantementerepressi- voeiniciaumprocessodeestabelecimentodesançõesrestri-tivas,ondeosdanosseriamindenizadosenãomaisvingados (Luhmann,1983,p.26).Aespecificaçãodesistemassociais entãofoialgoinevitável:ocálculodosdanosrestoucondi-cionadoàdiferenciaçãodossentidoseconômicos,políticos, moraisetc.Ouseja,apossibilidadedereparaçãodedanos pressupôs uma diferenciação entre as dimensões possíveis daexperiênciahumana.Daíosentidodaaçãoracionalde Webercomoumaaçãosocialorientadaafins,quepodeassim calcularosseusprópriosriscosequefundamentouasteorias doplanejamentoedagestãoestratégicacontemporâneas2.
Adiferenciaçãofuncionalprovocouumconsiderável aumentodecomplexidadedasociedade,ondeentãonão restou outra alternativa senão surgirem sistemas sociais parciais,auto-estruturadosapartirdeumcódigobinário operacionalquelhesgaranteaidentidadepeladiferença. AidentidadedoDireito,porexemplo,aindapodecontinu- arafundamentar-seemumdireitonaturalouemumcon-tratosocial(Hobbes),numanormafundamental(Kelsen) oueminteresses(Jhering)oumesmoemprincípios(Hart,
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Dworkin).Masemumaperspectivapragmático-sistêmica (Luhmann),oDireitosóconquistaasuaidentidadeapartir doqueelenãoé3.Umadescrição,portanto,quaseniilista
noprecisosentidonietzschiano,ondeaidentidadesurge apartirdadiferençaenãomaisapartirdeumafundação exterior(objetiva)ouinterior(subjetiva)naestruturação doconhecimento(Varela,1996).ODireitoentãopassaa seradiferençaentredireitoenão-direitoeasuavalidade podeserencontradaexatamentenesse“paradoxoconstitu- tivo”(Merleau-Ponty,2003,p.133),valedizer,autoconstitu-tivo.Nessaperspectiva,umadecisãojurídicaéaquelaque decideseumeventodoambienteédireitoounão-direito, porquesedecidirseumeventodoambienteélucrativoou provocaprejuízos,ouseéecologicamentesustentávelou degradante,oumoralouimoral,então,respectivamente,a decisãofoieconômica,ecológicaouética,nãojurídica.
Nesse posicionamento pragmático-sistêmico (Rocha, 1997),pode-seobservaradesnecessidadedeumadefinição geográfica-espacialdoDireito(cartesiana),bemcomode umalocalizaçãoinstitucionalnosentidotradicional(nor- mativoneo-kantiano).ODireitopassaapoderserobserva-docomoumsistemadasociedade,disponívelàsdecisões dequalquersistemadeorganizaçãooudeconsciência.O Direitoestáemtodolugar,naformadedecisõesjurídicas4,
3.Rochadenominaessaorigemco-dependentede“condiçãoconstitutivapara-doxaldossistemas”:“Quandofalamosemcondiçãoconstitutivaparadoxaldos sistemassociaisentendemos,então,queestessistemasusamsuaprópriadiferença sistema/ambienteparaseconstituíremcomosistema.Odireitodescreveoqueé, indicandoaquiloqueelenãoé.”(1997,p.33).
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isto é, decisões que decidem a partir do código binário direito/não-direitoeosseuslimitespassamaserlimitestão- somentedesentido.Emoutraspalavras,oDireitonãopreci-samaisestarnafiguradoEstado5,masemqualquerdecisão
quedecidecomreferênciaaocódigodireito/não-direito, segundoaadjudicaçãodoseventosdoambientenessecódi-goapartirdeumprogramacondicionaldotipo“seisso, entãoisto”.EssasobservaçõescabemtambémàEconomia, àPolítica,àCiência,àReligião,àMoraleatodososdemais sistemasautopoiéticosdasociedade.Nessaperspectiva,o quediferenciaumsistemadasociedadedosdemaisnãoé maisasualocalizaçãogeográficaouinstitucional,massim osentidoautogerado,comopropriedadeemergente(auto-poiética),porsuasprópriasoperações.Aonipresençados sistemasentãosedesvelaapartirdadiferença:qualquerum pode,noambientedasociedade,participarcomunicativa-mentedequalquerumdossistemasdasociedade.
Cada sistema da sociedade disponibiliza aos demais umaestruturaçãodacomplexidade,istoé,umareduçãoda complexidadeque,paradoxalmente,produzumacomple-xidadeprópria,estruturadaemumaformabinária.Assim, enquantooDireitoestruturaacomplexidadedoambiente socialnaformadireito/não-direito,aPolíticatambémse autonomizaemumaformafechadadedoislados,comvalo-resauto-excludentes:situação/oposição.NaEconomia,a diferençaentrepagamento/nãopagamentoéoquedásen-tidoàsoperaçõeseconômicasecadasistemadasociedade existeporquesuasprópriasoperaçõessãorealizadasapartir deumabaseauto-referencialbinariamentecodificada.
Paraumobservador,portanto,ossistemassociaisestão onipresentesnasociedade.Asestruturasdossistemassociais,
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quereduzemacomplexidadeproduzindoumacomplexi-dadeprópria,estãodisponíveisaqualquerpessoa.Porisso qualquer pessoa pode decidir entre cometer um pecado ousalvarsuaalma(Religião),ajulgaracondutadeoutros comoboaoumá(Moral),adecidirrespeitaralei(Direito), ainfluenciarosoutros(Política),adecidirsobreosseus investimentos(Economia)eadecidirsobreaveracidade ouafalsidadedesuaspercepções(Ciência).E–oqueinte- ressa–qualquerpessoapodetentarvenceracomplexida-de,calculandoosimpactosextra-sistêmicosdesuadecisão. Assim,doambiente,qualquerumpodedecidirpelolucro (Economia)eobservarseessadecisãoé,aomesmotempo, jurídica,política,ética,ecológicaetc.
É nessa perspectiva de alta complexidade sistêmica, portanto,quesepassaadescreverafunçãosocialdapro-priedadecomoumparadoxo,istoé,afunçãosocialsem referênciasaumafundaçãoexteriorouinterior,renuncian-doà“ansiedadecartesiana”(Varelaetall,2003,p.149)por fundamentosapartirdosquaissetornapossívelaorganiza-çãodoconhecimento.
Oparadoxodafunçãosocial
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comculturasdiferentes,comopiniões,percepções,manias, mentiras,desejos,moraiseexpectativasdiferentese–jánão sepodenegaristo–inclusivecontraditóriasealtamenteins-táveis.O“mundodavida”(Heidegger,2005),queconstitui opanodefundodarededeaçõescomunicativas(Haber-mas,2002,p.95),nãopermiteumaexplicaçãodecomoa funçãosocialdapropriedade,nessaperspectiva,produze reproduzlimitessimbolicamentegeneralizados.Nãoexpli-ca os processos através dos quais a função social da pro-priedadesecristalizanasociedadecomovalorounorma. Mantémosentidodafunçãosocialdapropriedadesobum símbolo,ummistério,umsegredo,na“sombraessencialdo nãodeclarado”,noinvisívelda“gramáticadessarepetição” (Derrida,2002,p.13e75).
QuandooDireitosedeparacomumafunçãosocialda propriedade,pode-seentãojáquestionarosentidodessa função,poisseosocialétudo,podetambémsersimulta- neamenteonada(Sartre,2005,p.46).ComHabermasche-gar-se-iaàestruturaçãodeumconsensonaexperiênciado agircomunicativo(1992,p.18).Masascondiçõesideaisde discurso,apartirdeondesepossaretirarumanormaválida peloconsensosobreomelhorargumento,sãocondições extremante improváveis na sociedade contemporânea6.
Especialmenteemsociedadesdesiguaiscomoabrasileira. Entreoidealeoviávelháumabismodediferençaeasocie-dadebrasileirajáconhecebemissonasuaexperiênciade desigualdadesocialcrônica.
Umasociedadepassíveldeaceitarumsentidosimbo-licamentegeneralizadodefunçãosocialsópodeseruma sociedadecompostanãodepessoas,masdecomunicações (Luhmann, 1998, p. 20). Essa foi a radical mudança de
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perspectiva da Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos deNiklasLuhmann:asociedadeéatotalidadedacomuni-caçãosignificativa(Luhmann,1992,p.96).Partindodessa diferenciaçãosistema/ambiente,aspessoasdeixamdefazer “parte”dosistemadasociedadeepassamaconstituiroseu ambiente.Sóassimépossívelaparticipaçãodaspessoasem qualquerumdossistemasdasociedadeatravésdalingua-gem. Essa opção metodológica se justifica porque obser-varasociedadecomooconjuntodasaçõeshumanas(com intenções,vontades,necessidades,expectativas)redundaria nadistinçãotodo/partes,emqueotodoseriaasociedade easpartesaspessoas,comosujeitosdoobjetosociedade ecomquaseoitobilhõesdeexpectativasdiferentessobre o mesmo objeto. Pode-se questionar, com Heidegger, se “nósnostornamostãoinsignificantesparanósmesmosque carecemosdeumpapel”(2003,p.92)nasociedade.Mas ainsignificânciadosujeitoéasuaindiferençaemrelação àsociedade.Observandoentãoasociedadecomoocom-plexodecomunicaçõessignificativas,osujeitodeixadeser indiferenteepassaaserdiferentedasociedade,istoé,con-quistaumaposiçãosignificativanasociedade.
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sociedadeemqualquersituaçãoecontexto.Afunçãosocial passaasejustificarporsisó,comooamorpeloamor,a paixãopelapaixão,odinheiroparafazermaisdinheiro,o poderparaproduzirmaispoder...osocialpelosocial.Essa tecnizaçãodoparadoxo“funçãosocial/anti-social”dapro-priedadepermiteafacilitaçãodocrossing(SpencerBrown) daformadediferença,faceaossentidosauto-excludentese, assim,binariamentecodificados.
Masumaoutratecnizaçãopoderiasertambémafun- çãosocialcomoadiferençadafunçãoindividual.Obser-va-se como muda o sentido. No sistema político, ambas tecnizações(social/anti-socialesocial/individual)teriam sentido,porqueafunçãosocialcomodiferençadafunção anti-socialpodeserligadaàdoutrinadafunçãodoEstado depromoçãodobemcomume,logicamente,derepres-sãodomalcomum(oanti-social).Eafunçãosocialcomo diferençadafunçãoindividualtambémteriasentido,face àdoutrinapublicistadasupremaciadointeressepúblico sobreoparticular.Daíosentidovacilante,naautodescri-çãodoDireito,dafunçãosocialdapropriedade,oraligada àidéiadebemcomum,oraconectadaaidéiasdesolidarie- dade,comtodasasdemaisconexõesqueessasduaspala-vrascarregam.
tiuaadjudicaçãodoseventosdoambientenaformafun-121
çãosocial/funçãoanti-social.Entãoessaassimetrizaçãodo paradoxodafunçãosocialproduziuesseterceirovalordos benefícios.Sóassimumadecisãonasociedadepodejulgar seumapropriedadebeneficiaacoletividade(funçãosocial) ouaprejudica(funçãoanti-social).Ouainda,mediantea re-aplicaçãorecursivadessaformaemsimesma(re-entry),a referênciaabemcomum/malcomum,bemcomum/bem individual,malcomum/malindividual.Essapossibilidade deindicarsentidosdiferentesnore-entry daformadedife-rençaéaprovadareflexidade(Luhmann,1996,p.240) dosentidosimbolicamentegeneralizadodafunçãosocial dapropriedade.
Mas essa segunda tecnização (benefícios/prejuízos à coletividade)nãofoisuficientementerigorosaparadeci-sõespolíticascoletivamentevinculantes.Qualquerumpode jáquestionarseapercepçãodessesbenefíciosnãopassade umjuízodevalor,bastantesubjetivo,deumapessoaoude umgrupodeinteressesemmundosparticulares.Pode-se questionartambémsobreosbenefícioseconômicos,ecoló-gicos,políticos,científicosdapropriedade...Então,quando adoutrinadafunçãosocialdapropriedadeaindicacomo normadebenefício(valorpositivo),caicomopressupos-tooprejuízo(valorreflexivo)emumnovoparadoxoque requerumnovovalorindeterminadoecriativo.Emoutras palavras,umadecisãosobreafunçãosocialouanti-social, conformeousodapropriedadeproduzabenefíciosoupre-juízosàcoletividade,restanovamenteindeterminadae,por isso, acaba conquistando determinação apenas em casos concretos,istoé,apenasnacasuísticadasdecisõespolíticas orientadasàopiniãopública.
Direito.Seanormajurídicaarespeitodafunçãosocialfos-122
seapenasaDeclaraçãodosDireitosHumanos;ouavaga garantiadafunçãosocialdosatuaisarts.5º,XXIII,e170, III,daConstituiçãoFederalde1988,aindeterminaçãoea respectivadimensãodecisóriaparaacriatividadecasuistica-mentedeterminadaestariamgarantidasaosistemajurídico. Masosarts.182e186daCF/88programaramcondicional-mentea“funçãojurídica”dafunçãosocialdapropriedade, istoé,estabeleceramo“quem,sobquaisrequisitos,podeo quê”.Assim,atravésdessatradicionaloperação,qualquer decisãojurídicasobreafunçãosocialdapropriedadepode diagnosticarjuridicamenteumeventosocialeverificarse elecumprecomosrequisitoslegaisdosarts.182e186da CF/88,naformadosseusrespectivosregulamentosordi-nários(LeiFederaln.10.257/2001–EstatutodaCidade; eLeiFederaln.8.629/93–ReformaAgrária;conformese tratedeimóvelurbanoourural7).Masseporumladoessa
condicionalizaçãojurídicadafunçãosocialdapropriedade retiraadimensãocriativadasdecisõesjurídicas,poroutro, seafunçãosocialnãoseguisseessesparâmetrosalgoritmos, seriaapenasumaregradereflexãodosistema(ounormas programáticas, ou ainda princípios, segundo as teorias constitucionais),comoosdireitosàdignidade,àmoradia, aotrabalhoetc.,queestãolápositivadosnaConstituição Federal,masque,narealidadeempíricadasociedade,apa- recemcomomerasmetáforasouinstruçõesparaosproces- sospolíticosdeproduçãolegislativa.Umcontrole,portan-to,reflexivodosistemajurídicoeinformativodosistema político.
Nesse relacionamento intersistêmico – não linear – entreasoperaçõesjurídicasepolíticasarespeitodafunção
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socialdapropriedade,équepodeserencontradaachave primáriadealgumaspossibilidadeslatentesquesepassará aobservar.
Funçãoeprestações
Observou-sequeafunçãosocialdapropriedaderepousa sobreumparadoxoqueaPolíticaescondeatravésdadou-trinadobemcomum.Mascomooprópriobemcomum tambéméumparadoxo,asoluçãopolíticasesatisfazcoma positivação,emleis,dosrequisitosdafunçãosocial.Afun-çãosocialdeixaentãodeserumconflitopolíticoepassaa serocumprimentoconcretodecertosrequisitosprescritos emleis.Agoraqualquerumpodeorientar-senasociedade, planejandoestrategicamenteocumprimentodosrequisitos legaisdafunçãosocialdapropriedadecomometaparaevi-tarassançõesjurídicascominadasaodescumprimento.
Nocasodeumapropriedaderural,ficamaisoumenos fácilaoproprietáriocumpriralegislaçãoambiental,cum-priralegislaçãotrabalhistaeconseguirumparecerpositivo doIncraarespeitodosíndicesdeprodutividade(art.186, CF/88).Observandotudoissoesomenteisso,oproprietá-riopoderáficartranqüilodiantedaonipresençadosistema jurídico,aomenosnoqueconcerneàfunçãosocialdapro-priedade.Odiscursoterroristadosruralistasarespeitodo MSTentãoperdeosentido,porquesegundooart.185da CF/88,sópodemserdesapropriadasparaareformaagrária osimóveisrurais(nãourbanos)dequeméproprietáriode doisoumaisimóveisou,seoproprietáriosótemumimóvel emseunome,apropriedadedeveteráreasuperioraquin-zevezesomódulofiscaldomunicípio8
.Alémdisso,apro-priedadedeveserimprodutiva,conformeparecertécnico doIncraetambémnãocumprirafunçãosocial(infrações ambientais,trabalhistaseprodutividadeabaixodosíndices
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técnicos,queinclusivepossuiinúmerasexceçõesprevistas naLeiFederaln.8.629/93).
Comosevê,asnormasjurídicastranqüilizam.Osrura-listasnãoprecisammaissepreocupar,poissóosgrandes latifúndios improdutivos são passíveis de desapropriação para a reforma agrária e, principalmente: toda desapro-priaçãoestájuridicamentecondicionadaàindenização.Ou seja,ninguémperdepatrimôniopordesapropriação,por-queoPoderPúblicoFederalindeniza,istoé,pagaovalor dograndeimóvelimprodutivo,paraelemesmooportuni- zarocumprimentodafunçãosocialmedianteassentamen- tosrurais.DomesmomodooMunicípio,nocasodasocu-paçõesurbanas.Edooutroladodesseconflitopolítico,o MSTtambémjápodeficartranqüilo,poisosseusdireitos deacessoàterrajáforampoliticamenteconquistados:estão asseguradosagoraemlei.Eosurbanostambémjádispõem demecanismosjurídicosparacobrardoMunicípiomedi-dascapazesdemotivarautilização“social”dapropriedade urbana.Abstraindoaquiapossibilidadedeestenderesse sentidosimbolicamentegeneralizadodafunçãosocialàs propriedadesmóveis(pensa-senodomínionaInternet,na propriedadedeinformaçõesgenéticasedeconhecimentos tradicionais),restaapergunta:masentãoqualéoproble-ma?Quempodesequeixar?
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doseventoscomunicativosdoambienteparaasuaadjudica-çãonaformadireito/não-direito.
LogosepodeverentãoqueoDireitonãoproduzfun-çãosocialdapropriedade.Nãoéissoqueelepodeprestar àsociedade.Afunçãodeumsistemaésempreumaauto-função9
.Dopontodevistadoambiente,afunçãodoDirei-toatépodeserobservadacomoumamultifuncionalidade. Pode ser observada como boa/má (julgamento moral), lucro/prejuízo(economia),enfim,oDireitopodecumprir inclusiveafunçãode“ganhapão”dosjuristas(Luhmann, s/d,p.99).Porissoénecessáriofazerumadiferençaentre identidade funcional e prestações. Aquilo que o Direito cumpreparaosoutrossistemassãoprestaçõesecadasis-temadasociedadeobservaráessasprestaçõesconformeo códigoprópriodecadasistema.Emrelaçãoaosistematotal dasociedade,afunçãodoDireitoéconfirmarasexpectati-vassociaisquemerecemserconfirmadasmesmodiantede frustrações.AfunçãoqueoDireitopodeprestaraosdemais sistemasétão-somenteservirdequarentenaparaosconfli- tosdeexpectativassociais,selecionandoasexpectativasnor-mativas que merecem confirmação contrafática (direito) enegandoasexpectativasquenãomerecemconfirmação (não-direito)eque,porisso,devemserabandonadasou modificadassoboutraformabinária:norma/cognição10.
A forma de diferença “função/prestação” permite observar que a função social, em um contexto jurídico
9.Prigogine(2002,p.47)demonstroumatematicamentecomoépossívelaum sistemaestarsubmetidoàaplicaçãodeoperadoresdiferentese,mesmoassim,per-manecercomsuafunçãoinvariada.
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(direito/não-direito),podeserradicalmentediferenteda mesmafunçãosocialemumcontextopolítico,econômico, científico-tecnológico,religioso,ético...Afunçãosocialda propriedadepodeserinclusiveadeservirdecemitério(a desapropriaçãoparainstalaçãodecemitériosmunicipais, porexemplo),enfim,umlugarondesepossacairmorto. Porisso,doambientedasociedade,pode-seapenasdeter-minarnormativamentequeafunçãosocialdapropriedade “deve”produzirlucro(Economia),sustentabilidade(Eco-logia),salubridade(Saúde),moral(Ética),conhecimento (Ciência) e todas as demais indicações no lado positivo dos códigos operacionais de cada sistema social. Então, apesardaprogramaçãocondicionaldoDireitoarespeito dafunçãosocialdapropriedade(arts.182e185daCF) estarmaisoumenosconectadaaessasprestações,oabismo entreoidealeoviávelpareceaumentaracadasentença. Até porque é impossível, face à autonomia dos sistemas sociais,construirumarelaçãolinearentreapropriedade etodosossentidosintersistêmicospossíveisnasociedade. Porexemplo,umterrenobaldionocentrodacidadepode servistocomoespeculaçãoimobiliária,istoé,comodes-cumprimentodosentidoeconômicodafunçãosocialda propriedade.Masessemesmoterrenobaldiopodeestar mantendovivoumecossistemanatural(Ecologia),ainda quenocivoàsaúdehumanae,porisso,apenasantropocen-tricamenteincorreto.
malsintonizadoquesóganhasentidonointerior(codi-127
ficadobinariamente)dosistema.Afunçãosocialdapro- priedadepodeservistacomolícitaouilícitaemumcon-texto jurídico; lucrativa ou não lucrativa (prejuízo) em umcontextoeconômico;pecaminosaousalvadoraemum contexto religioso (especialmente no luterano) e assim pordiante,conformeocontexto(sistema)apartirdoqual seaobserva.NaPolítica,afunçãosocialdapropriedade aindaganhaoutrosentido,naformadeumdiscursode situaçãooudeoposição.Entãologosepodeconcluirpela impossibilidadedeseestabelecerumcircuitolinearnesse “cicloinfernal”(Morin,2002,p.24),poisumadecisãolíci- ta(Direito)nãoserá,necessariamente,umadecisãolucra-tiva,ecológicaetc.
Entreafunçãoeaprestaçãosocialdapropriedade,o quecaicomopressupostoéaprópriadiferenciaçãofuncio-naldasociedade.Emoutraspalavras,nãohámaiscomo avançarsemenfrentaradiferençaoperacionalentreosiste-mapolíticoeosistemajurídicodasociedade.
PolíticaeDireito
AgrandemaioriadosteóricosdoDireito,daPolíticaedo Estado,costumanegarapossibilidadedeseparaçãodessas dimensõesdasociedadeemsistemasautônomos.Realmen-te,asrelaçõesentreDireito,PolíticaeEstadosãoevidentes ebastanteimbricadas11.AprópriaidéiadeEstadocontribui
paraaindiferenciaçãoentreaPolíticaeoDireito,jáqueo Estadopodeserdescritoatravésdeumconceitosimultane- amentejurídico(EstadodeDireito)epolítico(EstadoBen-
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larproposiçõessobreoEstadocomoumaordempolítica juridicamentecontroladae,aomesmotempo,umaordem jurídicapoliticamenteadaptadaàsconstantesmodificações dasociedade.Aobservaçãodesegundaordem,contudo, permiteverquesetratadesistemasautopoiéticose,por isso,operativamentefechadosemumcódigobinárioespe-cífico.Amiradadaobservaçãoàsoperaçõescomunicativas (decisões)quesãoautoproduzidasemcadaumdessessis-temascomprovaadiferençaradicalqueexisteentreuma decisãopolítica,umadecisãojurídicaeumsistemadeorga-nizaçãocomooEstado.
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jurídica do poder político era o modelo da unidade do Estado.Diantedesseparadoxonalegitimaçãodosistema político,duasforamasassimetrizações:aidéiadeumdirei-tonatural,maisplatônicodoquereligioso,eadeEstado deDireito,paraquemjánãoacreditavamaisnalegitimi-dade política de um Estado baseada no direito natural (Luhmann,s/d,p.333).
Deumpontodevistainstitucional,essasdescriçõessão racionaiseinclusivepodemserverdadeiras.Massãoinsufi-cientesparapretensõesteóricasmaissensíveisàsdinâmicas dasociedadecontemporânea.Sesetransladaraobserva-çãodoEstadodeDireitoparaasoperações(decisões)que sãoproduzidasnessecontextoorganizacional,logosetor-napossívelobservardecisõescombasesauto-referenciais (código)diferentes,comprogramasdiferentes,orientados acomunicaçõesdiferentesecomfunçõestambémdiferen-tes.ODireitoeaPolíticasetornamautônomosnamedida emquecadaumdelesresolveseusparadoxospormodos diferentes.Enquantotodadecisãopolíticaéumadecisãono contextodasalternativasgoverno/oposição(códigoopera-cional),asdecisõesjurídicasnãodependemdaorientação políticadogovernooudaoposição,poissãorealizadassob ocódigodireito/não-direito.Agora,quandoumtribunal decideumcasosobcódigosestranhosaoDireito,comopor exemploaprocedênciadeumaaçãojudicialnãoporque setratadedireitosubjetivodoautor,masporqueoautor éamigo,éricooupobre,édesituaçãooudeoposiçãoou porqueélucrativaetc.,entãoadecisãodotribunalnãofoi jurídicaeocorreucorrupção12.
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Osprogramaspolíticosejurídicostambémsãodiferentes, poisenquantoaPolíticaadjudicaoseventosdoambientena formadadiferençaentreosinteressesdesituação/interesses daoposição,oDireitorealizaaoperação(decisão)dedistin- guiroseventosdoambienteemdireitoounão-direitoconfor- meaauto-indicaçãodalegislação(programa).Esesepergun-taroquerealmenteinteressaemumadecisãopolíticaeem outrajurídica,pode-severqueaorientaçãopredominante nasdecisõespolíticaséaopiniãopública(quefazocontrole reflexivodosistema),enquantonoDiretosãoosprecedentes, atradiçãojurisprudencialsobreamesmamatéria.
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APolíticanoBrasil,aomenosapartirdadécadade90, temsidoumapolíticadeplanejamento:deplanejamento econômico, comercial, habitacional, agrário, urbano, cul-tural,educacional,previdenciário...,enfim,planejamentos setoriais.APolíticaentãoreivindicaparasiomonopóliodas decisõescoletivamentevinculanteseasinstitucionalizapelo meiodacomunicaçãodoDireito(asleis)(Luhmann,1994, p.94).Oplanejamentopolíticodefineobjetivosemetase essasmetassãoinformadaspelaPolíticaaosdemaissistemas atravésdeleis.Entãoficaclaraarevelaçãodequeumplane- jamentopolíticonasociedadeglobalizada,ondeascomuni-caçõessociaissãomuitomaisvelozesdoqueavelocidadedo planejamentopolítico,implicaanecessidadedeumaprodu-çãolegislativatãovelozquantoavelocidadedasflutuações sociais,especialmenteaseconômicas.AsMedidasProvisórias exemplificamessesintomadechoquenagovernança,onde agovernabilidadepressupõeentãoumaestruturadegover-nançatãoágilpoliticamentequantolegítimajuridicamente.
Oresultadodissoéumsistemajurídicodeprograma- çõescondicionaisindeterminadasealeatóriasacasoscon-cretos13
,bemcomoocontemporâneofenômenodajudicia-lizaçãodaPolítica.APolíticaentãodesestabilizaoDireito porque, regulamentando antecipadamente as condutas, nãooportunizaotemponecessárioaoDireitoparaseesta- bilizarsemanticamente,nemoportunizaotemponecessá-rioparaoDireitotestarosresultadosdaregulação14.Ena
13.DaíacontestaçãoaomodelodeEstadodeBem-EstarSocialcomoummode-loinviáveleconomicamente(porquecustamuitocaroparaoEstadogarantiros direitossociaisprometidosnaConstituição)equeporissoàPolíticanãorestou outraalternativasenãodiminuirasuaresponsabilidadenasprestaçõessociais,di-vidindo-acomainiciativaprivadaatravésdosmodernoscontratosdegestãocom asONG’sprevistasnasLeisFederais9.637/98e9.790/99.
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medidaemqueoplanejamentopolíticoutiliza,comoestru-turadecodificaçãosecundária,omeiodecomunicaçãodo Direito,aPolíticacriaexpectativassociaisdedireitosqueo Direitoéincapazdeefetivar.Especialmentequandoessas expectativaspressupõempagamentosque,diantedaauto-nomiaautopoiéticadossistemasdasociedade,nãopodem serrealizadospeloDireito.
Daíosentidogeneralizado,naautodescriçãodasocie-dadebrasileira,daPolíticacomoumsistemadepromessas nãocumpridas.Ecomoessaspromessaspolíticassãocodi-ficadassecundariamentepelosmeiosdecomunicaçãodo Direito(leis)edaeconomia(preço),oDireitoserevelaine-ficaznaconcretizaçãodaspromessaspolíticaseaeconomia serevelacomtendênciasinflacionárias(Luhmann,1994,p. 98).Essapolíticaentãoforçaaautonomiaoperacionaldo Direitoatravésdaimplementaçãonormativa(legal)depro- gramaspolíticosorientadosteleologicamenteafinsespera-dospelaPolítica.Masdopontodevistainternodosistema jurídico,aproduçãolegislativatambéméobservadacomo direito/não-direito.Então,namedidaemqueosfinsdos programaspolíticosnãosãoatingidos,surgeumciclode legislaçãocriandolegislaçãoemvelocidadesuperioràcapa- cidadedeestabilizaçãodessesnovosprogramasnasopera- çõesjurídicas:aurgênciafazendolei(Ost,1999).Aper- versidade,aqui,serevelaemextremos:aprópriaseguran-çajurídicapodeserobservadacomocomprometidapelo tempoefêmerodaurgêncianatomadademedidaspolíti-casatravésdoDireito,comotambém–eparadoxalmente –aprópriasegurançajurídicapodeserobservadajácomo ameaçaàurgência.
socialdapropriedade.Porisso,nãorestaoutraalternati-133
vaaoDireitoeàPolíticasenãofecharem-seemumabase auto-referencialcomoformadecontroledasinterferências recíprocasentreeles.Essemeiodecontrolerecíprocoéo quesedenominaConstituiçãoFederal.Esseéopontode contatoentreoDireitoeaPolíticadasociedade.Atravésda ConstituiçãoFederal,oDireitopodeauto-observaraPolí-ticaapartirdaformadireito/não-direitoeaPolíticapode auto-observarosprogramasjurídicosparaoplanejamento dasarticulaçõesentreasituação(governo)eaoposição.A Constituiçãoentãofuncionacomoumfiltrodecomplexi-dadequepermiteàPolíticaeaoDireitoevoluírememuma relaçãodeinterpenetração(Luhmann,1998,p.201),onde ocompartilhamentodeelementosdesentido(acoplamen- toestrutural)passaaseropressupostocomumdaidentida-deautopoiéticapeladiferença.
Dinâmicadasublimaçãojurídicadoconflitopolítico
EssasrelaçõesentreDireitoePolíticamereceriamsermais desenvolvidas,especialmentenasdimensõesmateriais(sis-tema/ambiente), temporais (passado/futuro) e sociais (alter/ego)15.Masparaosobjetivospropostosjáésuficien-teestaconclusão:adiferenciaçãofuncionalentreDireitoe PolíticapermiteobservarqueaPolíticaselecionaacomuni- caçãoproduzidapelaopiniãopúblicademodoatornarpos-sívelumadecisão(política)coletivamentevinculantepelo meiodecomunicaçãodoDireito(asleis).Essacodificação secundáriajurídicautilizadapelaPolítica–asleis–revela comoaPolíticaresolveseusproblemaspolíticos:desfazen-do-sedeles(Luhmann,s/d,p.338).APolíticaresolveseus problemastransferindo-osaoDireito.ODireitoprestaessa funçãoàPolítica.Entreodireitoouonão-direito(códi-gojurídico),osconflitosentresituação/oposição(código político)seperdem,sesublimam.Osconflitospolíticossão
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assimsublimadospelosistemajurídico.Emoutraspalavras, oDireitodespolitizaosconflitospolíticos.Equalquertenta-tivadepolitizaçãodajustiçacorreoriscodecorrupçãoou dedesintegraçãodosistemajurídico.
ODireitoasseguraàPolíticaque,umavezpositivadas emleisassuasdecisões,osconflitospolíticosjánãoserão maistratadoscomoconflitosdeinteressedesituaçãooude oposição, mas sim sob critérios exclusivamente jurídicos. Assim,umaveztransformadosemleiosconflitospolíticos,a Políticapodepassarasepreocuparcomoutrosproblemas. A“bomba”agoraestásolucionadapelaformadireito/não-direito,istoé,peloefeitotranqüilizadordo“quem,sobquais condições,podeoquê”.Paraaverificaçãoempíricadisso, bastaobservaromomento,noprocessodedecisãopolítica, emquehácomemoraçõespelotérminodatarefa:o“suces-so”dadecisãopolíticanãoocorrenaefetivaçãopráticados direitoscriados,mastão-somentenaaprovaçãodaleique oscria.Emoutraspalavras,oprocessopolíticoterminana aprovaçãodaleienãonasuaefetivação.Porqueumavez aprovadaalei,aefetividadepassaaseragoraumproblema jurídicoouadministrativo,paraaPolíticacontinuarapoder sepreocuparcomosseussemprepenúltimosproblemas.
Consideraçõesfinais
socialdapropriedade,estáevoluindoparadecisõescoletiva-135
menteautovinculantes(governança),ondeaprestaçãodo Direitoédispensada,aomenosatéquesurjaumconflitono cumprimentoderequisitoslegaisparaodireitoàhabitação. Pode-seobservarumacrescentesubstituição,naPolítica,do usocoativodoDireitopelousopersuasivodaeconomia.Em outraspalavras,aPolíticausaoDireitoparalegitimarcoleti-vamentesuasdecisões,maspodetambémusaraeconomia parapersuadirnegociaçõescoletivas.Mascomotodanego-ciaçãopressupõetransações,oquepodeestaremjogoéo endividamento de quem não tem outra alternativa senão negociaroseupróprioendividamentonapolíticahabitacio-nal.Masessejáéoutroproblema.
Pode-seentãoapenasreiterarasvantagensteóricasda observaçãodasoperaçõespolíticasejurídicascomoopera-çõescomunicativasfuncionalmentediferenciadaseconcluir queasformasdeorganizaçãosocialsobreafunçãosocialda propriedadesãoprodutosdecircunstâncias.Eacriativida- derequeridapeloparadoxodafunçãosocialdaproprieda-deconstituimesmoumaextravagância16queasdecisõesda
sociedadeestãoobrigadasarealizarparasuperarem-seasi mesmas.Pormaisqueaobservaçãotentemanipularafor- macomaqualossistemasoperam,acoplamouseorgani-zam,negandoadiferençaentrePolíticaeDireito,asformas deorganizaçãosãosempreformasdeauto-organização.A observaçãoatépodepretendermanipularoambientedo sistemaapartirdoqualelaopera,masoambiente,como afirmouFoerster,écomoeleé(1996,p.78).
RafaelLazzarottoSimioni
émestreemDireitopelaUniversidadeCaxiasdoSul,pro- fessordoDepartamentodeDireitoPrivadodamesmauni-versidade
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ASUBLIMAÇÃOJURÍDICADAFUNÇÃOSOCIALDA PROPRIEDADE
RAFAELLAZZAROTTOSIMIONI
Osentidosociológicodafunçãosocialdapropriedadeosci-lasobreumparadoxoqueasteoriasjurídicasepolíticasdo pós-guerraescondematravésdaidéiadoEstadodeDireito edoEstadoBenfeitor.Afunçãosocialdapropriedadeilus- traesseestágiodedesenvolvimentodasrelaçõescomunica-tivasentreaPolíticaeoDireito,ondeaprimeiranãotem alternativasenãotransferirseusconflitosparaosegundo, transformandoosconflitospolíticosemconflitosjurídicos. Comoserávistonesteartigo,oresultadodessasublimação jurídicadosconflitospolíticoséageneralizaçãosimbólica dasexpectativaspolíticasnaformadeexpectativasnorma- tivas,quenessascondiçõespodemsertranqüilizadasartifi-cialmentepelaprogramaçãocondicionaldoDireito.
Palavras-chave :Política;Direito;FunçãoSocialdaProprieda-de;TeoriadosSistemas;Autopoiese.
THELEGALSUBLIMATIONOFTHESOCIALFUNCTIONOF PROPERTY
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ideaoftheRuleofLawandtheWelfareState.Thesocialfunction of property illustrates that development of the communicative relationsbetweenPoliticsandLaw,inwhichthefirsttransfersits conflictstothelatter,turningpoliticalconflictsintolegalones.As itwillbeseeninthisarticle,theresultofthatlegalsublimationof thepoliticalconflictsisthesymbolicgeneralizationofthepolitical expectationsintheformofnormativeexpectations,sothatinthose conditionstheycanbeartificiallytranquilizedbytheconditional programmingoftheLaw.