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Consequências da judicialização das políticas de saúde: custos de medicamentos para as mucopolissacaridoses.

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Academic year: 2017

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Consequências da judicialização das políticas

de saúde: custos de medicamentos para as

mucopolissacaridoses

Consequences of the judicialization of

health policies: the cost of medicines

for mucopolysaccharidosis

1 Anis – Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero, Brasília, Brasil.

2 Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.

3 Serviço de Genética Médica, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil. 4 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.

Correspondência D. Diniz

Anis Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero. C. P. 8011, Setor Sudoeste, Brasília, DF 70673-970, Brasil. d.diniz@gmx.com

Debora Diniz 1,2 Marcelo Medeiros 2 Ida Vanessa D. Schwartz 3,4

Abstract

This study analyzes expenditures backed by court rulings to ensure the public provision of medi-cines for treatment of mucopolysaccharidosis (MPS), a rare disease that requires high-cost drugs not covered by the Brazilian government’s policy for pharmaceutical care and which have disputed clinical efficacy. The methodology in-cluded a review of files from 196 court rulings or-dering the Brazilian Ministry of Health to provide the medicines, in addition to Ministry of Health administrative records. According to the analysis, the “judicialization” of the health system subject-ed the Brazilian government to a monopoly in the distribution of medicines and consequently the loss of its capacity to manage drug purchases. The study also indicates that the imposition of immediate, individualized purchases prevents obtaining economies of scale with planned pro-curement of larger amounts of the medication, besides causing logistic difficulties in controlling the amounts consumed and stored. In conclusion, litigation results from the lack of a clear policy in the health system for rare diseases in general, thereby leading to excessive expenditures for MPS treatment.

Jurisprudence; Mucopolysaccharidoses; Health Policy

Introdução

Os estudos com evidência empírica sobre judi-cialização da política de saúde no Brasil indicam que o principal bem judicializado nas cortes são os medicamentos 1,2. A política de assistência farmacêutica apresenta uma série de desafios quanto ao desenho, à operacionalização, à atua-lização das listas, à ausência de instâncias recur-sais, à celeridade nas decisões, à articulação com outras esferas de fiscalização e ao registro. Esses desafios podem se caracterizar como falhas da política ou mesmo entraves à compreensão da política para sua operacionalização nas diferen-tes esferas do poder público, o que pode resultar na judicialização como um recurso para a garan-tia do justo em saúde. No conjunto do que se co-nhece como judicialização da saúde, há também a judicialização de outros bens, ou seja, casos em que o indivíduo procura as cortes para garantir seu acesso a serviços ou cuidados fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS). Não se devem confundir os bens judicializados (tecnologias, serviços ou cuidados), pois apontam para fenô-menos diferentes nas cortes.

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a inclusão do medicamento na política, mas sem a garantia de acesso; até mesmo o requerimento de medicamentos em fases ainda experimentais de pesquisa clínica, sob forte atuação da indús-tria farmacêutica. A depender da motivação ori-ginal do indivíduo que judicializa e das razões apresentadas para a demanda, é possível qualifi-car os requerimentos como reparações justas de omissões da política ou interferências indevidas do Judiciário na execução da política. Os medi-camentos de alto custo estão entre os que mais provocam os sentidos da justiça por causa de seu impacto financeiro, mas também porque, regra geral, têm como objeto da demanda novas tec-nologias de saúde, algumas ainda sem o devido registro e avaliação no país.

Este artigo analisa a dimensão financeira da judicialização dos três medicamentos de alto custo disponíveis no mercado farmacêutico para o tratamento das mucopolissacaridoses (MPS) tipos I, II e VI, doenças genéticas raras, no Brasil. Foram analisados 196 processos com sentença fa-vorável em ações determinando que o Ministério da Saúde fosse corresponsabilizado no pedido de provimento do medicamento no período entre 2006 e 2010. Como se trata de medicamentos de alto custo, não listados no dispensário público, acredita-se que as ações analisadas correspon-dam à quase totalidade do universo da judiciali-zação dos medicamentos para as MPS no Brasil, envolvendo o Ministério da Saúde até janeiro de 2011. Nesta pesquisa foram recuperados 196 dossiês relativos a 195 pacientes. Dados da Asso-ciação Paulista de Mucopolissacaridose indicam que poucos indivíduos com a doença não estão nesse grupo, pois têm acesso ao medicamento no Estado de São Paulo, sem a corresponsabilização da União. Segundo dados atualizados em julho de 2011 pelo sistema web do Departamento de Informática do SUS (DATASUS), 245 indivíduos recebem os medicamentos por determinação ju-dicial: 34 para MPS I (laronidase), 90 para MPS II (idursulfase) e 121 para MPS VI (galsulfase).

As MPS e seu tratamento possuem caracte-rísticas que as tornam referência para a pesquisa sobre judicialização de medicamentos: (1) a ju-dicialização se concentra em três medicamentos (laronidase, idursulfase e galsulfase); (2) esses são medicamentos de alto custo e fora da política de assistência farmacêutica; (3) cada medicamen-tos é produzido por uma única empresa farma-cêutica; (4) a população de pessoas vivendo com MPS é pequena no país; (5) as MPS são doenças degenerativas, crônicas e com diagnóstico usu-almente realizado na infância; (6) poucos países oferecem esses medicamentos no serviço públi-co de saúde, públi-como é o caso do Reino Unido 3; (7) as MPS são uma das doenças citadas como caso

paradigmático para o fenômeno da judicializa-ção no país, pelo volume de recursos movimen-tados em cada ação e pelo tamanho reduzido da população 4. Além disso, as MPS provocam a dis-cussão sobre a pertinência de políticas de saúde específicas para as doenças raras, bem como de critérios particulares para a inclusão ou não de medicamentos e tratamentos no SUS.

As MPS são doenças genéticas raras, here-ditárias, causadas pela atividade deficiente de uma das enzimas envolvidas no catabolismo (“degradação”) dos glicosaminoglicanos (antiga-mente denominados mucopolissacarídeos) 5. Os glicosaminoglicanos são constituintes de todas as células dos indivíduos. Nas MPS, que podem envolver o sistema nervoso central, ocorre o acú-mulo progressivo dessas substâncias no meio in-tracelular e os indivíduos passam a apresentar, em graus variáveis, alterações faciais, oculares, auditivas, cardiopulmonares, articulares e es-queléticas. Como as manifestações clínicas ini-ciam na infância e a expectativa de vida costuma ser reduzida, a maioria dos pacientes é composta por crianças ou adolescentes 5,6.

As MPS são classificadas, de acordo com a en-zima que está deficiente, em 11 tipos (I, II, IIIA, IIIB, IIIC, IIID, IVA, IVB, VI, VII e IX). Cada tipo corresponde a uma doença diferente e pode ser também categorizado de acordo com a gravidade da sintomatologia apresentada. Embora existam diferenças clínicas entre os tipos de MPS, as onze doenças classificadas dentro desse grupo apre-sentam semelhanças entre si, salientando-se o fato de elas serem multissistêmicas, progressivas, passíveis de estigmatização em razão dos efeitos físicos e de ocasionarem grande morbimortali-dade aos afetados. Há medicamentos específi-cos somente para a MPS I (laronidase), a MPS II (idursulfase) e a MPS VI (galsulfase). A laro-nidase, a idursulfase e a galsulfase são enzimas artificiais, produzidas por engenharia genética, semelhantes às enzimas que estão deficientes nos pacientes.

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Há posições contra e a favor da incorporação desses medicamentos para fornecimento públi-co do SUS. Os argumentos predominantes na oposição à incorporação têm origens diversas e podem ser resumidos em cinco: (1) o número de indivíduos incluídos nos ensaios clínicos é pequeno; (2) os ensaios clínicos existentes ava-liaram um grupo específico de pacientes com MPS I, II ou VI (geralmente indivíduos com idade superior a 5 anos e com fenótipo mais brando), não sendo possível concluir se os seus achados podem ser extrapolados, por exemplo, para as demais faixas etárias ou para fenótipos mais graves; (3) não existem evidências sobre o au-mento, associado ao uso dos medicamentos, da sobrevida dos pacientes; (4) não há evidências consistentes da melhora da qualidade de vida dos pacientes; (5) embora não existam estudos publicados sobre o custo-efetividade de tais me-dicamentos, é de se supor que os mesmos não sejam custo-efetivos, porque são de muito alto custo e porque a magnitude do seu efeito parece pequena.

Metodologia

A pesquisa foi realizada nos arquivos físicos e eletrônicos do Ministério da Saúde, prioritaria-mente na seção Demanda Judicial. Nessa seção encontram-se arquivados os dossiês que contêm as peças dos processos judiciais em que o mi-nistério foi indiciado como corresponsável pelo provimento de bem requerido pelo paciente em juízo. O levantamento dos dossiês foi feito em duas fases. A primeira foi no arquivo eletrônico, que registra dados do demandante e do bem ju-dicializado. As palavras-chave de busca para a pesquisa eletrônica foram: MPS, galsulfase, la-ronidase e idursulfase. Na segunda, foram recu-perados 196 dossiês impressos entre fevereiro de 2006 e dezembro de 2010, correspondendo à demanda de 195 indivíduos (há um indivíduo com dois processos judiciais registrados em dois dossiês no ministério), cujo objeto de litígio era um dos três medicamentos para o tratamento da MPS. Em 2006, ocorreu o primeiro processo com registro eletrônico de litígio para a doença, o que não quer dizer que esta seja a primeira ação judi-cial. Os dossiês foram lidos e analisados na ínte-gra. O arquivamento dos registros de processos judiciais é parte da atividade da Consultoria Ju-rídica do Ministério, que considera o total de 196 casos como o universo da judicialização dos me-dicamentos para MPS que alcançou o ministério até dezembro de 2010. Não foram consultados dados sobre ações judiciais interpostas contra outros entes da Federação.

A análise dos dados foi realizada em sala re-servada no MS. Os dados foram registrados em formulário eletrônico com 36 perguntas estru-turadas e 2 perguntas abertas. O MS possui um sistema próprio de registro e sistematização dos dados de processos judiciais em que participa co-mo réu. Neste trabalho, os dados sistematizados pelo ministério foram cotejados aos coletados dos dossiês diretamente pela equipe de pesquisa, como forma de checagem. Em caso de discordân-cia entre os dois registros, optou-se pelo registro realizado pela equipe de pesquisadoras. A única variável que não foi recuperada diretamente pela equipe foi a de volume de recursos financeiros e quantidade de medicamentos destinados a cada paciente. Não há como verificar esses dados nos dossiês, uma vez que o rito de aquisição do medi-camento percorre diferentes estágios e unidades dentro do ministério.

Há quatro rubricas gerais provocadas pe-la solicitação de compra de um medicamento: valor de aquisição (valor pago ao fornecedor do medicamento), valor de publicação (referente às custas de publicação do processo judicial), va-lor aduaneiro (correspondente à importação do medicamento) e valor de transporte do medica-mento até a localidade do requerente. Para fins de orçamento gasto na judicialização, o Ministé-rio da Saúde considera como valor total a soma dos custos de aquisição, publicação, importação e transporte desde a primeira aquisição com a sentença judicial até dezembro de 2010, data em que foram extraídos os dados, ou até o encerra-mento do forneciencerra-mento em caso de óbito do pa-ciente (10 casos). Esse dado final relativo a cada indivíduo foi calculado e informado pelo minis-tério à pesquisa por meio do sistema de acesso web do DATASUS.

Os preços em várias partes deste estudo fo-ram padronizados em uma escala comum, pa-ra permitir a compapa-ração dos valores dos três medicamentos. A padronização foi feita por medicamento, tomando como valor de base o menor preço efetivamente pago pelo SUS quan-do a aquisição foi determinada judicialmente. Os preços não foram deflacionados e os valores correspondem aos constantes nos registros ad-ministrativos de compra do Ministério da Saúde entre 2006 e 2010, período da pesquisa.

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Inde-pendentemente da MPS, as infusões são reali-zadas, sempre, uma vez por semana. Além dis-so, deve-se levar em conta que a quantidade de medicamento por frasco varia de MPS para MPS (laronidase: cada frasco tem 5mL e cada 5mL têm 2,9mg de medicamento; idursulfase: cada frasco tem 3mL e cada 3mL têm 6mg do medicamento; galsulfase: cada frasco tem 5mL e cada 5mL têm 5mg do medicamento). Para analisar simultane-amente as três distribuições de quantidades de medicamento adquiridas por indivíduo, estas quantidades foram padronizadas tendo como base a menor quantidade adquirida sob deter-minação judicial.

Resultados

Sujeição a monopólios de distribuição dos medicamentos

Monopólios de distribuição controlam preços, que tendem a ser mais altos do que os pratica-dos em mercapratica-dos concorrenciais. Nem sempre é possível evitar monopólios de distribuição, em particular no caso de medicamentos que muitas vezes são monopolizados em função da proteção de suas patentes ou, no caso específi-co das MPS, por serem medicamentos órfãos.

Um comprador de grande porte, como o Estado, tem alguma flexibilidade para negociar preços com monopólios quando a aquisição de medi-camentos é feita dentro de seu planejamento orçamentário. A judicialização, porém, determi-na a aquisição obrigatória e imediata de deter-minadas quantidades dos medicamentos, sem licitação. Isso afasta qualquer planejamento e negociação, que, no caso das compras públicas, são regidos por princípios fixos destinados a garantir que a administração pública faça bons negócios. A sujeição a monopólios de distri-buição, portanto, tende a implicar custos totais mais altos para as políticas de saúde. Esse, por sinal, é um argumento comum nas análises que criticam a judicialização.

A Tabela 1 apresenta evidências de sujeição do governo brasileiro a monopólio na aquisição judicializada de medicamentos de alto custo para MPS. Cerca de 97% da despesa judicializa-da são feitas com um único distribuidor, a Uno Healthcare Inc., uma empresa especializada em uma carteira restrita de medicamentos de alto custo em fase ainda experimental, e que tem o Estado brasileiro como o seu maior comprador: mais de R$ 213 milhões em medicamentos para MPS foram comprados desta empresa ao longo de cinco anos (2006-2010). O valor total das com-pras feitas pelo governo brasileiro junto a essa

Tabela 1

Gastos com medicamentos segundo distribuidor. 2006-2010.

Distribuidor/Medicamento Total (R$) Total (%)

Uno healthcare

Galsulfase 122.822.336 100

Idursulfase 86.985.457 100

Laronidase 3.372.334 36

Subtotal 213.180.127 97

Genzyme

Galsulfase 0 0

Idursulfase 0 0

Laronidase 5.890.646 64

Subtotal 5.890.646 3

Não informado

Galsulfase 593.703 0

Total

Galsulfase 123.416.039 56

Idursulfase 86.985.457 40

Laronidase 9.262.981 4

Total geral 219.664.476 100

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empresa é ainda maior do que os R$ 213 milhões, pois além dos três medicamentos relacionados às MPS a Uno Healthcare Inc. vende uma série de outros medicamentos e materiais médicos de custo expressivo – alguns deles também objeto de judicialização, como microcatéteres e enzi-mas para o tratamento de outras doenças raras, como a doença de Gaucher. Os 3% restantes têm sua aquisição computada como tendo sido feita junto à Genzyme Corporation, uma subsidiária do grupo farmacêutico Sanofi-Aventis.

No caso das MPS, pelo menos 97% das com-pras são feitas na empresa que monopoliza esse mercado no Brasil, pois distribui duas das três enzimas analisadas. A enzima cuja distribuição é compartilhada por duas empresas é aquela de menor relevância no custo total, a laronidase. Trata-se de um monopólio estrito desse merca-do específico. Para o sistema de saúde brasileiro, uma consequência da determinação judicial de compra em um mercado monopolizado é a per-da per-da capaciper-dade plena de administrar os preços de aquisição.

Perda da capacidade de administrar compras

As aquisições planejadas conferem ao sistema de saúde poder de monopsônio. Medicamentos protegidos por patentes e medicamentos órfãos garantem a distribuidores monopolistas grande poder em relação a consumidores atomizados. No entanto, quando compras são administradas por uma agência única, esse monopsônio per-mite à agência contrapor o controle sobre pre-ços dos monopólios. Quando não pode definir diretamente os termos de aquisição de medica-mentos, o sistema de saúde perde seu poder de monopsônio e, consequentemente, parte de sua capacidade de administrar compras. Mas, ain-da assim, é esse sistema que precisa arcar com os custos finais de aquisição dos medicamentos judicializados.

A consequência imediata da perda de ca-pacidade de administração é uma elevação dos custos acima dos valores mínimos possíveis. Além da elevação dos custos de compra, o sis-tema de saúde fica sujeito a flutuações que, sob outras circunstâncias, dificilmente ocorreriam na mesma magnitude. Uma evidência dessas flutuações encontra-se na Figura 1, que apre-senta a variação de preços médios por paciente de cada medicamento ao longo dos diferentes quantis (0%-100%) de aquisições judicializadas, tendo o menor preço médio como parâmetro-base (valor igual a 1). O que se analisa nesse gráfico não é se os preços praticados são os mí-nimos possíveis, mas o quanto eles flutuam aci-ma do menor preço efetivamente obtido pelo

SUS. Assumindo que o menor preço médio por paciente efetivamente cobrado já é suficiente para remunerar produtores e distribuidores, qualquer flutuação acima desse valor represen-ta majoração de preços.

Há grande variação de preços médios. Essa variação ocorre em todos os medicamentos, mas é particularmente maior no caso da galsulfase e da idursulfase. Nessas, mais de 70% dos pre-ços médios por paciente correspondem a pelo menos o dobro do preço-base, chegando a 820% deste preço (o ponto nem sequer foi apresentado no gráfico para não prejudicar a visualização do conjunto). Esse não é um efeito decorrente de um preço isolado muito baixo e nem se refere a um único medicamento. Flutuações expressivas são observadas mesmo quando se utiliza uma base mais alta, a média dos dez menores preços médios obtidos por paciente, sendo o padrão es-tável nos dois medicamentos com distribuição integralmente monopolizada.

Uma parte pequena do comportamento dos preços deve estar relacionada a flutuações cambiais, pois trata-se de medicamentos impor-tados. Porém, a hipótese mais plausível para a grande variação de preços é a impossibilidade do SUS negociar valores a partir de uma posição forte. Não se pode deixar de considerar, ainda, uma hipótese alternativa: a de que a eficiência em relação à escala das compras reduziria preços ou, em outras palavras, de que a flutuação de pre-ços se explicaria porque os prepre-ços caem quando grandes quantidades são compradas. Como se verá adiante, essa é uma hipótese rejeitada pela evidência empírica disponível. Por fim, é pos-sível considerar que as aquisições mais baratas estejam relacionadas a uma barganha própria da negociação ou a fatores externos, determinados por configurações específicas do lote, tais como a data de vencimento dos medicamentos.

Ineficiência em relação à escala

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Não dispomos de informações sobre cada compra realizada pelo SUS. Porém, como a judi-cialização induz aquisições individualizadas, as compras são feitas a cada oito meses (até janeiro de 2011 eram realizadas a cada seis meses) e o período analisado corresponde a cerca de dez ciclos de compras, tomamos como aproximação as quantidades adquiridas por paciente ao lon-go dos ciclos e seus respectivos preços unitários médios no período – isto é, o preço médio de uma unidade de medicamento adquirida para aquele paciente.

A Figura 2 apresenta a dispersão dos preços padronizados unitários médios por paciente (eixo vertical), segundo quantidades adquiridas (eixo horizontal) e retas de regressão linear pre-ço-quantidade de cada medicamento. Preços pa-dronizados com valor superior a três vezes o me-nor preço não são apresentados no gráfico, mas foram computados nas regressões. Se houvesse estabilidade de preços, seria de se esperar uma aglomeração dos pontos representando cada medicamento em torno de uma linha horizontal. Se houvesse economias de escala, essa linha seria inclinada para baixo, indicando que a aquisição de maiores quantidades permite a obtenção de menores preços. Nenhum desses comportamen-tos é observado.

Não existe correlação clara entre preços e quantidades de medicamentos. Os R2 das três regressões são muito baixos e não alcançam 0,04. A inclinação das retas de regressão, por sua vez, também não indica eficiências de escala na

aqui-Figura 1

Distribuição dos preços médios padronizados de medicamentos (base menor preço).

Fonte: Departamento de Informática do SUS e processos judiciais do arquivo do Ministério da Saúde.

sição. Embora os sinais de dois dos coeficientes de regressão indiquem decréscimo de preço quando maiores quantidades são adquiridas, seus valores são mínimos e poderiam ser trata-dos como nulos até pelo menos a quarta casa decimal. A mais ajustada das regressões, referen-te à idursulfase, apresenta todos os coeficienreferen-tes positivos, o que indica justamente o contrário do esperado – que os preços crescem na medida em que maiores quantidades são compradas (parâ-metros não são apresentados na Figura 2).

Em suma, sob judicialização, as aquisições dos medicamentos de alto custo para MPS pelo SUS são, aparentemente, ineficientes em relação à escala. Essa interpretação deve ser tomada com cautela, pois baseia-se em indicadores aproxi-mados, mas a evidência disponível sugere que as aquisições são feitas por preços instáveis, muito superiores aos mínimos possíveis e sem qualquer redução expressiva à proporção que aumentam as quantidades negociadas.

Dificuldade de controle das quantidades consumidas e estocadas

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Figura 2

Relação entre preços padronizados e quantidades totais adquiridas.

Fonte: Departamento de Informática do SUS e processos judiciais do arquivo do Ministério da Saúde.

elevada integração entre a indicação dos tipos e das quantidades de medicamentos, o seu con-sumo efetivo (postos de saúde e hospitais) e sua provisão (dispensários).

Quando o sistema tem controle sobre as quantidades adquiridas, utilizadas e estocadas, uma prescrição mais eficiente de medicamento de alto custo – por exemplo, doses menores efi-cazes – ou a interrupção da prescrição (por aban-dono do tratamento ou óbito) permite a realo-cação de medicamentos para outros indivíduos do sistema ou sua estocagem adequada para uso futuro. No caso da determinação judicial de com-pra, isso não é possível ou depende de arranjos externos à organização do sistema. Há indícios de que as organizações de pacientes com mu-copolissacaridose sejam responsáveis por essas medidas realocativas de medicamentos em caso de óbito, por exemplo.

Entretanto, as quantidades acumuladas de medicamento adquiridas podem variar muito entre indivíduos. Há diversos fatores por trás des-sas variações, como há quanto tempo o paciente recebe o medicamento e as diferenças de peso, que determinam as doses recomendadas. Inde-pendentemente desses fatores, cabe saber em que medida há concentração das quantidades adquiridas ao longo do tempo em certos

indiví-duos. Para permitir a comparação das quantida-des adquiridas dos três medicamentos, a Figura 3 mostra a distribuição das quantidades padro-nizadas segundo frações do total de aquisições. As quantidades são padronizadas tendo como base (valor 1) a menor porção adquirida, presu-mindo que a judicialização assegura, no mínimo, a compra das frações recomendadas para um in-divíduo requerente.

Os resultados apresentados na Figura 3 me-recem destaque. Pelo menos 60% das quanti-dades compradas são no mínimo cinco vezes maiores que o menor volume judicializado. No caso da galsulfase, 30% das aquisições são dez vezes maiores que a quantidade-base, com esta relação chegando, para os três medicamentos, a mais de 25 vezes no extremo da distribuição. Os medicamentos com maior desigualdade nas quantidades adquiridas são justamente aqueles com maior peso financeiro total. Isso indica que, além de elevadas desigualdades nos preços, há desigualdades substantivas nas frações distribuí-das para cada indivíduo.

Alocação desigual de recursos

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trata-Figura 3

Quantidades acumuladas de medicamento por paciente.

Fonte: Departamento de Informática do SUS e processos judiciais do arquivo do Ministério da Saúde.

mento e às doses recomendadas de acordo com o peso de cada paciente. Quando combinadas às concentrações de preços, as variações de quan-tidades provocam uma grande desigualdade na alocação de recursos, ainda que se referindo a um mesmo tipo de tratamento.

Os três medicamentos analisados têm custos diferentes, bem como são diferentes as popula-ções por eles atendidas. Por definição, haverá de-sigualdades absolutas entre eles. Para uma des-crição simultânea da concentração dos gastos com os três medicamentos, a Figura 4 trabalha apenas com desigualdades relativas e, para isto, distribui proporções do gasto acumulado, segun-do proporções da população acumulada em três curvas de Lorenz.

As curvas de Lorenz indicam grande concen-tração dos gastos com medicamentos de alto cus-to em alguns indivíduos. A desigualdade é maior para a idursulfase e a laronidase, mas é também elevada no caso da galsulfase. No tocante à idur-sulfase e à laronidase, metade dos pacientes res-ponde por cerca de apenas um quinto (20%) do gasto total, ao passo que 10% dos pacientes no topo da distribuição consomem mais de 30% dos recursos. Na galsulfase, a distribuição é de 30% do gasto total na metade de processos de valor mais baixo e 20% dos recursos nos 10% de valor mais alto. Comparando-se os décimos extremos das distribuições ordenadas de indivíduos, essas desigualdades ficam mais evidentes: na galsulfa-se, os 10% com maiores gastos requerem mais de 35 vezes os recursos dos 10% com menores

gas-tos e, nos dois outros medicamengas-tos, a relação é de cerca de 50 vezes.

A elevada concentração dos gastos com a aquisição determinada judicialmente de medi-camentos de alto custo para o tratamento das MPS sugere que os problemas distributivos den-tro do SUS não se referem apenas à diferencia-ção entre os medicamentos de alto custo e os demais. Referem-se, também, a diferenciações de custos muito grandes dentro de um mesmo tratamento.

Conclusão

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Figura 4

Curvas de Lorenz dos gastos totais segundo medicamentos.

Fonte: Departamento de Informática do SUS e processos judiciais do arquivo do Ministério da Saúde.

Quase a totalidade (97%) das compras do Mi-nistério da Saúde foi realizada por intermédio de um mesmo distribuidor, a Uno Health Care Inc. Há variações entre os preços mínimos e máximos de cada frasco do medicamento no intervalo de tempo analisado: 28% para a laronidase; 716% para a idursulfase e 146% para a galsulfase. Não há como saber as razões para essas variações pelos dados analisados, sendo a hipótese mais razoável a perda da capacidade de controlar pre-ços de compra pelo Ministério da Saúde devido à judicialização e à sujeição ao monopólio da dis-tribuição dos medicamentos. Os limites mínimos de preço para cada aquisição podem ser ainda explicados por fatores específicos dos lotes, tais como a data de vencimento ou o tamanho da encomenda feita pelo ministério ao distribuidor. Muito embora razões específicas possam expli-car os limites extremos nos preços das compras, os dados apontam para uma permanente oscila-ção nos valores pagos pelo Ministério da Saúde para a aquisição desses medicamentos em todo o período analisado. Se as compras fossem

re-alizadas pela média dos cinco menores preços já pagos pelo ministério pelos três medicamen-tos, haveria uma economia de R$ 84 milhões nos cinco anos de judicialização. É razoável imaginar que esse menor valor ainda seja superior ao que o governo poderia conseguir, caso os preços des-ses medicamentos fossem regulamentados pela Anvisa e caso eles fossem incluídos na política de fornecimento de medicamentos.

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no período analisado não seguem padrões espe-rados de redução ou estabilidade com o aumento do volume de aquisição.

Além disso, dada a inexistência de uma polí-tica específica para doenças genépolí-ticas raras, ou mesmo dada a ausência de implementação da política de genética clínica no SUS, a assistência em saúde para os pacientes que judicializam é frágil. Informações coletadas por fontes comple-mentares aos processos indicam que ausências importantes da política são supridas pela indús-tria farmacêutica. Um exemplo é a construção dos centros de infusão ou o treinamento de pro-fissionais de saúde para a administração dos me-dicamentos. Outros arranjos informais são reali-zados para o armazenamento refrigerado perma-nente das enzimas ou para a redistribuição das remanescentes em casos de óbito do paciente.

A judicialização pode ser um instrumento de garantia de necessidades de saúde não satisfei-tas. No caso dos três medicamentos para MPS analisados neste artigo, há incertezas quanto à relevância científica dos medicamentos para as necessidades reclamadas nas cortes. A definição sobre quais evidências científicas serão

consi-deradas suficientes para a incorporação de uma nova tecnologia em saúde não deve ser feita pe-lo Judiciário, mas pepe-los técnicos da política de saúde. Na ausência das razões explícitas para a não incorporação, os juízes acabam por definir que bens protegerão necessidades não satisfei-tas, sob a tese da omissão ou da discriminação injusta da política contra as pessoas vivendo com doenças genéticas raras.

O Judiciário, no entanto, reduz a proteção das necessidades em saúde à garantia do medi-camento: com a sentença favorável ao pacien-te, o Ministério da Saúde é obrigado a incluir o indivíduo no sistema de dispensação de medi-camentos de alto custo. Diversos outros domí-nios da assistência em saúde são ignorados, tais como o armazenamento dos medicamentos, a administração das enzimas nos pacientes, o trei-namento das equipes de saúde ou a definição de locais adequados para a infusão. Informações complementares recuperadas nesta pesquisa indicam que as indústrias farmacêuticas são as principais responsáveis pela organização desses outros domínios necessários para que o paciente se mantenha em tratamento.

Resumo

O estudo analisa os gastos da judicialização de medi-camentos para a mucopolissacaridose (MPS), uma do-ença rara, de alto custo, fora da política de assistência farmacêutica e com benefício clínico. O levantamen-to de dados foi realizado nos arquivos de 196 dossiês que determinou que o Ministério da Saúde forneces-se medicamentos no período entre 2006 e 2010, e nos registros administrativos e contábeis do Ministério da Saúde. A análise identifica sujeição do governo brasi-leiro a monopólios de distribuição de medicamentos e, consequentemente, perda de sua capacidade de admi-nistrar compras. Também identifica que a imposição da aquisição imediata e individualizada impede a ob-tenção de economias de escala com a compra planeja-da de maiores quantiplaneja-dades de medicamento, e impõe dificuldades logísticas para o controle das quantida-des consumidas e estocadas. Conclui-se que a judicia-lização decorre da ausência de uma política clara do sistema de saúde para doenças raras em geral, e tem como consequência gastos acima do necessário para o tratamento.

Jurisprudência; Mucopolissacaridoses; Política de Saúde

Colaboradores

D. Diniz contribuiu no planejamento do estudo, análise dos dados, redação e revisão. M. Medeiros colaborou no planejamento do estudo, tratamento e análise es-tatística dos dados, redação e revisão. I. V. D. Schwartz contribuiu no planejamento do estudo, análise dos re-sultados, redação e revisão do texto.

Agradecimentos

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Referências

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Referências

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