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A Presença do Abjecto no Surrealismo Português

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Academic year: 2021

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no âmbito do Projeto «UID/ELT/00077/2013»

Título

A Presença do Abjecto no Surrealismo Português

Autor

Rui Sousa

Direitos Reservados

¤ Esfera do Caos Editores e Autor

Design

Design Glow

Impressão e Acabamento

Europress - Indústria Gráfica

Depósito Legal XXXXXX/16 ISBN 978-989-680-194-6 1ª Edição Novembro de 2016 ESFERA DO CAOS EDITORES

Campo Grande Apartado 52199 1721-501 Lisboa esfera.do.caos@netvisao.pt

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INTRODUÇÃO BREVE

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

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“É normal que o surrealismo se manifeste por meio e talvez à custa de uma sequência ininterrupta de fraque-zas, de ziguezagues e de defecções, que a todo o ins-tante exigem que se volte a pôr em causa os seus dados originais, isto é, a recondução ao princípio inicial da sua actividade junta a interrogação do amanhã incons-tante que quer que os corações se «prendam» e se des-prendam”.

André Breton

“Dos desesperados é o reino da Arte, mas os verdadei-ros desesperados nunca são escola – são sempre indiví-duos”.

João Gaspar Simões

“Numa sociedade dualista, dividida entre duas grandes forças antagónicas, em que cada uma se engrandece à custa da existência da outra, o Poeta só tem como alter-nativas a angústia ou a abjecção. Se escolhemos esta última atitude é porque ela nos mantém ainda uma rés-tia de esperança quanto ao destino do Homem. Embora a posição abjeccionista se baseie na resposta que cada um dará à pergunta: «que pode fazer um homem desespe-rado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?», tem também como ponto de fé que, seja qual for a resposta, a «esperança» não será aniquilada, pois se acredita que «c’est au fond de l’abjection que la pureté attend son heure»”.

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Índice

Justificação e agradecimentos 11

Introdução breve ao trabalho de Rui Sousa 21 António Cândido Franco

Introdução 27

1 O Surrealismo entre o colectivo e a dissensão 31

1.1. Surrealismo e dissensão 31

1.2. O exemplo francês 33

1.3. A dissensão no Surrealismo Português 56 1.4. O Abjeccionismo: um conceito pouco definido 76 2 O abjecto nos autores da primeira fase

do Surrealismo Português (1947-1953) 87

2.1. Modernidade e opção do feio como transgressão 87 2.2. O abjecto nos membros dos grupos surrealistas 93 3 O abjecto nos autores da segunda

fase do Surrealismo Português 127

3.1. As antologias do Surrealismo Português 127 3.2. António José Forte, Ernesto Sampaio,

Manuel de Castro e Natália Correia 134

3.3. Luiz Pacheco, Manuel de Lima e Virgílio Martinho 146

Conclusão 161

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Justificação e agradecimentos

Este trabalho que agora se publica constitui, no essencial, a tese de Mes-trado em Estudos Românicos, especialidade Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, que defendi na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 2009. Procurei, ainda assim, corrigir alguns aspectos que, ou por na ocasião terem carecido de uma revisão mais cuidada, ou por entretanto o meu próprio percurso intelectual ter derivado em sentidos que me levaram a repensar de forma diferente algumas posições então assumidas, considerei que não deveriam manter-se. Procurei, ainda assim, não recorrer a nenhuma publicação posterior ao momento em que escrevi a tese, e evitar ao máximo, também, acrescentar outras obras à bibliografia entretanto utilizada. Por considerar que o projecto, conforme pensado, investigado, articulado e depois escrito e defendido deriva de um determi-nado momento do meu percurso no qual recorri aos materiais que na ocasião me estiveram disponíveis ou aos quais as minhas competências investigativas em botão conseguiram chegar.

Muitas considerações defendidas neste trabalho não coincidem com o que faria se começasse hoje a escrever a tese, como deve passar pela cabeça de todos quando voltam a reler o seu trabalho de formação. Prova-velmente o próprio tema adoptado, tendo em conta a natureza de um Mestrado, seria outro. Ou talvez não, dado que a minha teimosia relativa-mente à opção por temas abrangentes e perspectivas transversais se man-tém e ecoa amplamente no percurso bem mais tortuoso a que neste momento me dedico, no Doutoramento. E é bom que estas duas constata-ções se conjuguem, porque é provavelmente na sua confluência que melhor se explica a natureza deste trabalho.

Por um lado, ele espelha uma determinada etapa, com o sucesso relativo que eu próprio e os outros lhe queiramos atribuir, importante na construção do que depois se seguiu, mas muito diferente dos meus hori-zontes actuais para que me reveja em quem fui quando pensei este traba-lho, idealizei a sua estrutura e procurei concretizar da melhor forma pos-sível a articulação entre um determinado número de autores, obras e assuntos a tratar e um limite típico das teses de mestrado, em particular nos tempos que correm. Como serão sempre entendidas como diferentes todas e cada uma das peças a que damos determinado contorno, quando

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Por outro lado, esta reflexão pareceu-me suficientemente interessante para merecer ser publicada e, desse modo, tornar-se na minha primeira publicação individual em papel. Por continuar, ao fim destes anos, a con-siderar que os autores, obras e problemáticas que na altura me moveram continuam a ser fascinantes e a necessitar de aprofundamentos críticos, em vários sentidos. Em especial a questão do Abjeccionismo enquanto manifestação que considero singular e muito interessante no contexto da Literatura Portuguesa do século XX.

Justificado, en passant, e dentro do meu entendimento, o raciocínio que presidiu à decisão de proceder à publicação de A Presença do Abjecto

no Surrealismo em Portugal, resta-me expandir os agradecimentos que na

ocasião já tinha feito às pessoas que considerei importantes no percurso que conduziu ao relativo fumo branco que saiu do agradável debate com o júri que me coube em sorte, do qual muito me orgulho e que ainda hoje me merece o máximo respeito e consideração.

Começo, obviamente, por agradecer aos responsáveis pela mão imper-feita que escreve estas linhas depois de ter sido também delirante respon-sável por tantos e tantos outros rabiscos em diferentes suportes. É aos meus Pais, e à sua dedicação permanente não só ao meu bem-estar e ao meu crescimento enquanto indivíduo – meta que creio deve ser a fun-damental no momento em que se decide em consciência ter um filho –, como também ao meu percurso no campo dos Estudos Literários, que devo as capacidades que, melhor ou pior, me garantiram produzir este livro e que continuam a garantir-me os potenciais de sonho que se exigem em cada novo projecto que vou erguendo ou tentando prosseguir.

Agradeço, depois, à minha restante família, porque foi no contacto com cada um deles, uns mais, outros menos, que fui definindo uma iden-tidade que melhor se reconhece por derivar de uma raiz comum. Um agradecimento especial à minha avó materna e aos meus tios Lurdes, Paulo e Zé, porque foram eles que contribuíram para eu ser sempre uma criança feliz e envolvida num ambiente calmo e tolerante, indispensável à formação de qualquer carácter. E por continuarem a ser os familiares que mais peso têm na minha memória, ao ponto de ciclicamente sentir neces-sidade de renovar os gestos mais simples, justamente os mais importantes. O que não impede, pelo contrário, que outros familiares, de distintas for-mas, ocupem lugares indispensáveis na minha memória e na minha

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afei-ção; é com satisfação renovada que acolho o privilégio de dialogar e aprender com quase todos.

Um agradecimento sempre renovado, também, às amigas que, por motivos diferentes, constituem uma fuga àquela síndrome colectiva que Bergson considerou caracterizar a nossa relação com a realidade, impe-lindo-nos para não distinguirmos exactamente as feições únicas das coisas mas as características gerais para que os termos que as designam apontam, procurando unificar numa única palavra a multiforme rede de sentimen-tos envolvidos. O termo amizade, provavelmente um dos mais constante-mente glosados na necessidade permanente de definirmos a nossa relação com os outros que nos tocam, não é suficiente para definir a importância que a Sofia Santos, a Luísa Gama e a Sara Rocha possuem no meu imagi-nário e no meu afecto. A Luísa por constituir um daqueles exemplos raros de constância, numa amizade que passou por todas as fases que constituí-ram e constituem até agora a nossa vida adolescente e adulta, que se transformou como teria necessariamente de se transformar sem perder nunca as qualidades interiores que lhe dão nexo e a tornam necessária. A Sofia porque há poucas coisas mais importantes do que encontrarmos numa outra voz que sempre nos acompanha as ressonâncias profundas da nossa própria voz essencial e os horizontes sempre renovados que exigem que o diálogo continue, entre os ecos que passaram e as variações dessa sonoridade. E, no que a esta tese diz respeito, pelo sempre recordado companheirismo que partilhámos enquanto lutávamos pela concretização dos nossos projectos de mestrado, aos quais damos agora novos contornos com o entusiasmo e a partilha de sempre. A Sara porque os anos passaram sem nunca dispersarem o mútuo entendimento.

Não esqueço, como é óbvio, todos os meus outros amigos. Amigos de sempre, como o Marco Parreira, uma daquelas singulares evidências de que o tempo não existe propriamente dito, pois a cada reencontro a con-versa continua precisamente no ponto em que tinha ficado, depois de passados dias, meses, anos. Agitados, alguns; transformadores, todos. Amigos de fases importantes de uma vida em construção, e que nem os tempos longos sem contacto fazem esquecer, como o Nuno Barreto ou o Jorge Pires. Inspirações de garra e de determinação precoces, como no caso da Margarida Vale, minha explicadora de Inglês e uma voz de incen-tivo sempre presente. Amigos de todas as descobertas, que nos convocam para a nossa juventude mais pura, como a Arlete Pacheco, o Filipe Mar-tins, o Tiago Vicente, a Elsa Brízida, a Patrícia Carreiros, a Rita Beja. E

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Doutoramento. Do Bruno Alexandre e da Ana Sofia, com quem contacto pontualmente na Trafaria da infância de todos os meninos que fomos ou nos caminhos contemporâneos do Facebook, ao Ricardo Nobre e à Ana Aurélio, com quem tive o prazer de partilhar diferentes experiências em cada nova aula e com quem vou falando pontualmente. Sem esquecer todos os rostos fundamentais de um percurso universitário vivido com intensidade mesmo que não tanto no supostamente chamado “espírito académico”, evidente por exemplo no contacto sempre disponível e aberto com os jovens que entram todos os anos na Faculdade em busca de um novo rumo, como o Miguel Barcelos. Sem esquecer, evidentemente, os colegas de percurso de Mestrado, o Jorge Campos, a Ana Sofia Henriques e a Rute Correia, e as aulas também cheias daquela importância que todas as transições terão sempre nas nossas vidas. E, em especial, a Lígia Cabrita, com a sua simpatia contagiante e aquela capacidade de nos aco-lher sempre no seu genuíno gosto pela Literatura e por nós, por poder conversar com a extravagância delirante que somos. Lembrando, ainda, os companheiros de um percurso de alguma forma votado à Literatura, entre artistas e apreciadores, como o Jorge Vicente e todos os outros compa-nheiros da Lista de Escritas.

Reservo agora uma palavra especial ao CLEPUL. E nele, esperando que o entendam, aos que também poderiam perfeitamente incluir-se entre os amigos que a vida felizmente me tem sabido dar a conhecer, mas que preferi destacar por fazerem parte da alteração marcante que constitui para cada um de nós a primeira verdadeira experiência profissional. E nos últimos anos quase todos os caminhos têm passado pelo CLEPUL, numa multiplicidade que juntou amigos de antes aos companheiros de hoje. Neste aspecto, devo começar por agradecer a oportunidade de poder inte-grar um Centro tão vasto e em que as ideias e perspectivas são sempre renovadas e diferentes como seria de esperar numa casa onde convivem individualidades marcadas, no qual me foi permitido dar curso à minha voz própria e concretizar alguns dos meus projectos, além de ter apren-dido em pouco tempo muito mais do que poderia esperar. Faço-o nos nomes de uma tríade de rostos muito diferentes mas que me receberam todos de forma simpática e generosa, ensinando-me muito, motivando-me mais ainda, procurando conduzir da melhor forma algumas energias ainda demasiado instáveis que em mim residem: a Professora Annabela Rita, que

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me orienta na presente cruzada do Doutoramento com a presença amiga, o incentivo pronto e a liberdade de raciocínio que tanta falta me fazem, que acreditou desde o primeiro momento nas possibilidades do meu pro-jecto e na qualidade do meu trabalho e que tem sempre partilhado o seu entusiasmo e respondido positivamente às minhas sugestões, sobretudo quando pareço perder-me ou procurar caminhos improváveis; o Professor José Eduardo Franco, que aceitou integrar-me na sua equipa e que me pro-porcionou com a sua dinâmica inconfundível as condições para chegar ao conforto (provisório ou não, a seu tempo o saberemos) de que disponho; o Professor Fernando Cristóvão, um exemplo da massa de que eram feitos os investigadores numa época em que a Cultura ocupava o lugar que hoje sonhamos, por vezes tendendo para a desistência, devolver-lhe. Alargo depois os agradecimentos a todos os outros Professores do CLEPUL que sempre me receberam da melhor forma, dedicando uma palavra especial à simpatia e generosidade da Professora Ana Paula Tavares, que nos envolve sempre num genuíno interesse pelas nossas ideias e tanto me tem ajudado e acompanhado, e ao saber partilhado do Professor Ernesto Rodrigues, que calmamente nos faz sentir relevantes. Agradeço ainda à Professora Isabel Rocheta e à Professora Vania Chaves por me garantirem generosamente possibilidades de trabalho indispensáveis ao meu percurso.

E dedico a minha mais cúmplice saudação aos jovens investigadores que por aqui fui conhecendo. Em especial, uma palavra ao Luís Pinheiro, pela sua inexcedível disponibilidade para ajudar todos e cada um com humildade, paciência, compreensão. Depois, sem qualquer ordem parti-cular, à Rosa Fina, pelas múltiplas conversas e debates que fomos tendo e que tão importantes foram para mim; à Fernanda Santos, que, como já a classifiquei em conversa pessoal, tem sido uma espécie de anjo da guarda sambador, sempre disponível para me ajudar do outro lado do Atlântico, na maior parte do tempo, ou com a sua imensa energia e boa disposição quando aqui nos vem fazer uma visita; à Cristiana Silva, pela singularidade elegante da sua presença e da sua determinação, pelos diálogos sintéticos mas sempre inteligentes que mantemos; à Susana Alves pelo exemplo da força e da determinação mescladas de um espírito caloroso e atento, afinal os símbolos desse Carneiro celeste que nos reúne; à Paula Carreira por me ter ajudado a ocupar um lugar nesta engrenagem multiforme, nem sempre fácil de conciliar, mas fascinante de descobrir; ao Florentino Franco pela discreta mas incontornável disponibilidade para todos os projectos, todas as aventuras, por ter aceite colaborar activamente nas entrevistas que fui

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nas diferenças de opinião, forma importante de melhor desenvolver pon-tos de vista pessoais sabendo da riqueza ao seu redor; ao Maurício Ieiri, pela cumplicidade de interesses que nos proporcionou tão bons momen-tos de conversa e de partilha; ao Pedro Barata, uma presença que se tor-nou pouco a pouco exemplar por todos os diferentes momentos em que me soube compreender e ajudar, também em conjugação com o João Cruz, na livraria; à Marta Duarte, que veio encontrar no CLEPUL o espaço necessário para revelar abertamente todas as suas espantosas capacidades, em particular as vocais, que muito me surpreenderam; ao Miguel Barcelos, que começou por ser um dos mais interessados e empenhados alunos nas minhas esforçadas incursões como professor substituto da Professora Annabela e que foi a pouco e pouco conquistando a simpatia e a amizade de todos. A todos os outros deixo um sentido abraço, pelo muito que tenho aprendido com eles, por tudo quanto significam os momentos em que nos encontramos para festas, formações, encontros de jovens investi-gadores, lançamentos de livros, momentos de boa conversa e gargalhada.

Aproveito a oportunidade que me foi dada de reler este texto para actualizar os agradecimentos, estendendo-os a quem nos últimos meses, nos quais este livro esteve a ser preparado, entrou na minha vida para lhe dar um novo colorido. À Beatriz Miranda pelo amplo espaço de diálogos e cumplicidades que por sorte se foi abrindo ao ritmo dos meses e que per-manece, tão pleno, dinâmico, suave, musical e poético como o foi nos primeiros momentos, no reduto do meu imaginário; ao Carlos Serra pela partilha de ideias e referências e pela abertura ao dialogar das diferenças, por ser uma figuração caminhante de referências que nos inspiram a ambos, num sincero romantismo tranquilo e generoso; à Mariana Gomes da Costa pela simpatia e dedicação, pela complexidade comunicante do seu pensamento e pela graça com que cuida das suas meninas e se distin-gue, sempre, das ideias que convoca; à Filipa Barata pela energia, simpatia e tolerância contagiantes, a quem dedico também este livro, lamentando uma vez mais o ter-nos deixado tão cedo; à Maria José Vilas Boas e à Helena Bento pela frontalidade simultaneamente calorosa da sua presença; ao João Cambado pelo original contributo nos convívios a que vamos dando corpo, sempre tão ciente dos propósitos de cada momento; ao José Bernardino pela riqueza dos contrastes e das semelhanças, num diálogo de heranças, de memórias, de estados de espírito, de farrapos, uma

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perma-nente forma de consciência; à Joana Braga por toda a delicadeza e genero-sidade com que ouve e procura dialogar; à Catarina Pereira, na sua simpli-cidade tão inteligente e tão respeitadora das peculiaridades dos outros; às duas Carvalhesas, referência que aqui deixo a um momento de inspiração que bem confere o perfil à intensidade, ao humor, à elegância e ao pensa-mento inteligente que as acompanha, distintas mas sempre coerentes no que de mais transbordante se pode encontrar no seio do feminino criador; em bloco, aos que possa eventualmente esquecer, mas a presença de todos na minha memória é a de sempre.

Foi por via do CLEPUL que me foi permitido também organizar dois Congressos Internacionais, o Congresso Portugal no Tempo de Fialho de

Almeida e o Congresso Surrealismo(s) em Portugal. Ao prepará-los conheci

uma série de pessoas às quais não posso deixar de agradecer: os Professo-res Ernesto Castro Leal, António Cândido Franco, que me tem convidado para vários projectos e me honra assinando o prefácio deste livro, Luís Dias Martins, Luís Machado de Abreu, Isabel Pinto Mateus, Tania Martus-celli e Dionísio Vila Maior; os representantes vivos do Surrealismo em Portugal, com quem tenho mantido os mais vivos e instigantes diálogos, Artur do Cruzeiro Seixas, Perfecto E. Cuadrado, Fernando Grade, Eurico Gonçalves ou Alberto Pimenta, a que se soma a notável equipa da Casa da Liberdade Mário Cesariny, cuja confiança e cumplicidade tolerante agra-deço muito, na pessoa de Carlos Cabral Nunes; um elenco notável de jovens que tentam também percorrer o seu notável caminho e que nunca me falharam, como Miguel Mochila, Ana Cristina Joaquim, Bruno Silva Rodrigues, Raquel Nobre Guerra, Pablo Javier Pérez López, Nuno Amado, Pedro Sepúlveda, João Oliveira Duarte, Emília Almeida, entre outros; os pintores que estiveram presentes para ajudar a enriquecer os projectos, Rouslam Botiev e Joaquim de Carvalho, e Manuel Gonçalves, que sempre estabeleceu uma ponte simpática e lúcida entre mim e Rouslam.

Ainda no que respeita ao universo profissional, uma referência ao Genius e a toda a sua equipa de professores, por terem apostado em mim num momento em que ainda não fizera sequer o Mestrado e me terem permitido contactar com jovens estudantes em busca de uma revelação qualquer para solucionarem os seus percursos.

À minha orientadora de Mestrado, a Professora Fátima Freitas Morna, pelas aulas brilhantes que me ajudaram a definir o percurso que tomaria aquando da produção da tese e pela disponibilidade para acompanhar os trabalhos e me solicitar todos os materiais de que precisei.

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pela sua presença a instituição de ensino que me tem acolhido ao longo de tantos anos. Em primeiro lugar, à Professora Paula Morão, com quem aprendi toda uma nova perspectiva acerca da Literatura e que me deu a conhecer uma série de autores que conhecia pouco ou nada e que hoje considero verdadeiras referências, como Irene Lisboa. As suas aulas foram locais de um renovado espaço de diálogo e de transmissão de apreço pela Literatura, pela investigação e pelo ensino como arte de burilar consciên-cias. Ao Professor José Pedro Serra pela inconfundível capacidade de agradar a todos os alunos que têm o privilégio de fruir das suas aulas e de nelas se inspirarem e retirarem fragmentos de um saber generoso e trans-mitido com a simpatia e a tranquilidade que é comum a todos os que sabem muito sem nunca deixarem de ter respeito pelo que sabem. À Pro-fessora Cristina Almeida Ribeiro, pelo muito que me ajudou a recordar que muitas vezes o caminho que conduz ao laboratório onde fazemos as nossas experiências é o garante necessário da dignidade dos resultados. Ao Professor Pedro Alves pelas excelentes aulas de Filosofia que me foi dando semana a semana, sempre disposto a escutar as minhas dúvidas de foras-teiro no universo tão inquietante da Filosofia. Um agradecimento colec-tivo a todos os outros Professores que me acompanharam ao longo de todo este percurso e com os quais, na Faculdade de Letras como nas ins-tituições que antes me acolheram, tanto aprendi. Não isolo nomes, pelo menos nesta ocasião. Todos, à sua maneira, foram importantes.

Uma atenção especial a três pessoas: a Luís Amaro, com o qual tenho trocado cartas tão amáveis e ricas de saber e de generosidade, aquela gene-rosidade que ao longo dos anos fascinou investigadores de todas as idades, e que confirmei pessoalmente nas visitas que fiz; à sua sobrinha, Maria Jacinta, que tanto se tem disponibilizado para estabelecer contactos, par-tilhar ideias, incentivar-me a não deixar que os humores flutuantes me condicionem demasiado; e ao Jerónimo Pizarro, que com incomparável simpatia, profissionalismo e desapego me tem ajudado e esclarecido as dúvidas que coloco, muitas vezes solicitando indicações ou materiais que guarda como um dos mais vigilantes descobridores da galáxia pessoana. Junto ainda a este contexto órfico o agradecimento a Steffen Dix, que generosamente apostou no meu trabalho e tem mantido um diálogo sem-pre aberto e disponível. E uma palavra à Equipa Estranhar Pessoa, com cujos colaboradores tenho aprendido muito.

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Um abraço renovado de agradecimento ao Professor Gustavo Rubim. Pela excelência do papel de arguente que teve aquando da defesa deste trabalho, que me deixará sempre recordações singulares e que começou por motivar a admiração genuína pelo seu trabalho, que futuras leituras e encontros científicos ajudaram a confirmar.

À Esfera do Caos, na pessoa do seu editor, Francisco Abreu, por ter revelado interesse na publicação deste livro.

Não esqueço, finalmente, recuperando notas fundamentais do docu-mento original sujeito a avaliação, uma palavra de apreço para com a generosidade da Sr.ª Maria do Amparo, que me acompanhou a mim e à Sofia Santos nas nossas descidas à profundidade do depósito da Biblioteca da FLUL, nas inesquecíveis sessões de desbravamento dos periódicos ali conservados. A que junto, no Doutoramento, a Dª Laudice, que também foi de ajuda inestimável. E a simpatia do livreiro Nuno Franco, que me possibilitou utilizar alguns postais inéditos de Luiz Pacheco que na altura se encontravam em sua posse e com os quais eu e a Sofia trabalhámos directamente. No percurso de composição da presente tese merecem-me ainda palavras de gratidão todos aqueles que por via das suas entrevistas e sugestões têm enriquecido o meu pensamento. Destaco Vítor Silva Tava-res, José-Augusto França, Eurico Gonçalves, Fernando J. B. Martinho, Gastão Cruz, Cristina Tavares, Carlos Cabral Nunes, Helder Macedo, Alberto Pimenta, José Sá Caetano, Fernando Cabral Martins, Ana Paula Tavares, Teresa Martins Marques e Daniel Pires.

Rui Sousa Maio de 2016

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Introdução breve

ao trabalho de Rui Sousa

Associado ao grupo do Café Gelo, mas com raízes sólidas e fundas no diá-logo de António Maria Lisboa com os mais próximos (Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Fernando Alves dos Santos, Luiz Pacheco), o abjeccionismo costuma ser tomado como um dos momentos autóctones do desenvolvimento – Edouard Jaguer fala em “metástase” – do surrealismo português e da adaptação deste movimento aos acidentes e às particularida-des do terreno português, nas décadas de 40, 50, 60 e 70 do século XX.

Desenvolvendo-se por dentro da ditadura salazarista, numa situação política e social ainda mais difícil do que a das democracias da Europa que saíram da segunda grande guerra, também elas muito condicionadas e demasiado formais em tempo de guerra fria, o surrealismo português encontrou no abjeccionismo uma síntese circunstancial, mas fecunda, que acabou por se tornar quase até 1974 o motivo de investimento mais impor-tante das gerações que então deram vida ao surrealismo em Portugal.

Se quisermos sumariar os acidentes que vão da década de 40 à de 70, apontaremos em primeiro lugar, para a década de 40, o trabalho que Pedro Oom expõe em 1949 na I Exposição dos Surrealistas, que teve lugar na antiga sala de projecções do Pathé-Baby, rua Augusto da Rosa, trabalho chamado Musiques Erótiques – Primeiro objecto-abjecto (reproduzido em colectânea de Cesariny, 1963). Este objecto (mamadeira com mechas de

cabelo montada sobre galena) é significativo da apropriação do abjecto pela

surrealidade. A inclinação é equilibrar os extremos em jogo: o objecto e o abjecto, a aventura e a prisão. Da mesma fase, Abril de 1950, é a carta de António Maria Lisboa a Mário Cesariny em que pela primeira vez o vocá-bulo “abjeccionismo” surge. Diz: Serei ou não surrealista de hoje para o

futuro com a minha METACIÊNCIA e o NOSSO ABJECCIONISMO – eu não me pronunciarei sobre tal. O objecto-abjecto do ano anterior deu já origem a

um sistema de identificação do grupo, o abjeccionismo, que não mais parará de se metamorfosear ao longo de duas ou três gerações sucessivas.

O abjeccionismo se tem uma particularidade é o ser fecundo; vai adquirindo ao longo de três décadas formas diferentes, enriquecidas por novos e distintos contributos. Coube, porém, à primeira geração que asso-ciamos ao surrealismo em Portugal, ainda na década de 40, um papel de

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novas gerações entretanto surgidas.

No texto “Algumas Personagens”, do opúsculo Isso Ontem Único, editado por Luiz Pacheco em 1953, António Maria Lisboa regressa à questão da “abjecção”. É no poeta visível a inépcia, que é abjecção, de si

perante e numa vida a que foi chegado. Inépcia social, quer dizer Lisboa,

definindo assim o primeiro e mais decisivo espaço de actuação do movi-mento como objecção ante os constrangimovi-mentos socais que pendem sobre a aventura interior do poeta interessado no supra-real.

Alguns anos mais tarde, já no final da década de 50 e início da década de 60, durante o laboratório vivo do café Gelo, Luiz Pacheco, que estivera em diálogo directo com António Maria Lisboa, entretanto falecido em 1953, cria o neo-abjeccionismo, de que ele foi o único cultor. Pacheco não tinha vocação de general com tropas nem desejava ser o mentor dum movimento colectivo. Limitou-se, num momento muito particular da sua vida, a ruptura com todas as regras sociais no domínio profissional e familiar, a recortar um figurino com o qual pudesse diferenciar a criação a que por essa época se entregou – antes disso pouco havia escrito.

O neo-abjeccionismo tem expressão narrativa e não teórica. Caracte-riza-se por uma elaboração ficcional da realidade, tentando aproximar, ou mesmo fazer coincidir, nem que seja por artifícios e desvios, cujas estraté-gias será pertinente um dia estudar em pormenor, o narrador com o autor empírico da história. Um texto como “O que é o neo-abjeccionismo” (1963), cujo título cria tensas expectativas teóricas, interessa como passo diarístico ou autobiográfico, não como elaboração duma filosofia consis-tente, se bem que nele se formule uma ideia nuclear de boa projecção – a do neo-abjeccionismo, isto é, a miséria social do poeta, ser o resultado do querer ser livre em português. O mesmo se poderá dizer dum texto como

O Cachecol do Artista, também de Luiz Pacheco, este do final de 1964.

Pela mesma época Pedro Oom desenvolve o seu anterior investi-mento no “abjecto”, cristalizando em torno dele e do abjeccionismo um pensamento denso, este sim teórico. A ditadura portuguesa, as condições políticas e sociais das décadas anteriores não se haviam alterado, antes se haviam agravado nos primeiros anos da década de 60 com as guerras coloniais, que de resto a “democrática” França acabara de fazer com inu-sitada violência (um milhão de mortos!) na Argélia, o que permite perce-ber a boa recepção que o abjeccionismo tem então junto das gerações mais

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jovens e a necessidade dos mais velhos, os que vinham da década de 40, reinvestirem em força no tópico anterior.

Pedro Oom formula em 1963, em entrevista ao Jornal de Letras e Artes, n.º 75, 6-3-1963, a questão que em geral se apresenta, talvez com algum exagero, como o núcleo duro e representativo do abjeccionismo português:

que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos. O passo é um diálogo textual, uma paráfrase criativa dos

parágra-fos finais do manifesto de 1949, Erro Próprio, de António Maria Lisboa –

como comunicar numa Babilónia que se destrói ao conquistar a ordem.

Na mesma sequência o autor estabelece com elevado acerto as dife-renças entre surrealismo e abjeccionismo, dizendo que o primeiro postula um ponto do espírito onde as antinomias deixam de ser percebidas con-traditoriamente – alusão a famoso passo hegeliano do segundo manifesto do surrealismo (1929) – e o segundo recusa esse postulado, aceitando que as antinomias se desenvolvem de forma contínua. Mas não são apenas as diferenças que aí são apontadas, são também as identidades, antes de mais a esperança numa “realidade absoluta”. A supra-realidade é o horizonte da abjecção como do surreal. Por este lado, na teorização de Oom, a síntese, a fusão surreal-abjeccionista parece inconcutível.

Ao ano de 1963 associa-se outra metamorfose do abjeccionismo. A publicação da colectânea Surrealismo Abjeccionismo, organizada por Mário Cesariny e editada por Bruno da Ponte. O volume, no qual comparecem duas ou mesmo três gerações, num total de 32 autores, pode ser encarado como um passo possível no sentido duma síntese surreal-abjeccionista. Se algum dia a síntese dos dois momentos se podia ter oficializado como fusão era nesta compilação, em que Oom tem lugar de relevo, logo com citação de entrada ao lado de Breton.

A década de 60 tem ainda outro momento marcante em termos de abjeccionismo. A revista que os surrealistas portugueses – Cruzeiro Sei-xas, Mário Cesariny, Pedro Oom, Manuel de Lima, Natália Correia, Virgí-lio Martinho, António José Forte, Ernesto Sampaio, João Rodrigues, Vitor Silva Tavares – então pensam fazer deverá chamar-se “Abjecção”. Projec-tada ao longo do ano de 1965, com dois números prontos, a revista aca-bou por nunca ver a luz. O surrealismo português, ao invés de tantos outros, teve uma única publicação ao seu serviço, a revista Pirâmide (1959/60) feita pela geração mais nova do Gelo.

As razões para em 1966 a revista Abjecção não ver a luz devem-se à polícia e aos sucessivos processos judiciais – a antologia satírica e erótica

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tribunal João Rodrigues, Luiz Pacheco e Herberto Helder – que recaem sobre o grupo. A revista Abjecção, há cinquenta anos atrás, foi sob o aspecto legal um fruto estragado da abjecção penal. Caso tivesse sido publicada, a revista daria continuidade criativa ao “poema” exposto em 1949 por Pedro Oom, que era de resto o mentor gráfico da nova publica-ção. Sobreviveu felizmente (numa carta de Cruzeiro Seixas para Luiz Pacheco, 8 de Setembro de 1965) toda a descrição dos materais a incluir nos dois primeiros números. Eis alguns dos autores: Lewis Carroll, Mariana Alcoforado, Sade, Bocage e Jacques Vaché.

Guardei para o fim a situação de Mário Cesariny em relação ao abjec-cionismo. Sabe-se que este poeta está implicado na primeira fase da elabo-ração do movimento. É isso que se tira da carta de A. Maria Lisboa de Abril de 1950 já referida. Foi também ele que lhe deu um contributo de alto significado com a colectânea de 1963, decisiva para o favor que o abjeccionismo encontrou no grupo do Café Gelo e na geração da década de 60 (Vitor Silva Tavares) – a antologia demorou pelo menos 4 longos anos de trabalho. É verdade que o poeta teve cuidado em chamar a colec-tânea, ainda que graficamente de forma ambígua, Surrealismo

Abjeccio-nismo e não “Surreal-abjeccioAbjeccio-nismo” mas todo o trabalho de construção e

organização desta poderosa compilação abre caminho para uma tal fusão. A década de 70 é, porém, marcada pelas tensões de Cesariny com o abjeccionismo. Em 1973 no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português” marca posição, desligando-o do surrealismo (As mãos na

água A cabeça no mar, 1985: 280). No ano seguinte, em 1974, em

passa-gens do Jornal do Gato volta a pegar na questão do abjeccionismo, desta vez para dele se desligar. Diz assim: (…) aqui e agora e sempre em todo o

lado o surrealismo não tem nada que ver com o abjeccionismo ou só terão de comum haverem-se conhecido na cadeia, onde vai tanta gente por tão diversos cantares e alguns só por recreio, visita de estudo e turismo. Nas notas de

1977 à sua edição da obra de A. Maria Lisboa, desvincula-se da teorização de Pedro Oom, ligando-a ao existencialismo (1977: 390-91). Cito: Para

mim, hoje como há trinta anos, esta máxima (“c’est au fond de l’abjeccion que la pureté attend son oeuvre”) não passa de semínima. É evidente que o homem não é uma flor (o lotus) que se alimenta do lodo e quanto mais lodo ingere mais lotus fica. O contrário será mais verdadeiro: quanto mais infectado, mais infeccioso. Trata-se aqui, de um existencialismo (…).

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Esta tensão em que o diálogo de Cesariny entrou com o abjeccio-nismo leva-nos a muitas perguntas. Por quê um antes e por quê um depois? O que importa de momento nem sequer é responder a este “antes” e a este “depois”. É tão-só ter consciência de que situa aqui uma das chaves maio-res para se entender a vida poética portuguesa da segunda metade do século XX. Não me parece que o abjeccionismo esteja estudado nem tão pouco que ele tenha tido fim depois da data simbólica de 25 de Abril de 1974. A democracia moderna, mesmo em Portugal, teve metamorfoses demasiado assustadoras para acreditarmos que ela pôs termo à situação de abjecção em que antes se vivia. Basta apontar a situação moral e física da população prisional portuguesa para percebermos como a maior das misé-rias coexiste connosco todos os dias. A nossa cegueira presente não é afi-nal muito diferente da dos nossos avós.

Estas questões constituem o miolo do trabalho de Rui Sousa, A

pre-sença do abjecto no surrealismo português, que foi a sua dissertação de

mestrado e que aparece agora em livro, na presente edição. Dividido em três capítulos, o primeiro mais geral, estabelecendo vasos de comunicação entre o surrealismo francês e o português, e os dois restantes dedicados às imagens do abjecto nos autores portugueses tocados pelo surrealismo, o trabalho merece com certeza os aplausos dos que em Portugal se interes-sam pelos estudos do surrealismo.

Se tivesse de apontar o primeiro grande mérito deste trabalho não hesitaria em indicar “a escolha do tema”. O surrealismo português, quer nas relações múltiplas que mantém com outros surrealismos, antes de mais o francês, quer na autonomia que conquistou em relação a todos eles, constitui o tópico poético e cultural mais rico e exaltante da segunda metade do século XX português. Não vejo que qualquer outro se lhe com-pare em originalidade e em vigor. Ainda assim, o seu reconhecimento é parco e está muito longe de fazer justiça à importância criadora do movi-mento. Teimam em faltar os estudos de fundo e até o mais elementar tra-balho editorial em torno de autores como António Maria Lisboa, Mário Cesariny, Pedro Oom, Manuel de Castro ou Luiz Pacheco. Como é possí-vel que não haja ainda uma edição crítica da poesia de António Maria Lisboa, que morreu há mais de sessenta anos? E o mesmo se dirá para Mário Cesariny, com a diferença de este ter partido apenas há 10 anos e naturalmente ter deixado uma obra bem mais volumosa do que a do amigo. Há, pois, que saudar este livro de Rui Sousa com um carinho espe-cial e ver nele uma porta aberta para o futuro. Passam por aqui muitos dos

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O segundo grande mérito do trabalho de Rui Sousa é a largueza de concepção que ele mostra na sua abordagem. Ele percebeu, dentro do surrealismo português, um dos seus segmentos mais originais e significa-tivos, a noção de abjecção, com a qual trabalha e que funciona no seu estudo como um fio contínuo que lhe permite atravessar o labirinto sur-realista. Para se conhecer a dinâmica geral do surrealismo no nosso espaço cultural, muito marcado por uma ditadura que foi das mais longas de todo o continente Europeu, talvez nenhuma outra linha de força se mostre tão pertinente para a sua compreensão.

Neste terreno, o do conhecimento da abjecção, sem ser definitivo, o trabalho de Rui Sousa avança de forma decisiva. É certeiro o primeiro enquadramento da questão no diálogo tenso mas exaltante de Breton com as suas margens próximas, Artaud e Bataille. São ainda acertadas, reve-lando extenso conhecimento, as escolhas dos autores portugueses, que dão ao trabalho um primeiro carácter exaustivo.

O terceiro mérito do trabalho de Rui Sousa é a montagem da sua construção, a organização sólida da sua edificação. O vasto arco temporal que sustém o corpo da sua dissertação, de António Pedro a Manuel de Castro, com muitos autores intermédios, dá-lhe a solidez e a vocação duma primeira enciclopédia sobre o surrealismo em Portugal. Mais tarde, fruto destes pequenos cursos de hoje, uma tal obra encontrará as condições para ver a luz do dia. Imagino-a desde já construída com a mesma paixão e singularidade com que Gaudi em Barcelona visionou na sua catedral.

Podemos não concordar com tudo o que o estudioso nos dá a ler, podemos até lamentar faltas ou tomar como demasiado inofensivos alguns pontos, mas não podemos deixar de reconhecer e de louvar o avanço. É importante que Rui Sousa persista no seu interesse pelo surrealismo e prossiga com novos trabalhos, que continuem na senda da desocultação da história do surrealismo português e do resgate da sua palavra.

António Cândido Franco 5 de Outubro de 2016

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O Surrealismo em Portugal, depois de um percurso de marginalidade, recusa e absoluta exclusão, motivado em grande parte pelas circunstâncias em que surgiu, se movimentou, evoluiu e foi dispersando, e pela opção de muitas das suas principais figuras por uma via de auto-marginalização, de polémica e de crítica agressiva da sociedade dominante, começou lenta-mente a ser integrado no sistema literário e nos circuito universitário. Depois dos pioneiros estudos de conjunto, nomeadamente o de Maria de Fátima Marinho, e de se terem centrado as atenções nas figuras mais influentes e importantes do movimento – Mário Cesariny, O’Neill, Antó-nio Maria Lisboa, Mário Henrique Leiria, mais recentemente Luiz Pacheco, que contam com abordagens significativas –, as teses sobre o Surrealismo português começaram a deslocar-se, nos últimos tempos, para os espaços deixados em aberto. Salientem-se a perspectiva de Adelaide Ginga Tchen, relativa à evolução histórica do fenómeno surrealista em Portugal e com forte presença das artes plásticas e do enquadramento do desenvolvimento dos grupos surrealistas no contexto do Estado Novo; os trabalhos sobre figuras menos conhecidas da primeira fase do Surrealismo português (António Pedro, por exemplo) e o tratamento dado aos herdeiros desse primeiro momento, os do Grupo do Café Gelo – Luiz Pacheco, Ernesto Sampaio, António José Forte, Manuel de Castro, embora ainda com pouca incidência e concentradas sobretudo na questão do Abjeccionismo como variante portuguesa do movimento internacional e na abordagem do tema do escritor maldito e marginal que lhes está associado.

A questão da possível diferença do Surrealismo em Portugal face à base francesa e dos motivos que conduziram à transformação, alarga-mento e dispersão das suas fronteiras, sendo importante para as várias discussões efectuadas, é também a que motivou a minha perspectiva. O presente trabalho teve, portanto, base na percepção de algumas lacunas que me pareceram evidentes nas reflexões que têm sido feitas a respeito do conceito de Abjeccionismo, não por falta de discussão, mas pela diver-sidade de visões que roça o paradoxal e pela quase ausência de uma visão de conjunto do conceito, dos autores que lhe podem ser associados e das suas implicações. Pareceu-me, também, importante demonstrar como a questão do abjecto como tematização literária, sendo importante para a

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definição do conceito de Abjeccionismo, não deixou de estar presente nas obras de outros nomes associados ao Surrealismo em Portugal que, per-tencendo ao Grupo Surrealista de Lisboa e depois entrando em dissensão face a Mário Cesariny ou afastando-se mesmo da via surrealista, ou estando entre os nomes do segundo grupo de dissidentes, não se enquadraram no contexto abjeccionista.

O intento de trabalhar textos de autores ligados aos vários momentos do movimento levou-me a concentrar a investigação sobretudo em duas antologias de âmbitos muito diferentes, A Unica Real Tradição Viva, orga-nizada por Perfecto Cuadrado, e Surreal-Abjeccionismo, da responsabili-dade de Mário Cesariny, que funcionaram como corpus fundamental das análises textuais desenvolvidas. Ambas permitiram um contacto transver-sal, ainda que muito incompleto, com textos dos vários autores surrealis-tas e abjeccionissurrealis-tas. Em casos pontuais, socorri-me de outras obras dos autores em questão, quando considerei relevante ter em conta alguns outros textos.

Num primeiro capítulo, no qual procurei sobretudo sintetizar e pers-pectivar de acordo com as minhas intenções dados de natureza histórica, debate-se a questão da dissensão como constante ao Surrealismo interna-cional – exemplifica-se esta noção com os casos francês e português – que me parece indispensável para a atenção que será dada posteriormente à variante Abjeccionismo. Aborda-se, essencialmente, a evolução sentida, quer no grupo francês, quer no seu homólogo português, da situação de aparente unidade e concordância para um momento de dispersão dos membros e de marginalidade a que alguns deles foram conduzidos. No caso do grupo francês, sobressai ainda, na minha breve retoma histórica, a personalidade de Georges Bataille, cujo pensamento contrário ao de Bre-ton foi já amplamente relacionado com a órbita do Abjeccionismo. No caso do grupo português, é justamente a impossibilidade de existência de um grupo surrealista em Portugal e a necessidade de definição de uma variante capaz de aglutinar as diferentes liberdades individuais que será tida em conta. Nos últimos pontos do capítulo, procura-se ainda uma abordagem ampla do conceito de Abjeccionismo, primeiro com uma pers-pectiva comparada dos diferentes pontos de vista que a abordagem crítica foi desenvolvendo, e depois com a apresentação das diferentes acepções e concepções do conceito elaboradas pelos próprios autores.

No segundo capítulo, as atenções concentram-se no tópico da poética do abjecto, do feio, do transgressivo, do escatológico, procurando

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demons-trar-se como a sua presença no Surrealismo português vai muito para além do conceito de Abjeccionismo. Elaborar-se-á, para o efeito, uma aborda-gem textual de autores ligados ao primeiro momento do Surrealismo Português (1947-1953), muitos dos quais sem qualquer ligação posterior ao Abjeccionismo, mas que recorrem a procedimentos típicos de uma poética do abjecto conforme a procurarei definir. Serão tidos em conta António Pedro, Fernando Lemos, Alexandre O’Neill, Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Carlos Eurico da Costa, Fernando Alves dos Santos, Mário Henrique Leiria e Cruzeiro Seixas.

No terceiro capítulo, tomará particular importância a antologia como conjugação de personalidades literárias muito diferentes, perspectiva essen-cial para a abordagem desenvolvida ao longo de toda a tese. Assim, a uma breve reflexão acerca da importância da antologia segue-se uma apresen-tação sumária da recepção crítica das duas principais antologias de Mário Cesariny, A Intervenção Surrealista e Surreal-Abjeccionismo. Nos últimos pontos do capítulo desenvolve-se, a partir dos textos inseridos em

Surreal--Abjeccionismo, a questão da poética do abjecto em António José Forte,

Ernesto Sampaio, Manuel de Castro, Natália Correia, Luiz Pacheco, Manuel de Lima e Virgílio Martinho.

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O Surrealismo

entre o colectivo e a dissensão

1.1. Surrealismo e dissensão

O Surrealismo foi o último movimento de Vanguarda a surgir no período áureo do percurso de questionamento estético, social, antropológico e filosófico, e certamente aquele cujo percurso mais se alargou no tempo. Como qualquer Vanguarda, o Surrealismo definiu-se como ruptura em relação ao passado, mas trazendo consigo também uma vertente positiva e construtiva que aglutinou, modificou e transcendeu os legados da tradição com fundamentos no Romantismo, conforme Octávio Paz a definiu em

Los hijos del limo. Esse espírito acompanhou as principais individualidades

do movimento, fazendo dele um corpo em constante mutação e alarga-mento dos horizontes passíveis de serem contemplados pela singularidade e pela transgressão próprias do olhar surrealista.

A rebeldia própria destes vanguardistas, voltados para a utopia do novo, não poderia permitir que um movimento cujos fundamentos foram erguidos antes de elaborado o primeiro Manifesto e que percorre mais de cinco décadas mantivesse sempre unanimidade quanto aos processos, teo-rias, objectivos, alvos a atingir e, sobretudo, quanto aos caminhos segui-dos. A este respeito, parecem-me oportunas as observações de Carlos Felipe Moisés no artigo “O que é surrealismo?”, no qual distingue duas espécies de visão a respeito do movimento, a própria do entomologista, que o contempla como algo que já foi e que, portanto, “busca saber o que o Surrealismo é”, e a própria dos seus praticantes, que sabem que “o Sur-realismo, como tudo o mais, não é, está sendo”, ou seja, “transforma-se continuamente em outra coisa, sua lei suprema, e única, será a lei da metamorfose, a lei do devir: trânsito, passagem, mutação, explosão de todos os limites e contornos” (Moisés, 1990: 27). Breton procurou tam-bém, numa entrevista a José M. Valverde, definir esta ideia como uma constante do movimento desde o seu começo, alargando ao mesmo tempo os âmbitos a todos os autores que antes e depois dele perseguiram e per-seguirão objectivos semelhantes independentemente dos processos de investigação utilizados:

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Não há «neo-surrealismo». Tudo o que se apresenta como tal ou hoje se enfeita com a etiqueta «surrealismo revolucionário» cobre uma actividade de falsificação e deve ser denunciado como impostura. E isso por uma boa razão: desde as suas origens que o surrealismo se assumiu como a codifi-cação de um estado de espírito esporadicamente manifestado em todas as épocas e países, portanto não se lhe pode delimitar um fim ou um começo. Goya era já surrealista, assim como Dante, ou Uccello, ou Lau-tréamont, ou Gaudi. Por séculos ainda, será surrealista ainda em arte tudo o que, através de novas vias, visará uma emancipação maior do espírito. Os acontecimentos desenrolados desde há trinta anos não modificaram fundamentalmente as premissas que deram origem ao surrealismo como

movimento organizado. Se apesar de tudo há diferenças sensíveis entre a

atitude surrealista dos anos 20 e 50, devem-se à dilatação considerável do nosso campo de investigação: mais ou menos limitado de início ao domí-nio poético, estendeu-se muito além dele (Breton, 1994: 285).

Esta longevidade e profusão de possibilidades de actuação e de pes-quisa confrontou o Surrealismo com os paradoxos e fracassos próprios de uma ideologia que, em nome da absoluta libertação humana, conviveu com procedimentos internos associados normalmente a um partido polí-tico ou uma seita religiosa e que, apesar das ambições desmedidas, não evitou permanecer ligada ao plano da cultura e da arte, fracassando como outros movimentos contemporâneos na tentativa de transformar o mundo.

O Surrealismo, para os que tomaram contacto com ele numa fase avançada da sua evolução, tornou-se impossível de definir de modo uni-forme, tal a multiplicidade das facetas, buscas e personalidades envolvi-das. Como um espelho, viu-se progressivamente deformado consoante os rostos que nele se procuraram reflectir. Alguns atribuirão a este aspecto a importância que o movimento surrealista conseguiu. Adolfo Casais Mon-teiro, por exemplo, considera que

Essa complexidade é, contudo, porventura, o segredo da vitalidade que permitiu ao surrealismo, nascido pouco depois da outra guerra, e após ter sido entre aquela e a última fermento constante de saudável hetero-doxia, revelar-se ainda, nos tempos da Resistência, uma das forças que permitiram a salvação da poesia francesa (Monteiro, 1972, 99).

Posição semelhante à que Afonso Cautela assume quando procura fazer o balanço dos sucessos e fracassos do Surrealismo:

O surrealismo, um dos poucos movimentos contemporâneos a ter cons-ciência dessas contradições e desse apelo, tentou responder, tentou cor-responder. Talvez falhasse, falhou com certeza, mas tentou: tentou a res-posta e perspectivou a pergunta de um ângulo rigoroso, sem nenhumas

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concessões à ordem e forças que a sustentam. Simplesmente parece não haver, não ter havido espírito que, trabalhando em seu nome e sob o seu rótulo, se mostrassem à altura das suas ambições. Algumas obras surrea-listas recaíram no artístico e os autores conformaram-se por vezes à ordem estética, política e ética estabelecida antes e depois mas que o movimento, em princípio e por definição, repudiaria. De qualquer modo, pertence-lhe o mérito de ter resistido mais tempo do que o habitual em tais emergên-cias. E de ter dado o exemplo a futuras saídas para o impasse. Não faltou lucidez a muitos dos seus teóricos, mas faltou-lhes talvez clareza de pen-samento, evidência na proposição pública dos temas e palavras de ordem fundamentais.

Entretanto, o surrealismo excedia as suas próprias intrigas de bairro, as suas próprias teorias e realizações, as suas próprias forças e fraquezas. Iria constituir, por velocidade adquirida, o ponto de encontro inevitável de muitas coisas esquecidas pela história oficial e outras coisas que o homem subterrâneo, oposto à história visível, iria revelar e relembrar (Cautela, 1965: 47-48).

É nesta óptica que a questão da dissensão surrealista se deve colocar. Foram precisas várias personalidades e caminhos percorridos muito diver-sos, conflitos de objectivos e de interesses, divergências entre o que foi pretendido e alcançado de facto, para construir a memória que hoje temos do Surrealismo e dos seus principais agentes.

1.2. O exemplo francês

1.2.1. A união espontânea de personalidades

A cisão e multiplicidade de perspectivas a que o Surrealismo deu forma tornam-se mais evidentes se atentarmos na sua fase inicial, na qual existia uma certa unidade quanto ao inimigo e ao posicionamento necessário para o combater. Nos seus primeiros anos de existência, o Surrealismo caracterizou-se pela profunda marginalidade e pela irredutibilidade da oposição ao sistema social e cultural dominante. Perante as produções e manifestações surrealistas, como perante as de qualquer outro movimento de Vanguarda, a sociedade dividiu-se nas duas perspectivas da barricada definidas por Ortega y Gasset em A desumanização da Arte: “uma, mínima, formada por um reduzido número de pessoas, que lhe é favorável; outra, maioritária, inumerável, que lhe é hostil” (Ortega y Gasset, 2003: 62)1

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Caracterização que se pode relacionar com a de Matei Calinescu quando, em As

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Os surrealistas encontravam-se nesta altura numa situação “marginal em relação à vida social; marginal em relação à vida política; marginal em relação ao poder instituído” (Castro, 1987: 22), aliás, era essa a sua situa-ção antes mesmo de os seus representantes mais considerados aderirem ao movimento, o que os unia na oposição e no desejo de combater com todas as forças a sociedade que gerara os horrores da recente Primeira Guerra Mundial, na qual alguns deles, como Breton, tinham participado. Esta é a ideia que nos oferecem dois surrealistas tão distintos como André Breton e Antonin Artaud, quando convidados a recordar os primeiros tempos do movimento. Nas suas Entrevistas, Breton afirma:

Os anos de 1924 e 25, que são aqueles em que o surrealismo se formula e organiza, serão sem dúvida, com os de 30 e 31, os que nos encontrarão mais activamente rebeldes a todo o conformismo e resolutamente mais «insociáveis». O mundo onde vivemos parece-nos totalmente alienado; rejeitamos, de comum acordo, os princípios por que se rege. A esse res-peito, nem precisamos de nos consultar: cada recém-chegado vem ter connosco movido pela recusa exasperada destes princípios, pelo des-gosto e a raiva para com tudo o que engendram. O maior rancor reser-vamo-lo aos conceitos a que se convencionou atribuir um valor sagrado: em primeiro lugar, a «família», a «pátria», a «religião», sem exceptuar o «trabalho», nem mesmo a «honra», no sentido mais difundido do termo. Tais bandeiras pareciam-nos encobrir mercadorias sórdidas: ainda tínha-mos demasiado presentes no espírito os sacrifícios humanos que esses deuses haviam exigido e exigiam ainda (Breton, 1994: 99).

Antonin Artaud tem uma perspectiva semelhante da fase em que pertenceu ao grupo:

O Surrealismo nasceu de um desespero e de uma repugnância e nasceu nos bancos da escola. Muito mais que um movimento literário, foi uma revolta moral, foi o grito orgânico do homem, foi em nós o escoicinhar do ser contra toda e qualquer coerção […]. Quando o Surrealismo come-çou, todos nós nos sentíamos agitados por uma fervente revolta contra todas as formas de opressão material ou espiritual: Pai, Pátria, Religião, Família, nada havia que nós não invectivássemos… (1980: 11).



“enquanto uma fase da história da civilização ocidental – um produto do pro-gresso científico e tecnológico, da revolução industrial, das radicais mudanças sociais e económicas produzidas pelo capitalismo – e a Modernidade enquanto um conceito estético” (1999: 49). Esta divisão explica o conflito aberto entre os meios burgueses, representantes do primeiro conceito, e os artistas de Vanguarda que se opõem à civilização por eles representada.

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O movimento surrealista concentrou-se em torno de um grupo de jovens vivendo em profunda marginalidade, que se colocavam delibera-damente fora do sistema que repudiavam e tentavam derrubar, atacando de modo indiscriminado todos os seus valores, que se tinham mostrado incapazes de solucionar a encruzilhada a que a Modernidade conduzira. Partilhavam perspectivas semelhantes, um modo de vida boémio e margi-nal comum, referências literárias e culturais que validavam, na sua óptica, a continuidade de um projecto que esses grandes vultos tinham legiti-mado. Breton refere-se a essa ambição numa das suas entrevistas:

É fatal que a ambição – depois classificada de prometeica – dos poetas que acabo de citar, no sentido de forçar as portas do mistério e resolutamente avançar, a despeito de todos os interditos, em terra desconhecida, não podia deixar de ser extremamente incómoda para todos os que se instalaram confortavelmente atrás das barreiras existentes, e sabe-se que são legião. Nos dias de hoje, o seu furor recrudesce por não poderem deter a história das ideias, pois que neste, como noutros aspectos, é impossível voltar atrás. Nada conseguirá que a actividade poética, há mais de um século orientada para a recuperação dos poderes originais do espírito, consinta em retomar um lugar subalterno (Breton, 1994: 88).

Não existe, portanto, qualquer conflito de interesses ou cisão de pon-tos de vista, até porque os objectivos são ainda muito abrangentes, enqua-drando-se perfeitamente nas intenções das diferentes personalidades. A conjugação entre a destruição levada a cabo sobre as formas, métodos e escolhas de uma determinada cultura e a criação de um novo universo que o transcendesse e o conduzisse à resolução das suas contradições e ten-dências castradoras é o programa dos Surrealistas quando aparece o

Pri-meiro Manifesto de André Breton, que sanciona “um modo de ver e sentir

que teve sempre de se impor, reflectir, precisar e formular em termos rei-vindicativos nos anos precedentes” (Breton, 1994: 87). Um programa amplo, para o qual não existe ainda uma ortodoxia demasiado evidente e que permite liberdade de movimentos a personalidades como a de Anto-nin Artraud, que no texto referido mostra a sua adesão aos princípios ini-ciais:

Destruição sobre destruição. Onde a poesia ataca as palavras, o incons-ciente ataca as imagens, mas há um espírito ainda mais secreto que se encarrega de proceder à colagem dos fragmentos da estátua. O que se pretende é quebrar o real, desorientar os sentidos, desmoralizar se possí-vel as aparências, tendo porém em vista uma noção de concreto. Do seu obstinado massacre, o Surrealismo esforça-se por extrair alguma coisa.

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Quebrado o fantoche, deteriorada a paisagem, torna-se a refazer tudo, mas de modo a provocar a gargalhada ou a fazer ressuscitar o cenário das terríveis imagens que nadam no inconsciente (Artaud, 1980: 14-15). Nada falta a esta observação de Artaud, por comparação com as ideias do Primeiro Manifesto. O papel da poesia e do inconsciente na des-truição de um universo linguístico e na reconstrução das imagens resul-tantes do corte com a noção de real conforme conhecido pela percepção externa são colocados em destaque. Artaud reconhece a necessidade de partir de uma base no Real, da qual se extrai algo que, depois de sujeito a uma deformação recriadora, dará origem a novas imagens existentes no interior do espírito humano. Nada parece separar o modo como Artaud, em 1936, aquando da sua passagem pelo México, recorda o movimento e os objectivos apresentados por Breton doze anos antes, quando a única utopia do surrealismo e o campo predominante do seu trabalho colectivo eram a busca do encontro futuro “destes dois estados, aparentemente tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer” (Breton, 1993: 24-25). O que nessa altura os separava irreversivelmente era o modo como desse estado inicial o movimento surrealista evoluíra para muitas outras coisas.

Maurice Nadeau considera esta fase o “período heróico”, resultante do encontro de um grupo de jovens idealistas e revoltados, que partilham um conjunto de crenças e de valores e uma actividade pouco nítida:

Nous avons remarqué avec quel soin jaloux les surréalistes se gardent de donner un dessin net à leur activité. Certes celle-ci n’est pas équivoque : ce sont des révoltés, qui veulent changer non seulement les conditions tra-ditionnelles de la poésie, mais aussi et surtout de la vie. Ils n’ont pas de doctrine, mais certaines valeurs qu’ils brandissent comme des drapeaux : toute-puissance de l’inconscient et de ses manifestations : le rêve, l’écriture automatique, et partant, destruction de la logique et de tout ce qui s’appuie sur elle. Destruction aussi de la religion, de la morale, de la famille, cami-soles de force qui empêchent l’homme de vivre suivant son désir (1947: 96).

Este isolamento face a um inimigo que se pretendia surpreender permitiu ao Surrealismo viver o seu momento de maior euforia, eferves-cência e intervenção polémica. Os conflitos em que se viram envolvidos, do ataque a Anatole France e do escândalo no jantar em homenagem a Saint-Pol-Roux à série de invectivas incendiárias de Artaud, isolaram-nos do resto da sociedade, mas também se revelaram inoperantes tendo em conta os objectivos perseguidos: “Leur idéalisme est pur, mais inopérant ;

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ils s’en dépouilleront peu à peu au milieu de crises intérieures graves, de questions de confiance sans cesse posées” (Nadeau, 1947: 97). Facilmente se percebe que este ambiente de concordância entre os surrealistas guarda já as sementes de uma ruptura iminente, agravada com a entrada em cena de uma via que não fora, até ali, considerada mas que motivará as mais graves crises que o movimento conheceu: a via da intervenção social com a aproximação ao Comunismo, que coincidiu com o momento em que o Surrealismo conseguiu afirse no âmbito da cultura, deixando a mar-ginalidade inicial para expandir rapidamente a sua influência além-fron-teiras, num processo que Jules-François Dupuis apelidou, na História

desenvolta do Surrealismo, de “enxameação”. Não deixariam de carregar

consigo, contudo, a aura que Lima de Freitas veicula em As imaginações da

imagem:

Aqueles que, com Breton, sentiam ou pressentiam a extensão do desastre quotidiano, a insolvência dos statu quo e o escândalo das planificações que legislam o subjectivo a partir das pseudobjectividades da lógica prá-tica – artistas, poetas, cabeças e corpos marginais que viviam o drama da dissolução e da luta do «espírito contra a razão», como Crevel intitulou um dos seus textos – não mais deixaram de remexer a ferida, o rasgão doloroso, por onde vislumbravam a polpa vermelha de uma realidade outra, totalizante, indivisa, viva. Assim vejo, nesses homens de destino trágico, blasfematoriamente transidos de orgulho e terror, mais do que vítimas procurando evadir-se dos campos de concentração da sociedade moderna e em busca de inexistentes periferias naturais intactas, sonâm-bulos que dentro do próprio sonho lutavam por acordar, em demanda de um caminho que os levasse ao centro do labirinto, frente ao monstro lendário, não para acabar com a sua agonia milenária, mas para tentar reparar o erro deTeseu (Freitas, 1977: 30).

Manteriam, independentemente do que a realidade deles fez e das contradições que vitimaram o seu espírito inicial e as amizades então cria-das, esse prestígio de, utilizando o termo de Octávio Paz, “filhos do barro” nascidos de um mundo em violenta transformação, da qual resultaram outros movimentos de Vanguarda como o Futurismo, o Dadaismo ou o Expressionismo, e confrontados com a necessidade visceral e instintiva de se oporem irreversivelmente a todas as hipocrisias em que assentava o poder dominante, fossem quais fossem os seus domínios. Vivia-se, nesse dealbar do Surrealismo, o mundo que Lima de Freitas descreve num outro artigo dedicado ao movimento:

A Primeira Guerra Mundial, catástrofe cujo horror ultrapassou de longe o que até aí pudera imaginar-se, fez periclitar a «ordem estabelecida» da

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velha Europa, aliás já fortemente abalada por numerosas crises, revolu-ções e guerras, «ordem» que atraía o ódio da maioria dos homens pen-santes, traumatizados por uma hecatombe que fazia duvidar da sobrevi-vência e da própria legitimidade dos antigos valores de Estado, Pátria, Autoridade, Família, Direito, Justiça ou mesmo da simples decência. Se a ciência e a epistemologia dos primeiros anos do século desconjuntaram parte do orgulhoso edifício das certezas de Oitocentos, a carnificina na lama das trincheiras veio pôr em causa outras certezas mais prosaicas e práticas, indispensáveis à manutenção física do contrato social, minando na raiz todos os esteios éticos, todos os preconceitos tácitos, todos os consensos vigentes se não evidentes (Freitas, 1982: 72-73).

1.2.2. Breton, centro do grupo surrealista

Apesar de nesta fase inicial não existir uma imposição demasiado rígida de pontos de vista e de rumos, do mesmo modo que as exclusões ainda não se tinham tornado uma constante da necessidade de ruptura e mudança característica do movimento, desde cedo a personalidade de André Breton se distinguiu, aglutinando em seu redor os outros membros do grupo, aspecto que estaria na base de muitas das cisões posteriores.

Breton pode ser visto, em certo sentido, como um desses “fundadores de discursividade” que Foucault identificou em O que é o autor?: “Estes autores têm isto de particular: não são apenas os autores das suas obras, dos seus livros. Produziram alguma coisa mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos” (Faucault, 1992: 58). Foucault dá como exem-plos deste tipo de autor Marx e Freud e acrescenta: “[…] eles não só tor-naram possível um certo número de analogias como também tortor-naram possível […] um certo número de diferenças. Eles abriram o espaço para outra coisa diferente deles e que, no entanto, pertence ao que eles funda-ram” (1992: 59-60). De facto, Breton procurou sempre tecer as linhas a partir das quais a acção surrealista evoluiu, quer nos manifestos – que são a base doutrinária fundamental, reflectindo ao longo dos anos os rumos seguidos e as transformações conceptuais e ideológicas –, quer no modo como toda a ética surrealista deriva da sua concepção do mundo, na sua visão da literatura, da política, da sexualidade ou do ocultismo. As várias facetas do Surrealismo dependem do modo como Breton apresentou o movimento e o conduziu com a sua liderança e ortodoxia doutrinária, quer por se aproximarem da sua visão ou a ela se manterem fiéis, quer por, a partir dela, se expandirem, diversificarem ou oporem. As obras, reflexões e realizações dos autores que pertenceram ao movimento

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sur-realista não deixarão nunca de ser anexadas numa etiqueta que acabou por se alargar e descontextualizar de modo inesperado, e mesmo autores contemporâneos, rivais ou continuadores, como Bataille, Sartre, Boris Vian e outros são obrigatoriamente contemplados tendo em conta o diá-logo mantido com Breton e as suas concepções.

Percebe-se nas próprias palavras de Breton que ele se via como guia, exemplo e principal definidor das coordenadas colectivas:

Qual o significado disto: a intransigência que pus na defesa do surrea-lismo? Apostei no que julgava justo, no que considerava de natureza a tornar menos inaceitável a condição humana. Na medida em que outros – bastante numerosos, como se sabe – se pronunciaram no mesmo sen-tido, achei que em caso de ruptura de contrato – implícito ou explícito – da sua parte, lhes deviam ser pedidas contas. E deve imaginar que me sinto bastante satisfeito por ter podido manter, contra ventos e marés, os postulados iniciais! (Breton, 1994: 215).

E, pouco depois, prossegue na mesma toada:

No combate que travei, jamais me faltaram companheiros tão decididos como eu, graças aos quais nunca me vi privado de calor humano. É ver-dade que tive de me separar de alguns que me eram queridos, que outros me deixaram e que não são poucos aqueles cuja recordação me perse-guiu durante muito tempo, cuja lembrança me assalta ainda em certas horas, e não escondo que, de cada vez, é sempre uma ferida que se rea-bre. Mas, julgo necessário ter sido assim; se queríamos salvar a aposta ini-cial, só a esse preço podíamos ganhar. Não ponho nisto nenhuma vaidade, mas nos dias de hoje é geralmente aceite ter o surrealismo contribuído grandemente para modelar a sensibilidade moderna. Além disso, conse-guiu, se não impor, pelo menos fazer tomar largamente em consideração a sua escala de valores (p. 216).

Frequentemente se fala do carisma de Breton, que levava os compa-nheiros a confiarem cegamente na sua capacidade de decisão e na justeza das suas ideias. Jules-François Dupuis, por exemplo, afirma que “o sur-realismo foi sobretudo um sistema graças ao qual Breton decide instituir objectivamente as suas opiniões subjectivas, os seus gostos, as suas pai-xões” (Dupuis, 1979: 97). Algo que, em certo sentido, é justificável se pensarmos que um sistema ideológico com os objectivos do Surrealismo dificilmente conseguiria afirmar-se se não fosse levado a cabo por uma força colectiva reunida em torno de determinadas coordenadas. Georges Bataille, um dos mais acérrimos opositores de Breton, defende isso mesmo no texto “Le surréalisme et la difference avec l’existencialisme”:

Referências

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