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Gestação de substituição : revogação da renúncia antecipada à maternidade e direitos da mulher gestante

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO

REVOGAÇÃO DA RENÚNCIA ANTECIPADA À MATERNIDADE E

DIREITOS DA MULHER GESTANTE

Jéssica Alexandra Rodrigues Silva

Mestrado em Direito

Faculdade de Direito | Escola do Porto

2019

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO

REVOGAÇÃO DA RENÚNCIA ANTECIPADA À MATERNIDADE E

DIREITOS DA MULHER GESTANTE

Jéssica Alexandra Rodrigues Silva

Orientador: Senhora Professora Doutora Rita Lobo Xavier

Mestrado em Direito

Faculdade de Direito | Escola do Porto

2019

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4 «16 Naqueles dias, duas prostitutas foram ao rei e ficaram de pé diante dele. 17 Uma das mulheres disse: “Por favor, meu senhor, eu e esta mulher moramos na mesma casa, e eu dei à luz quando ela estava na casa.18 Três dias depois de eu ter dado à luz, esta mulher também deu à luz. Estávamos juntas, só nós duas; não havia ninguém connosco na casa. 19 Durante a noite, o filho desta mulher morreu, porque ela se deitou sobre ele. 20 Então ela se levantou no meio da noite, enquanto eu, a escrava do meu senhor, dormia, e tirou o meu filho do meu lado e o colocou ao lado dela; e o filho dela, que estava morto, ela colocou nos meus braços. 21 Quando me levantei de manhã para amamentar o meu filho, percebi que ele estava morto. Assim, olhei bem para ele e vi que não era o filho que eu tinha dado à luz.” 22 Mas a outra mulher disse: “Não! O meu filho é o vivo, e o seu filho é o morto!” E a primeira mulher dizia: “Não! O seu filho é o morto, e o meu filho é o vivo!” E assim discutiam perante o rei.23 Por fim, o rei disse: “Uma diz: ‘O meu filho é o que está vivo, e o seu filho é o que está morto!’ e a outra diz: ‘Não! O seu filho é o morto, e o meu filho é o vivo!” 24 Então o rei disse: “Tragam uma espada.” Assim, trouxeram uma espada para o rei. 25 E o rei disse: “Cortem o menino vivo em dois, e deem metade a uma mulher e metade à outra.” 26 Imediatamente a mulher cujo filho era o vivo, movida pela compaixão por seu filho, implorou ao rei: “Senhor meu, dai-lhe o menino vivo e por modo nenhum o mateis.” Porém a outra dizia: “Nem teu nem meu seja; dividi-o antes.” 27 Então, respondeu o rei e disse: “Dai a esta o menino vivo e de maneira nenhuma o mateis, porque esta é sua mãe.” 28 E todo o Israel ouviu a sentença que dera o rei e temeu ao rei, porque viram que havia nele a sabedoria de Deus, para fazer justiça.»

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, quero agradecer à professora Rita Lobo Xavier, pela ajuda e contributo no que diz respeito à delimitação do objeto em estudo, pela disponibilidade e partilha de conhecimentos ao longo da elaboração desta dissertação.

Agradeço aos meus pais que sempre me apoiaram e me encorajaram a dar continuidade ao meu percurso académico.

A minha irmã que sempre me apoiou e incentivou ao longo deste processo tão importante na minha vida.

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RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo primordial analisar a gestação de substituição como figura jurídica, bem como a sua aplicação no nosso ordenamento, centrando o estudo nos direitos da mulher gestante, mais concretamente no problema da revogação da renúncia antecipada à maternidade.

A gestação de substituição, apesar de presente em diversas legislações, surge como um método gestacional proibido em muitas delas. A verdade é que este fenómeno não tem propensão para desaparecer, muito pelo contrário, e é muita a controvérsia que envolve a gestação de substituição, sendo que o legislador português, aquando da elaboração da lei, não dissipou todas as questões em torno desta figura, colocando em causa alguns princípios, tidos como certos e considerados basilares.

A figura da mulher gestante é parte deste procedimento em conjunto com o casal beneficiário, no entanto, assume diversas obrigações no procedimento contratual, sendo que em muitas circunstâncias existem dúvidas quanto à violação dos seus direitos, quer no domínio dos direitos de personalidade, quer no domínio das limitações voluntárias que apresenta restrições. O consentimento prestado por esta mulher é uma das grandes questões levantadas como problemáticas na gestação de substituição, pois o legislador restringiu a possibilidade de revogação do consentimento prestado até ao início dos procedimentos terapêuticos, o que implica que a gestante não tenha direito a arrependimento e que abdica prematuramente de uma posição jurídica da qual ainda nem é titular, que é a de ser mãe.

O TC, quando se pronunciou no Acórdão 225/2018, de 7 de maio, não acolheu este entendimento e tomou uma posição distinta do legislador, declarando inconstitucionais algumas das normas da Lei nº 32/2006, de 26 de julho, e no Acórdão de 465/2019, de 18 de outubro, reafirmou a sua posição.

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ABSTRACT:

This dissertation has as its primary objective to analyze the surrogacy of pregnancy as a legal figure, as well as its application in our system, focusing the study on surrogate women rights, more specifically, the problem of revoking early maternity renunciation.

The surrogacy of pregnancy, although present in several legislations, appears as a prohibited gestational method in many of them. The truth is that this phenomenon has no tendency to disappear, quite the contrary, and there is much controversy surrounding the surrogate pregnancy. The portuguese legislator, when drafting the law, did not dissolve all the issues surrounding this figure, calling into question some principles normally taken for granted and considered fundamental.

The figure of the surrogate woman is part of this procedure with the beneficiary couple. However, it takes on various obligations in the contractual procedure and, in many circumstances, there are doubts as to the violation of the women’s rights, either in the field of personality rights or in the domain of voluntary limitations which has restrictions. The consent given by this women is one of the major issues raised as problematic in surrogate pregnancy, as the legislator has restricted the possibility of revoking the consent given until the beginning of therapeutic procedures, which implies that the surrogate woman is not entitled to regret her decision, and prematurely abdicates a legal position of which she is not even holder, which is to be a mother.

When the constitutional court (TC) passed judgment 225/2018, 7 of May, it did not accept this view and took a different position from the legislature, declaring some of the standards of Law number 32/2006, 26 of July unconstitutional and later reaffirmed its position in judgment 465/2019, 18 of October.

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GLOSSÁRIO

AMP – Assisted Medical Procreation

BGB - Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil da Alemanha)

CC – Código Civil

CNECV – Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida CRC – Código Registo Civil

CRP – Constituição da República Portuguesa LPMA – Lei de Procriação Medicamente Assistida IVG – Interrupção Voluntária da Gravidez

GS – Gestação de Substituição MS – Maternidade de Substituição

PMA – Procriação Medicamente Assistida TC – Tribunal Constitucional

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ÍNDICE

GLOSSÁRIO 8

INTRODUÇÃO 11

I. ENQUADRAMENTO LEGAL

1. Evolução legislativa: Da Proibição da “Maternidade de Substituição” à

Permissão da “Gestação de Substituição” 13

2. A Gestação de Substituição Noutros Ordenamentos Jurídicos 16

II. CONTRATO DE GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO

1. Caraterização do contrato 19

1.1. Noção e elementos essenciais 19

1.2. Forma do contrato 21

2. Informação pré-contratual 22

3. Consentimento para a intervenção médica 22

4. Consentimento para a limitação voluntária dos

direitos de personalidade 23

5. Validade do Contrato 25

III. A PERSPECTIVA DOS DIREITOS DA GESTANTE

1. Exploração da Pobreza 26

2. Princípio da Dignidade Humana 26

3. Dignidade da mulher 28

4. Indisponibilidade do direito sobre o próprio corpo 28

5. Direito de constituir família 29

6. Limitação excessiva dos direitos da gestante 30

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IV. Renúncia Antecipada à Maternidade por Parte da Gestante

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CONCLUSÃO 36

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INTRODUÇÃO

As técnicas de PMA foram reguladas pela primeira vez na Lei nº 32/2006, de 26 de julho (LPMA). No art. 2º, o legislador elencou taxativamente as técnicas a que esta lei se aplica, e, no art. 8º, proibiu a maternidade de substituição, celebrada quer a título oneroso quer gratuito.

Só em 2016, na terceira revisão desta lei (operada pela Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto), a gestação de substituição foi introduzida como um meio para alcançar a maternidade (art. 2º, nº2). Nesta versão da lei, o legislador elencou os requisitos que os beneficiários tinham de cumprir, bem como as características do contrato celebrado entre os beneficiários e a gestante (art. 8º).

A gestação de substituição, em Portugal, é permitida a título excecional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem, envolvendo a utilização de uma técnica de PMA, de forma a que os beneficiários possam realizar o seu projeto parental. Neste processo, é necessário recorrer a uma terceira pessoa para realizar tal desejo, pois, pressupondo-se que a mulher que recorre à GS é casada e que o material genético do seu marido irá ser usado, será a gestante quem irá ser submetida a uma técnica de PMA, seguindo-se a gravidez e a gestação de substituição. As situações de gestação de substituição envolvem diversas pessoas, os beneficiários, a gestante e também a criança que irá nascer.

Sendo a finalidade de todo este processo a realização do projeto parental dos beneficiários, no entanto, não se pode perder de vista os direitos de todos os intervenientes no procedimento, restringindo os direitos de uns e violando-os desproporcionalmente em prol do desejo de gerar filhos para outros. A gestante, sendo quem vai levar a gravidez a bom termo, tem de ver os seus direitos assegurados, pois, por nove meses, vai cuidar e transportar o bebé dentro de si e, na hora do parto, esta mulher será a parturiente, não a beneficiária.

O Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se, em abril de 2018 (Acórdão 225/2018, de 7 de maio), sobre as normas da LPMA, declarando a inconstitucionalidade de algumas delas. A sua maior preocupação centrou-se na mulher gestante, entendendo que as normas da lei restringiam em demasia os seus direitos, designadamente, pelo facto de a gestante só poder revogar o consentimento prestado até

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12 ao início dos processos terapêuticos, o que violaria o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante e o seu direito a constituir família. Este processo coloca direitos fundamentais de diferentes sujeitos em conflito: por um lado, estará em causa o direito a constituir família da beneficiária; por outro, o direito de constituir família da gestante.

No decurso da elaboração desta dissertação, o Tribunal Constitucional voltou a pronunciar-se sobre o tema, em setembro (Acórdão 465/2019, de 18 de outubro), tendo sustentado, no essencial, a mesma posição que tomou no acórdão anterior.

O presente estudo irá versar a posição da gestante neste processo. O legislador não terá protegido adequadamente esta mulher, mas, após a pronúncia do TC sobre a inconstitucionalidade de várias normas constantes da lei em vigor, pensar-se-á que gestante estará excessivamente protegida, nos termos da posição adotada pelo tribunal.

Começaremos pelo enquadramento legal da gestação, que evoluiu da proibição da “maternidade de substituição” à permissão da “gestação de substituição”. Procederemos, em seguida, à análise do contrato celebrado entre as partes, sendo depois abordados os direitos da gestante. Por fim, focaremos a questão da renúncia antecipada à maternidade pela mulher gestante.

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I

ENQUADRAMENTO LEGAL

1. Evolução Legislativa: Da Proibição da “Maternidade de Substituição” à Permissão da “Gestação de substituição”

Em Portugal, a maternidade de substituição não existia como figura jurídica legal no nosso ordenamento. A lei nº 32/2006, de 26 de julho, na primeira versão, proibia a prática desta via no art.8º, fosse ela celebrada a título oneroso ou gratuito, e no art.39º estabelecia as sanções para quem celebrasse ou promovesse a celebração de um contrato de MS a título oneroso. Deste modo, até 2016, não era possível recorrer à maternidade de substituição, no nosso país.

A lei nº 25/2016, de 22 de agosto, a quarta versão da lei nº 32/2006, introduziu, no ordenamento jurídico, a gestação de substituição como um método gestacional que se socorre em primeira linha de técnicas de PMA. A partir daquele momento as mulheres portuguesas que cumpram os requisitos estabelecidos pelo legislador podem recorrer a este meio para serem mães.

A legislação portuguesa optou pela designação “gestação de substituição” ao invés do termo “maternidade de substituição”. Muitos autores discutiram a forma de designar este procedimento, pois a utilização do termo “maternidade” leva a pensar no papel de “mãe” e não é o que irá acontecer neste caso, uma vez que a gestante não o será. Quanto ao uso da palavra “gestação”, remete-nos exatamente para o que acontece nestas situações, “uma mulher aceita gerar um filho, fazê-lo nascer, e se compromete a entregá--lo a outra mulher, renunciando em favor desta todos os direitos sobre a criança, renunciando à própria qualificação jurídica de mãe”1. O legislador tornou claro que é necessário fazer distinção entre “mãe” e “gestante”. A primeira será a “mãe jurídica”, ou seja, é o seu nome que irá constar do registo de nascimento. A segunda é a mulher que dá à luz2, rompendo-se assim com o critério dominante, até então, no que toca à

1 OLIVEIRA, Guilherme (1992) - Mãe só há Uma (Duas)! O Contrato de Gestação, Coimbra Editora,

Coimbra, pp. 8-9.

2 SILVA, Maria Margarida, «Uma gestação inconstitucional: o descaminho da Lei da Gestação de

Substituição», Revista Julgar, 2017, disponível in http://julgar.pt/wp-content/uploads/2017/01/20170127-

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14 determinação da maternidade, concretizada pelo momento do parto. A expressão mater

semper certa est deixa assim de ser determinante.3

A leitura e análise do art.8º da lei nº 32/2006, de 26 de julho, esclarece algumas das dúvidas que surgem quanto a esta figura jurídica. Desde logo, no seu art.1º, o legislador apresenta a definição de “gestação de substituição”, como qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade. Quando avançamos na leitura, existe ainda o reforço da subsidiariedade deste meio, consubstanciada na exigência de que o contrato celebrado entre os beneficiários e a gestante seja gratuito, concomitantemente com a ocorrência de um problema de saúde na mulher beneficiária que a impeça de engravidar ou levar a termo uma gravidez. O legislador deixou claro que é proibida a substituição genética, ou seja, a gestante não pode doar ovócitos num procedimento em que participa, e acresce ainda a obrigatoriedade de, pelo menos um dos membros do casal beneficiário, doar material genético para o procedimento terapêutico que irá ocorrer. Ficou ainda consagrado no artigo a forma como se estabelece a filiação no caso de recurso à gestação de substituição, ou seja, são tidos como pais da criança os beneficiários (art.8º, nº7).

É também nesta lei que encontramos a resposta sobre quem pode ser beneficiário das técnicas de PMA, bem como quem pode ser dador de gâmetas. Antes do legislador ter consagrado, no art.2º, nº2, a gestação de substituição como um meio aceite pelo ordenamento jurídico, questionava-se o entendimento deste quanto a quem poderia beneficiar desta figura. Autores havia que defendiam o uso deste meio apenas por casais heterossexuais, de forma a não vedar à criança o direito à biparentalidade e estabelecer, assim, vínculo com pai e mãe, excluindo, desta forma, casais homossexuais e mulheres solteiras, discriminando, desta forma, com base na orientação sexual, o que está vedado pela Constituição Portuguesa no seu art.13º. Assim, o legislador, quando legislou sobre o tema, introduziu no art.6º da lei quem podia ser os beneficiários, elencando-os taxativamente, sendo então casais de sexo diferente ou casais de mulheres, casados ou em condições análogas, mas também todas as mulheres independentemente do estado civil e da orientação sexual, desde que maiores de 18 anos, e não exista nenhuma sentença de interditação ou inabilitação. No entanto, continua a existir alguma discriminação, pois os

3 PEREIRA, André Dias, “Filhos de Pai Anónimo no século XXI!”, in Debatendo a procriação

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15 casais constituídos por dois homens ou um homem solteiro necessitarão sempre da intervenção de uma mulher, bem como de intervenção médica4.

O legislador estabeleceu mais alguns requisitos no acesso à gestação de substituição, nomeadamente, a verificação de um diagnóstico de infertilidade, ou casos para tratamento de doença grave ou que exista a possibilidade de transmissão de doenças de origem genética ou infeciosa (art.4º, nº 2 da lei nº 32/2006, de 26 de julho). Contudo, na alínea seguinte do mesmo artigo, refere que todas as mulheres podem aceder a técnicas de PMA mesmo sem o diagnóstico de infertilidade, ou seja, ficando pouco claro se existe ou não, no nosso ordenamento, a obrigatoriedade de um diagnóstico de infertilidade. No caso da gestação de substituição, parece seguro afirmar que sim, pois o legislador não quis deixar a questão cair no campo da indeterminação e, no art. 8º, nº2 da lei, afirma que o contrato de gestação de substituição só pode ser celebrado “nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem”.

Quanto a quem pode ser terceiro, ou seja, quem pode ser dador de gâmetas, o legislador não impõe normas em específico e, deste modo, seguimos as regras do SNS. No caso da mulher, tem de ter entre 18 e 33 anos, ser saudável e não ter historial de doenças sexualmente transmissíveis ou hereditárias; já o homem pode doar entre os 18 e os 40 anos e o segundo requisito é igual ao das mulheres, acrescentando-se a obrigatoriedade de realização de análises sanguíneas 6 meses após a última doação5.

Na gestação de substituição, todo o processo é acompanhado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. É este órgão que autoriza ou não a realização deste meio e os pedidos são analisados caso a caso. Há autores que defendem que só deveriam ser candidatas a “mães gestantes” mulheres que já tenham estado grávidas, considerando que a primeira gravidez de uma mulher não poderia ser no sentido de gerar um bebé para no termo da mesma o entregar a outra. Entendeu-se que uma mulher que já experienciou uma gravidez sabe lidar melhor com as situações inerentes ao seu estado e separará melhor o vínculo a criar com a criança que está a ser gerada dentro de si.

O TC foi chamado a pronunciar-se sobre algumas das normas que constituem a lei anteriormente referida. Um grupo de trinta deputados pediu a declaração de

4 RAPOSO, Vera Lúcia (2005) - De Mãe para Mãe/, Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade

de substituição, Coimbra Editora, p.17

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16 inconstitucionalidade de alguns preceitos, sendo o art.8º umas das normas fiscalizadas e que, por seu turno, foi considerado inconstitucional, ou seja, o artigo que tinha sob epígrafe Gestação de Substituição, que regula a disciplina jurídica desta figura, foi desacreditado pelo TC.

A declaração de inconstitucionalidade trouxe à gestação de substituição, que já é bastante polémica, mais controvérsia, pois muitas foram as questões que ficaram novamente sem uma resposta definitiva. No entanto, parece ser unânime que, para o recurso à GS, tem de existir um problema médico por parte da mulher que constitui o casal beneficiário, bem como não pode haver qualquer recompensa ou subordinação monetária à mulher gestante, participando esta no projeto parental do casal beneficiário de forma altruísta; e tem de existir material genético de pelo menos um dos membros do casal, sendo que a substituição genética é proibida, ou seja, a gestante não pode doar ovócitos num processo que integre. O que poderá sofrer alterações com a pronúncia do TC é a questão da filiação da criança que irá nascer através deste procedimento, pois, segundo o art.8º da lei em vigor, os beneficiários são sempre tidos como pais da criança. Contudo, o tribunal formula um entendimento diferente, pois centrou-se nas limitações que eram feitas aos direitos da gestante e considerou que esta mulher tem o direito de, até após o parto, mudar de ideias e querer ficar com o bebé para si.

Este será um aspeto que será desenvolvido com mais pormenor num outro momento, sendo importante ressalvar, desde já, que o TC se pronunciou sobre a inconstitucionalidade não só da proibição da revogação do consentimento da gestante até à entrega da criança, mas também da violação do direito à identidade pessoal da criança, e, ainda, sobre a obrigatoriedade do sigilo dos intervenientes no processo de gestação de substituição.

2. A Gestação de Substituição Noutros Ordenamentos Jurídicos

Antes mesmo de analisarmos o contrato de gestação ao pormenor no nosso ordenamento jurídico, consideramos interessante fazer uma breve alusão utilizando o acórdão do TC (Acórdão 225/2018), como guia, para fazer uma pequena exposição de como esta figura jurídica é entendida noutros ordenamentos, nomeadamente em alguns dos países que a par connosco integram a União Europeia.

A gestação de substituição tem estado em foco em diversos países e a discussão sobre esta figura é muita e nada pacífica. Em muitos dos países, continua a existir um

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17 grande vazio legislativo sobre este método gestacional, em muitos casos não se proíbe, mas também não se legaliza como prática aceite, ou seja, procuram-se outras soluções para ratificar as consequências que advêm da realização deste procedimento.

Existem assim três tipos de ordenamentos jurídicos: uns, permitem e regulam a título oneroso ou gratuito, estabelecendo de imediato o vínculo entre a criança e os beneficiários; outros, reconhecem a gestante como mãe e só mais tarde através de um processo judicial é que a maternidade é imputada ao casal; por último, os que proíbem e penalizam6.

Na Alemanha, a gestação de substituição não é proibida nem punida, no entanto, a sua desaprovação está patente em normas aprovadas no país. No caso alemão, apesar de não reconhecerem validade a este tipo de contratos, se o procedimento for realizado no estrangeiro e cumpridos todos os requisitos exigidos pelo país, no qual o recurso a este meio teve lugar, os tribunais alemães validam e estabelecem a filiação e a nacionalidade da criança em função do casal beneficiário7.

Em Espanha, a gestação de substituição é proibida e penalizada. No caso dos casais espanhóis se deslocarem a outro país para a realização do processo, os tribunais nacionais não reconhecem validade ao contrato e não estabelecem a filiação da criança em função do casal beneficiário, ou seja, não atribuem nacionalidade espanhola à criança, nascida através da gestação de substituição, continuando, desta forma, a reger-se pela premissa de quem dá à luz é a mãe da criança8.

A Grécia aceita a prática e é um dos países-membros da União Europeia que dispõe de uma legislação mais favorável à gestação de substituição sem grandes restrições. No caso grego, é exigida a nacionalidade grega tanto aos beneficiários como à gestante para o recurso à gestação de substituição, tentando, desta forma, reduzir o risco do turismo reprodutivo no país. Proíbem, como nós, os contratos a título oneroso, bem como exigem que a criança seja filha biológica de pelo menos um dos membros do casal, proibindo assim a substituição genética. No entanto, consideram fundamental que, para o sucesso deste método gestacional, a criança gerada ao abrigo da gestação de substituição seja tida como filha dos beneficiários, pois seria desumano, imoral e, juridicamente,

6 Cf. Acórdão 225/2018, de 7 de maio, p. 1902, ponto 13. 7 Cf. Acórdão 225/2018, de 7 de maio, p.1902, ponto 14. 8 Cf. Acórdão 225/2018, de 7 de maio, p. 1903, ponto 16.

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18 intolerável obrigar uma mulher (mulher beneficiária) a entregar a outra mulher (mulher gestante) uma criança com a qual partilha uma ligação genética9.

Deixando de lado o Acórdão do TC e analisando, também, de forma breve um ordenamento que não europeu, o Brasil é mais um dos países que não proibiu, mas também não regulou este procedimento no seu ordenamento.

Definem “maternidade substitutiva” como “uma modalidade especial de gestação que dissocia a gravidez e a maternidade, tratando-se de um procedimento onde uma mulher se predispõe a gestar o filho de outrem, entregando a este, no final do processo, a criança desejada”10, ou seja, “pode-se definir a gestação de substituição como sendo o empréstimo do útero, para que se dê a gestação de filho de outa mulher”11.

O legislador brasileiro ainda não elaborou uma lei que regule esta prática, o que existe apenas é uma norma deontológica que, embora tenha elevada importância para a classe médica, não tem força de lei e, portanto, debate-se a urgência da criação de uma lei que regule este procedimento de forma mais concreta, a qual clarifique o que é considerado legal ou não no recurso a este método gestacional.

A Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2168, de 21/09/2017, “Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida – sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância dos princípios éticos e bioéticos”. Em muitos aspetos o que está definido pela norma deontológica brasileira é semelhante à lei que temos em vigor em Portugal, sendo que a maior diferença se centra no facto de no Brasil ser obrigatório que a cedente do útero seja da família de um dos parceiros do casal beneficiário, em parentesco consanguíneo até ao quarto grau, estando os demais casos sujeitos a autorização do Conselho Regional de Medicina, que defende que só assim será possível o contrato ser genuinamente gratuito.

9 Cf. Acórdão 225/2018, de 7 de maio, p. 1905, ponto 18.

10 PEDROSO, Joanna Camargo (2013) – “A incriminação da Comercialização de Útero”, Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul, p.2.

11 PEDROSO, Joanna Camargo (2013) -“A incriminação da Comercialização de Útero”, Pontifícia

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19

II

O CONTRATO DE GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO

1. Caracterização do contrato

1.1. Noção e elementos essenciais

A definição de gestação de substituição encontra-se no art.8º, nº1, da lei nº32/2006 de 26 de julho, entende-se por «”gestação de substituição” qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade». O contrato de gestação de substituição pode considerar-se uma modalidade do contrato de prestação de serviços, na medida em que uma mulher se obriga a entregar à contraparte o resultado da gravidez que suportou, sem receber uma contrapartida económica.12

O CC não define negócio jurídico, no entanto, os trabalhos preparatórios do BGB definem “o negócio jurídico [como] uma declaração de vontade (Willenserklarung) privada que visa a produção de um efeito jurídico que se verifica conforme a ordem jurídica por ter sido querido pelas partes”13. A declaração de vontade é um elemento essencial no negócio jurídico e esta é a “exteriorização daquilo que, segunda a intenção do declarante, deve acontecer ou não”14.

No que toca à estrutura e produção de efeitos podemos reconhecer negócios jurídicos unilaterais, receptícios ou não, negócios plurilaterais, inclusive bilaterais.15

O contrato, ou negócio jurídico, é constituído pelos sujeitos, objeto e a existência de uma ou mais declarações de vontade, dependendo se estamos perante um negócio unilateral ou bilateral, uma vez que o negócio jurídico necessita de ser válido para desempenhar a sua função. São considerados ainda os requisitos gerais de validade do negócio, sendo estes a capacidade das partes, a declaração de vontade sem vícios e a

12 GUIMARÃES, Maria Raquel, “Subitamente, no verão passado”: A contratualização da gestação

humana e os problemas relativos ao consentimento, in Debatendo a procriação medicamente assistida, Porto e FDUP, 16 e 17 de março de 2017, Projeto FCT UID 443_CIJE, p. 114.

13 Horster, Ewald Heinrich (1992) - A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito

Civil, Almedina Coimbra. p.417.

14

Horster, Ewald Heinrich (1992) - A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina Coimbra, p.418.

15Horster, Ewald Heinrich (1992) - A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito

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20 idoneidade do objeto.16 No caso em análise, o contrato é um negócio bilateral, ou seja, “é formado por duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas convergente, que se ajustam na sua comum pretensão de produzir resultado jurídico unitário, embora com um significado para cada parte”17. No contrato de gestação de substituição, os sujeitos serão os beneficiários e a gestante, e as declarações de vontade serão divergentes, mas irão corresponder uma com a outra. Os primeiros declaram a vontade de ter um filho e que o bebé que vier a nascer em resultado do contrato será considerado seu filho. A segunda declara que, de livre vontade e de forma altruísta, gerará uma criança para o casal. Fica, assim, claro que o objeto deste contrato, embora seja determinado, é a criança que irá nascer, ou seja, o contrato cumpre-se após o nascimento completo e com vida do recém-nascido, que deverá ser entregue ao casal de beneficiários. No entanto, não é só à entrega da criança que a gestante se obriga de forma a cumprir o contrato, mas também a submeter-se a uma intervenção médica que diz respeito à técnica de PMA e, sendo esta bem sucedida, compromete-se a levar a gravidez até ao fim e, se tudo correr bem durante os meses de gravidez, obriga-se a entregar a criança após o parto. Os contratos bilaterais podem ser bilaterais perfeitos, quando existe uma reciprocidade entre as obrigações das partes, ou bilaterais imperfeitos, quando inicialmente só existem obrigações para uma das partes, podendo surgir obrigações para a outra parte durante a execução do contrato.18

O contrato de gestação é assim um contrato bilateral imperfeito, pois, inicialmente, só gera obrigações para uma das partes, a gestante, que tem uma obrigação

de facere, num primeiro momento, e de dare, num segundo. Contudo, mais tarde surge a

obrigação do ressarcimento dos gastos da gestante, por parte dos beneficiários no que diga respeito a despesas médicas.19

A mulher gestante é fundamental neste procedimento e é quem assume mais obrigações neste contrato, uma vez que tem várias obrigações a seu cargo e cada uma delas surge quando ela cumpre a anterior. A gestante no início dá o seu consentimento para o tratamento de PMA, ou seja, para a transferência do material genético de ambos os membros do casal ou de pelo menos um deles para o seu útero, sendo o procedimento

16 PINTO, Mota Alberto Calos - Teoria do Direito Civil, 4ª ed., 2ª Reimpressão, Coimbra Editora, pp.

383-384.

17 PINTO, Mota Alberto Calos - Teoria do Direito Civil, 4ª ed., 2ª Reimpressão, Coimbra Editora, p. 647. 18

HORSTER, Ewald Heinrich (1992) - A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina Coimbra 1992, p. 428.

19 GUIMARÃES, Maria Raquel, “Subitamente, no verão passado”: A contratualização da gestação

humana e os problemas relativos ao consentimento, in Debatendo a procriação medicamente assistida, Porto e FDUP, 16 e 17 de março de 2017, Projeto FCT UID 443_CIJE, p.115.

(21)

21 bem sucedido, irá passar pelo período da gravidez, seguindo-se o momento do parto e, por último, a entrega da criança ao casal.

O legislador quis deixar também claro o carácter excecional e subsidiário da situação de gestação de substituição, bem como os motivos que levam o casal a ponderar a procriação por esta via, ou seja, só podem recorrer a ela em último recurso, quando a via natural não é opção por questões clínicas. Este processo só é autorizado pelo CNPMA quando exista “ausência de útero, lesão ou doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem.”20 O material genético utilizado na situação de gestação de substituição tem de provir de pelo menos um dos membros do casal e nunca pode ter origem na mulher que irá suportar a gravidez. Neste procedimento, a criança que irá ser gerada pode biologicamente ser parente dos dois membros do casal, pois o material genético utilizado para fecundar a gestante pode pertencer à mulher e ao homem que formam o casal beneficiário, ou ser apenas familiar do homem do casal, mas terá sempre um vínculo biológico com pelo menos o homem do casal, não existindo qualquer vínculo biológico com a mulher gestante.

Importa ainda salientar que neste contrato é necessária uma autorização administrativa prestada previamente pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, sendo proibido qualquer pagamento ou doação à pessoa que irá suportar a gravidez, excetuando o pagamento de despesas médicas, e a proibição da celebração de um contrato de gestação, quando existir subordinação económica ou laboral entre as partes.

1.2. Forma do Contrato

Existem ainda requisitos formais que o contrato tem de cumprir. O contrato exige--se sob forma escrita e supervisionado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. É obrigatório nele constar o que fazer em caso de malformações, doenças fetais e interrupção voluntária de gravidez, e ainda conter as declarações de vontade da gestante e dos beneficiários, sendo que estas têm de ser livres e informadas, bem como ficar expressa a proibição de substituição genética, ou seja, a gestante não pode

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22 doar ovócitos num processo de gestação de substituição do qual faça parte21. O contrato não pode contemplar comportamentos restritivos, nomeadamente que lesem os direitos, a liberdade e a dignidade, impostos pelos beneficiários à gestante, e só é permitido se for celebrado de forma gratuita, estando proibida a subordinação económica da mulher gestante.

Cabe ao CNPMA dar autorização prévia ao recurso ao método, acabando por ser ele quem legitima e valida o contrato de gestação.

2. Informação pré-contratual

Existem inúmeras informações que têm de ser prestadas tanto aos beneficiários como à gestante mesmo antes da celebração do contrato. Esta imposição feita pelo legislador encontra-se consagrada no art.14º, nº 2 da LPMA22, e tem como fundamento a construção de um vontade negocial esclarecida e livre de mal entendidos, pois os intervenientes no processo devem ser informados antecipadamente de todos os pós e contras do recurso à gestação de substituição, bem como da técnica de PMA a que a gestante se irá submeter para dar início à gestação de substituição propriamente dita, e de todas as suas implicações, nomeadamente, éticas, jurídicas e sociais. O mesmo artigo, mas no seu número 3º, obriga a que as informações mencionadas sejam prestadas por escrito, documento este que tem de ser aprovado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida23.

3. Consentimento para a intervenção médica

O consentimento para a intervenção médica é um dos aspetos mais sensíveis e que levanta mais dúvidas em todo este processo, pois o consentimento prestado pela mulher, que será a gestante, como já foi explicitado, tem de ser livre e informado, no entanto, fica a incerteza quanto ao consentimento de que se fala em todo este processo e mesmo se existe só um consentimento prestado pela gestante. Este meio de gerar uma família necessita de uma terceira pessoa que leve a gravidez a termo e é esta mulher que vai ser

21 Cf.

Acórdão 225/2018, de 7 de maio, p. 1898, ponto 9.

22 Cf. Lei 32/2006, de 26 de julho (4ª versão).

23 GUIMARÃES, Maria Raquel, “Subitamente, no verão passado”: A contratualização da gestação

humana e os problemas relativos ao consentimento, in Debatendo a procriação medicamente assistida, Porto e FDUP 16 e 17 de março de 2017, Projeto FCT UID 443_CIJE, p.116.

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23 submetida a uma intervenção clínica para a aplicação de uma técnica de PMA, ou seja, este contrato implica uma intervenção médica no corpo da gestante.

A mulher gestante, aquando da celebração do contrato, presta o seu consentimento para a intervenção clínica sobre a técnica de PMA, daí a revogação do consentimento ser até ao início da intervenção, pois sendo esta bem sucedida a gestante foi fecundada com material genético de pelo menos um membro do casal beneficiário. Neste momento do procedimento, já não fará sentido falar na revogação deste consentimento, pois os resultados já aconteceram, uma vez que a gestante já está grávida. O consentimento que está em causa nesta fase é o consagrado no art.14 da lei 32/2006, de 26 de julho, ou seja, o consentimento que a gestante dá para que o seu corpo seja submetido a uma intervenção clínica.

A obrigação que se segue para esta mulher é a de levar a gravidez até ao fim e se tudo correr bem durante o período de gravidez tem a obrigação de entregar a criança depois do parto. Desta forma, a gestante assume três obrigações distintas (sendo que a seguinte surge quando a anterior é cumprida com sucesso) para o cumprimento total do contrato que celebra com o casal beneficiário.

Esta mulher quando celebra o contrato presta consentimento para a intervenção clínica da técnica de PMA, mas na sua declaração negocial, para além deste consentimento, ela atesta que, de forma livre e informada, irá entregar a criança gerada por si ao casal, contudo, é aqui que estará em causa a limitação voluntária dos direitos de personalidade, presente no art.81º do CC, pois ela está a renunciar antecipadamente ao seu direito à maternidade.

4. Consentimento para a limitação voluntária dos direitos de personalidade

O direito civil protege a personalidade e é este âmbito no contrato que é colocado em causa quando existem limitações aos direitos de personalidade. Estes direitos pertencem a todas as pessoas, por força do seu nascimento, estando protegidos pelo art. 70º do CC24. São direitos inalienáveis e irrenunciáveis, no entanto, podem ser objeto de limitações voluntárias que não sejam contrárias aos princípios da ordem pública (art. 81º do CC).

24 PINTO, Mota Alberto Calos - Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., 2ª Reimpressão, Coimbra Editora,

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24 A norma a ter presente é o art.81º, nº 2, do CC, que define que “A limitação voluntária, quando legal, é sempre revogável, ainda que com obrigação de indemnizar os prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte”. A limitação voluntária dos direitos de personalidade, como nos diz o CC, pode ser revogada a todo o tempo. Parece existir na lei que regula a gestação de substituição alguma confusão sobre o consentimento prestado para a intervenção clínica, uma vez que este pode ser revogado até ao início do processo, o que fará sentido, uma vez que depois deste a gestante se encontrará grávida, e portanto já não há como o revogar, pois os seus efeitos já estarão produzidos. No entanto, o consentimento que esta mulher presta para a limitação dos seus direitos de personalidade poderá ser revogado a todo o tempo e, desta forma, não se restringe esta revogação ao momento do início dos processos terapêuticos de PMA.

A figura do consentimento é extremamente importante em todo este contrato e importa termos noção da sua densidade. Orlando de Carvalho elenca três categorias do consentimento: o tolerante, o autorizante e o vinculante. O primeiro, exclui a ilicitude de uma agressão, legitima um poder factual de agressão (art.340º do CC), exemplo deste tipo são as cirurgias consentidas em benefício próprio. O segundo, atribui um poder de lesão, mas revogável a todo o tempo, embora exista obrigação de indemnizar pelos prejuízos causados de acordo com o art.81º, nº2 do CC, o caso das intervenções médicas em benefício alheio ou geral. O terceiro, não há atribuição de um poder de lesão, mas apenas disposição dos direitos de personalidade que não se traduzem numa limitação ao exercício desses direitos, é assim irrevogável unilateralmente nos termos gerais dos negócios jurídicos (art.230º e ss e art.406º do CC).25

A gestante, quando celebra o contrato, presta consentimento para diferentes situações, no entanto, o legislador tratou-as como um todo, permitindo a revogação do consentimento apenas até ao início da intervenção cirúrgica. Contudo, a gestante não presta consentimento apenas para a intervenção e, portanto, há outra vontade que esta mulher presta que parece não estar a ser tida em conta. Aplicando a classificação de Orlando de Carvalho, quando a mulher gestante declara no início do procedimento que consente na entrega da criança no final da gravidez, está-se perante um consentimento autorizante, pois estamos a falar de uma limitação voluntária dos direitos de personalidade feita em beneficio alheio, no entanto, de acordo com a análise da lei, o

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25 consentimento neste momento torna-se vinculante, pois ela fica impossibilitada de revogar unilateralmente o consentimento prestado por si no início do processo. Será discutido mais à frente a opinião do TC sobre a renúncia antecipada da gestante à maternidade sem possibilidade de arrependimento.

5. Validade do Contrato

O contrato só pode ser celebrado por maiores de 18 anos, idade em que, no nosso sistema jurídico, se atinge a maioridade e o indivíduo passa a ter plena capacidade de gozo e exercício dos seus direitos, não podem ainda celebrar o contrato inabilitados por anomalia psíquica ou interditos (art.6º, nº2, da LPMA). Quando a norma mencionada faz referência aos beneficiários, temos de fazer uma interpretação extensiva do conceito, pois na realidade está a referir-se a todos os intervenientes na técnica de PMA.

“A nulidade é a consequência aplicável aos negócios jurídicos celebrados contra

a lei”26, sendo que os efeitos jurídicos de um negócio declarado nulo são eliminados do ordenamento jurídico, sendo que qualquer interessado pode invocar a nulidade e que o negócio nulo não pode ser ratificado nem convalidado.

No art.39º da lei nº 32/2006, de 26 de julho, encontramos as sanções aplicadas, aquando da celebração de um contrato de gestação de substituição a título oneroso, sendo pena de prisão ou pena de multa, variando os tempos das penas, consoante seja o beneficiário ou a gestante a infringir a lei ou ainda um terceiro que promova ou tire partido da celebração do contrato. No entanto, no que toca a contratos que sejam celebrados a título gratuito, o legislador não deixou claro o que acontece quando se verifica a nulidade do contrato pelo que, na verificação de algum dos pressupostos, se aplica o regime geral da nulidade (art.s 285º a 294º do CC).

Contudo, o TC quando chamado a pronunciar-se considerou que o regime geral da nulidade não se aplica na gestação de substituição, nomeadamente no que toca ao estabelecimento da filiação da criança, pois estamos perante um ser humano e, o que deve prevalecer, é o superior interesse da criança. Este regime pode, de facto, não ser favorável em todas as situações, no entanto, parece injusto e incorreto que um contrato nulo não sofra qualquer consequência, ou seja, desta forma, não se desencoraja a realização de contratos ilegais, pois os resultados obtidos podem ser exatamente os mesmos27.

26 Cf. Acórdão 225/2018, de 7 de maio, p. 1926, ponto 48. 27 Cf. Parecer CNECV 104/2019, p. 8.

(26)

26

III

A PERSPETIVA DOS DIREITOS DA GESTANTE

1. Exploração da pobreza

Muitos são os ordenamentos jurídicos que, embora permitam a gestação de substituição, exigem a sua gratuitidade, pois a ideia de que alguém possa ser explorado desta forma, devido à sua incapacidade financeira, é algo que perturba e que ultrapassa limites estabelecidos pelo direito. Para evitar o risco de o ser humano deixar de ser o fim para ser um meio, estabelece-se a obrigatoriedade de o contrato ser gratuito, acreditando que assim se afasta a possibilidade da comercialização do corpo das mulheres mais desfavorecidas economicamente, em prol dos desejos de mulheres mais favorecidas.

Apesar de tudo defende-se a possibilidade da gestação de substituição poder levar à exploração da pobreza, pois as mulheres que se irão sujeitar a gerar um filho para o entregar a outra mulher provirão de classes económicas e sociais mais baixas e que se corre o risco de mulheres mais desfavorecidas, por necessidade, aceitarem gerar bebés para mulheres mais ricas que, por algum motivo, não os possam gerar.28

O TC, quando declarou a inconstitucionalidade de algumas das normas da LPMA, foi categórico ao afirmar que não existe no modelo de gestação de substituição português a hipótese de exploração da pobreza, uma vez que só são permitidos contratos a título gratuito, o que reforça a autonomia da gestante. O legislador adotou medidas para garantir este traço essencial do contrato de gestação de substituição, existindo sanções civis e penais para quem celebre um contrato a título oneroso de gestação de substituição. Este tribunal declarou assim que o argumento apresentado “quanto à exploração económica da gestante não procede em face ao modelo português”.29

2. Dignidade da Pessoa Humana

Esta problemática foca a instrumentalização da gestante, designadamente para Raposo30, “a mãe de substituição é utilizada e despojada da sua dignidade humana”,

28 OLIVEIRA, Guilherme (1992) - Mãe só há Uma (Duas)! O Contrato de Gestação, Coimbra Editora,

Coimbra, pp. 27-31.

29 Cf. Acordão 225/2018, p. 1909, § 2º.

30 RAPOSO, Vera Lúcia (2005) - De Mãe para Mãe/, Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade

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27 passando a ser tratada como uma incubadora, deixando mesmo de controlar a sua vida, além do sofrimento que decorre de ser forçada a entregar a criança que gerou. De acordo com Abreu31, esta ideia não faz sentido, pois estas mulheres são adultas, com plena capacidade de gozo e de exercício dos seus direitos, são pessoas capazes, logo quando aceitam ser gestantes de uma criança para entregar a outra mulher, aquando do termo da gravidez, têm conhecimento das condições que aceitam.

A dignidade humana é um dos princípios basilares da Constituição Portuguesa, consagrada no seu art.1º, “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”

A gestação de substituição vem colocar esta dignidade em causa, pois leva à coisificação da pessoa, uma vez que existe a gestação de uma criança para depois ser entregue aos pais contratantes32. Nas palavras de Loureiro33, “a gestante é degradada ao papel de incubadora, numa clara instrumentalização.”

O TC pronunciou-se sobre a inconstitucionalidade do nº 8 do art.8º, conjugado com o nº 5 do art.14º da LPMA, por considerar que está presente a violação do princípio de dignidade humana, bem como a violação do direito a constituir família da gestante.34 Contudo, esta declaração está intimamente relacionada com a impossibilidade de revogação do consentimento por parte da gestante até à entrega da criança, uma vez que noutro ponto do acórdão se tinha afirmado que não existia violação da dignidade humana da gestante, visto que “a sua participação na gestação de substituição afirma uma liberdade e ação que, em última análise, se funda nessa mesma dignidade”35. Para existir tal violação tem de haver uma alteração que anule a autonomia pessoal, sendo que na gestação de substituição o consentimento dado pela gestante deve ser livre e informado e pode ser revogado até ao momento em que se inicia a intervenção médica. No entanto, a possibilidade de revogação do consentimento existe apenas até ao início do procedimento e nada garante que a vontade da gestante permaneça até ao fim do processo, mantendo- -se a sua autonomia pessoal, o que leva a considerar que a violação da dignidade da pessoa

31 ABREU, Laura Dutra (2008) - A renúncia da maternidade: reflexão jurídica/ sobre a maternidade de

substituição”. Principais aspetos nos direitos português e brasileiro, Coimbra, p. 89.

32 OLIVEIRA, Guilherme (1992) - Mãe só há Uma (Duas)! O Contrato de Gestação, Coimbra Editora, p.

22.

33 LOUREIRO, João Carlos (2013) - Outro útero é possível: civilização (da técnica), corpo, e procriação:

tópicos de um roteiro em torno da maternidade de substituição, in ANDRADE, Manuel da Costa [et al.], org. – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Peter Hünerfeld, Coimbra Editora, p. 1413.

34 Cf. Acordão 225/2018, de 7 de maio, p. 1945 – III. Decisão alínea b). 35 Cf. Acordão 225/2018, de 7 de maio, p. 1912, § 2º.

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28 humana se centra na limitação excessiva do seu direito a revogar o consentimento prestado anteriormente.

3. Dignidade da Mulher

Esta questão surge na perspetiva da dignidade da pessoa humana. O reconhecimento da dignidade da mulher na sociedade não foi sempre como é hoje. Durante séculos as mulheres foram oprimidas e rebaixadas, por “serem o sexo fraco”, em que deviam obediência ao homem e não tinham qualquer tipo de liberdade financeira, eram apenas esposas, mães e donas de casa. Foram necessários anos de luta e de sacrifícios de muitas mulheres para alguns dos seus direitos serem reconhecidos de forma igualitária aos dos homens, contudo a luta mantém-se e ainda hoje muitas mulheres sentem discriminação simplesmente por serem mulheres.

Em 201636, o CNECV demonstrou preocupações, pois chama a atenção para as questões éticas em torno da GS: o respeito pela dignidade da gestante, a instrumentalização do seu corpo, bem como a quebra da ligação entre a gestação, a maternidade e o parto. Receia que os direitos da gestante sejam violados e ainda que esta seja explorada. Encontra fundamento para as suas preocupações na resolução do Parlamento Europeu sobre o Relatório Anual de 2014, no qual se condena a prática da gestação de substituição, considerando que atenta contra a dignidade da mulher, pois o seu corpo e as suas funções reprodutivas serão usadas como um bem transacionável e que a exploração reprodutiva para obter ganho económico deve ser proibida, principalmente, no caso de mulheres mais desfavorecidas, nomeadamente, provenientes dos países em desenvolvimento.37

4. Indisponibilidade do direito sobre o próprio corpo

Contra a admissibilidade da gestação de substituição argumenta-se ainda com a ideia de indisponibilidade do direito sobre o próprio corpo da mulher gestante.

Invoca-se este argumento no sentido de que a mulher pode utilizar o seu corpo como bem entender, desde que não prejudique terceiros nem desrespeite os princípios de

36 Cf. Parecer 87/2016, 12 de agosto. 37 Cf. Parecer 87/2016, 12 de agosto, p. 15.

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29 direitos fundamentais, nomeadamente, o princípio da dignidade humana38. Os apoiantes da gestação de substituição entendem que a mulher, que se disponibiliza para suportar uma gravidez por conta de outrem, o faz para ajudar mulheres que não podem ter filhos da maneira convencional, ou seja, estão compelidas por uma vontade superior a ajudar uma mulher que deseja ter um filho, mas que por algum motivo não consegue39. O princípio da autonomia pessoal, aplicado à gestação de substituição, nas palavras de Raposo40, entende-se por «as pessoas devem ser livres na realização da sua capacidade reprodutiva, seja colocando os seus “serviços reprodutivos” à disposição (gratuita ou onerosa) de terceiros, seja superando a sua incapacidade reprodutiva».

5. Direito de constituir família

A CRP (art.36º, nº1) consagra que “Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”, assim sendo neste preceito encontra-se plasmado o corolário do direito a constituir família. À data da elaboração da norma (1976), as técnicas de PMA ainda não eram frequentes, muito menos a gestação de substituição, que a lei permite desde 2016, e o legislador à data da criação da norma certamente se referia à procriação pela via biológica41.

O direito de constituir família é composto por três direitos: o direito a estabelecer vida em comum, direito a celebrar casamento e o direito a ter filhos. A problemática foca--se em saber se o direito a ter filhos envolve um direito à inseminação artificial heteróloga ou à gestação por «mãe de aluguer». De forma a obter uma resposta, terá de se conjugar as normas da CRP com o princípio da dignidade da pessoa humana e do Estado de direito democrático que asseguram a irredutível autonomia pessoal bem como os seus limites.42

No entanto, e não perdendo de vista o que já foi dito, o direito acompanha as alterações da sociedade que visa regular, sendo assim, quando, hoje, interpretamos a norma em análise, fazemos uma leitura diferente da que anteriormente seria esperada,

38 ABREU, Laura Dutra (2008) - “A renúncia da maternidade: reflexão jurídica/ sobre a maternidade de

substituição”, in Principais aspectos nos direitos português e brasileiro, Coimbra, p.73.

39 SAYONARA SAUKOSKI (2007) - Gestação por outrem, aspectos jurídicos, Coimbra, p.72.

40 RAPOSO, Vera Lúcia (2005) - De Mãe para Mãe/, Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade

de substituição, Coimbra Editora, p. 67.

41 RAPOSO, Vera Lúcia (2005) - De Mãe para Mãe/, Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade

de substituição, Coimbra Editora, p. 76.

42 CANOTILHO, Gomes J.J. e MOREIRA, Vital, CRP Constituição da República Portuguesa Anotada,

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30 parece assim fazer sentido interpretar a norma como abrangendo o direito à procriação pela via biológica, mas também através das técnicas de PMA43.

No caso de o titular do direito ser infértil, pode recorrer às técnicas de PMA para realizar o seu desejo de ter um filho, nomeadamente a situações de gestação de substituição44.

O TC também se pronunciou sobre estas matérias, entendendo que o direito a constituir família não existe apenas para os beneficiários, mas também em relação à gestante. Esta tem também na sua esfera o direito a construir a sua família, tendo o TC considerado normas da lei inconstitucionais precisamente por lesarem em excesso este direito da gestante.

6. Limitação excessiva dos direitos da gestante

A mulher gestante é uma das partes no contrato de gestação de substituição e, por isso, tem de ter os seus direitos protegidos. No entanto, o legislador quando abordou este tema parece ter desconsiderado esta mulher em prol do casal beneficiário. A posição do TC, pelo contrário, centrou-se nos direitos da gestante, considerando que, apesar de esta mulher aceitar, de livre vontade e sem receber nenhuma contrapartida monetária, gerar no seu ventre o bebé, a realidade é que ela faz parte do projeto parental deste casal, pois, sem ela, ele não o conseguiria realizar. Contudo, os desejos deste não podem ser concretizados, desrespeitando e violando os direitos da gestante. De acordo com o TC, a mulher gestante tem de ter a opção de escolher não entregar a criança no final, pois, só no momento da entrega, o consentimento prestado por ela é efetivamente livre. A gestante, aquando do parto, deve poder decidir que, afinal, quer o bebé para si, deixando de fazer parte do projeto do casal que iniciou este processo, ou seja , o consentimento não será livre e informado se prestado num momento em que a mulher ainda não tem plena consciência de tudo o que acontecerá durante os nove meses de gravidez e não sabe, nem tem como saber, como se irá sentir quando der à luz aquela criança.

43 RAPOSO, Vera Lúcia (2005) - De Mãe para Mãe/, Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade

de substituição, Coimbra Editora, p. 76.

44 OLIVEIRA, Guilherme (1992) - Mãe só há Uma (Duas)! O Contrato de Gestação, Coimbra Editora,

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31

IV

RENÚNCIA ANTECIPADA À MATERNIDADE POR PARTE DA

GESTANTE

Aquando da celebração do contrato de gestação de substituição, a mulher gestante obriga-se a cumprir diversas prestações: primeiramente, submeter-se a uma intervenção clínica que diz respeito à técnica de PMA, depois, sendo esta bem sucedida, comprometer-se a levar a gravidez até ao fim e a passar pelo momento do parto e, por último, a entregar a criança ao casal. Esta mulher, quando se obriga a entregar a criança, pressupõe que não irá estabelecer a maternidade definida nos termos dos art.s 1803º e ss. do CC e dos art.s 112º a 117º do CRC. O Direito português consagra, em geral, a regra de que mãe é aquela que dá à luz, porém a obrigação de entregar a criança depois do parto envolve assim a renúncia antecipada ao estabelecimento de maternidade do filho que irá ser gerado e aos direitos-deveres correspondentes ao estatuto da maternidade.

A lei nº 32/2006, de 26 de julho, prevê a revogação do consentimento da gestante até ao início dos processos terapêuticos de PMA. Contudo, o TC considerou que o facto de o consentimento não poder ser revogado até ao momento da entrega da criança constituía uma restrição excessiva aos direitos de personalidade da gestante, na medida em que haverá violação do direito de constituir família inerente à renúncia antecipada à maternidade. O legislador, quando assumiu que o consentimento só poderia ser revogado até ao início dos processos terapêuticos, ter-se-á focado nos interesses do casal beneficiário e não nos direitos da gestante, uma vez que lhe vedou o direito ao arrependimento. O tribunal questionou se o prazo estipulado para a revogação seria suficiente para proteger a gestante e concluiu pela negativa, sustentando que “o consentimento é prestado ex ante relativamente ao início do processo terapêutico de PMA e, a fortiori, à própria gravidez, e ao parto”45.

O TC pronunciou-se pela inconstitucionalidade de algumas normas da LPMA, nomeadamente o art.8º, nos n.ºs 4,10, 11 e também os nºs 2 e 3, por violação do princípio da determinabilidade das leis; o nº8 em conjugação com o nº5 do art.14º pela restrição que faziam à revogação do consentimento da gestante, impondo que só poderia ser revogado até ao início dos processos terapêuticos, violando assim o princípio da

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32 dignidade da pessoa humana, do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante e do direito de constituir família.

No entendimento deste tribunal, deverá vigorar a livre revogabilidade do consentimento prestado pela gestante até ao cumprimento total das obrigações46, contudo esta perceção coloca o casal beneficiário à mercê da vontade da gestante, que pode desistir do projeto parental do casal e torná-lo exclusivamente seu.47

A mulher que gera a criança tem de ser conhecedora de três factos: o fruto daquela gravidez deverá ser entregue aos pais contratantes (art.8º, nº 1 da lei nº 32/2006, de 26 de julho); “a criança que nascer através do recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários” (art. 8º, nº 7, da mesma lei); e “o consentimento dos beneficiários é livremente revogável por qualquer deles até ao início dos processos terapêuticos de PMA” (art.14º, nº 4). Assim sendo, a mulher que aceita suportar uma gravidez por conta de outrem não pode argumentar, mais tarde, que não tinha conhecimento das obrigações que assumia. Contudo, podemos questionar o tratamento diferente dado ao consentimento no contexto de situações de gestação de substituição e no da adoção, pois, no caso da segunda, a mãe biológica tem de esperar seis semanas após o parto para poder consentir no processo da adoção (art.1982º, nº3 do CC), de forma a garantir que não está a tomar uma decisão precipitada e da qual mais tarde se irá arrepender. Já na gestação de substituição, a gestante consente na entrega aquando da celebração do contrato, ou seja, trata-se de uma renúncia antecipada aos seus direitos de mãe. Nas palavras de Oliveira48, “a renúncia ao estatuto de mãe significa uma limitação dos direitos de personalidade da mulher que, mesmo quando válida, é <sempre revogável>” (art.81.º, n.º2 do CC).

Importa assim ter sempre em mente o art. 81º, nº 1 do CC, que refere que “Toda a limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade é nula, se for contrária aos princípios da ordem pública.” A ordem pública surge como o limite que não pode ser

46 Cf. Acordão 225/2018, p. 1925, ponto 47.

47 Segundo o entendimento do TC, a mulher gestante poderá até ao fim do processo revogar a declaração

negocial que prestou e, portanto, pode decidir no final que quer a criança para si, iniciando um projeto parental próprio. Não podemos esquecer que o bebé que esta mulher gera é biologicamente filho do casal ou pelo menos do membro masculino do casal, pois a gestação de substituição só é permitida senão existir substituição genética e, por isso, a criança será biologicamente parente dos dois membros do casal ou pelos menos serão utilizados os gâmetas masculinos do membro do casal. A mulher gestante pode, no fim, decidir ficar com a criança que gerou, sendo que biologicamente não existe nenhuma ligação entre ela e o bebé, e o casal corre o risco de ficar sem a criança com quem partilha um vínculo biológico.

48 OLIVEIRA, Guilherme (1992) - Mãe só há Uma (Duas)! O Contrato de Gestação, Coimbra Editora,

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33 ultrapassado, ou seja, até onde podemos limitar os nossos direitos de personalidade. O facto de a legislação em vigor considerar vinculante o consentimento da mulher relativamente a uma situação, na qual só irá estar nove meses depois, na qual não sabe como se irá sentir e não lhe ser dada a opção de revogar esse consentimento, parece violar os seus direitos, bem como restringir em demasia os seus direitos de personalidade.

Os direitos de personalidade são direitos gerais de que todos gozam, extrapatrimoniais e absolutos, nascem com a pessoa e são assim irrenunciáveis e inalienáveis. O art.70º do CC consagra “uma norma de tutela geral da personalidade”, no entanto, é possível uma limitação voluntária destes direitos desde que dentro dos limites não seja contrária aos princípios da ordem pública (art.81º do CC).49 A limitação em causa diz respeito ao exercício dos direitos de personalidade e não à renúncia destes direitos, pois não estão à disposição do seu titular. A lei realça o caráter pessoal dos direitos de personalidade, sendo que a limitação voluntária ao exercício destes direitos é sempre livremente revogável. Protege-se a posição do titular de modo a fazer valer os seus direitos, “constituindo a limitação ao seu exercício uma situação precária ou mesmo excepcional.”50

As declarações do TC possibilitam que, aquando da revisão da lei em vigor, o legislador pense na alteração da revogação do consentimento, prestado pela mulher gestante, de forma a que este possa ser revogado até depois do parto, sendo que a criança já não seria obrigatoriamente entregue ao casal após o nascimento e a filiação já não se estabeleceria como está consagrada na lei, em que os beneficiários são tidos como pais. A gestante poderia revogar o seu consentimento até ao nascimento da criança e iniciar um projeto parental seu.

Como referido ao longo deste estudo, a gestante parece ser desconsiderada pelo legislador português, protegendo este os interesses do casal beneficiário, mesmo que para isso os direitos da gestante sejam lesados. O legislador ao restringir a possibilidade de revogação do consentimento, prestado pela gestante até ao início da intervenção médica, ignora que esta mulher, quando presta o seu consentimento como parte no contrato de gestação de substituição, presta na verdade consentimento para situações distintas e o legislador entende-as como um todo.

49 PINTO, Mota Alberto Calos et al. – Teoria Geral do direito Civil, 4ª ed., Coimbra Editora, pp. 208-209

e 215.

50Horster, Ewald Heinrich (1992) - A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito

(34)

34 No caso da renúncia antecipada à maternidade, a gestante acaba por renunciar também antecipadamente ao seu direito de constituir família, uma vez que assume à priori que não ficará com aquela criança nem irá ser tida como mãe desta. No entanto, após a declaração de inconstitucionalidade, se o legislador acolher a posição do TC, a gestante poderá em último caso ficar com a criança para si, iniciando a sua família, ou seja, o tribunal considerou legítimo que este direito também esteja presente na esfera jurídica da gestante e não só na do casal beneficiário. No entanto, a lei em vigor ainda não foi alterada no sentido de acolher estas declarações do TC.

A gravidez é uma fase especial e muitas vezes difícil para a mulher e, no caso em particular da gestante, ela ainda não sabe como reagirá, pois durante a gravidez a mulher estabelece ligação com o feto e esta pode aperceber-se de que tomou a decisão errada e que prefere ficar com a criança que está a gerar e iniciar o seu projeto parental.

Esta mulher, quando presta o consentimento, ainda nem está grávida, não passou pelo processo da gravidez, ainda não entrou no hospital como parturiente, não viu, nem pegou no bebé que traz no seu ventre, não sentiu nem experienciou nenhuma destas situações, pequenas coisas como as pulseiras que são colocadas na maternidade no bebé e na gestante, cujo nome que consta como mãe na pulseira da criança é o da mulher gestante, pois esta mulher é a parturiente. Todas estas situações e sentimentos podem provocar alterações na vontade desta mulher que inicialmente estava convicta de que queria ajudar o casal beneficiário a realizar o seu projeto parental, mas depois de passar por tudo o que engloba uma gravidez já não se sente capaz de entregar a criança e tem de ter meios para poder voltar atrás com a sua decisão. Se o objetivo é de que o consentimento desta mulher seja livre e informado, ele tem de o ser a todo o tempo e não se pode exigir que ela saiba o que vai sentir ou pensar antes de ela o experienciar.51

Como já vimos anteriormente, as limitações aos direitos de personalidade são revogáveis a todo o tempo e a lei em vigor sobre PMA viola a norma do art. 81º, nº2 do CC, pois considera o consentimento prestado pela gestante vinculante. O TC não acolhe o entendimento da lei e voltou a pronunciar-se sobre esta matéria, uma vez que a nova revisão à lei nº 32/2006 foi publicada em julho deste ano. No entanto, a posição do TC não foi acolhida no que diz respeito ao prazo para a revogação do consentimento prestado pela gestante, tendo este tribunal mantido a sua declaração anterior (Acórdão 465/2019, de 18 de outubro).

Referências

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