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Narrativas de uma memória em chamas: uma experiência sobre mulheres em teatro documentário

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Academic year: 2021

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em teatro documentário

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS, HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

Linha de pesquisa - Interfaces da cena: políticas, performances, cultura e espaço.

Natal/RN 2020

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2020.

265 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2020.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra.

1. Documental. 2. Cinema documental. 3. Fotografia. 4. Teatro documentário. 5. Escrita performativa. I. Lyra, Luciana de Fátima Rocha Pereira de. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792

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Trabalho apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do grau de Mestra em Artes Cênicas. Orientadora: Profa. Dra. Luciana de Fátima

Rocha Pereira de Lyra Natal/RN

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Por Natali Assunção BANCA EXAMINADORA

[Orientadora]

Profa. Dra. Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra

Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Universidade Federal do Rio Grande do Norte

[Membro interno]

Profa. Dra. Karenine Porpino

Universidade Federal do Rio Grande do Norte [Membro externo à instituição]

Prof. Dr. Marcelo Soler Universidade de São Paulo

Natal/RN 2020

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“Conhecia a matéria de que eram feitos os sonhos selvagens.” (GILMAN, 1979, p. 11)

“As revoluções são, antes de qualquer coisa, ideias.” (SOLNIT, 2014, p. 183)

Foto: Thaís Salomão. Modelo: Natali Assunção. 2018.

“A libertação é um projeto contagioso.” (SOLNIT, 2014, p. 182)

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cinema ou no teatro, pude contar com parcerias incríveis que me possibilitaram levar adiante tudo o que estava em plena ebulição.

Sou toda gratidão a todes que me apoiaram, me escutaram, me acolheram, torceram e me auxiliaram na realização de cada etapa.

Mãe, obrigada por ser meu maior pilar. Por ser toda apoio e fé. Vovó Nair, sua lembrança vem no perfume do jasmim. Gratidão. Vovó Divanilda, obrigada por tudo. Sua força me fortalece. Agradeço também nossa conversa há tempos atrás que plantou uma sementinha que veio brotar aqui. Ao meu pai agradeço os ensinamentos todos. Tia Zilvana, obrigada por acompanhar tudo o que faço. Tia Ida, obrigada pela infância.

É difícil compartilhar esses afetos sem me rasgar inteira e transbordar porque cada pingo de tinta carrega muito amor e felicidade. Às 11 mulheres que se abriram em troca plena e generosidade, gratidão eterna. Sou só amor. Às demais mulheres que compartilharam suas cartas e fotografias para a pesquisa, obrigada pelo tempo, partilha e confiança.

Rodrigo Cunha, te agradeço a condução inicial pelo teatro que veio a mudar a minha existência. Obrigada também pelo estímulo para ingressar no Mestrado. A Luciana Lyra agradeço por ter aberto as portas de entrada. Rafael Almeida, obrigada pelo carinho, paciência e dedicação em acompanhar tudo que escrevi, desde o pré-projeto. Que honra a minha contar com um revisor tão generoso, atento e atencioso como você! Obrigada ainda a Natã Ferreira pelo carinho e pela diagramação deste trabalho. Nanda Melo, obrigada por ter me dado um cantinho para dormir muitas noites em Natal, pelas conversas e por ter me acompanhado em

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todas as apresentações feitas. Obrigada pela receptividade e pelos retornos. A Marcelo Soler agradeço todas as falas e indicações na banca de qualificação, mas a gratidão vai além. Agradeço o contato, anterior ao projeto de Mestrado, no Usina Teatral (SESC PE). Lá tive o prazer de acompanhar um pouco da sua fala e do seu olhar e saí, a cada dia de evento, remexida com o que via. Penso que, naquele momento, ideias antigas floresciam enquanto novas também eram semeadas. Agradeço também a disponibilidade e a sua pesquisa que muito me inspirou e me auxiliou. A Vitória Amaral, professora da Universidade Federal de Pernambuco, agradeço a troca, o carinho, o apoio, a participação e o sorriso largo.

Gratidão à TV Jornal (afiliada do SBT no Recife) por ter possibilitado a realização desse Mestrado, me ajudando a encontrar alternativas para conciliá-lo ao trabalho que estava desenvolvendo no primeiro ano da especialização à frente de um dos programas da casa. Erilson Gouveia, gratidão pela oportunidade. Eloísa Felinto, muito obrigada. E à equipe que fez de tudo para que as coisas se encaixassem, muitíssimo obrigada: Alê Macêdo, Elton Souza, Nataly Barreto, Luís Bringel, Marina Branco e Márcio Ribeiro.

Nataly Barreto, obrigada por encarar a montagem do filme trazendo a ele, além do seu próprio relato, a contribuição do seu olhar artístico. Luís Bringel e Gabriel Godoy, obrigada pela dedicação nas gravações. Agradeço ainda ao SESC Santo Amaro (Recife/PE) pela locação. Alba Azavedo, gratidão infinita pela transcrição do material e pelas legendas em espanhol. Luiz Diego Garcia, muitíssimo obrigada pelas legendas em inglês. Jana Gomes, obrigada pelo olhar sobre a língua inglesa em todos os detalhes.

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pela primeira vez e a Mayk Moura por nos auxiliar nesse primeiro evento. Ao SinsPire agradeço a parceria para a primeira exibição do filme e por ser a segunda casa para a nossa exposição. Gratidão também à Komunik pelo teaser do espetáculo e a Li Buarque pelas fotografias da estreia.

Natalie Revorêdo e Domingos Júnior, obrigada pelos olhares delicados na concepção de luz. Gratidão a Orlando Neto pelo figurino e a Gabriela Holanda pela preparação corporal.

Agradeço a todas que vieram antes de mim, as que aqui estão e as que virão em seguida. Aos livros, filmes, peças, fotografias, séries, programas de rádio e de TV, a toda a arte que venho conhecendo e carregando.

Hilda Torres e Analice Croccia, novamente: sou só amor. Obrigada por embarcarem nessa jornada e por tudo o que isso quer dizer. Para além da cena, gratidão pela escuta, pela fala, pelo acolhimento e pela dedicação. Sou só amor. Talvez esses afetos compartilhados devessem trazer essa frase repetidamente. Sou só amor. Porque quando penso nesse processo e volto o meu olhar a essas páginas de agradecimento só posso registrar aqui esse sentimento que me invade, que me atravessa, me preenche e não consegue ficar contido para o lado de dentro da pele. Precisa sair. Porque que outra palavra eu posso usar se não amor? Como posso agradecer a todes e ao Universo por todos esses encontros cósmicos? Só sendo amor.

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PALAVRAS-CHAVE

própria e uma reflexão sobre a construção de uma única narrativa documental a respeito da liberdade e do aprisionamento no cotidiano feminino a partir de 11 depoimentos reais, de mulheres de diferentes realidades sócio econômico culturais, em diálogo com um texto ficcional do escritor Mia Couto. O trabalho parte de uma escrita performativa e pensa sobre o teatro documentário, suas características, possibilidades e viabilização na cena em diálogo com a construção narrativa, trabalhando ainda a linguagem fotográfica por meio de um ensaio, audiovisual por meio de um documentário em vídeo e da literatura por meio do diálogo com a ficção e com própria escrita utilizando essas construções como etapas para a cena.

Documental, Cinema documentário, Fotografia, Teatro documentário, Escrita performativa.

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KEY WORDS

narrative that encompasses cinema, photography, theatre and writing in the thinking about documentary. It is proposed its own methodology a reflection on the construction of a single documentary narrative about freedom and imprisonment in women’s daily life from 11 real statements, of women from different cultural sócio-economic realities, in dialogue with a fictional text by the writer Mia Couto. The work starts from a performative writing and thinks about the documentary theater, its characteristics, possibilities and feasibility in the scene in dialogue with the narrative construction, still working the photographic language through an essay, audiovisual through a video documentary and literature through the dialogue with the fiction and also the written itself using these constructions as steps for the scene.

Documentary, Documentary cinema, Photography, Theater, Documentary, Performative writing.

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RESUMO

ATRAVÉS DO ESPELHO

CAPÍTULO

1

Documentar – Vozes, pêlos, peles e

poros

CAPÍTULO

2

Espelhos libertários de

experiências compartilhadas

CAPÍTULO

3

O Mergulho

Memória em Chamas

14

18

80

109

165

188

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226

238

240

261

Ainda escrevo para elas

Material de divulgação

ensaio-filme-espetáculo

Estudo de figurino

Dramaturgia

Lista de Imagens

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1 - Referência aos clássicos literários de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas, lançado em 1865, e Alice através do espelho, de 1872.

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o que pode ser mais forte que o coração da gente

que se quebra em tantas partes e ainda bate

- rupi kaur2

2 - KAUR, Rupi. O que o sol faz com as flores. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2017, p.109.

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A tela permanece inquisidora, quase como se quisesse que eu confessasse meus pensamentos e desejos mais profundos ou como se quisesse ela mesma me entrevistar sobre tudo que passei e venho passando. Uma espécie de câmera-olho, parafraseando o cineasta polonês, Dziga Vertov3. Só que voltada para dentro, para

o meu interior. Começo a acreditar que apenas assim, em uma conversa franca e aberta, posso conseguir esmiuçar o que venho procurando na minha travessia pelo espelho. Assim como muitas mulheres falaram francamente comigo, preciso falar francamente com você, mas talvez eu já esteja me adiantando e misturando tudo. Talvez não.

A página permanece um bom tempo em branco enquanto o cursor pisca diante dos meus olhos, mas a calmaria da tela do computador em nada reflete a ebulição da minha alma que, neste exato momento, bem como na maior parte das horas do dia, encontra-se em um estado de enorme excitação e bombardeio de sentimentos, sensações e pensamentos. É impossível falar sobre esta pesquisa sem começar desenrolando meu próprio emaranhado de linhas, sem dar um salto no abismo. No meu abismo.

Este projeto nasceu de uma necessidade anterior ao Mestrado. Do desejo de falar sobre liberdade e aprisionamento no cotidiano feminino me vi impelida a mergulhar em um processo mais profundo sobre o fazer teatral e mais: em refletir sobre como articular quatro linguagens distintas como a escrita, a fotografia, o cinema e o teatro e como documentar por meio de cada uma delas.

Durante o processo de um outro espetáculo, enquanto alimentávamos a sala de ensaio com referências fotográficas, de artes plásticas, cinematográficas, textuais e sonoras me deparei com uma contribuição de um dos meus colegas, o conto Meia culpa,

meia própria culpa do escritor Mia Couto (pseudônimo de Antônio 3 - Referência ao filme Câmera olho ou Homem com uma câmera (1929/ Dir. Dziga Vertov)

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Emílio Leite Couto). Sobre ele:

Nascido em cinco de julho de 1955 na cidade de Beira, em Moçambique, publicou seus primeiros poemas no jornal Notícias

da Beira aos 14 anos de idade, dando início a uma longa trajetória

literária com mais de 30 obras publicadas que englobam romance, conto, crônica e poesia passando pela linguagem adulta e também pela infantil.

Em 1972 iniciou os estudos em medicina, mas em 1974 passou a trabalhar com jornalismo, área na qual atuou como repórter e diretor da Agência de Informação de Moçambique (AIM) (1976), da revista semanal Tempo (1979 - 1981) e do jornal Notícias (1981 – 1985), mas em 1985 abandonou a carreira jornalística voltando à Universidade para se formar em biologia, especializando-se em ecologia, área na qual segue atuando em diferentes frentes: como professor universitário, pesquisador e ainda como diretor da empresa Impacto, Lda. – Avaliações de Impacto Ambiental. Ainda sobre ele:

A sua linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida um pouco surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos – o mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente contador de histórias. É o único escritor africano que é membro da Academia Brasileira de Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de

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Apesar da extensão do trabalho do escritor, aquele foi meu primeiro contato com a sua narrativa e a verdade é que fiquei completamente apaixonada pela personagem Maria Metade de

Meia culpa, meia própria culpa, conto que apresenta a história de

uma mulher acusada de ter matado o próprio marido.

4 - https://www.miacouto.org/biografia-bibliografia-e-premiacoes/

Atualmente é o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal. As suas obras são traduzidas e publicadas em 24 países. (Texto retirado do site do escritor)4

E metade eu sou. Maria Metade. Agora, o que aspiro é ficar em sombra perpétua. Condenada por crime maior: apunhalar meu marido, esse a quem prestei juramento de eternidade. É por causa desse crime que o senhor está aqui, não é assim?

Pois lhe confesso: aqui, penumbreada nesta prisão, não sofro tanto quanto sofria antes. É que aqui, sabe, acabo saindo mais que lá em minha casa natal. Vou onde? Saio por pé de meu pensamento. Por via de lembrança eu retorno ao Cine Olympia, em minha cidade de outro tempo. Sim, porque depois de matar o Seis reganhei acesso a minhas lembranças. É assim que, cada noite, volto à matiné das quatro de minha meninice. Não entrava no cinema que me estava interdito. Eu tinha a raça errada, a idade errada, a vida errada. Mas ficava no outro lado do passeio, a assistir ao riso dos alheios. Ali passavam as moças belas, brancas, mulatas algumas. Era lá que eu

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sonhava. Não sonhava ser feliz, que isso era demasiado em mim. Sonhava para me sentir longínqua, distante até do meu cheiro. Ali, frente ao Cinema Olympia, sonhei tanto até o sonho me sujar. (COUTO, 2004, p. 40-41)

Diante do impacto causado pelo conto em mim eu sabia que precisava criar a partir dali. As palavras de um homem me moveram a pensar liberdades e aprisionamentos no cotidiano feminino e foi a partir da ficção que tive o impulso de mergulhar no documental porque já nesse primeiro momento eu sabia que queria seguir esse caminho.

Inicialmente pensei em trabalhar a partir de relatos de mulheres em situação de cárcere friccionando-os ao texto Meia

culpa, meia própria culpa dando início assim a estruturação do

projeto que pretendia articular foto, vídeo e cena a partir desse prisma. Mas diante do encantamento pela Maria Metade fui em busca do livro que a abrigava, O fio das missangas (2004), e me deixei levar pelas palavras do escritor. Lá, outros textos me capturavam e me remexiam fazendo com que eu pensasse cada vez mais nessas liberdades e nesses aprisionamentos de nós mulheres. Mais três contos do título vieram se juntar ao impulso daquele primeiro encontro: O Cesto, Inundação e A saia almarrotada. O primeiro conta a história de uma mulher que parece vislumbrar sua liberdade na iminência da morte de seu marido; O segundo fala sobre um difícil término de relacionamento e o terceiro narra a história de uma moça cujo sonho era usar uma saia e que, ao receber uma como presente em segredo, é coagida a abrir mão do que tanto queria.

Nas palavras poéticas e sonoras de Mia Couto percebi mulheres de idades e realidades distintas, opressões e suas próprias prisões e percebi naquelas páginas desabrochar a necessidade que já me habitava de olhar mais profundamente para isso. Foi diante

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desse conjunto de histórias que vi a primeira proposta, aquela de me debruçar sobre relatos de mulheres em situação de cárcere, desaguar em um novo olhar, aquele que busca liberdades e aprisionamentos no cotidiano feminino em diferentes camadas e vivências e não só no encarceramento literal. Creio que foi com essa mudança de paradigma também que, mesmo sem saber, mergulhei de cabeça e sem volta em uma pesquisa que sou incapaz de desvencilhar de mim mesma não só pelo contato e o envolvimento, mas também porque eu mesma integro o espectro que retrato.

Foi aí que decidi unir um projeto antigo à vontade de ingressar na Academia porque entendi que estava diante de muitas camadas. Não só o Mestrado seria útil para que eu sistematizasse e verticalizasse a pesquisa que me propunha a fazer, mas também acredito que o material proposto é rico para pensarmos o documental em diferentes meios (foto, vídeo, cena e escrita), refletindo sobre suas diferenças e especificidades – como documentamos artisticamente com essas quatro linguagens? Quais as diferenças e proximidades? Como estão em diálogo? - Articulando-os para a criação e propondo uma metodologia específica de criação cênica a partir do diálogo entre esses mesmos meios e também de dispositivos-gatilho, ou seja, dispositivos pensados para estabelecer relações, fluir relatos, estimular compartilhamentos e diálogos a fim de propor maneiras de documentar. O impulso culminou no presente trabalho que também reflete sobre como é possível desenvolver uma única narrativa documental a partir de 11 vozes distintas aliando-as a um texto ficcional.

Para isso me apoio na pesquisa de Bill Nicholls e Eduardo Coutinho acerca do cinema documentário, Marcelo Soler e sua criação documental no teatro, conversando também com os pensamentos de Davi Giordano e o biodrama e Janaína Fontes Leite e a Autoescritura performativa. Além disso, me apoio em Jorge Larrosa e seus escritos sobre a experiência, Gaston Bachelard e o imaginário, Roland Barthes e seus pensamentos sobre fotografia,

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Peter Brook e seus ensinamentos sobre teatro, Rainer Maria Rilke e Andrei Tarkovski e a criação artística, Luciana Lyra e a escrita performativa e ainda Márcia Tiburi, Margareth Rago, Rebecca Solnit, Clarissa Pinkola Estés, Maria Amélia de Almeida Teles e Manuela D’ávila acerca de pensamentos sobre o feminino e os feminismos.

Dessa maneira, segui em um processo que se divide em quatro partes gerando quatro produções: um ensaio fotográfico, um documentário audiovisual, um trabalho cênico e a presente escrita. Apesar de serem obras distintas, estas integram uma unidade com uma metodologia específica. – Tanto o ensaio como o filme e o espetáculo serão esmiuçados mais a frente, mas adianto aqui, em linhas gerais, o mote inicial: Conversei com 11 mulheres de realidades socioeconômicas culturais distintas sobre o tema liberdade e aprisionamento no cotidiano feminino.

Depois da primeira fagulha acesa pela ideia comecei a pesquisa, então vieram os relatos, o início da chama. Logo ingressei na sala de ensaio para os encontros de criação que permearam todo o processo, sempre em ebulição, assim como a escrita que também se estruturava em paralelo e em diálogo. Na sequência, trouxe para a minha pele, na criação das fotografias, as provocações despertadas pelas histórias daquelas mulheres e pelas primeiras vivências da sala de ensaio. Os ensaios seguiram. Tivemos a primeira exposição das fotos intitulada Espelhos. Os ensaios seguiram. Veio a montagem do filme, intitulado Narrativas que traz as mulheres em primeira pessoa, seus rostos e suas vozes na tela. Os ensaios seguiram. Veio a segunda exposição das fotos e a exibição do filme. Os ensaios seguiram. Por fim, desaguamos no monólogo Ainda escrevo para

elas que contou com o processo composto por

relato-ensaio-filme-cena que propõe um diálogo entre as narrativas colhidas, as minhas vivências enquanto artista-pesquisadora e O Cesto, texto ficcional de Mia Couto que integra o citado livro O fio das missangas.

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outra maneira de registrá-lo que não fosse o relato. É por isso que me coloco diretamente nas páginas aqui oferecidas. “Pelo caráter pessoal da pesquisa, opto por uma escrita híbrida (...). Uma escrita sob o signo da performance, composta binariamente por uma vontade documental e uma vontade poético-literária.” (LYRA, 2011, p.41)

Então eu pergunto: o que eu poderia contar a você sem me rasgar por completo? Sem me desdobrar em muitas de mim, arder em memórias turvas e me expor de dentro para fora? O que eu poderia fazer para tirar essa estrutura, hoje sólida, que se alojou na minha garganta e teima em se materializar em voz? Talvez se eu desaguar em letras escritas... Talvez se meus dedos pulsarem no atrito entre lápis e papel essa profusão de ideias consiga escapar da teia confusa de pensamentos, ansiedades e auto cobranças, vazando então na antiga página em branco que, em um piscar de olhos, conterá todos os segredos que me habitam, aqueles que conheço e tento esconder e aqueles que nem percebo e, no entanto, me constituem. Talvez assim nós possamos nos fundir porque aí você teria um pedaço de mim em suas mãos. Mais do que um coração arrancado para que você possa amar ou olhos para que possam te admirar. Um pedaço, assim, que é quase o todo. Um universo inteiro em palavras.

Hoje eu voltei ao início. Parece que não existe outro ponto de partida. Eu costumava dizer a mim mesma que, desse princípio, eu lembrava pouco ou quase nada, mas parece que dentro dos registros, recordações, recriações e invenções da pele e da memória, as lembranças me habitam.

Minha mãe me contava histórias. Dentre elas havia a da estrela que, apaixonada por um grão de areia que morava na praia, lançou-se num salto em busca desse amor e acabou se tornando uma estrela do mar. Também minha mãe amava cinema e me levava para ver filmes naquela grande tela de um mundo paralelo, bem como compartilhava sessões em casa com direito a muitas repetições até que nós decorássemos falas que reproduzimos até

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5 - Bebendo da fonte de Marcia Tiburi em Feminismo em comum – para todas, todes e todos, identifico neste trabalho o gênero não binário com a letra “e” a fim de não criar barreiras no que diz respeito à acessibilidade do conteúdo por deficientes visuais.

6 - Cineasta, roteirista e ator americano. Dirigiu filmes como Pulp Fiction: Tempo de violência (1994) e “Bastardos Inglórios” (2009).

7 - Dupla pop brasileira de irmãos cantores lançada em 1989 que se manteve em conjunto até 2007. Veio de uma família também de cantores representada pela dupla sertaneja Xitãozinho (tio) e Xororó (pai).

hoje. Desse impulso tomei gosto e passei a habitar locadoras durante horas sem fim atrás de títulos, descobrindo outros, fazendo amigos e conversando com dones5 e clientes desses estabelecimentos que

me habitaram. Em um outro tempo, de um outro ritmo, também eu queria ter uma locadora-café. Quentin Tarantino6 trabalhou

em uma antes de Cães de Aluguel (1992/ Dir. Quentin Tarantino), ainda hoje o meu preferido dele.

Eu buscava histórias e me encantava com todas elas. Amigues, vizinhes, primes... Minhas primas e eu encenávamos também. Eu queria ser cantora, sim, era fã de Sandy e Júnior7 ,

e escritora. Estava permanentemente na escuta das histórias e elas sempre chegavam. Um ser bem sociável. Não gosto de mapas nem de coordenadas exatas. Perco-me em linha reta e gosto de pedir informação. Não por acaso me mantive artista e busquei a comunicação. A sede de escuta não acaba. O documental pode ter chegado como campo, “a perspectiva de campo de conhecimento não se refere a uma área com rígidos contornos e permeada de definições, mas a uma possibilidade de lugar destinado à reflexão” (SOLER, 2015, p. 16), mas o desejo é de estar diante de outros, olho no olho, em um tempo paralelo que só a presença e a escuta podem proporcionar. Há algo de mágico no cotidiano.

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Substantivo feminino - faculdade de conservar e lembrar estados de

consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos. “uma m. boa ou má”. nome, reputação. “a m. desse homem é ora caluniada ora defendida”8. No entanto, refletindo um pouco mais

sobre o assunto, destaco que a memória também fantasia e gera ficção na medida em que registra porque parte sempre de um ponto de vista. Além disso, “não podemos desvincular a memória do presente, já que ela está em constante construção, tendo como material nossa vivência do dia-a-dia” (SOLER, 2010, p.18). Ou seja, partimos de fragmentos guardados em nós reconstituídos no agora, a partir de quem somos hoje. “A experiência dos outros só pode ser conhecida como a história manipulada e interpretada daquilo por que eles passaram.” (BAUMAN, 2003, p. 18)

Em diferentes momentos já fui questionada sobre lembranças referentes à minha origem, ou a primeira música da qual recordo, ou do primeiro filme visto no cinema… Ou ainda sobre recordações da infância, cheiros, momentos… Penso que guardo um mosaico de vivências pontuais. Um elementozinho aqui, outro ali, mas de alguma maneira a maioria das coisas se perdeu. Ao menos daquilo que posso acessar instantaneamente por meio da mente.

Me pego diante de uma caixa de fotos daquele tempo no qual o momento ainda era impresso em papel fotográfico e não apenas registrado compulsoriamente em redes sociais, sem durabilidade na relação. Páginas e postagens permanecem mesmo depois que vamos embora, mas é tudo tão distante, tão instantâneo. Vemos, clicamos, curtimos, comentamos e logo esquecemos. Um tempo no qual nada é feito para ter durabilidade, como alertou o sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, em entrevista, quando tratava da

8 - Site de busca online, www.google.com.br. Parto da definição do dicionário online porque foi a partir dele que levei duas definições para as mulheres nos dois dias de gravação. Explicarei esse processo mais adiante.

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modernidade e das relações líquidas9. Mais se registra do que se

vive, momentos só parecem reais se depositados em uma rede social e com esse ciclo vicioso, ansiedades e compulsões se dilatam enquanto somos expostos a dezenas e dezenas de imagens, estáticas ou em movimento, que levamos frações de segundo para apreciar. E seguimos. “Quando a qualidade o decepciona, você procura a salvação na quantidade. Quando a duração não está disponível, é a rapidez da mudança que pode redimi-lo.” (BAUMAN, 2003, p. 78)

Rememorar, a eterna reinvenção da memória, se apresenta como um possível caminho na contramão, no caos das múltiplas informações e consequentes esquecimentos. Um respiro, uma parada para reconectar e recontextualizar, afinal, retornando ao que contava há pouco, a memória, ela mesma, só pode acontecer agora, nesse exato momento, no qual reavivamos uma lembrança, uma palavra, um cheiro, um toque, uma sensação hoje, sob o prisma de quem somos nesse dia, nesse exato momento, e por trás do véu ficcional constituído pela nossa própria perspectiva, pois só podemos reconstruir os fatos a partir dela mesma e do nosso ponto de vista.

9 - Zygmunt Bauman em entrevista para ISTOÉ -https://istoe.com.br/102755_

VIVEMOS+TEMPOS+LIQUIDOS+NADA+E+PARA+DURAR+/

Em tempos das relações voláteis e da ode ao descartável, a experiência poética da memória, cerne de uma proposta de Teatro Documentário, corresponde a um momento de resistência, no qual há a mistura criativa entre as imagens do passado e a imaginação evocando imagens novas num movimento contínuo de descoberta do que somos. (SOLER, 2010, p. 151 – grifo meu).

O documental se mostra como uma das possíveis estradas para essa trajetória uma vez que parte da premissa do real, mas vale

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ressaltar aqui que realidade e verdade não são necessariamente sinônimos. Estamos falando sobre fatos realmente ocorridos, entretanto não podemos abranger verdades absolutas já que registramos acontecimentos legítimos sob pontos de vistas específicos e, por mais que se possa almejar uma imparcialidade, e muitas pessoas buscam, haverá sempre o seu próprio olhar. Suas escolhas, suas prioridades, seus recortes, sua condução, sua perspectiva.

Diante desse apanhado inicial, posso ir um pouquinho mais além desse desvelar de mim que ainda está tímido, mas espero que você entenda. Não é fácil falar tudo isso diante de você e, por vezes, a mente devaneia. Todavia já indiquei que temos aí dois aspectos que me interessam: a memória e o elemento do real, ou ainda o elemento real sob o prisma da memória e do relato, mas não para por aí. Há, acima desses, o principal fator que me trouxe a esse caminho: o interesse no humano. Fator cuja obviedade, sinceramente, só constatei quando comecei a pesquisa em questão.

Apesar de estar em permanente contato com o ficcional, há anos me pego com a ideia de estudar o documental. No término da minha primeira formação, Comunicação Social – Radialismo

e TV (UFPE), pensava em estudar o assunto no cinema. Ao seguir

para a formação em interpretação (Curso de Interpretação para

Teatro, SESC Santo Amaro, Recife, PE) voltei ao tema partindo do

biodrama que “tem como material de inspiração a biografia de uma pessoa viva. Trabalha-se a ideia de que cada pessoa é e tem em si própria um arquivo, uma reserva de experiências, saberes, textos e principalmente imagens.” (GIORDANO, 2013, p. 3) Hoje, percebo que retorno à sementinha há tanto plantada e que tão ansiosamente aguardava sua germinação. Retorno ao documental, mas, nesse retorno, percebo que desde aqueles primeiros anos minha atenção, na verdade, estava no ser humano, nessa relação com o outro. “O Teatro Documentário toca diretamente no tema do humano, e justamente por isso é bastante revelador em termos de testemunho

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e confissão.” (GIORDANO, 2013, p. 6).

Essa percepção a respeito do que realmente move meu interesse surgiu quando pensei sobre duas referências que me acompanham no decorrer desses anos, o documentarista brasileiro Eduardo Coutinho, cujo trabalho constrói sua base na abordagem dos personagens retratados e suas histórias e em como tais relatos se juntam e se costuram formando uma colcha repleta de humanidade e revelações e ainda a jornalista e escritora, também brasileira, Eliane Brum que transborda poesia do cotidiano nas suas páginas, dando destaque ao extraordinário contido no ordinário, a beleza que habita todo ser humano composto pelas suas vivências e particularidades. Nas palavras da própria autora: “A maior parte das histórias reais que conto vem dessa grandeza do pequeno, da delicadeza que anima cada vida humana, mesmo nas horas brutas.” (BRUM, 2014, p. 105)

Foi assim que me peguei rindo diante da constatação que deveria ser transparente como a água, mas que até então se escondia no apreço da condução do documental. Foi essa percepção também que me levou ao encontro com onze mulheres diferentes para abrirmos almas e corações para nossas trocas, espelhos e vivências. Foi por meio dessas questões que pude ainda trocar com inúmeras pessoas dispostas a enriquecer o projeto. Que sorte a minha! Que mergulho o nosso! Mas falo melhor sobre essas questões mais adiante.

Paralelamente a isso havia minha jornada pessoal sobre a qual penso agora a respeito e me pergunto se seria possível distinguir as duas perspectivas, pesquisa e pesquisadora, parece que não. Na verdade eu nem saberia condensar minhas dores e felicidades em algumas linhas para ambientar você. Talvez não seja mesmo possível e tudo bem. Talvez seja importante deixar espaços em branco para que você mesme possa completar as lacunas. Para que fique um mistério. Ou para que possamos reconstruir nossa jornada juntes. Afinal, o relato, reflexo da memória, não é

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também uma coleção de fragmentos guardados e pinçados sob uma perspectiva pessoal? Espero que meu rio possa navegar em você e que você possa completar e transbordar essa construção.

De qualquer forma, tomemos um café, posso compartilhar uma dose. A vida tem sido uma aventura, uma busca constante por crescimento e transformação e já troquei de pele tantas vezes que não saberia nem por onde começar. Já queimei, virei pó e voltei em novas formas, ressignificando. Já queimei literalmente em um acidente aos três anos de idade com queimaduras de primeiro a terceiro grau e, embora não consiga me lembrar dos fatos, ainda hoje sinto profundamente quando ouço os relatos daqueles que estiveram presente. Já queimei largando crenças e desejos, sendo magoada profundamente, errando drasticamente, demorando para executar novas compreensões… Tenho certeza de que queimarei ainda mais e que, a cada novo bailar nas chamas, novas camadas surgirão e, a cada nova camada, alegrias também serão instauradas.

Nessa estrada me vi no caminho mais desafiador e transformador que pode existir: o encontro de mim mesma, ponto de partida para qualquer transformação em outro grau. E nesse processo vem ainda minha compreensão enquanto mulher e como o feminino se instaura em mim e ao meu redor. Estava eu, portanto, diante da toca do coelho com um chamado muito urgente e o coelho me avisava que já era hora, que já era hora10. Era necessário cair

e se deixar levar. Nessa aventura foram tantas dores e sorrisos, tantas imagens e ressignificações e, felizmente, tantos encontros e espelhos.

Não sei se acontece com você, mas frequentemente me pego soterrada pelo caos diário, afazeres, necessidades (ou a crença na necessidade) e obrigações e nem sempre consigo um momento

10 - Referência aos clássicos literários de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas, lançado em 1865, e Alice através do espelho, de 1872.

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de comunhão com o outre porque acredito que o mergulhar em alguém se trata disso, comunhão. E que isso é o que nos move, esse atravessar-se e se deixar atravessar. Trocar. Nesse projeto tive a sorte de ganhar algumas horas de plena comunhão. Um desnudar de alma diante de mulheres-guerreiras, mulheres-sol, mulheres-mães, sorriso, flores, divas, mulheres-carinho, mulheres-dores, mulheres incríveis.

Decidi conversar com 11 mulheres sobre liberdade e aprisionamento no cotidiano feminino. A única obrigatoriedade seria que fossem mulheres e que apresentassem diferentes realidades socioeconômica culturais. Meu dispositivo de diálogo não se baseava em uma bateria de questões para uma entrevista, mas sim em perguntas-base que me auxiliariam na condução de

FIGURA 1: Marisa na gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

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cada relato para que eu percebesse o caminho a seguir com cada uma delas, cada uma a sua maneira diante da sua especificidade11.

Por quê 11 pessoas? Foi uma demanda prática, na verdade. Inicialmente imaginei um curta metragem. Dividi as gravações em dois dias, pois se acontecesse algum imprevisto no primeiro encontro havia ainda uma segunda diária. Além disso, na minha experiência é comum que haja desistência ou impossibilidade de comparecimento por parte das pessoas agendadas, então pensei em um número amplo para um curta-metragem (11) contando que metade poderia não comparecer. Qual foi a minha surpresa ao me ver diante de 10 das 11 mulheres marcadas, ou seja, apenas um cancelamento, com tudo fluindo nas gravações e ainda encontrar uma 11ª mulher que acabou dando seu relato no lugar daquela que teve um problema de saúde e não pôde ir? Tudo isso desaguou em cerca de cinco horas de gravação que integram a metodologia aplicada abrangendo material para a presente escrita, para as fotos, para a cena e para o filme que, diante da generosidade e da riqueza dos relatos trazidos pelas mulheres, acabou se transformando em um longa metragem com uma hora de duração.

Minha proposta foi traçar perfis que estabelecessem uma vivência distinta entre elas: jovem, senescente, negra, branca, delegada, ex presidiária, lésbica, heterossexual, bissexual, casada, solteira, mãe solo, artista, comerciante, estudante, mestra, graduada, com ensino médio, que tenha vivido uma relação abusiva, uma relação feliz, que tenha tido depressão pós-parto e que desenvolve um trabalho voltado para o sagrado feminino, por exemplo. Uma

11 - É importante ressaltar que todas as mulheres que cederam seus relatos estavam cientes do teor do projeto, de como ele se desdobra em diferentes frentes e de quais eram as minhas propostas. Inclusive, todas assinaram um termo de autorização para que eu pudesse utilizar o material.

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mesma mulher poderia apresentar mais de um perfil proposto, mas era necessário que o grupo como um todo permeasse a amplitude pensada.

Não eram perfis absolutos, mas sim indicadores. Eles não determinavam as perguntas que seriam feitas. As perguntas-base eram as mesmas (transcritas mais adiante), mas a abrangência dos perfis era um dispositivo para que naturalmente os olhares compartilhados fossem a partir de experiências e vivências distintas. Claro que qualquer pessoa já tem uma perspectiva única no mundo, mas traçando esses perfis podia criar uma gama mais abrangente dentro do que um espectro de 11 pessoas pode proporcionar passando por vivências do cotidiano feminino. Naturalmente, 11 pessoas não cobrem a totalidade da diversidade possível, mas me ajudam a compor um retrato mais amplo, com tonalidades muito particulares e compõem o quadro específico a partir do qual a pesquisa se estruturou. Infelizmente a única que não pôde comparecer foi uma mulher transexual, olhar que seria extremamente enriquecedor para esses relatos.

Dividi os encontros em dois dias, em junho de 2018, e uma a uma, cada mulher adentrava no espaço de gravação, o Teatro

Marco Camarotti, localizado no SESC Santo Amaro, no Recife,

Pernambuco, com sua bagagem pessoal a fim de trocar relatos e experiências. O teatro escolhido por si só já me invade de emoções porque foi lá que se deu minha formação em interpretação e é sempre muito emocionante estar de volta, seja como espectadora ou realizando trabalhos meus.

Aqui acho que posso confidenciar mais uma coisa: eu choro muito. Choro sempre. Como forma de expressão para os mais variados sentimentos, sabe? Choro de dor, de tristeza, de raiva e de felicidade. A presença no teatro em questão já me desaguou muito e a condução dos dois dias de depoimentos não foi diferente. Tanto eu quanto elas, transbordamos. Penso que ali começamos a trançar nossos rios.

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As gravações foram marcadas e acabaram por fugir do cronograma inicial, isso se você acreditar em acaso. Começamos, no primeiro dia, com uma pessoa da terceira idade, cuja vida daria vários filmes incríveis e, ao término do segundo dia, estivemos com uma pré-adolescente que nos atingiu com respostas afiadas, objetivas e rápidas, mas igualmente recheadas de poesia.

O mais curioso desses encontros, posteriormente revisitando as palavras ali trocadas, era a narrativa cíclica que passeava por cada uma das participantes. Apesar de diferentes origens e gerações, muitas histórias se repetiam, espelhavam-se, multiplicavam-se. Dores tão semelhantes em diferentes vozes, em diferentes peles. Lutas tão próximas em diferentes corpos, em diferentes olhares. Foi impactante lidar com tantos encontros. Via-as como espelhos umas das outras, me via como espelho delas e também me via refletida nelas, bem como as histórias da minha mãe, das minhas avós, das minhas amigas, das minhas tias e das minhas primas também estavam ali. Não por acaso toda essa relação cíclica e de espelhamento foi transposta também para a cena e para as fotografias. “Ao ser diante do espelho pode-se sempre fazer a dupla pergunta: para quem estás te mirando? Contra quem estás te mirando? Tomas consciência de tua beleza ou de tua força?” (Bachelard, 2018, P.23)

Começamos com Marisa Nóbrega que hoje integra o

Bárbara Idade, grupo de teatro do SESC Santo Amaro (Recife,

Pernambuco) e que, na juventude, trabalhou como assistente social.

Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E a lembrança são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança. (COUTO, 2004, p. 25).

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Marisa ocupou seu lugar no espaço nos invadindo com um sorriso contagiante – aqui vale uma digressão: o cenário era o mesmo para todas: uma poltrona em um teatro, sobre um tapete, com uma cortina preta ao fundo e uma mesinha ao lado contendo um jarro com flores. Observar como cada uma delas ocupava esse espaço já dá muitas possibilidades de leitura e reflexão. Agora voltando à Marisa: uma história vasta e riquíssima, cheia de altos e baixos, mas que jamais a derrubaram. Penso que não é possível escurecer aquele espírito tão solar. O dia nunca é cinza por ali porque ela está sempre pronta para mostrar que tudo tem jeito e que, seja qual for a dor, vai passar, vai transformar. Basta ser você e trilhar seu próprio caminho. Falando assim pode parecer fácil, pode até parecer balela, mas algumas pessoas, tanto no riso quanto no choro, conseguem forças diretamente da mãe Terra e se sustentam. Borboletas em eterna transformação.

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(41)
(42)

Liberdade foi a minha vida. Porque

eu fiz o que quis, dentro de época de

repressão, porque eu, sinceramente,

eu não acreditava nos dois lados.

E eu fiz o que me deu... Desde

criança eu fiz só o que eu tive

vontade de fazer. Sem atrito, sem

luta, assim, que ofendesse o outro

lado. Sempre eu achava um jeito de

conseguir. De ser o que eu queria,

de fazer o que eu queria. Pra mim

a liberdade continua sendo hoje.

(Transcrição de Marisa. Relato

cedido à autora em 11.06.18)

12

12 - No decorrer da dissertação estão citados trechos das histórias das 11 mulheres entrevistadas. São fruto da transcrição do material coletado em vídeo. Foram mantidos eventuais erros gramaticais a fim de preservar o discurso oral. Retiraram-se apenas cacofonias e repetições que pudessem dificultar a leitura.

(43)

Fabrícia Macedo, atriz e psicóloga, chega no auge da juventude, mas não com menos histórias. Mãe e cidadã em trânsito, abre o coração de uma maneira inesperada e me vejo diante de uma generosidade incrível. Um olhar sensível e disponível. Penso que nossas almas se abraçaram.

FIGURA 3: Objeto levado por Fabrícia (centro da foto) para a gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

(44)

Descobri que eu tava um pouco em

depressão, né, assim, e comecei a me

trabalhar, fazer terapia e tal (...)

Mas... olha, Antonia fazia quatro meses

e eu ficava “ai, graças a Deus, quatro

meses, eu tava em depressão, gente, eu

to ótima”; cinco meses e eu “não eu acho

que tá acabando agora esse negócio dessa

tristeza tá indo embora agora”; seis

meses eu “ainda tô triste”... então, eu

não sei quando, de fato, esse negócio

acabou, assim, sabe? Às vezes eu olhava

pra ela... teve uma época que eu olhava

pra ela e eu tinha tanta vontade de

chorar, assim, sabe? Eu não queria dar

banho, eu não queria... (chora)... eu

não queria cuidar, sabe? Mas eu ficava

(45)

naquele negócio de “é minha filha, né,

eu preciso, eu preciso amar esse ser

humano”. E aí eu ficava me trabalhando,

eu rezava muito e ficava me trabalhando,

eu não posso deixar de dar banho na

minha filha, e eu não abria isso pra

ninguém, né? Eu tinha muito medo, ao

mesmo tempo eu tinha muito medo que...

que tirassem ela de mim, sabe? Eu vivi

esse medo por muito tempo. Tinha medo de

que qualquer pessoa, o pai, o taxista,

qualquer pessoa, tomasse minha filha de

mim. E aí, aos poucos, com o tempo, eu

fui percebendo que tava ficando mais

leve. (...) (Transcrição de Fabrícia.

Relato cedido à autora em 11.06.18)

(46)

Judith Borba, procuradora de justiça, é uma mulher firme e objetiva. Tem clareza nas ideias e chega falando sobre transformações e viradas de rumo. Percebo, enquanto conversamos, como é possível alterar o prumo durante a trajetória. Com ela também mergulho na adolescência e em como essa fase pode ser dura. Especialmente se você é, de alguma forma, diferente em relação a maioria que te cerca.

FIGURA 4: Judith na gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

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Eu acho que liberdade é uma

busca constante, porque você sempre

quer mais. E, assim, a liberdade

ela é um desejo, é um estado, é

um direito. Então... inclusive,

foi feito uma pergunta pra gente

escrever, aí eu pensei muito nisso.

Se pensa muito juridicamente em

liberdade, o direito de ir e vir,

né? Mas eu acho que é muito mais

amplo. Direito de expressão, o

direito... direito inclusive de

errar é um direito à liberdade

(...). (Transcrição de Judith.

Relato cedido à autora em 11.06.18)

(48)

FIGURA 5: Teta na gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

como Teta ou como Ceça, é auxiliar de serviços gerais, mas já passou por uma penitenciária algumas vezes. É muito forte acompanhar o relato de alguém que se reconstruiu. Na verdade, um dos momentos mais marcantes do nosso encontro aconteceu antes de começarmos a gravar. Li algumas palavras sobre liberdade e aprisionamento na minha perspectiva de vida, vou explicar mais adiante como os relatos foram compartilhados, quais os dispositivos utilizados e do que se trata esse momento. Quando terminei, ela me olhou e disse mais ou menos assim: “nossas vivências são muito diferentes. Você esteve na escola, essa não foi a minha realidade. Existe luz e escuridão. Se ninguém te mostra a luz você só conhece a escuridão”. Pensei em quanta luz me foi trazida durante a vida, em como é uma sorte ter isso e em como é importante estar em contato, em diálogo.

(49)

Esse aqui foi uma emoção pra

mim. Juiz e desembargador, tava

tudo lá, os doutores e eu lá. Fui

chamada. Um monte de gente, mais

de mil pessoas, e fui homenageada.

Ganhei essa placa. E ali naquela

hora eu chorei, pô, eu chorei por

ter sido homenageada e eu sou uma

guerreira. Eu olho pra mim hoje, eu

sou uma guerreira. Eu mermo tenho

orgulho de mim próprio porque não

é fácil não. (Transcrição de Teta.

Relato cedido à autora em 11.06.18)

(50)

Assim como falei para você há pouco, havia uma gravação marcada com uma mulher transexual, no entanto, ela foi a única das 11 contatadas que não pôde comparecer devido a um problema de saúde. Foi frustrante, admito, mas diante dessa ausência cheguei à Denise Maria Moura e Silva, servidora pública. Denise foi acompanhando Teta e acabou ela mesma nos cedendo um relato que muito reverberou. Falamos sobre violência psicológica e relações abusivas, sobre como esses abusos podem chegar de diferentes formas e sob diferentes faces. Como uma agressão vai muito além da questão física, sobre como é necessário estar em contato consigo e sobre como o nosso sorriso é fundamental.

FIGURA 6: Denise na gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

(51)

Eu não queria contar pra ninguém

sobre a porta quebrada, a janela

quebrada, eu comecei a entrar na

minha prisão de si, aparentar

que as coisas estão bem, então

pra todo mundo: ‘ah, tá ótimo,

não, tá maravilhoso’ (gagueja)

e desmoronando e os objetos, na

realidade, era um pouco o que tá

dentro de mim, né? Querendo ou

não... Foi acabando. E aí você vai

entendendo como é, quantas prisões

e quantas violências (...) e eu

percebi depois a loucura, é que

quantas mulheres sofrem nesse tipo

de prisão, em relacionamentos que

podem durar uma vida (...) ideia

que eu tinha, né? ‘Não, ele não me

bate. Não ele-‘, mas a agressão

verbal, isso é uma violência

enorme. (Gagueja) Acaba, vai

matando. Você é enterrada viva.

(Transcrição de Denise. Relato

cedido à autora em 11.06.18)

(52)

Terminamos o primeiro dia diante desses encontros. Saí inundada de amor e emoção e, no segundo dia, mais uma tempestade dentro de mim.

Nataly Barreto, produtora e editora que também assina a montagem do documentário em audiovisual do presente projeto, falou sobre a consciência da sua cor, culpa, a relação com Deus, sexualidade e empoderamento. Com ela me vi diante de muita poesia e sensibilidade. Um desabrochar instantâneo. Depois de ouvir minhas palavras iniciais ela já estava emocionada e, no início da nossa conversa, falou sobre como tinha chegado ali achando que seria muito tranquilo falar sobre o tema, mas que na verdade era muito difícil. É verdade, é difícil olhar para dentro. É difícil rasgar a alma mais uma vez, diante de outras pessoas. É muito difícil.

FIGURA 7: Nataly na gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

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Meu nome é Nataly- Eu já tô

com voz de choro, pera. (Riso) …

Então, meu nome é Nataly, eu sou

do interior do Ceará, porra, tá

foda (ainda emocionada) estranho…

Tenho 24 anos, sou preta, descobri

um dia desse, sapatão e eu gosto

de, eu gosto de arte, gosto de

teatro, gosto de judô, gosto de

ir pra cinema, gosto de ler (ainda

emocionada. Suspira)… Não sei, não

sei o que falar, é muito difícil.

(Transcrição de Nataly Barreto.

Relato cedido à autora em 12.06.18)

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FIGURA 8: Karla na gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

Karla Gonçalves é tatuadora e, durante seu depoimento, me deixou sem fala. Algo ali rebateu muito profundamente nas minhas próprias vivências. Tive que respirar. Karla trabalha aquarela e fine line13 com o sagrado feminino e desenvolve artes

autorais com base na vivência e no desejo que cada pessoa leva para o seu ateliê. Foi muito interessante contar com seu olhar artístico e holístico14 e, por meio de suas vivências, pensei ainda

13 - Tradução literal: “linha fina”. Trata-se de uma técnica de tatuagem que trabalha com um traço muito fino, pontual e simétrico que desperta um aspecto de leveza.

14 - “Que considera o todo não somente como uma junção de suas partes; que busca entender os fenômenos por completo, inteiramente” Dicionário online – https:// www.dicio.com.br/holistico/

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sobre como, independentemente da geração, ainda reproduzimos muitos comportamentos que nos adoecem. Esse foi mais um aspecto fundamental nesses encontros: a possibilidade de trocar com diferentes gerações e refletir sobre como dores nos atravessam em todas elas. “Porque nesse potente movimento de mulheres do nosso tempo há um encontro intergeracional que nos liberta: as de 15, 20, 30, 40, 60. Todas ao mesmo tempo. Com as questões que são relevantes para nós.” (D’ÁVILA, 2019, p. 49).

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Prisão é um boleto que a gente

tem que pagar no início do mês

(riem), né? Prisão é você ter que...

é, são os compromissos também que

a gente arca, a nível energético

também, às vezes. São alguns tipos

de relacionamento (...) Eu aprendi

o que é liberdade quando eu comecei

a criar da forma que eu queria,

então toda a minha relação com

a espiritualidade, toda a minha

relação com a arte, tudo isso eu só

pude ter contato agora. Bem dizer

(Sorri). (Transcrição de Karla.

Relato cedido à autora em 12.06.18

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No processo encontrei duas familiares: Nataly Sousa e sua mãe, Geni Maria. Geni, comerciante, foi a primeira das duas a entrar no teatro. Com muita simplicidade e sinceridade abriu seu coração de mãe e avó e mostrou como sempre se preocupa e cuida dos seus e das suas. Falou também sobre as suas batalhas e sobre como passou de submissa à dona de si. Geni também contou sobre como a demonstração de afeto pode ser complicada e sobre como abraçar alguém pode ser uma dificuldade. Mas, sabe? Às vezes, inesperadamente, somos arrebatades por uma explosão de amor que nos ajuda a derrubar barreiras e desconstruir muralhas. Na nossa conversa também falamos sobre sonhos e sobre como o trabalho muitas vezes parece não ter fim.

FIGURA 9: Geni na gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

(58)

E minha liberdade é isso, vou

pra onde eu quero. Se eu quiser

ir pra uma festa eu vou, se eu

quisesse, praqui mesmo, se fosse

na época do passado eu não podia

vim (riso), de jeito nenhum. Tinha

nem lógica. Como essa filha que eu

tenho também, essa mais nova, talvez

se eu continuasse o relacionamento

que eu tinha, a prisão que eu vivia

com o pai dela ela hoje não seria

o que ela é, entendeu? Ela iria

ser também, acho, igual a m-, uma

(59)

eu, né? Talvez. E, pra mim, eu tô

bem e tudo que aconteceu na minha

vida foi no tempinho de Deus. Deus

fez tudo no tempo dele, entendeu?

Vivi muito- sofri muito, né? Sofri

muito. Hoje em dia eu sou feliz,

né? Eu, eu eu sinto a felicidade,

né? Poderia ser até mais, né? Mas às

vezes ainda tem umas coisinhas que

a gente tem que dar uma freiadinha

pra poder c- ajeitar. Acho que tô

bem. (Transcrição de Geni. Relato

cedido à autora em 12.06.18)

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Nataly Sousa, profissional de educação física, chegou mesmo afligida pela conjuntivite. Munida de referências e embasamento acadêmico, falamos sobre padrões, modelos impostos pela sociedade, sobre ser mãe, sobre medo e violência no cotidiano. Há algo de mágico em ter a oportunidade de encontrar mãe e filha, nessa situação, logo em sequência. Há algo de belo nisso. Em perceber, por exemplo, como uma mesma pessoa relatada como, por exemplo, o neto de Geni, que é filho de Nataly Sousa, formam um elo nas narrativas e como as vivências se encaixam.

FIGURA 10: Nataly na gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

(61)

Acho que a liberdade, pra mim,

se cataloga muito na liberdade

coletiva e na liberdade individual.

(...) Eu penso muito pelo lado da

coletividade mesmo, sabe? Eu acho

que a liberdade, o aprisionamento,

eles são pontos de vista. Quando

eu me sinto livre muitas vezes o

outro me julga. (...) Se sentir

livre de verdade a gente nunca vai

se sentir, porque tem a liberdade

coletiva, que é impossível a gente

fugir dela, que eu não posso negar

que eu me sinto constrangida, que

eu me sinto presa dentro de casa,

que eu preciso, enquanto mulher,

por exemplo, ter um horário pra ir

e voltar, ter uma roupa pra vestir

pra determinado lugar, ter todo uma

estrutura pra poder sair, precisa

(62)

pagar uber, precisa pagar taxi,

precisa de ônibus, não vai rolar

porque é de meia noite, vai sentar

um cara do seu lado, eu preciso

saber e estar em todo momento

elaborando, né? Quando aquele cara

ele pode ser uma ameaça, quando

ele não é uma ameaça, a forma como

ele se comporta, a forma como ele

olha, se eu tenho que atravessar

a rua agora, se eu tenho que

entrar em algum comércio, se eu

saio no celular e eu me sinto

ameaçada com o celular pela rua

e eu me sinto ameaçada, mas eu

que comprei aquele celular, eu só

posso usar celular dentro de casa?

Então há um certo aprisionamento.

(Transcrição de Nataly Sousa.

Relato cedido à autora em 12.06.18)

(63)

Tereza Nogueira foi uma surpresa. Sendo ela delegada, confesso que nutri uma expectativa de focar sobre sua vivência na delegacia, no entanto, ela se mostrou em um desabrochar de um caminho holístico. Ao invés de direcionar o relato para o viés imaginado, resolvi me manter fiel à proposta de trilhar caminhos pessoais com cada mulher colhendo o que cada uma apresentava a partir das perguntas-base. Deixamos a correnteza fluir e pude ver diferentes facetas dessa mulher-mundo: mãe, profissional, artista, delegada, cantora, um ser em busca. Um ser que é e, que sendo, não se fecha em um único significado.

FIGURA 11: Tereza na gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

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Trouxe um objeto que representa

o momento que eu tô vivendo.

(Pega na bolsa) Tive um pouco de

dificuldade de pensar em um objeto

especificamente. Trouxe essa jaspe

vermelha. Jaspe vermelha é uma

pedra que simboliza proteção. Eu

ultimamente tenho tido uma fase

mais holística da minha vida.

Tenho buscado, me identifico

hoje com essa coisa da busca

pessoal, de ser uma buscadora, de

encontrar coisas além das coisas

materiais que a gente passa tanto

tempo percorrendo, perseguindo.

(Transcrição de Tereza. Relato

cedido à autora em 12.06.18)

(65)

FIGURA 12: Lara na gravação realizada em junho de 2018. Registro: Gabriel Godoy.

Lara Torres, pré-adolescente, é estudante. Chegou nervosa, com medo e, por um momento, achei que não falaria, mas mudou de ideia e seguimos juntas. Suas respostas foram cortantes, essa é a imagem que melhor traduz minha percepção. Ágil e extremamente simbólica, falou sobre sonhos, dores e necessidade de autoconsciência.

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Pra mim liberdade é você fazer

as coisas que você gosta, tipo

voar. (...) O sonho é uma forma da

gente pensar da vida o que a gente

quer... (Transcrição de Lara.

Relato cedido à autora em 12.06.18)

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Falo aqui brevemente sobre aspectos que me saltaram aos olhos dentro da metodologia criada e da entrega mútua – minha e delas. Mais à frente vou relatar cada dispositivo utilizado. No entanto, levando em consideração esse primeiro contato, as conversas foram mais amplas do que os trechos e temas pinçados nessa introdução e a verdade é que muito do que se diz sobre um encontro também pode se aplicar a outro. Engraçado como me vi diante de muitas semelhanças. Cada relato compartilhado carrega em si as múltiplas narrativas de cada uma dessas mulheres. Naturalmente não abordamos todas as possibilidades de encarceramento e liberdade subjetiva e pessoal, mas adentramos naquelas que queimam fundo as almas e peles dessas doze mulheres, as onze e eu. No decorrer da escrita destrincho melhor o que diz respeito às gravações, mas posso adiantar que esses primeiros encontros já me viraram do avesso, eu nelas e elas em mim. Na dor e no sorriso fomos espelhos de nós e de tantas. Estive na insegurança, na força, no desabrochar, no sumir de si, no se reencontrar, no amor, na tristeza, em tanto do que foi dito, mostrado, compartilhado e até mesmo nas entrelinhas do que ficou por dizer. Nas nossas diferenças e proximidades compartilhamos muitas prisões e liberdades.

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FIGURA 13: Da esquerda para a direita: Nataly Sousa; Hilda Torres, Judith Borba e Natali Assunção; Geni Maria; Nataly Barreto e Natali Assunção; Natali Assunção e Maria da Conceição Zacarias de Souza (Teta); Marisa Nóbrega; Hilda Torres, Fabrícia Macedo e Natali Assunção; Denise Maria Moura e Silva; Lara Torres e Natali Assunção; Tereza Nóbrega; Karla Gonçalves. Registro: Gabriel Godoy. Gravação realizada em junho de 2018.

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15 - Referência aos clássicos literários de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas, lançado em lançado em 1865, e Alice através do espelho, de 1872.

Mas essa é só uma parte da trajetória. As conversas com as mulheres, a escrita, a elaboração de um documentário em audiovisual e os experimentos em fotografia foram parte do processo que visava articular linguagens, pensando maneiras de documentar em cada uma, desaguando na cena que pretendia estruturar uma voz documental a partir de 11 relatos em diálogo com um texto ficcional já existente e com as minhas próprias vivências de atriz-pesquisadora.

Hora encolhemos, hora dilatamos, encontramos coelho, lagarta, rainha, chapeleiro, assim como Alice15, em uma aventura

vertiginosa de descoberta, as relações se fundem e se transformam. Diante de tanta vida compartilhada nas conversas, me vi no topo da montanha na qual deveria encontrar realidade e ficção porque, como disse há pouco, todo esse redemoinho se formou a partir do contato com o livro O fio das missangas (2004), do escritor Mia Couto, que com os já citados contos Saia almarrotada, O cesto,

Inundação e Maria Metade, me remexeu inteira. O que te sufoca?

O que te aflige? Onde sua voz cala mais fundo? Onde você guarda o seu maior grito? Sua força sobre-humana se origina em que ponto? Qual mão sustenta o teu salto e que dedo te reduz? Quando suas asas batem mais forte? O que me prende e o que me liberta?

A dramaturgia se construiu na sala de ensaio junto à direção e no tecer da narrativa havia 11 relatos, a vivência do processo e ainda quatro textos ficcionais. Na sequência, percebendo que quatro contos era material em demasia, reduziu-se para dois. Diante da força das 11 mulheres e da sua amplitude de histórias se cogitou não usar mais nenhum texto de Mia Couto, mas no decorrer das investigações, viu-se que a proposta metodológica inicial deveria ser

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mantida porque o ficcional se mostrava como uma espinha dorsal para o entrelaçar dos relatos e das vivências do próprio processo.

Não consigo precisar o quanto falo sobre as prisões e liberdades daquelas com quem conversei e o quanto falo de mim mesma porque, além das relações e paralelos instantaneamente estabelecidos, me vi em um processo que mexia fundo nas minhas próprias dores e travas. Dessa maneira, não consigo falar sobre tudo isso sem abrir meu coração. Na verdade eu não quero voltar a isso sem despejar a minha alma porque toda a questão me é muito urgente, muito íntima. Todas as palavras e olhares trocados, as parcerias estabelecidas, tudo que me doeu e ainda me dói e toda a felicidade que me inunda.

É por isso que resolvi falar com você assim, de pertinho, em um relato-câmera-olho. Por isso que estou te contando sobre elas porque quando falo delas também falo de mim e, tenho certeza, também falo sobre você. Se você quiser a gente segue junto. É importante dar as mãos. Acredito que seja importante olhar nos olhos, apurar os ouvidos e ampliar a escuta. É importante. Se você quiser pegar mais um café e sentar aqui ao lado, a gente compartilha. Aqui estou posta. Defeitos e virtudes. Como Nataly Barreto me disse em entrevista, eu também digo para você: “Eu queria dizer que eu tô com você e se liberte, vamo’viver porque... a gente é forte, a gente consegue...”.

(...) escrevo com o corpo, apaixono-me por fatos, que a princípio não são teatro, dança ou performance. E esta escrita, é uma escrita de mim mesma, um afundamento em minhas questões idiossincráticas e nas questões daqueles que comungam comigo (...). (LYRA, 2014, p. 169)

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O processo como um todo tem sido doloroso, eu admito. Muitas vezes é muito, muito difícil. Constantemente estive em vias de um curto circuito. É assustador não ter certeza sobre que caminho seguir, ver-se afundada em questões e, às vezes, a sensação é exatamente essa, de afogamento. Mas talvez esteja me adiantando. Disse que começaríamos pelo café, não foi? Sente o cheiro? Esse aroma me inebria. Já que você vai ver a minha alma, então acredito que ainda preciso te contar algumas coisas sobre mim. Até aqui já vimos um tanto. Claro que eu sei que não nos conheceremos cem por cento, inclusive isso talvez nem seja possível. Em um dos filmes que mais me atravessam, Minha vida sem mim (2003/Dir. Isabel Coixet) um dos personagens fala sobre como podemos ver apenas (...) Nossa humanidade é possível. Estamos aqui. Isso é uma boa notícia. (...) Manter viva a nossa tenra humanidade. Falar das perdas. Da dor. Dos encontros e dos acertos. Contar as histórias, sempre. Trocar experiências. Deus nos livre dos silêncios sem histórias. Deus nos aproxime dos silêncios com histórias. Da reflexão. Da comunhão. Da linguagem. (...) Nossas experiências mais profundas não podem ter se reduzido a uma lista de tarefas úteis para o funcionamento prático do nosso dia a dia. (...) Estamos exaustos. Consumidos. Mas vivos. (...) Eu acendo a lareira. Eu não tenho lareira. Mas acendo. Também trago no peito as marcas das minhas listas impossíveis. Também preciso parar. Abrir a porta. Pois trago no peito a memória de nossa humanidade possível. Apareça. Agora estou menos enlouquecida. Agora estou aqui, de verdade. (NISKIER In TREMBLAY, 2014, p. 10 - 11).

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uma porcentagem de cada pessoa, acredito que entre nós não será diferente, mas se estivermos verdadeiramente dispostos, e eu estou, vamos realmente estar um com o outre e isso é incrível.

Também preciso falar sobre mais uma motivação pessoal para a realização dessa pesquisa: acredito que preservar e perpetuar nossas heroínas, tão negligenciadas pela história, seja fundamental para nos identificarmos, nos reconhecermos e para que possamos sempre lembrar porque a memória e o reconhecimento podem ser mais amplos do que aqueles retratados e perpetuados em marcos históricos. Afinal, nossa trajetória vem sendo feita diariamente, incansavelmente, lado a lado, então propagar a memória e os feitos daquelas que nos rodeiam também se mostra urgente. É na reafirmação e no reconhecimento que percebemos nossa imensidão.

Estou fazendo isso porque acredito que é preciso ampliar e amplificar o debate, o alcance das informações. Porque é urgente acolher quem ainda não sabe o que a gente aprendeu a saber. Cada uma de nós a partir de seu lugar. Buscando enxergar, entender e acolher o lugar da outra. Sempre. (D’ÁVILA, 2019, p. 38)

Por isso é que todas as feministas, de um modo ou de outro, quando escrevem, falam de si mesmas. Aprenderam que o feminismo lhes devolve a biografia roubada. Nesse sentido, o feminismo tem como base ético-política a construção de si, que deve dar às mulheres outro lugar, no campo das decisões. (TIBURI, 2018, p. 94)

É preciso, portanto, narrarmos a nós mesmas, as nossas vivências e também a das que nos circundam. “Nesse sentido, narrar

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