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Uso do território e a questão fundiária quilombola em Sergipe

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM GEOGRAFIA

USO DO TERRITÓRIO E A QUESTÃO FUNDIÁRIA

QUILOMBOLA EM SERGIPE

DISCENTE: HERICONDIO SANTOS CONCEIÇÃO ORIENTADOR: PROF. DR. CELSO DONIZETE LOCATEL

NATAL/RN FEVEREIRO – 2019

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HERICONDIO SANTOS CONCEIÇÃO

USO DO TERRITÓRIO E A QUESTÃO FUNDIÁRIA QUILOMBOLA EM SERGIPE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como critério para obtenção do Título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Celso Donizete Locatel.

Instituição de Financiamento: CAPES

NATAL/RN FEVEREIRO – 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Conceição, Hericondio Santos.

Uso do território e a questão fundiária quilombola em Sergipe / Hericondio Santos Conceição. - 2019.

131f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia. Natal, RN, 2019.

Orientador: Prof. Dr. Celso Donizete Locatel.

1. Uso do território - Dissertação. 2. Normas -

Territorialidade - Dissertação. 3. Conflitos - Dissertação. 4. Comunidades Quilombolas - Dissertação. 5. Sergipe - Dissertação. I. Locatel, Celso Donizete. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 332.2.021(813.7)

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USO DO TERRITÓRIO E A QUESTÃO FUNDIÁRIA

QUILOMBOLA EM SERGIPE

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________ Presidente: Prof. Dr. Celso Donizete Locatel

Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da UFRN (Orientador – UFRN)

___________________________________________________ 1º Examinador: Dra. Josefa de Lisboa Santos

Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFS (Avaliador externo – UFS)

___________________________________________________ 2º Examinador: Dr. Hugo Arruda de Morais

(Avaliador interno – UFRN)

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DEDICATÓRIA

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AGRADECIMENTOS

Agradeço as chances que a vida me deu.

A vida me é generosa, pelo que me fez aprender a ser. Sou melhor do que fui ontem, antes de conhecer muitas pessoas, que não sei se conseguirei enumerar.

Minha família. Meus pais, Anailda e José Andrade, minha razão para viver. Minhas irmãs Ana Erik e Gizalva – a nossa parceria não tem paralelo. Meu sobrinho lindo e inteligente Antônio Felipe, titio te ama muito. Minha amada vozinha Pina, minha Tia Cida, e minha bisavó Nice (in memoriam), agradeço por me amarem exatamente como eu sou. Quero saber representar por todos vocês.

Meu orientador: Prof. Dr. Celso Donizete Locatel. Não apenas me abriu as portas, me ajudou a enxergar a importância da vida acadêmica, de que aprender é sempre o começo de tudo e o que vem é consequência do que se apreende. Agradeço o seu companheirismo acadêmico, a sua disponibilidade em me ensinar intelectualmente, na mesma medida que me ajudou a seguir até aqui, quando eu não acreditava que conseguiria.

Os meus amigos, inumeráveis, que tanto me deram força para continuar. Meus amigos todos têm nome forte no meu coração, na minha memória. Não estou pronto para adjetivá-los, quero tê-los para sempre ao meu lado. Sem vocês teria sido impossível. Nesse sentido, sou infinitamente grato a Morgana e a Rafaela, sem vocês não teria conseguido, aos meus novos amores, Gilberto, Juliana e Thiago Senes, vocês foram meu suporte por toda essa jornada.

Aos meus professores e amigos. Pelo que foram e são na minha vida. À professora Josefa Lisboa, Marleide Sérgio... são muitos da vida inteira e do DGEI/UFS/Itabaiana, eu os agradeço pelo que me ajudaram e me ajudam a ser.

Agradeço aos amigos da UFRN, Welton, Jordânia, Leonardo, Inés, Jaqueline, Andreza, Thiara e Nayara, por todos os momentos vividos, eu amo vocês. Aos professores do PPGe, aos funcionários do PPGe, à Capes, à minha psicóloga Neila, por ter me ajudado a concluir, a essa Universidade, que me acolheu e me cede tanto aprendizado!

Ao INCRA/SE, aos povos quilombolas, envoltos na sua luta, que também é minha, eu os agradeço, ao tempo que me esforçarei para lutar junto.

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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

LISTA DE MAPAS

MAPA 1 - Localização de Sergipe ... 30

MAPA 2 - Brasil: principais quilombos e revoltas com participação de povos de matriz africana, séculos XVI-XIX ... 48

MAPA 3 - Comunidades Quilombolas Tituladas em Sergipe ... Erro! Indicador não definido. MAPA 4 - Comunidades Quilombolas de Sergipe com RTID concluídos ... Erro! Indicador não definido. MAPA 5 - Localização da região da Cotinguiba, com seus principais rios e núcleos urbanos no século XIX. ... 85

MAPA 6 - Localização do Município Barra dos Coqueiros e da Comunidade Quilombola de Pontal da Barra ... 92

MAPA 7 - Localização dos Municípios Brejo Grande e Pacatuba e da Comunidade Quilombola Brejão dos Negros ... 101

LISTA DE FIGURAS Figura 1- Organograma de categorias de análise geográficas. ... 20

Figura 2 - Rio Japaratuba, 2016... 93

Figura 3 Área cercada pela Construtora Imperial para impedir o acesso ao rio pela Comunidade Pontal da Barra ... 98

Figura 4 - Moradia na Comunidade Quilombola da Resina. ... 104

Figura 5 - Seu Adalto, mestre do Maracatu. ... 105

Figura 6 - Grupo de Maracatu. ... 105

Figura 7 - Cotidiano de moradora na coleta de junco na comunidade Brejão dos Negros ... 111

Figura 8 - Território Quilombola de Brejão dos Negros: Destruição de mangues para a construção de viveiros de camarão em Guaratuba ... 112

Figura 9 - Localização da Comunidade Quilombola Maloca ... 115

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - Brasil: normas referentes aos territórios quilombolas segundo os estados da federação, 1991-2014... 61 QUADRO 2 - Brasil: instrumentos normativos criados para Regulamentação do Artigo 68 do ADCT, 2003 ... 66 QUADRO 3 - INCRA: etapas do processo de regularização fundiária de territórios quilombolas, 2009 ... 71 QUADRO 4 - Ocorrências de quilombos e revoltas escravas em Sergipe: 1824 - 1888 88

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Sergipe: relação do tamanho das terras quilombolas com o Módulo Fiscal . 81 Tabela 2 - Número de engenhos em Sergipe, 1612 - 1886... 85 Tabela 3 - População escrava e livre em Sergipe ... 86

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LISTA DE SIGLAS

ABA (Associação Brasileira de Antropologia)

ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade)

AGU (Advocacia Geral da União)

ANC (Assembleia Nacional Constituinte) CF (Constituição Federal)

CNPIR (Conselho Nacional da Promoção da Igualdade Racial) CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito)

CPT (Comissão Pastoral da Terra) CRILIBER (Criança e Liberdade) DEM (Democratas)

EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária)

FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) FCP (Fundação Cultural Palmares)

FUNAI (Fundação Nacional do Índio)

IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

ITERMA (Instituto de Colonização e Terras do Maranhão) ITERPA (Instituto de Terras do Pará)

ITESP (Instituto de Terras do Estado de São Paulo) MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) MinC (Ministério da Cultura)

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MNU (Movimento Negro Unificado) MPF (Ministério Público Federal)

OIT (Organização Internacional do Trabalho) OMS (Organização Mundial da Saúde) ONG (Organização não Governamental) ONU (Nações Unidas)

PEC (Proposta de Emenda Constitucional) PFE (Procuradoria Federal Especializada) PFL (Partido da Frente Liberal)

PRONESE (Empresa de Desenvolvimento Sustentável do Estado de Sergipe) PT (Partido dos Trabalhadores)

RTIDs (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação)

SEPLATEC/Sergipe (Secretaria de Estado de Planejamento de Sergipe) SEPPIR (Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) STF (Supremo Tribunal Federal)

TDA (Títulos da Dívida Agrária)

UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura)

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Sumário

1. INTRODUÇÃO: marcos teóricos e metodológicos da pesquisa ... 15

1.1 Delimitação Teórica ... 17

1.2 Problematizando ... 26

1.3 Definindo um Caminho Metodológico ... 27

2. A FORÇA DE TRABALHO ESCRAVA NO BRASIL COLONIAL E O SURGIMENTO DOS QUILOMBOS ... 32

2.1 Tráfico Negreiro e Acumulação Primitiva no Brasil ... 32

2.2 Escravidão, Abolição e Negação do Acesso à Terra aos Povos Remanescentes de Quilombos ... 37

3. O SISTEMA NORMATIVO E A REGULARIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS ... 51

3.1 Movimentos sociais e inclusão de direitos da população afrodescendente na Constituição ... 51

3.2 DOS MARCOS NORMATIVOS AOS TERRITITÓRIOS QUILOMBOLAS EM SERGIPE ... 77

4. A PRESENÇA NEGRA NA FORMAÇÃO HISTÓRICA DE SERGIPE E A TERRITORIALIDADE QUILOMBOLA NO PERÍODO ATUAL ... 84

4.1 Formação Econômica e Mão de Obra Escrava em Sergipe ... 84

4.2 A Resistência Negra em Sergipe e o Surgimento de Quilombos ... 87

4.3 A Territorialidade de Comunidades Quilombolas, Conflitos e Resistência ... 90

4.3.1 Comunidade Quilombola Pontal da Barra ... 91

4.3.2 Comunidade Quilombola Brejão dos Negros... 100

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 123

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DAS UTOPIAS

“Se as coisas são inatingíveis... ora!

Não é motivo para não querê-las...

Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas!”

MARIO QUINTANA

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RESUMO

O Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, de 1988, e os Artigos 215 e 216 da Constituição Federal, consistem nas primeiras normas voltadas para a garantia dos direitos étnicos e territoriais das comunidades quilombolas. Para sua efetivação, tais instrumentos vêm sendo regulamentados por decretos mais detalhados e específicos, que definem o papel dos órgãos estatais no processo de titulação dos territórios quilombolas, o que é objeto de disputas políticas envolvendo interesses contrários aos direitos das comunidades. A territorialização da Política de Regularização dos Territórios Quilombolas em Sergipe tem como característica o desencadeamento/acirramento de uma série de conflitos protagonizados por diversos setores da sociedade como, por exemplo, o Estado, madeireiras, construtoras, mineradoras, fazendeiros, contra as comunidades quilombolas. Essa divergência de interesses vem dificultando a efetivação do direito ao uso do território pelas comunidades quilombolas, por meio de estratégias que desencadeiam mais conflitos. Para o desenvolvimento dessa pesquisa, adotamos uma metodologia em que partimos das comunidades quilombolas autodeclaradas e certificadas pela Fundação Palmares, ao mesmo tempo trabalhamos com comunidades que tiveram o seu processo de regularização iniciado pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) a partir dos RTIDs (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação). Os RTIDs nos dão uma caracterização geral das comunidades, como número de famílias, município de localização, área destinada à comunidade dentre outras informações. A partir do número de famílias e da área destina, pudemos estabelecer um paralelo com a política de Reforma Agrária. A partir dessa associação entre a Política de Regularização dos Territórios Quilombolas e a Política de Reforma Agrária, identificamos que as terras disponibilizadas para comunidades quilombolas em Sergipe estão muito abaixo de um módulo fiscal, dificultando a reprodução digna dessas comunidades. Em tempo, essa pesquisa permitiu reconhecer os conflitos e as territorialidades, marcadas pelo sentimento de grupo e de identidade entre os quilombolas. Essa pesquisa está baseada na teoria do espaço geográfico enquanto totalidade, e sua operacionalização toma como ponto de partida a ideia de que o uso do território é regido pelo sistema normativo, o qual se origina do atual sistema técnico do território enquanto norma.

Palavras-chave: Uso do território; Normas; Conflitos; Comunidades Quilombolas; Sergipe.

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RESUMEN

El artículo 68 del Acto de las Disposiciones Constitucionales Transitorias de 1988 y los Artículos 215 y 216 de la Constitución Federal consisten en las primeras normas dirigidas a la garantía de los derechos étnicos y territoriales de las comunidades quilombolas. Para su efectividad, tales instrumentos vienen siendo regulados por decretos más detallados y específicos, que definen el papel de los órganos estatales en el proceso de titulación de los territorios quilombolas, lo que es objeto de disputas políticas que involucran intereses contrarios a los derechos de las comunidades. La territorialización de la Política de Regularización de los Territorios Quilombolas en Sergipe tiene como característica el desencadenamiento / acrecimiento de una serie de conflictos protagonizados por diversos sectores de la sociedad como, por ejemplo, el Estado, madereras, constructoras, mineras, hacendados, contra las comunidades quilombolas. Esta divergencia de intereses viene dificultando la efectividad del derecho al uso del territorio por las comunidades quilombolas, a través de estrategias que desencadenan más conflictos. Para el desarrollo de esta investigación, adoptamos una metodología en la que partimos de las comunidades quilombolas autodeclaradas y certificadas por la Fundación Palmares, al mismo tiempo trabajamos con comunidades que tuvieron su proceso de regularización iniciado por el INCRA (Instituto Nacional de Colonización y Reforma Agraria) RTID (Informe Técnico de Identificación y Delimitación). Los RTIDs nos dan una caracterización general de las comunidades, como número de familias, municipio de localización, área destinada a la comunidad entre otras informaciones. A partir del número de familias y del área destina, pudimos establecer un paralelo con la política de Reforma Agraria. A partir de esa asociación entre la Política de Regularización de los Territorios Quilombolas y la Política de Reforma Agraria, identificamos que las tierras disponibles para comunidades quilombolas en Sergipe están muy por debajo de un módulo fiscal, dificultando la reproducción digna de esas comunidades. En tiempo, esa investigación permitió reconocer los conflictos y las territorialidades, marcadas por el sentimiento de grupo y de identidad entre los quilombolas. Esta investigación está basada en la teoría del espacio geográfico como totalidad, y su operacionalización toma como punto de partida la idea de que el uso del territorio es regido por el sistema normativo, el cual se origina del actual sistema técnico del territorio como norma.

Palabras clave: Uso del territorio; normas; conflictos; Comunidades Quilombolas; Sergipe.

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ORAÇÃO DA CAUSA NEGRA

Ó Deus sempre negro e até branco, às vezes Deus de todas as cores

e de nenhuma cor, proximidade fraterna em Jesus de Nazaré e sempre

mistério insondável: Concede ao Povo negro, desta nossa Afroamérica e

da África Mãe e de todo o mundo, a perseverante lucidez de seus

ancestrais, matriarcas e patriarcas, e a teimosa resistência de seus

lutadores e mártires, para conquistarem plenamente seus direitos como

pessoas e como Povo; e concede-nos a todos – de todas as cores – uma

infinita negra solidariedade. Axé, Amém, Aleluia!

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15 1. INTRODUÇÃO: marcos teóricos e metodológicos da pesquisa

A realidade fundiária brasileira insiste em negar a validade do conjunto de dispositivos legais asseguradores de direitos aos quilombolas e faz eclodir no campo uma série de conflitos envolvendo quilombolas, indígenas, posseiros e grandes proprietários, o que, de acordo com Cruz (2013), se trata de um conjunto de agentes e forças sociais, historicamente marginalizadas no espaço público, que se torna protagonista na luta por direitos e justiça e na defesa da sua própria reprodução social. Como sugere a feliz expressão de Eder Sader (1988) “novos personagens entram em cena”. Cruz (2003, p. 3-4), observa que:

Muitos desses ‘novos’ personagens, agora protagonistas, eram tidos como forças sociais que pertenciam ao passado e que, inevitavelmente, seriam incorporados ou, simplesmente, desapareceriam no processo de modernização capitalista que a região tem vivenciado nos últimos cinquenta anos. Contrariando esse diagnóstico, camponeses, indígenas, afrodescendentes, longe de serem personagens anacrônicos, tornam-se protagonistas da invenção e da construção de outros possíveis futuros.

Esse protagonismo, que tem levado ao reconhecimento do direito de posse da terra pelos grupos quilombolas, a partir da conquista de direitos constitucionais (Constituição de 1988), vem alterando profundamente as relações de poder na escala local e microrregional, uma vez que a elite concentradora de terras vê seus interesses ameaçados, pela efetivação de garantias de direitos sociais e econômicos aos povos quilombolas. De acordo com Barbosa (2013, p. 12),

Pode-se afirmar que muitos desses conflitos por terra estão relacionados, sobretudo, com uma política de “modernização do campo” e de implementação de “grandes projetos” e “empreendimentos” atrelados a uma política de desenvolvimento hegemônico capitalista que está se estabelecendo sobre territórios tradicionais. Trata-se de projetos amplamente antagônicos às formas de vida dessas populações, implicando na desestruturação dessas comunidades à medida que ocorre a usurpação de seus territórios tradicionais ou afeta a continuidade dos seus modos de vida. Outro fator relevante que o alto índice de conflitos no campo envolvendo povos e comunidades tradicionais certamente também está relacionado ao fato de muitas dessas comunidades estarem politicamente organizadas reivindicando direitos territoriais que implicam em uma política de desmercantilização e de bloqueio do mercado de terras, ou seja, vai

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16 diretamente contra os interesses de ruralistas detentores do controle da riqueza e do poder.

Considerando que o modelo agrário-agrícola brasileiro é um modelo concentrador de riqueza e de poder, sobretudo, por uma alta concentração da propriedade privada da terra que, ainda hoje, se consolida por meio de processos de exploração, expropriação, conflitos e violência, torna-se de fundamental importância incorporar o debate da questão dos povos e comunidades tradicionais ao debate da questão agrária. Essas comunidades e suas territorialidades não podem ser negligenciadas nas reflexões teóricas e políticas sobre a questão agrária brasileira.

A compreensão desse quadro de acirramento dos conflitos e de conquista de direitos permite entender como a Política de Regularização do uso das terras quilombolas está sendo operacionalizada, quais demandas foram inseridas na sua formulação e, por fim, no impacto causado com sua processo de territorialização/efetivação, em especial sobre a estrutura fundiária e a qualidade de vida dos quilombolas no estado de Sergipe.

O estudo das comunidades quilombolas em Sergipe se apresenta como uma possibilidade de descortinar a realidade de uma política pública em termos dos seus resultados e suas implicações na qualidade de vida dos seus beneficiários. Por isto, há uma preocupação em alcançar os seus aspectos subjetivos e objetivos, a realidade observada e a realidade compreendida, o quantitativo e o qualitativo, envolvendo a percepção daqueles que dela fazem parte. Por entender que nosso caminho é a discussão do reconhecimento dos territórios quilombolas, com vistas a abarcar a compreensão da totalidade, concebemos o debate sobre os diferentes usos do território, como o faz Milton Santos (2012), para perscrutar o processo de conquista dos povos quilombolas no estado de Sergipe.

A ocorrência de formação de quilombos em Sergipe, data desde o século XVII. Sua identificação/localização, era marcada por forte repressão por parte do Estado, que ordenava liquidar os quilombos em Sergipe e destruir os mocambos de negros fugidos. Durante o século XVII as regiões do Rio Real, Baixo São Francisco e as matas de Itabaiana, caracterizavam-se por possuir a maior concentração de quilombos em Sergipe, no entanto, com a chegada do século XIX, há um movimento de maiores ocorrências de aquilombamento e um deslocamento para a região canavieira do Cotinguiba, na Zona da Mata.

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17 1.1 Delimitação Teórica

O caminho que nos levará a entender a territorialização das comunidades quilombolas em Sergipe, nos faz percorrer o pensamento de Milton Santos, em suas diferentes obras. Para esse autor, a noção de totalidade é um elemento fundamental para o conhecimento e análise da realidade (SANTOS, 2012). Logo, essa perspectiva defende a ideia de que todas as coisas presentes no sistema-mundo formam um todo, assim, cada coisa nada mais é do que parte desse todo, entretanto, a simples soma de todas as partes não compreende a totalidade, na verdade é a totalidade que explica as partes, ou seja, o todo é maior que a simples soma das partes. Partimos da ideia de uma totalidade diferenciada, em que a totalidade do Momento I difere da totalidade do Momento II, mas isso não significa dizer que estamos falando de momentos diferentes, mas sim de uma sociedade em movimento.

O processo histórico é um processo de complexificação. Desse modo, a totalidade se vai fazendo mais densa, mais complexa. Mas o universo não é desordenado. Daí a necessidade de buscar reconhecer a ordem no universo, este podendo ser visto como um todo estruturado do qual nos incumbe descobrir suas leis e estruturas internas, conforme ensinado por K. Kosik (1967), em sua Dialética do Concreto. A ordem buscada não é aquela com a qual organizo as coisas no meu espírito, mas a ordem que as coisas, elas próprias, têm. A isso se chama de totalidade concreta. (SANTOS, 2012, p.116)

Entendendo o espaço como um conjunto indissociável de sistema de ações e sistema de objetos, este nos possibilita compreender a totalidade presente nas partes, a partir das categorias - forma, função, estrutura e processo, propostas por Milton Santos (2014), bem como levando em consideração a importância da unicidade técnica para o estudo de uma globalização perversa, que se sustenta na criação de objetos desenvolvidos por uma intencionalidade dos agentes hegemônicos, como estratégia de garantir a efetivação de seus interesses no espaço.

A ciência, a tecnologia e a informação estão na base mesma de todas as formas de utilização e funcionamento do espaço, da mesma forma que participam da criação de novos processos vitais [...]. Os espaços,

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18 assim requalificados, atendem sobretudo a interesses dos atores hegemônicos da economia e da sociedade, e desse modo são incorporados plenamente as correntes de globalização. (SANTOS, 2012, p. 48).

Em sua obra Espaço e Método, Milton Santos (2014) propõe as quatro macros categorias de análise do espaço. Sendo elas estrutura, processo, função e forma. Tais categorias são indispensáveis para tornar inteligível a espacialidade humana como parte integrante das complexas e mutáveis relações entre existência e reprodução humana. Ao mesmo tempo que são indissociáveis entre si, interpenetrando-se dialeticamente. Dessa forma, num estudo do espaço geográfico, se faz necessário levar em consideração as quatros categorias para não fazermos uma análise incompleta e desprovida de sentido, como afirma Corrêa (2009).

Logo, a interpretação de uma realidade espacial ou de sua evolução só se torna possível mediante uma análise que combine as quatro categorias analíticas, porquanto seu relacionamento é não apenas funcional, mas também estrutural. Santos (2014) afirma, que apenas o uso simultâneo das quatro categorias nos permite apreender a totalidade em seu movimento, pois nenhuma dessas categorias existe separadamente. O movimento da totalidade social, provoca mudanças nas categorias sociais, alterando dessa forma seu equilíbrio e promovendo mudanças nos processos, exigindo novas funções e atribuindo diferentes valores às formas geográficas, por isso, para Milton Santos a espacialidade humana se apresenta como reflexo, meio e condição social.

Para expressá-lo em termos mais concretos, sempre que a sociedade (a totalidade social) sofre uma mudança, as formas ou objetos geográficos (tanto os novos como os velhos) assumem novas funções; a totalidade da mutação cria nova organização espacial. Em qualquer ponto do tempo, o modo de funcionamento da estrutura social atribui determinados valores às formas. Todavia, se examinarmos apenas uma fatia de tempo homogêneo, careceremos de um contexto em que possamos basear nossas observações, uma vez que a estrutura varia conforme os diferentes períodos históricos (SANTOS, 2014, p.48)

O autor define as quatro categorias, entendendo forma, como o aspecto visível de uma coisa, as criações humanas, receptáculo ou recipiente, podendo ser materiais ou não, por meio das quais as diversas atividades se realizam. Pode ser um prédio, uma rua, um bairro, uma área agrícola, uma cidade. Função, seria a atividade esperada de uma forma,

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19 pessoa, instituição ou coisa. Redefinida a cada momento, que permite a existência e a reprodução social. Estrutura, por sua vez, implica a interrelação de todas as partes de um todo; o modo de organização ou construção. A própria sociedade com suas características econômicas, sociais, políticas e culturais. Processo é definido como uma ação contínua, a partir da qual a estrutura se movimenta, alterando-se as suas características. Desenvolvendo-se em direção a um resultado qualquer, implicando conceitos de tempo e mudança.

Acerca das definições das categorias, Santos (2014) afirma que elas vêm sendo usadas de maneiras muito diferentes pelos intérpretes, dando diferentes sentidos e nuances. Ao mesmo tempo, elucida que seu objetivo era expressar o âmago dos significados das categorias, mas que é passível de ser ampliado ou adaptado para o exame de um processo específico num dado contexto espacial. Assim, adotamos as proposições de Milton Santos para a analisar o processo de regularização dos territórios quilombolas em Sergipe.

Nesse sentido, entendendo forma como sendo o aspecto visível de uma coisa, podemos utilizar tais categorias para entender a formação territorial brasileira e a partir dela entender a situação das populações quilombolas no país e em Sergipe. Como exemplo, qual é a forma da estrutura fundiária brasileira? Qual função exerce a grande empresa agroexportadora, a terra em sesmaria, em grande fazenda? Na contemporaneidade, a ideia também se pode aplicar para entender, de acordo com a Constituição Federal, no seu Art. 186, qual a função social da terra, que seria I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Assim, se pode questionar qual função exercem os territórios quilombolas conquistados? eles têm como objetivo o desenvolvimento social e econômico das comunidades quilombolas?

A estrutura, nesse contexto também compreende a interrelação entre as partes de um todo, o modo de organização, o arcabouço jurídico que regulamenta a regularização dos territórios quilombolas, surge de um movimento social que se dá no âmbito da sociedade, com diferentes sujeitos, com diferentes interesses, que ao mesmo tempo se assenta numa organização social pré-estabelecida; e a categoria processo seria a ação contínua, desenvolvendo-se em direção a um fim determinado, implicando no

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20 entendimento das sucessões e coexistências, nesse sentido, poderíamos pensar no processo de regularização dos territórios quilombolas.

Figura 1- Organograma de categorias de análise geográficas.

Organização própria

Podemos perceber que o processo é uma categoria fundamental para o estudo do espaço geográfico, pois, ele é o responsável pelo movimento da estrutura e das novas funções atribuídas às formas, como afirma Santos (2014)

Conforme ficou implícito, o tempo (processo) é uma propriedade fundamental na relação entre forma, função e estrutura, pois é ele que indica o movimento do passado ao presente. Cada forma sobre a paisagem é criada como resposta a certas necessidades ou funções do presente. O tempo vai passando, mas a forma continua a existir. Consequentemente, o passado técnico da forma é uma realidade a ser levada em consideração quando se tenta analisar o espaço. As mudanças estruturais não podem recriar todas as formas, quando a sociedade está passando por mudanças estruturais, decresce com o tempo, em decorrência da imobilidade inerente que por vezes caracteriza a forma preexistente. Por isso, um certo grau de adaptação à paisagem preexistente deve prevalecer em cada período. (SANTOS, 2014, p.52)

No entanto, o acesso à terra, via política de regularização das terras quilombolas, tem sido um processo marcado por lutas, violência e poucas conquistas, uma vez que o número de famílias que ainda não foram contempladas pela política é superior ao número

CATEGORIAS

GEOGRÁFICAS em

Milton Santos

Estrutura

Modo de organização social

Processo

Regularização dos territórios quilombolas

Função

Uso do território pelas comunidades quilombolas

Uso do território por fazendeiros, mineradoras, construtoras..

Forma

Comunidades quilombolas Fazendas, construtoras, mineradoras.

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21 dos que alcançaram este direito. Ao mesmo tempo, a conquista da terra pelas famílias, nem sempre significa a conquista da vida digna com qualidade. É preciso que a política de regularização das terras quilombolas possa extrapolar os limites do acesso à terra e prever o acesso às condições de produzir, gerar renda e garantir os demais direitos como saúde, educação e saneamento básico, considerando ainda a realidade ambiental em que estão inseridos, visando o pleno desenvolvimento social. Essa compreensão impõe o uso da categoria de análise geográfica território. A leitura sobre o território quilombola é facilitado quando se apreende a formação do espaço geográfico brasileiro adotando-se as categorias miltonianas como o faremos. Mas esse caminho requer o olhar para a totalidade, pois:

A totalidade do real, implicando um movimento (processo) comum de estrutura, função e forma, é uma totalidade concreta e dialética. Seu estudo requer o conhecimento das estruturas componentes que o reproduzem, quer simultaneamente, quer separadamente. Tais estruturas, como a própria totalidade, não são congeladas; pelo contrário, elas mudam com o tempo. Sua evolução é qualitativa e quantitativamente diferente para cada uma delas e também para cada um dos seus componentes. Trata-se de uma evolução diacrônica onde cada variável ou elemento passa por uma mudança de valor relativo em cada mutação. A mudança de valor é relativa no sentido de que só pode ser apreendida como relacionada com o total. Assim é que os lugares – combinação localizada de variáveis sociais – mudam também de valor e de papel à medida que a História se desenvolve. (SANTOS, 2014, p.55).

A mudança de valor do espaço se dá no processo de sua apropriação e na sua transformação em território.

O fim da escravidão em 1888, oficializado pela Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, representou uma mudança na estrutura da sociedade, no que se refere ao uso de mão-de-obra escrava, ao mesmo tempo em que provocou novas funções às formas. Nesse sentido, entendendo as comunidades quilombolas como uma forma geográfica, podemos afirmar que a mesma passou por uma revalorização a partir da Constituição Federal de 1988, que prevê a legitimidade jurídica de suas terras. Pois, em qualquer ponto do tempo, o modo de funcionamento da estrutura social atribui determinados valores às formas. Desse modo, Santos (2014) nos chama a atenção, para não analisarmos apenas uma fatia do tempo homogêneo, procurando basear nossas observações a partir de um contexto, uma vez que a estrutura varia conforme diferentes períodos históricos por meio dos processos sociais.

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22 Ao passo que a estrutura social se movimenta por meio de processos, os quilombos, a partir da política de regularização de seus territórios, passam a ter novos significados e conteúdo específico que lhes confere uma unicidade cultural, política e social. Os territórios quilombolas passam a ser entendidos como norma, uma vez que sua especificidade é fundamental para a aplicação das normas verticais, que acabam por normatizar o território, dando a ele a condição de território normado.

A partir do momento em que o processo de regularização dos territórios quilombolas se estabelece, temos a refuncionalização/revalorização de formas geográficas. As áreas que desempenhavam uma dada função na sociedade sob o controle de determinados agentes sociais como fazendeiros, construtoras, mineradoras e demais agentes do sistema capitalista, quando reconhecidas como pertencentes às comunidades, passam a assumir novas funções, ao tempo que a totalidade da mutação cria uma nova organização espacial, e a terra conquistada passa a desempenhar uma função de acordo com as especificidades e necessidades das comunidades.

Logo, os quilombos antes entendidos como frações do território, usados como lugar de resistência negra, como fenômeno histórico específico que se estruturava no seio do sistema colonial escravista e o combatia, passa, agora, a ser entendido como quilombo de direito, conforme o artigo 68 da Constituição Federal de 1988, em que garante a sítios detentores de reminiscência históricas dos antigos quilombos, atestam sua existência e legitimidade jurídica e de pertença cultural remanescente.

Por entender que o conceito de território compreende uma espécie de catalisador das energias e das estratégias emancipatórias do movimento quilombola, um marcador discursivo central na retórica daqueles que, historicamente, foram subalternizados e hoje se afirmam como novos protagonistas, considerar o território, é considerar os sujeitos que o constitui, a partir de uma análise do território enquanto totalidade. De acordo com Porto-Gonçalves (2002ª, p.230)

O território não é simplesmente uma substância que contém recursos naturais e uma população e assim, estão dados os elementos para constituir um Estado. O território é uma categoria espessa que pressupõe um espaço geográfico que é apropriado e esse processo de apropriação –territorialização– enseja identidades –territorialidades– que estão inscritas em processos sendo, portanto, mutáveis, materializando em cada momento uma determinada ordem, uma determinada configuração territorial, uma topologia social.

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23 De acordo com Santos (2008), é o uso do território que faz dele objeto de análise social, e não o território em si mesmo. Dessa maneira, o território é formas, enquanto que o território usado é objetos e ações, logo

O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e dos sistemas de coisas superpostas; o território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. O território em si não é uma categoria de análise nas ciências históricas, como a geografia. É o território usado que é uma categoria de análise. (SANTOS, 2007, p.14)

Outro conceito importante para análise da dinâmica territorial é o de territorialidade, pois este compreende o sentimento de pertencimento dos povos tradicionais, construído dentro de um processo histórico, os diferentes modos de vida e de expressão cultural. Valorizando, dessa forma, o modo pelo qual é concebido a terra, pois

Os novos movimentos lutam não só contra a desigualdade – pela redistribuição de recursos materiais, a terra – mas também pelo reconhecimento das diferenças culturais, dos diferentes modos de vida que se expressam em suas diferentes territorialidades. Não se trata simplesmente de lutas fundiárias por redistribuição de terra, está em pauta também o reconhecimento de elementos étnicos, culturais e de afirmação identitária das comunidades tradicionais, apontando para a necessidade do reconhecimento jurídico de seus territórios e territorialidades. É nesse processo que ocorre um deslocamento não apenas semântico (da terra ao território), mas um deslocamento epistêmico, político e jurídico (PORTO-GONÇALVES; ALENTEJANO, 2011, p.35).

Para entendermos o processo de reconhecimento da territorialidade quilombola, é essencial fazer um estudo sobre as normas que o envolve, pois, os sistemas normativos configuram o território. Dessa maneira, as categorias território como norma e território normado são centrais para o estudo do objeto proposto, no qual se faz necessário a análise das políticas que o normatiza. Nesse sentido, a Constituição de 1988 e a Convenção 169, são os elementos principais do marco normativo para a demarcação do território quilombola que, segundo Arguedas (2015, p.48),

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24 Fruto das lutas, os territórios ocupados por comunidades quilombolas são hoje formalmente reconhecidos pelo Estado, que tem o dever de demarcá-los e titulá-los. No texto constitucional de 1988 se incluiu, no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o direito à propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas. Somado a isso, os Artigos 215 e 216 reconhecem essas áreas como parte do patrimônio cultural do país. E, assim como foi resultado das lutas dos movimentos sociais, a instituição do Artigo 68, por sua vez, tem propiciado e estimulado a mobilização de muitas comunidades em suas lutas pelo reconhecimento dos territórios, as quais buscam sua aplicação efetiva.

As normatizações incidentes sobre o território acabam por conformar o estabelecimento de um novo uso territorial. No território quilombola, em particular, contribui para a uma reconfiguração no campo brasileiro, colocando os remanescentes de quilombos como protagonistas na luta pela terra, mas agora com base no marco legal, que viabilizam a concretização de direitos.

A territorialidade é o principal elemento para a compreensão do território como norma, que no caso do território quilombola, a territorialidade assume um papel decisivo no processo de demarcação, uma vez que se faz um estudo antropológico para identificar os elementos formadores da territorialidade, logo, esses elementos permitem entender o território por direito, a partir dessas singularidades que só existe nesses locais específicos.

Essas comunidades e suas territorialidades não podem ser negligenciadas nas reflexões teóricas e políticas sobre a questão agrária brasileira. Sobre esse aspecto, Moreira (2001, p. 3) mostra que existe uma seletividade do/no espaço, pois “a seletividade é transformada numa prática de ocupação especializada e fragmentária do espaço, orientada pela e para a divisão territorial do trabalho e o aumento contínuo da produtividade”. Não é à toa que, em Sergipe, há investimentos de uma construtora com o projeto de construção de um resort em terras quilombolas, esses investimentos só se dão por conta da localização, pois grande parte das terras quilombolas se encontram no litoral sergipano.

Ao mesmo tempo, nasce, a partir da seletividade, outra categoria defendida por Moreira (2001), que é a Tensão, que surge a partir da oposição criada entre a seletividade e a localização, o que ratifica a necessidade de leitura da luta dos povos quilombolas como uma luta socioterritorial, pois “O território é o lugar em que se desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde

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25 a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações de sua existência” (SANTOS, p.13, 2007).

Segundo Fernandes (2013) conflito é o estado entre forças opostas, onde grupos sujeitados, com interesses diferentes, irão utilizar da força de suas ideologias para derrotar as forças hegemônicas, por meio da manifestação, da luta popular, do diálogo, em que estão sujeitos a vitória, a derrota ou o empate de ambas as partes. Entretanto, a conflitualidade nunca acaba, por mais que o conflito seja amenizado, ela nunca tem fim, uma vez que ela é produzida e alimentada dia a dia pela atuação desses diferentes agentes e seus interesses pelo uso territorial. Nesse sentido, é importante entender os agentes e sujeitos dos conflitos. Por sua vez, isso requer entender a atuação do Estado sobre a questão agrária no Brasil.

A existência do Estado, aparece como órgão responsável por trazer a ordem à sociedade, amenizando os conflitos entre as classes por meio da ideia de neutralidade. No entanto, o Estado está a serviço da classe dominante, uma vez que corrobora com seus interesses, pois

O Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida (ENGELS, 2009, p.178, apud OLIVEIRA, 2011, p.34).

Assim, a história brasileira é marcada por diversas ações de governos que beneficiam a classe dominante. Analisaremos as ações do Estado e de grupos políticos no que se refere à política de regularização dos territórios quilombolas, que através do poder judiciário, das políticas públicas, das ações normativas e da conflitualidade acabaram, em alguns momentos, dificultando e muitas vezes questionando o direito ao uso do território pelas comunidades quilombolas.

Corroboram com essa perspectiva Muritiba e Alencar (2007), ao comentarem que na fase de modernização do campo o latifundiário se organizou e se adaptou à nova conjuntura, motivando a modernização apoiada pelo Estado. A ideia de que a estrutura agrária concentrada seria um obstáculo para a continuidade do crescimento econômico foi descartada e a reforma agrária foi, mais uma vez, adiada. Aos pobres do campo restavam duas opções: migrar para as cidades e servir de mão-de-obra barata ou para regiões mais longínquas, induzidos pelas falsas promessas da Transamazônica (SOUSA, 2009, p. 58).

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26

Segundo Oliveira (2011), para garantir o funcionamento do Estado, onde o mesmo impõe suas normas, mantém sua hegemonia e fazer com que a sociedade o adotasse, foi necessário a classe dominante desenvolver mecanismos em que o Estado pudesse ser visto como um poder acima de todos, um poder á parte da sociedade, criando dessa forma a falsa ideia de neutralidade, por meio de poder de coação com as forças repressivas e a estrutura jurídica, para poder implementar o discurso de igualdade e liberdade. Essas estratégias, serviram para o Estado amenizar os conflitos gerados em decorrência da desigualdade que crescia a parir do desenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido, é por meio da mediação desses conflitos, que Estado desempenha seu poder e sua função, pois ao se colocar acima dessas classes, ele esconde o viés ideológico da sua intervenção, e concretiza a manutenção do poder da classe dominante.

1.2 Problematizando

A análise empírica foi circunscrita ao estado de Sergipe, situado na região Nordeste do país, que possui quarenta e quatro comunidades quilombolas autodeclaradas, sendo que desse total, vinte e oito são reconhecidas e certificadas pela Fundação Palmares e apenas quatorze têm o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) concluídos, mas todas ainda inseridas no longo processo da busca pela titulação.

É evidente a importância e relevância da política de regularização dos territórios quilombolas para milhares de famílias que aguardam, em situações de extrema pobreza e à margem da sociedade, um “pedaço de chão” para plantar e colher no que é “seu”. Se por um lado os quilombolas nos chamam atenção pela luta e persistência, por outro nos instigam a responder às seguintes questões: Quem são e como vivem os quilombolas beneficiários em potencial desta política pública em Sergipe? Quais as estratégias de reprodução utilizadas para a permanência na luta pela terra? Além disso, o que se pode afirmar com relação à demanda por terra; quantos, de fato, aguardam na interminável fila pela titulação? E as famílias que já conquistaram a terra, o acesso à terra significa o fim ou a continuidade da luta dos quilombolas? Qual o papel do Estado enquanto formulador e regulador dessa política pública e quais os rebatimentos territoriais dessa política?

Todos estes questionamentos nos levam a uma análise profunda da política de regularização dos territórios quilombolas. Na formulação de uma política pública,

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27 subentende-se que o seu objetivo primordial seja a promoção ou o aprimoramento do bem-estar e da qualidade de vida almejada pelas famílias rurais, dentro dos objetivos, da meta e da atuação preestabelecidos.

Neste contexto, o objetivo geral da pesquisa é analisar a Política de Regularização dos Territórios Quilombolas e sua execução no Estado de Sergipe, considerando as comunidades autodeclaradas e certificadas pela Fundação Palmares, e as comunidades que tiveram seu processo de regularização iniciado pelo INCRA, a partir dos RTID, e as que já obtiveram a titulação da terra.

Para a operacionalização da pesquisa, a partir do objetivo geral foram definidos outros de caráter específicos, quais sejam:

a)Analisar a materialidade da Política Pública de Regularização dos Territórios Quilombolas no estado de Sergipe, e identificar o marco normativo dessa Política; b) Identificar a trajetória de luta pela terra realizada por comunidades quilombolas em Sergipe;

c) Verificar as condições e características gerais das comunidades quilombolas, o contexto no qual estão inseridos;

d) Analisar os conflitos gerados a partir da implementação da política de reconhecimento do território quilombola, identificando as ações e os usos do território pelos diferentes agentes sociais.

1.3 Definindo um Caminho Metodológico

No tocante a estratégia metodológica, combinamos técnicas e instrumentos, como a pesquisa bibliográfica, tendo como base os seguintes autores1: Ana Lídia Nauar,

“Relatório antropológico: território remanescente de quilombo Brejão dos Negros, Sergipe. Brasil”, produzido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, em parceria com o INCRA, através da Superintendência Regional de Sergipe, em 2011; e o relatório coordenado pela antropóloga Mariana Fernandes, qual seja, o “Relatório técnico de identificação e delimitação: comunidade quilombola Pontal da Barra - Barra dos Coqueiros/SE”, elaborado em parceria com o INCRA, o PRONESE e a PROAGI, no ano de 2010. Esses documentos foram essenciais à construção dessa pesquisa.

1 Destacamos inicialmente a importância dos relatórios antropológicos de identificação dos territórios

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28 Do ponto de vista geográfico, autores como Milton Santos (1986, 1988, 2012, 2014); Claude Raffestin (1993), Carlos Walter Porto-Gonçalves (1998, 2001, 2002, 2006), Ricardo Mendes Antas Júnior (2001), Ariovaldo Umbelino Oliveira(2003), Lídia Lúcia Antongiovanni (2006), Ruy Moreira (2001), Eliane Tomiasi Paulino (2008), André Luís Gomes (2015), Rafael Sanzio Anjos (2005), foram de fundamental importância para a construção da base teórica da pesquisa. Além dos geógrafos, autores de outras áreas também contribuíram para a definição do recorte teórico da pesquisa, como Florestan Fernandes (1965), Adelmir Fiabani (2005, 2008), Lilian Cristina Bernardo Gomes (2015), Alfredo Wagner Berno de Almeida (1999, 2004, 2005).

Com o apoio dos autores mencionados e de um conjunto de obras de autores marxistas e marxianos, realizamos no Capítulo 2, uma discussão acerca da escravidão e sua funcionalidade para a acumulação primitiva do capital, assim como da formação territorial do Brasil, desde a sua condição de colônia.

Foram utilizados instrumentos específicos para o levantamento de dados primários, como

a) aplicação de questionários, como forma de coletar dados referentes a renda, escolaridade, idade, composição familiar, quantidade fundiária, atividades agropecuárias, entre outros;

b) encontros diagnósticos/grupos focais serviram para ouvir a comunidade, buscar entender sua história, e os principais conflitos existes;

c) entrevistas realizadas com os líderes quilombolas e com servidores de órgãos estatais como INCRA, para entender as etapas do processo de regularização e seus principais entraves;

d) observação in loco nas comunidades para coletar fotos, depoimentos e dados primários para a pesquisa;

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29 De forma paralela, realizamos pesquisa documental em relatórios, leis e portarias, por esses elementos se constituem como marcos legais, e possibilitarem a análise da política pública. Outros documentos normatizadores divulgados pelas instituições governamentais, ONGs e movimentos sociais foram importantes.

Foram realizadas consultas a blogs, jornais eletrônicos de notícias, depoimentos, denúncias e eventos vinculados com movimentos sociais e comunidades tradicionais, a fim de caracterizar os conflitos e a construção do problema de pesquisa.

Ainda em relação à pesquisa documental e a coleta dos dados secundários, consultamos sites oficiais de instituições do governo, tais como: o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a Fundação Cultural Palmares (FCP) e a Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), dos quais extraímos

dados relacionados as etapas do processo de regularização dos territórios quilombolas, shape files para a elaboração de mapas, informações sobre programas voltados para o desenvolvimento das comunidades, número de comunidades quilombolas reconhecidas em Sergipe e no Brasil, dentre outras fontes que foram determinantes para a pesquisa.

Em relação ao marco jurídico-normativo, foi necessária uma revisão da legislação relativa à Política de Regularização de Territórios Quilombolas, composta por leis, decretos e outros instrumentos que são de livre acesso na internet. Nesse sentido, analisamos no Capítulo 3, uma série de dispositivos e leis que compõem o arcabouço jurídico dessa política de Estado, dentre os quais se destacam o Artigo 68 do ADCT, Decreto 4.887/2003, Programa Brasil Quilombola e a Instrução Normativa 57 do INCRA. Tal política se sustenta também em legislação internacional, como a Convenção 169 da OIT.

Na busca de um melhor embasamento empírico, o trabalho de campo, desenvolvido nas comunidades e cujos resultados analisados estão apresentados no Capítulo 4. Esse capítulo expõe as contradições da política de garantia de direitos à terra quilombola, nos marcos do capitalismo contemporâneo e de reações dos grupos detentores da terra no Brasil.

Dessa maneira, partimos de um estudo da realidade do estado de Sergipe, que tem como escala espaço-temporal o período da implementação da Política de Regularização dos Territórios Quilombolas no estado de Sergipe (Mapa 01).

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30 MAPA 1 - Localização de Sergipe

Assim, além desta primeira seção introdutória, os capítulos destacados, buscamos nas considerações finais destacar os desdobramentos e as ameaças contemporâneas da política pública de regulação dos territórios quilombolas.

(32)

31

Oração a São Francisco, em forma de desabafo

Compadre Francisco, como vais de glória? E a comadre Clara e a

irmandade toda? Nós, aqui na Terra, vamos mal vivendo, que a cobiça é

grande e o amor pequeno. O amor divino é mui pouco amado e é flor de

uma noite o amor humano. Metade do mundo definha de fome e a outra

metade de medo da morte (...)

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32 2. A FORÇA DE TRABALHO ESCRAVA NO BRASIL COLONIAL E O

SURGIMENTO DOS QUILOMBOS

Nesse capítulo analisaremos o processo de colonização do Brasil e a utilização de mão-de-obra escravizada e sua relação com a formação dos quilombos. Temos como objetivo, fazer um resgate histórico, para auxiliar na análise do presente, bem como discutir a importância da colonização para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Desse modo, o propósito de compreender as origens das comunidades justifica a contextualização histórica, tomada em linhas gerais.

2.1 Tráfico Negreiro e Acumulação Primitiva no Brasil

O Brasil, historicamente, foi marcado pela concentração fundiária, este fenômeno iniciou-se na colonização com o regime de sesmarias, pela exploração da força de trabalho escrava, e tem seu ponto chave com a promulgação da Lei de Terras, que visa a negação do acesso a terra, aos povos que forma natural e visceral possuíam relação com a mesma.

O uso da força de trabalho escrava no Brasil perdurou entre os séculos XVI e XIX, e importa destacar que a colonização do país e o uso da força de trabalho escrava, estava intimamente ligada a consolidação do modo de produção capitalista, ao possibilitar a acumulação primitiva e financiar o desenvolvimento da Europa, ao proporcionar as bases que financiaram a revolução industrial. Assim a renda auferida com a venda de escravos e o produto do trabalho compulsório tinha como destino a acumulação do capital na Europa, não permitindo a constituição de uma burguesia interna.

O emergente modo de produção capitalista em sua fase comercial exigia a expansão ultramar, fazia-se necessário o comércio com outros continentes, e a possibilidade de haver outras terras desconhecidas deveria ser explorada, a fim de possibilitar o crescimento e a consolidação do capitalismo. Vale ressaltar que a transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista ainda estava ocorrendo em diversos países, nesse sentido, a acumulação primitiva do capital se dava largamente pelo uso da força de trabalho escrava, ainda muito empregada nos continentes conhecidos. Tal entendimento da colonização brasileira e da escravidão como forma de consolidação

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33 do capitalismo, via acumulação primitiva é observada por Vitorino (2013, p 2), segundo o qual,

Ao longo dos séculos XV a XVIII, à medida que formas particulares de relações políticas nos espaços europeus forjaram a região transoceânica, a fim de se fortalecerem internacionalmente como Estados-Modernos, surgiu a necessidade de criar, impulsionar e explorar os espaços econômicos regionais além-mar. Para compreender esse momento dos séculos XV a XVIII, no qual foi montado um sistema mundial de produção e de consumo de dimensões, até então inigualáveis, especialmente em análises históricas realizadas nos anos 1970, ocorreu um copioso e importante debate sobre a relação e a dinâmica entre a constituição do capitalismo e a emergência do Novo Mundo e da escravidão moderna.

Também, Brasil (2010) complementa a análise da colonização e uso da força de trabalho escrava no Brasil como necessária a acumulação primitiva do capital, ao argumentar que

A expansão ultramarina, portanto, não era resultado do desejo da Nobreza, mas uma necessidade histórica que se colocava para responder às pressões econômicas do novo sistema social que surgia das cinzas da sociedade feudal. Assim, essa relação que a metrópole estabeleceu com a colônia portuguesa foi fundamental para a consolidação da acumulação primitiva do capital e foi a que deu bases para o financiamento do capitalismo industrial nos séculos seguintes no continente europeu (BRASIL, 2010, s/p).

Ao analisar os estudos de Caio Prado Jr., sobre a colonização brasileira em seu livro, “Formação econômica do Brasil”, no qual o autor percebe a colonização e a formação econômica do país como produto da expansão comercial europeia, Vitorino (2013), observa que Prado Jr, não percebe, ou não deixa claro que

[...] essa expansão nada mais era do que um dos componentes da formação do capitalismo. Assim, ao privilegiar o comércio, mas por não analisá-lo por intermédio da dinâmica do sistema econômico – pois a expansão comercial desse período é um fator, dentre outros, que explica a formação do capitalismo –, a análise empreendida por Caio Prado Jr. somente conseguiu enxergar que a economia colonial gerou a economia nacional. (VITORINO, 2013, p 4-5)

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34 O regime de acumulação associado ao capitalismo mercantilista existente no período da colonização do continente americano será determinante para a escolha do perfil do escravo a ser adotado, de modo que a instituição da escravidão nas Américas, assim como o posterior declínio do sistema está intimamente associada às mudanças do processo produtivo.

Estando a colonização do Brasil no contexto de consolidação do modo de produção capitalista, o sistema colonial, baseado no uso da força de trabalho escrava, tinha como objetivo central a acumulação primitiva, realizada pelo centro mais dinâmico desse novo modo de produção. A Europa. Também para Tisescu e Santos (s/a) a fase de acumulação primitiva do capital, por meio do comércio de escravos e da exploração do trabalho compulsório destes,

[...] torna-se um antecedente necessário para que essas transferências de riquezas proporcionassem o ambiente favorável para o processo de industrialização pelo qual a Europa passava entre os séculos XVII e XIX, ainda que esse desenvolvimento tenha se dado de modo desigual entre os seus diferentes países. [...]. No caso de Portugal a aurora industrializante não surgiu como o esperado (TISESCU e SANTOS, s/a, p 13).

Outro autor que contribui com a análise aqui empreendida é David Harvey (2011), segundo o qual a escravização presente no projeto de colonização implementado nas Américas constitui uma etapa sem a qual o desenvolvimento do capitalismo industrial não teria sido possível.

Nesse sentido, ao estabelecer o uso da força de trabalho escrava como forma de realização da acumulação primitiva, o capitalismo introduziu a escravidão no Novo Mundo e atuou na formação do capital industrial Europeu (VITORINO, 2013).

Ainda segundo este autor, a organização social do trabalho no período colonial, demonstra

[...] como o trabalho escravo e o trabalho livre são duas faces da estrutura do mundo burguês e estão inseridos em um sistema de dominação social, que significa a apropriação do excedente do trabalho não pago e do excedente principiado de uma maneira muito específica: a mais-valia. Nesse sistema, há o desenvolvimento do trabalho livre, da expropriação do trabalhador e o crescimento contínuo do mercado (VITORINO, 2013, p 13).

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35 Nesse contexto a exploração do trabalho escravo nas colônias, significava a melhoria nas condições de vida e trabalho para os trabalhadores livres nas metrópoles. Logo, o trabalho livre na metrópole condicionava a continuidade da negação do trabalho livre na colônia.

A exploração das colônias, e através da renda auferida pela venda de pessoas para a escravidão, possibilitaram o desenvolvimento social e econômico dos países da Europa. Foi, sobretudo o trabalho escravo que financiou o avanço da manufatura, a invenção da máquina a vapor, e a revolução industrial, seguindo as ideias dos autores anteriormente citado.

A exploração colonial do Brasil ocorreu dentro do contexto de redução da força de trabalho na Europa em decorrência da disseminação de doenças como a peste e outras enfermidades. Em um quadro ainda de transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, que já estava em ascensão e buscando sua consolidação, fazia-se necessário o estabelecimento de novos parceiros comerciais, novas fontes de recurso e exploração. Nesse sentido “as colônias europeias instaladas na África que aproximavam as empresas coloniais aos traficantes de escravos, a escravização do africano torna-se a saída comercial mais bem-sucedida da história do imperialismo europeu” (TISESCU e SANTOS, s/a, p 10).

Essa importância do tráfico de africanos como escravos no desenvolvimento da acumulação primitiva do capital é destacada por Marx em “O capital”, no qual este afirma que

A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizaram a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva (MARX, 2013, p. 821).

Diversos autores analisam a venda da força de trabalho escrava como uma das principais e mais rentistas mercadorias exploradas pelos países europeus. Dentre esses autores Tisescu e Santos (s/a, p 12), afirmam que

O tráfico de africanos era um dos negócios mais rentáveis da época devido ao baixo custo de aprisionamento e transporte, trazendo-os já

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36 imbuídos da condição escrava depois dos meses enjaulados nos porões dos navios, submetidos a condições abomináveis de humilhação e tortura –, o escravo africano tornou-se a base da criação de um sistema odioso de acumulação primitiva.

Também para Prado Jr (1994), a venda de escravos no Brasil se constituiu como uma das principais fontes de renda entre os séculos XVI e XIX. Mais de 40 mil escravos chegavam ao Brasil anualmente entre o final do século XVIII e início do século XIX. Segundo esse autor a venda de escravos era

O ramo mais importante do comércio de importação, o tráfico de escravos que nos vinham da costa de África: representa ele mais de uma quarta parte do valor total da importação, ou seja, no período 1796-1804, acima de 10.000.000 de cruzados, quando o resto não alcançava 30.000.000 (PRADO JR.,1994, p.116).

Os dados acima revelam o quão lucrativo o tráfico de escravos foi para a coroa portuguesa, ao possibilitar volumosos faturamentos, e por se constituir como uma das mais importantes mercadorias comercializadas.

O período no qual perdurou a escravidão no Brasil é não raro apresentado como um período de passividade dos povos que aqui chegavam para trabalhar compulsoriamente, os negros são vistos como dóceis e acostumados a servir. Contudo incontáveis foram as insurgências, revoltas e atos de resistência dos escravizados no Brasil, nesses mais de três séculos de regime escravocrata. As fugas individuais e coletivas e a formação dos quilombos são exemplos de resistência. No item que se segue vamos apresentar na formação territorial brasileira, a importância da escravidão para a empresa colonial e o papel da Lei de Terras na manutenção da propriedade da terá para os possuidores de riquezas e privilégios. Nesse cenário, a formação dos quilombos a necessidade de resistência dos povos escravizados no contexto de projetos e estratagemas de negação do acesso à terra no Brasil.

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37 2.2 Escravidão, Abolição e Negação do Acesso à Terra aos Povos Remanescentes de Quilombos

O termo quilombo tem origem no dialeto africano, e dentre os significados atribuídos ao quilombo, os mais comuns são; esconderijo, associação guerreira, povoado de negros, conjunto de povoações formado de escravos fugidos (DANTAS, 2009, p 63). Os quilombos surgem como forma de luta e resistência ao regime escravocrata e ao modo de produção capitalista. Contudo faz-se necessário explicar o conceito de quilombo no passado e no presente, uma vez que este possui conceituações diversas, ainda que para aqueles que habitavam e habitam ainda hoje, os quilombos possuam funcionalidades semelhantes, em função da solidariedade e do uso comum das terras.

As comunidades quilombolas na contemporaneidade lutam pela regularização das terras ocupadas por seus antepassados a dezenas, ou centenas de anos. Direito presente na Constituição Federal de 1988, visando uma reparação pelo Estado brasileiro, tendo em vista o regime de escravidão que perdurou mais de três séculos em nosso país.

O regime de escravidão dos negros no Brasil teve início em meados do século XVI e perdurou oficialmente até o século XIX, com a promulgação da abolição da escravatura em 1988. A escravidão no Brasil teve início com o trabalho forçado dos indígenas que aqui habitavam, contudo, o genocídio dos povos indígenas a partir da proliferação de doenças como a varíola e gripe, ameaçaram a continuidade do próprio sistema colonial que exploravam os índios, na busca por pedras preciosas, especiarias, a derrubada e transporte do Pau-Brasil. Também os negócios de venda de escravos negros apresentavam-se como altamente lucrativos para a Coroa Portuguesa, que além de lucrar com a mercadoria fruto do trabalho, lucrava com a própria venda do trabalhador.

Além da grande necessidade de mão-de-obra que exigia o cultivo da cana-de-açúcar, única cultura rentável, existente no Brasil da época, o tráfico de escravos dava um grande lucro a Portugal, que os aprisionava nas costas da África, depois de conquistá-los com o tabaco, e os vendia aos senhores de engenho no Brasil (FAUSTO, 1996, p 23).

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38 No Brasil, não foram encontradas, à princípio, as especiarias e as reservas de pedras preciosas, assim a agricultura apresentou-se como uma alternativa impulsionada pela demanda de produtos na Europa, pela experiência da metrópole portuguesa nas ilhas Açores, pela abundância de terras férteis e pela necessidade de colonizar para garantir o domínio das novas terras. Em meados do século XVI não era possível que a colonização do Brasil fosse realizada pela imigração do povo europeu, uma vez que parte de sua população fora dizimada pela peste e pelas doenças virais que assolavam o continente, assim a colonização por meio do uso do trabalho escravo foi a alternativa empregada.

Portugal adotou o regime de sesmarias2 para explorar economicamente sua colônia, por meio da produção de cana-de-açúcar para exportação. Sendo as Capitanias Hereditárias adotadas como sistema organizador da colonização via sesmaria. Neste sistema os donatários das capitanias, repartiam 80% as terras concedidas a estes pelo rei, para nobres, membros da corte, oficiais militares, grandes comerciantes ou traficantes de escravos, por meio de cartas de concessão. As sesmarias no Brasil, possuíam em média 13 mil hectares de terra, que deveria ser explorada sob pena de tomada da concessão (GOMES, 2015).

Dentre os requisitos para possuir uma sesmaria era necessário ser homem, branco, de origem portuguesa, e detentor de escravos em números suficiente para colonizar e cultivar as terras cedidas. Na teoria as terras subutilizadas, eram devolvidas para a coroa portuguesa, dando origem as “terras devolutas”. Contudo na prática muitas dessas terras eram ocupadas por posseiros, que não tinham cartas de sesmarias, o que deu origem a apropriação da terra no Brasil (MARTINS, 1990). Não raro surgiam novos sesmeiros que expulsavam os posseiros, ou permitiam que estes explorassem suas terras sob a condição de pagamento de tributos e prestação de trabalho gratuito.

O tráfico de escravos foi tão largamente utilizado no Brasil, que alguns autores afirmam que fomos o maior importador de escravos do mundo, entre os séculos XV e XIX (GOMES, 2015). Anjos (2006), estima que mais de 4 milhões de escravos foram trazidos forçosamente para o Brasil entre os séculos XVI e XIX, o que representa cerca de 39% dos escravos trazidos para as Américas nesse período. Prado Júnior (1976), por sua vez, estima que o número de escravos trazidos para o Brasil circunda entre cinco e

2 As sesmarias eram doações de terras feitas pela Coroa portuguesa aos seus agentes e colonos no processo

de "ocupação" da América portuguesa. As Sesmarias foi a política de colonização posta em prática na América portuguesa no reinado de D. João III, momento de criação das capitanias hereditárias. (MOTTA, 2009).

Referências

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