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A objectividade prático-teórica da representação cartesiana da união da alma e do corpo : Uma opção metodológica em história da filosofia

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LOURENÇO HEITOR CHAVES DE ALMEIDA

Ex-BOLSEIBO DO INSTITUTO NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTIFICA

A OBJECTIVIDADE P R A T I C O - T E Ó R I C A

DA REPRESENTAÇÃO CARTESIANA DA UNIÃO DA ALMA E DO CORPO

Uma opção metodológica em História da Filosofia

VOLUME I

Oi^í&jUação de Doatoiamento em rtlo-iofiia fíodeAna e, Contcmpoiànea apresentada ã FacaUdade de Le-tia* da Un.lv enyi idade do foiXo, tub a dLiecção do Pio/Let-iOi gean-ftaiic. ÇAÍWJOE da Universidade de TouXouAe-le-fti-iaÁJ- (Fiançai

P O R T O

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"Neque credetis, nisi lubet, rem ita se habere; sed quid impediet quominus easdem suppositiones sequamini, si appareat nihil illas ex rerum veritate minuere, sed tanturn reddere omnia longé clariora?"

(DESCARTES, Regulae ad Directionera Ingenii.XII,

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(*)"Se não quiserdes, não acrediteis que isto seja assim; mas o que ê que vos impedira de admitir as mesmas hipóteses, se se manifestar que elas não retiram nada a verdade das coisas, mas somente tornam tudo muito mais claro?"

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B O T A P R É V I A

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I - ACERCA DA OPÇÃO METODOLÕGICA

1. O insólito da opção metodológica

0 texto que se segue não é um texto cómodo de 1er, mesmo para quem esteja largamente familiarizado com a história da filosofia. Não é um texto hermético, mas o percurso teórico e metodológico a que convida o seu leitor é um percurso que está normalmente ausente da construção da história da filosofia.

0 simples facto da novidade deste percurso - o insólito da opção metodológica que determinou a investigação que aquele texto comunica -priva o leitor do apoio de esquemas operatórios já consagrados pela prática da construção da história da filosofia e interiorizados em automatismos. Esta situação foi igualmente experimentada pelo próprio sujeito de conhecimento constituinte desta investigação, apesar ter sido ele mesmo quem elaborou a opção metodológica em causa.

Este insólito-metodológico/privaçao-de-instrumentos-jã-elaborados im-plica, como é óbvio, um maior investimento de tempo e de energias, para percursos gnosiológicos quantitativamente equivalentes àqueles que sejam efectuados segundo opções metodológicas onde aquele insólito/privação não se dê. Pois, ele impôs ao sujeito de conhecimento que constituiu a

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investigação em causa não só a construção de novos instrumentos de trabalho e de novas formas de aplicação de instrumentos de trabalho, mas também uma reflexão particularmente intensa e permanente no decurso do uso destes instrumentos, em consequência de aquele sujeito se encontrar perante uma situação que lhe era nova. Uma situação análoga é fortemente provável que se dl em relação ao leitor deste texto, igualmente com a correspondente necessidade de uma reflexão suplementar no decurso do uso dos referidos instrumentos de trabalho.

No intuito de minorar, em relação ao leitor, os efeitos do insólito metodológico acabado de referir, faz-se aqui uma apresentação esquemática suplementar da opção metodológica que regulou a constituição da investigação cuja exposição é o objecto do texto em causa. Juntar-se-ão a esta apresentação esquemática ainda alguns esclarecimentos julgados úteis para a leitura do mesmo texto e recomenda-se uma leitura particularmente reflectida da INTRODUÇÃO, da I e II PARTES da exposição da investigação em causa.

2. A apresentação esquemática da opção metodológica.

a) Constituir uma representação hipotética do objecto-problema. Esta representação hipotética é elaborada a partir de dados de uma observação atenta e reflectida do objecto que se apresenta problemático ao sujeito de conhecimento em causa; de determinações constituintes decorrentes da natureza operatória deste sujeito de conhecimento; de elementos teóricos admitidos pelo mesmo sujeito de conhecimento. Esta primeira fase de elaboração da investigação é - salienta-se aqui insistentemente - uma mera hipótese, por conseguinte sem qualquer compromisso definitivo de adequação ao conteúdo mesmo do objecto em causa;

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b) Avaliar - através de procedimentos metodológicos julgados suficientes - o grau de adequação do conteúdo da hipótese acima referida ao conteúdo do objecto em causa;

c) A invocação/concepção da constituição geral do pensamento filosófico de Descartes e a determinação de uma relação constituinte entre esta constituição geral e os caracteres problemáticos do objecto-problema. Este componente da opção metodológica em causa resulta da perspectiva em que aquele objecto foi considerado problemático (cf. infra, Introd., 1.3.);

d) A invocação e emprego metodológico de uma teoria geral relativa ã constituição da obra cultural em geral (como instrumento metodológico para fundamentar teoricamente a valorização constituinte de certos componentes do objecto-problema e de certas relações estabelecidas/admitidas entre eles);

e) A admissão de um principio constituinte geral do pensamento filosófico de Descartes. Este princípio será a devido tempo apresentado. Aqui pretende-se somente alertar o leitor para um componente fundamental da opção metodológica em causa e para a natureza algo insólita deste componente e do modo como é posto. Inicialmente é admitido como uma hipótese, fundamentada na admissão (teoricamente integrada no decurso da investigação em causa) de que toda a obra cultural tem uma coerência funcional (mais ou menos perfeitamente concretizada na realidade individual de cada obra cultural). Isto é admite-se, como posteriormente se exporá com mais detalhe ( cf.infra, I, § 2.3.1.), que cada obra cultural se constrói em função de uma visão muito geral do mundo, a qual, nos seus componentes nucleares, é anterior a essa obra. Assim, o princípio constituinte geral do pensamento filosófico de Descartes acima referido I inicialmente posto como uma expressão sintética de uma representação geral do mundo (ou pelo menos de alguns dos seus

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componentes fundamentais) que este pensamento filosófico, enquanto obra cultural, exprime e reelabora. Por conseguinte, convida-se desde já o leitor a nao conceber este princípio geral constituinte como uma ideia geral que contenha na sua extensão todo o pensamento filosófico de Descartes, ou um princípio metodológico (expresso, ou não) que regule a constituição do conhecimento gnosiologicamente válido, ou simplesmente a constituição do pensamento logicamente válido. É um enunciado de conteúdo complexo que exprime condições muito gerais (talvez mesmo as condições mais gerais) da determinação em geral, da natureza gnosiológica e do conteúdo de uma obra filosófica (o pensamento filosófico de Descartes).

Dado, por um lado, o facto de que este princípio é inicialmente posto como uma hipótese e, por outro lado, a função que lhe é (hipoteticamente) atribuída na constituição do pensamento filosófico de Descartes e o uso metodológico que dele se pretende fazer, para construir a solução do problema capital da investigação em causa, torna-se metodologicamente necessário fazer a avaliação do grau da sua conformidade com a constituição mesma do pensamento filosófico de Descartes, expresso nos seus escritos. Esta avaliação é o objecto da III Parte da exposição que se segue.

3. Razoes/motivações da opção metodológica.

3.1. Razoes/motivações relativas ao conteúdo mais geral da opção metodológica.

a) Uma convicção de que a produção filosófica é um fenómeno simultaneamente determinado por factores radicados num homem-indivíduo (o seu autor) e num colectivo, onde este homem-indivíduo se insere;

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b) (consequentemente) a história da filosofia, concebida como úm conhecimento explicativo e/ou compreensivo de um ser diversificado - o pensamento filosófico nas suas determinações particularizadas - não poderá realizar adequadamente o seu objectivo em muitas das suas ocorrências, se nao forem integradas, no conhecimento que constrói, factores de naturezas heterogéneas e em relações constituintes complexas, não desveláveis à simples observação;

c) a construção de um conhecimento que satisfaça estas condições implica uma participação muito acentuada do sujeito que o constitui, através nomeadamente da valorização operatória de elementos do real a fazer participar nesta construção e através da valorização operatória de relações constituintes estabelecidas/admitidas entre tais elementos;

d) as valorizações operatórias próprias de qualquer destes dois géneros sao, como é comummente sabido, acentuadamente função da peiSpectiva em que o sujeito de conhecimento considera o objecto a conhecer. Assim, afigura-se metodologicamente conveniente - senão mesmo necessário - criar um conjunto de condições metodológicas que tornem claramente manifesto, por um lado, a perspectiva em que o sujeito de conhecimento considera aquele objecto e, por outro lado, os procedimentos metodológicos/constituintes que ele desenvolva na construção gnosiológica que efectue;

e) a separação metodológica/operatória da fase mais acentuadamente determinada pela actividade e natureza do sujeito - que é, segundo a opção metodológica em causa, a construção da hipótese explicativa - da fase mais acentuadamente dependente dos dados de observação do objecto a conhecer

a verificação daquela hipótese - constitui um meio auxiliar para estabelecer uma distinção clara entre o contributo do sujeito de conhecimento e o contributo do objecto a conhecer para a constituição do conhecimento visado. E assim aquela separação I um meio auxiliar para, num primeiro

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momento, aquele sujeito apreender e avaliar a consistência gnosiológica da sua própria actividade e, num segundo momento, todos os sujeitos de conhecimento possíveis refazerem o caminho percorrido por aquele sujeito para, por si, poderem avaliar este mesmo caminho e os seus pontos de chegada, isto e a consistência gnosiológica dos conhecimentos constituídos.

f) A invocação de uma teoria geral relativa à constituição da obra cultural em geral, como um instrumento metodológico para a construção da investigação a efectuar, I uma consequência da necessidade teórica de reduzir

neutralizar mesmo - a contingência, em primeiro lugar, da perspectiva segundo a qual o sujeito de conhecimento considera o objecto a conhecer e, em segundo lugar, da escolha do género de relações admitidas/estabelecidas na constituição do conhecimento que se pretende construir. Pois uma tal teoria geral e um conhecimento - constituído em condições consideradas de objectividade - das condições gerais da constituição do objecto a conhecer.

3'2' Razoes/motivações relativas à aplicação da opção metodológica a problemas postos pela representação cartesiana da união da alma e do corpo.

Tal como se exporá na INTRODUÇÃO da exposição que se segue, as condições em que a representação cartesiana da união da alma e do corpo se pÕs como problema, para o sujeito de conhecimento constituinte da investigação/exposição em causa, implicam uma participação constituinte m u í t 0 acentuada daquele sujeito, aparecendo mesmo como metodologicamente necessário, por um lado, fazer a identificação de uma, ou mais condições gerais (princípio(s)) da constituição do todo teórico em que aquela representação cartesiana se apresenta inserida (o pensamento filosófico de Descartes) e, por outro lado, determinar relações constituintes entre aquelas condições gerais, ou princípios, e a constituição daquela mesma

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representação cartesiana

Assim, tornou-se manifesto: em primeiro lugar - a necessidade metodológica de que a investigação a efectuar se apoie num aparelho metodológico que ponha simultaneamente condições favoráveis ã realização da referida participação forte do sujeito de conhecimento e meios de controle da qualidade gnosiológica desta participação, nomeadamente a avaliação do grau de conformidade dos resultados de tal participação com a realidade mesma do objecto a conhecer; em segundo lugar - a adequação da opção metodológica em causa ã função de núcleo capital do aparelho metológico da investigação acabada de referir, em consequência da natureza dos componentes daquela opção.

Deve ainda acrescentar-se que a primeira das duas ordens de "razões/motivações" acabadas de enunciar teve uma posição dominante na determinação da constituição da investigação cuja exposição se segue, sendo a segunda - a procura de soluções para dificuldades teóricas postas pela representação cartesiana da união da alma e do corpo, através da aplicação da opção metodológica em causa - um meio de realização da primeira. Pois, a motivação capital daquela investigação reside na procura de novos procedimentos metodológicos para a construção da história da filosofia, procura esta que se entendeu ser metodologicamente conveniente que ela fosse efectuada predominantemente através da prática efectiva da história da filosofia, ensaiando novos procedimentos metodológicos - concebidos por uma reflexão prévia - na busca de soluções para um problema real. Esta situação de investigação-experiencia, ou construção-avaliação de novos procedimentos metodológicos, explica alguns caracteres do desenvolvimento da investigação em causa, nomeadamente alguns dos componentes deste desenvolvimento, os quais, poderão eventualmente ser dispensados,ou abreviados

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quando sujeito constituinte e leitores estejam assegurados das capacidades operatórias e do domínio prático dos procedimentos metodológicos que através desta investigação se procuram.

Com estes procedimentos não se pretende de modo algum substituir as metodologias actualmente praticadas na história da filosofia, mas tão somente criar meios complementares de investigação, que permitam, por um lado, ampliar o poder explicativo do sujeito de conhecimento na construção da história da filosofia, nomeadamente nos casos que impliquem pela sua natureza conjugações complexas de elementos heterogéneos e, por outro lado, permitam também uma avaliação eficaz da qualidade gnosiológica dos conhecimentos/explicações produzidas.

4. Insuficiências na realização da opção metodológica.

0 nível de elaboração atingido pela investigação em causa é considerado insuficiente pelo seu próprio sujeito constituinte, tanto no que respeita ã determinação acabada de uma metodologia para a história da filosofia, como no que respeita ã resolução de um problema particular da história da filosofia (a superação das dificuldades teóricas postas pela representação cartesiana da união da alma e do corpo).

A comunicação dos resultados já atingidos pela investigação em causa, sob a forma que agora assume, resulta como é sabido de factores estranhos ao processo constituinte desta mesma investigação e é feita contra vontade do sujeito que a realiza. Continuar no isolamento da reflexão/elaboração individual restrita não seria também a atitude mais fecunda para o avanço daquela investigação. 0 que se afigura útil seria efectuar breves comunicações, umas relativas ao conteúdo da opção metodológica que se

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pretende inovadora, outras relativas a resultados já adquiridos através da aplicação desta opçio, inclusive interrogações sobre a validade parcial e/ou total desta mesma opção metodológica e dos procedimentos práticos usados na sua realização. Tais comunicações breves e diversificadas suscitariam por certo um diálogo que é legítimo imaginar que seria útil para o aperfeiçoamento da opção metodológica em causa.

De entre os objectivos parcelares não atingidos até este momento da construção da investigação em causa - e desejáveis de atingir destacam-se os seguintes:

a) a verificação da hipótese teórica de que o principio constituinte geral admitido em relação à constituição do pensamento filosófico de Descartes radica na natureza da formação sócio-económica que a burguesia europeia ascendente estava construindo ao tempo de Descartes. Esta verificação nem sequer se esboçou, porque para que ela atinja uma consistência metodológica que lhe confira uma credibilidade suficiente para superar o nível de mera hipótese ao enunciado da relação constituinte em causa, é necessário uma planificação metodológica própria e uma morosa investigação factual, sobre testemunhos directos da prática da referida classe social, naquele período. Pois as realizações mais manifestas desta prática são de natureza heterogénea relativamente ao objecto cuja radicação aí se procura (o referido princípio constituinte geral do pensamento filosófico de Descartes). Espera-se, no entanto, em momento posterior ter as condições necessárias para efectuar esta verificação.

b) a constituição de uma linguagem simples e adequada para exprimir -—apoiar a concepção dos componentes do objecto da investigação em causa e das relações estabelecidas/admitidas entre eles. Na elaboração e expressão

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da representação hipotética da constituição da representação cartesiana da união da alma e do corpo (cf. infra, II, 1.2.) ensaiou-se, ainda que de modo muito insipiente, o uso de alguns termos/conceitos componentes de uma linguagem própria. Estes termos/conceitos reaparecem na avaliação da consistência factual daquela representação hipotética, relativamente ao pensamento filosófico de Descartes, efectuada no decurso da IV Parte da exposição que se segue. A renúncia ã elaboração de uma tal linguagem foi determinada por duas ordens de razões: primeira - a falta de tempo para, por um lado, a elaborar, de modo a que o seu uso se pudesse considerar inequivocamente vantajoso do ponto de vista metodológico e, por outro lado, para criar "automatismos" que tornassem rentável o seu emprego; segunda

a previsível resistência nos leitores, constituindo uma tal linguagem, na vez de um instrumento auxiliar de comunicação e de concepção, um obstáculo suplementar;

c) um nível de elaboração conceptual e de expressão onde se nao de a presença hipertrofiada do aparelho metodológico, nem interferências de outras opções metodológicas. Pois reconhece-se que em diversas passagens se deu claramente uma expressão hipertrofiada àquele aparelho, tanto para apoiar o próprio sujeito constituinte da investigação/exposição em causa através da sua nova experiência, como para apoiar o leitor perante o insólito do conteúdo e da forma da construção da mensagem que lhe é proposta.

Apesar destes propósitos de unicidade metodológica e de simplicidade de linguagem (não suficientemente realizados na investigação em causa) nao se pode esperar atingir aqui uma concepção e expressão profundamente simplificadas. Pois nesta investigação/exposição dão-se cumulativamente duas situações que dificultam nomeadamente a simplicidade de concepção e expressão: esta investigação/exposição é a primeira concretização, pelo sujeito que a realiza de uma opção metodológica nova, o que põe dificuldades

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objectivas e subjectivas próprias de tal circunstância; a natureza mesma do objecto desta investigação/exposição poe a actividade do sujeito de corihecimen to que a realiza a desenvolver-se em zonas de acesso e domínio gnosiológico difíceis (que são as zonas do real exploradas normalmente pelos filósofos e, por conseguinte, por todo o sujeito de conhecimento que tenha directamente por objecto da sua actividade o pensamento/conhecimento de um filósofo);

d) uma equivalência dos graus de elaboração de todos os componentes da investigação/exposição em causa. A constituição da opção metodológica que regulou a construção desta investigação e sua realização nesta investigação deram-se através de um tempo relativamente longo, alguns anos mesmo. Após uma primeira fase em que se estabeleceram os componentes fundamentais daquela opção metodológica, o exercício da sua aplicação criou condições para sucessivos ajustes nas suas concepção e formulação, com os consequentes efeitos na constituição dos diversos componentes da investigação que se ia produzindo através daquele exercício. Numa última fase da elaboração desta investigação, procedeu-se a uma remodelação dos seus componentes de realização mais antiga, nao só para eliminar elementos tidos como inadequados, em função dos níveis de determinação atingidos na elaboração da opção metodológica em causa, e dos procedimentos práticos da sua aplicação, mas também para reduzir, na medida do possível, diferenças significativas na forma constituinte e grau de elaboração dos componentes da investigação em causa. No entanto, uma equivalência perfeita dos graus de elaboração e de expressão de todos aqueles componentes implicava uma Reformulação muito profunda do trabalho já acumulado, o que não sendo inútil para o objectivo primordial visado - a constituição e aperfeiçoamento de um novo contributo metodológico para a história da filosofia - aparece como praticamente impossível, dada a urgência de apresentar os resultados desta investigação. Assim, o leitor encontrará algumas assimetrias de

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contituição entre os componentes desta investigação, resultantes da sua própria história, as quais, no entanto, se crê não afectarem significativa mente os resultados atingidos.

II - ACERCA DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

A identificação da cada obra no decurso da presente exposição - quer no corpo do texto, quer nas notas - será feita somente pelos elementos julgados suficientes para o seu reconhecimento inequívoco: imediato, se se tratar da obra comummente conhecida; mediato em todos os casos, através da consulta da "Bibliografia" da presente exposição.

A identificação das obras de Descartes será feita por siglas, cujo significado, apesar de suficientemente claro, explicitar-se-á aqui, bem assim como as siglas usadas para identificar as três edições usa-das usa-das obras de Descartes.

A localização de um texto na correspondência de Descartes será feita pelo enunciado do nome do correspondente em causa, da data da carta, seguida da identicaçao da edição usada, do volume e da página, ou páginas onde aquele texto se situe.

Siglas relativas às obras de Descartes

Descr. Corps. Hum - La Description du Corps Humain Disc. Méth - Discours de la Méthode

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Monde - Le Monde, ou Traité de la Lumière.

pass - Les Passions de l'Âme.

Prêf. Princ - La lettre de l'auteur à celui qui, a traduit le livre [ os Principia Philosophiae].

Princ - Les Principes de la Philosophie.

Règl - Les Règles pour la Direction de l'Esprit.

R eP - Réponses aux Objections contre les

Méditations. Tr. Hom - L'Homme.

Os algarismos romanos, que seguem Disc. Méth., Princ. e Pass., identificam a parte da obra em causa; os que seguem Regi. e Méd. identificam a Regra e a Meditação. Os algarismos árabes que seguem os algarismos romanos acima referidos em Princ. e Pass, identificam o artigo em causa.

Siglas relativas a três edições das obras de Descartes

Éd. Alquié - DESCARTES, Oeuvres Philosophiques, textes établies, présentés et annotés par Ferdinand Alquié, Paris, Garnier, tome I, 1963; tome II, 1966; tome III, 1973.

A T - Oeuvres de Descartes publiées par Adam

et Tannery, Paris, Leopold Cerf, 1897-1913, reeditadas por Paris, Vrin (em co-edição com o Centre Nacional de Recherche Scientifique).

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AM - DESCARTES. Correspondance, publiée avec une introduction et des notes par Charles Adam et G. Milhaud, Paris, PUF, 1936-1963 (8 tomos).

Oa algarismos romanos que seguem imediatamente estas siglas indicam o tomo. No caso dos tomos IX e XI de AT estes algarismos romanos serão seguidos imediatamente do algarismo árabe 1 ou 2, consoante se trate da primeira ou da segunda parte do tomo em causa.

Duas abreviaturas frequentemente empregues

Id - usa-se para indicar que a referencia dada numa nota I idêntica em todos os seus elementos ã da nota imediatamente anterior.

Ib - usa-se para indicar que a obra referida numa nota é a mesma que foi referida na nota imediatamente anterior, diferindo no entanto o seu tomo e/ou a sua parte, ou qualquer outro elemento significativo da referência, como parágrafo e/ou página. Assim, o uso de ib. implica indicação expressa dos restantes elementos de identificação necessários, ou simplesmente julgados úteis.

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As referências para o interior da presente investigação.

Usar-se-á supra para designar, como é óbvio, passagens anteriores da presente exposição e infra, para designar passagens posteriores.

Qualquer destes termos será sempre seguido de um número romano - que indicará a parte da presente exposição onde a passagem em causa se situa

- e de um ou mais algarismos arabes, que indicarão a divisão daquela parte.

Normalmente seguir-se-á também a identificação da página, ou páginas.

Antes de iniciar a apresentação deste trabalho quero exprimir de um modo particularizado o meu reconhecimento a todos aqueles que, de um modo significativo, contribuiram para a sua realização.

Assim - em primeiro lugar - quero testemunhar o meu agradecimento ao Professor Jean-Marc Gabaude da Universidade de Toulouse-le-Mirail (França) por ele ter aceite o encargo de dirigir a elaboração deste trabalho,quando em 1979 retomei de modo sistemático a investigação sobre o pensamento filosófico de Descartes; pelo seu tempo dispendido na leitura de cerca de mil páginas dactilografadas (frequentemente de leitura pouco cómoda), correspondentes a aproximações sucessivas na determinação (ainda agora imperfeita) da opção metodológica geral que regula a realização deste trabalho e na determinação dos seus procedimentos metodológicos; pelo seu acolhimento generoso e amigo quando dos vários encontros havidos no decurso do trabalho, para a sua discussão. Quero ainda testemunhar a minha admiração pelo Professor Jean-Marc Gabaude, pelo facto de que, apesar de nao se identificar com a opção metodológica geral que por meio deste trabalho se procura ir construindo, nunca criou nenhum obstáculo a realização desta aventura metodológica, mesmo sem que ela tenha atingido o nível de elaboração previsto.

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Quero recordar e agradecer o apoio da Professora Doutora Maria Carmelita Passos e Homem de Sousa, concretizado através de algumas trocas de impressões quando, nos finais dos anos setenta, eu procurava encontrar um caminho novo para retomar a minha prática de investigação da história da filosofia. Estas palavras não devem no entanto ser entendidas como indício de qualquer corresponsabilização na forma que a opção metodológica deste trabalho assumiu, dada a fase ainda muito incipiente da sua concepção ao tempo das referidas trocas de impressões.

0 trabalho cuja exposição se segue e o seu projecto foram precedidos por um outro, que me ocupou no início dos anos setenta (tendo chegado a um estado médio de realização) e que teve como objecto geral o pensamento filosófico de Descartes sobre o homem. Tive mesmo uma bolsa de estudos do então Instituto de Alta Cultura para, durante um ano, fazer pesquisa bibliográfica na Biblioteca Nacional de Paris. 0 trabalho então realizado está subjacente, como é óbvio, àquele que agora se apresenta. Assim, quero aqui testemunhar o meu agradecimento ao Professor Doutor Eduardo Abranches de Soveral que foi o director daquele trabalho.

Quero aqui também recordar e agradecer o contributo da minha amiga Wiltrud Ulrike Drechsel, da Universidade de Bremen (R.F.A.), pondo generosamente ã minha disposição inúmeros elementos bibliográficos necessários ã elaboração da presente investigação.

Quero iguabriente aqui recordar e agradecer a colaboração da minha amiga Maria Daniela Araújo Figueiredo, pela execução dactilográfica deste trabalho não só na forma que ele aqui apresenta, como também numa sua versão francesa

nomeadamente pela dedicação que ela testemunhou através do esforço dispendido na parte final daquela execução, em pleno período de férias.

Quero finalmente agradecer a colaboração generosa do meu amigo Dr. João Adriano da Silva Monteiro da Cunha Azevedo, na correcção do texto deste trabalho.

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INTRODUÇÃO

A determinação de um problema: o sujeito; o objecto; o problema.

I - OPÇÕES EPISTEMOLÓGICAS E METODOLÓGICAS

1. A constituição geral e os limites do objecto operatório da presente investigação: hipótese de uma determinação geral da constituição do pensamento filosófico de Descartes por um princípio geral constituinte; a delimitação do objecto operatório da presente investigação.

2. Uma teoria geral integradora do objecto operatório da presente investigação: a necessidade metodológica de uma teoria geral integradora do objecto operatório da presente investigação; opções preliminares ã admissão/constituição desta teoria geral; as condições gerais constituintes da obra cultural - exposição sumária de uma teoria.

3. Organização da investigação

II - A CONSTRUÇÃO TEÓRICA (hipotética) DO "OBJECTO" DO "PROBLEMA" DA PRESENTE INVESTIGAÇÃO

0. Considerações metodológicas

1. Objecto modelo: um princípio constituinte geral (hipotético) do pensamento filosófico de Descartes; condições gerais relativas ã constituição da representação cartesiana da união da alma e do corpo, integrada na representação cartesiana do homem (uma determinação hipotética).

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2. O modelo teórico: considerações metodológicas; a integração do objecto modelo numa teoria geral (admitida) relativamente ã constituição da obra cultural em geral.

III - A OBJECTIVIDADE FACTUAL DO MODELO TEÕRICO, RELATIVA À CONSTITUIÇÃO GE-RAL DO PENSAMENTO FILOSÕFICO DE DESCARTES

0. Considerações metodológicas

1- 0 principio P e a constituição da actividade do sujeito de conhecimento constituinte da filosofia, segundo os propósitos teorizantes de Descartes: o componente prático do princípio P e a constituição da actividade do sujeito de conhecimento constituinte da filosofia, segundo os propósitos teorizantes de Descartes; o componente gnosiológico do princípio P e a constituição da actividade do sujeito de conhecimento constituinte da filosofia, segundo os propósitos teorizantes de Descartes, relativos àquela actividade.

2. 0 princípio P e a constituição da teoria cartesiana da actividade do sujeito de conhecimento: o componente prático do princípio P e a constituição da teoria cartesiana da actividade do sujeito de conhecimento; o componente gnosiológico do princípio P e a constituição da teoria cartesiana da actividade do sujeito de conhecimento segundo as Meditações;

IV - A OBJECTIVIDADE PRÃTICO-TEÕRICA DA REPRESENTAÇÃO CARTESIANA DA UNIÃO DA ALMA E DO CORPO

0. Considerações metodológicas

1. A determinação do grau de conformidade de cada uma das condições gerais dadas - hipoteticamente admitidas, segundo o modelo teórico - relativas ã constituição da representação cartesiana da união da alma e do corpo

(considerada na sua integração na representação cartesiana do homem), com as suas homólogas, manifestadas pelos testemunhos de Descartes.

2. A determinação do grau de conformidade de cada uma das condições gerais deduzidas - hipoteticamente, segundo o modelo teórico - relativas ã

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tituição da representação cartesiana da união da alma e do corpo (considerada na sua integração na representação cartesiana do homem), com as suas homólogas, manifestadas pelos testemunhos de Descartes.

V - CONCLUSÃO RESUMOS ANALÍTICOS

BIBLIOGRAFIA INDICES

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Considerado em geral e do ponto de vista da sua constituição, um problema é a resultante de uma relação entre dois seres - um ser-sujeito e um ser-objecto - onde o segundo se põe para o primeiro como um obstáculo, eventualmente superável, ã realização da natureza deste (o ser-sujeito) pela mediação de condições a determinar e/ou realizar por este mesmo ser (o que implica um conhecimento reflectido dos componentes desta relação, enquanto tais, e dos meios possíveis para a alterar, isto é para anular a resistência posta pelo "ser-objecto", enquanto um "ser-obstáculo".

Assim, a determinação de um problema não se pode efectuar a partir unicamente da identidade do "ser-objecto" (ou ser-obstáculo), pois que qualquer problema sendo, pela sua natureza geral, a resultante de uma relação entre dois seres, a sua identidade é função simultaneamente da identidade do seu "ser-sujeito" e da identidade do seu "ser-objecto".

Considerado mesmo o caso limite de um problema de conhecimento, isto e de um problema cujo "ser-objecto" (ou ser-obstáculo) seja um conhecimento o que confina numa primeira instância a relação-problema em causa ao plano do conhecimento, como I o caso do problema a resolver na presente investigação a simples determinação do "ser-sujeito" como sujeito de conhecimento não basta para determinar um problema (assim como é obvio que também não basta a simples determinação do "ser-objecto" como objecto de conhecimento).

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No que respeita ao "ser-sujeito", aquela determinação não basta porque, considerado um ser enquanto constituinte de conhecimento, a sua natureza operatória - e é nesta dimensão que ele se põe em relação com o "ser-objecto'Vobstâculo superável) - varia em função da forma geral de realizar a sua actividade, isto I de constituir conhecimento, forma esta que pode ser concebida como uma determinação geral epistemológica e/ou metodológica.

Nestas condições, a determinação do problema da presente investigação será precedida pelas determinações da identidade do "ser-sujeito" e da identidade do "ser-objecto" daquela relação.

Estes, para simplificar a expressão, passarão a ser designados na presente exposição somente por sujeito e objecto, sempre que tal designação não produza equívocos.

1.1. 0 sujeito

Admite-se que o sujeito do problema a resolver na presente investigação se identifica pela integração do seguinte conjunto de determinações operatórias/constituintes :

a)Constituir as representações dos objectos a conhecer em conformidade com os princípios gerais do pensamento (nomeadamente os princípios da identidade, não-contradição e razão suficiente);

b)Constituir as representações dos objectos a conhecer com clareza e distinção conceptuais (tanto no que respeita aos elementos constituintes destas representações, como no seu todo);

c)Constituir as representações dos objectos a conhecer por relações e/ou sistemas de relações;

d)Constituir as relações referidas na alínea anterior com necessidade formal, em função dos princípios gerais do pensamento e de princípios gerais

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relativos à natureza específica do objecto em causa (tendlncia à unificação do conhecimento);

e)Constituir as representações dos objectos a conhecer por meio de slries de relaçSes explicativas (isto é por relaçSes estabelecidas segundo o princípio da causalidade eficiente, com o predomínio da categoria da unidade) e/ou por séries de relaçSes compreensivas (isto I relaçSes da integração de um ou mais objectos num conjunto determinado de objectos e/ou relaçSes, como elementos constituintes deste conjunto, com o predomínio da categoria da totalidade);

f) Constituir as representações dos objectos da experiência pela integração coerente (coerência funcional e/ou coerlncia lõgica) da realização das determinaçSes operatõrias/constituintes, referidas nas alíneas anteriores, com os dados da observação metõdica dos objectos respectivos (isto i constituir as representaçSes daqueles objectos em conformidade simultaneamente com a totalidade daquelas determinaçSes e com aqueles dados de observação metódica).

1.2. 0 objecto

0 objecto do problema a resolver na presente investigação I a representação cartesiana da união da alma e do corpo - enquanto o conteúdo e a constituição desta representação, considerados no interior do conjunto teórico em que se dão (o pensamento filosófico de Descartes) - não aparecem em conformidade nem com os princípios e regras metodológicas fundamentais da constituição do conhecimento gnosiológicamente válido, estabelecidas para (e por) aquele mesmo conjunto teórico, nem com a natureza (operatória) do sujeito constituinte da presente investigação (cuja identidade foi estabelecida no parágrafo imediatemente anterior).

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cartesiana da união da alma e do corpo que fazem aparecer esta representação na situação de não-conformidade, ou irregularidade constituinte acabada de referir:

A- A união da alma e do corpo é uma relação de integração ontológica

ill e funcional/operatória entre dois seres de identidades próprias e

determinadas pelas respectivas representações teóricas cartesianas (estabelecidas nos mesmos textos fundamentais em que Descartes põe aquela integração). Entre outras, são testemunho desta determinação da união da alma e do corpo as seguintes passagens dos escritos de Descartes:

a) A união da alma e do corpo é uma relação de integração ontológica: "eu nao estou somente alojado no meu corpo, como um piloto no seu navio, mas, para além disto [...] estou muito estreitamente ligado a ele e de tal modo unido e misturado, que componho com ele como que um só todo" (2); em passagem homóloga do Discurso do Método, Descartes escrevera que esta relação da alma e do corpo compõe "um verdadeiro homem" (3) e, em textos complementares ã primeira destas passagens, ele afirma que o corpo esta substancialmente unido k alma (4) e que o homem que resulta desta união e um ser por si, em oposição a um ser por acidente (5).

b) A união da alma e do corpo é uma relação de integração funcional/operatória. Esta determinação da união da alma e do corpo é testemunha por todas as descrições/explicações cartesianas do conhecimento sensorial, dos movimentos voluntários e das paixões da alma, descrições/explicações estas de tal modo conhecidas que se torna inútil exemplificá-las aqui. Lembra-se aqui somente que o Tratado do Homem e ° T r a t a d o É£s Paixões da Alma são os escritos onde Descartes mais desenvolvidamente trata estes temas e que as Meditações - que são o testemunho cartesiano fundamental sobre a distinção da alma e do corpo e sobre a sua relação de integração ontológica - poem também a relação da

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integração funcional/operatória destes componentes do homem (6).

B- As representações cartesianas da alma e do corpo não põem, por si mesmas, condições suficientes para constituir uma representação clara e distinta da união da alma e do corpo, enquanto relação de integração ontológica e funcional/operatória daqueles componentes do homem.

Segundo Descartes, tal como ê sabido, a alma humana é uma substância una/homogénea, não-extensa e cuja essência não é senão pensar; o corpo h u m a n o e» P°r u m lado, uma substância, ontologicamente redutível a matéria/extensão (determinável em comprimento, largura e altura e divisível ate ao infinito) e, por outro lado, um conjunto de elementos diversificados

(segundo a determinabilidade da matéria/extensão), mas funcional/operatóriamente unificado, segundo os princípios da mecânica universal (7).

Assim, a realidade mesma da alma aparece posta de modo insuficientemente determinado para que se possa constituir uma representação clara e distinta da sua participação na relação de integração ontológica e funcional/operatória que ê a união da alma e do corpo: aquela realidade nao apresenta determinações internas (ela é" una/homogénea) e não I concebida com o apoio de qualquer aparelho conceptual formal que permita pensar determinações suficientemente precisas no seu conteúdo (como ocorre com a representação cartesiana do corpo humano). Além disto, naquilo em que a realidade da alma ê determinada, ela define-se pela sua oposição i natureza da realidade mesma do corpo, não apresentando assim nenhum elemento que permita conceber, de modo claro e distinto, as relações que estas duas realidades possam estabelecer entre si, na sua relação de integração ontológica e funcional/operatória, constituinte de um novo ser - o homem.

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alma e do corpo humanos não tornam a relação de integração ontológica e funcional/operatória destes dois componentes do homem necessariamente impensável em definitivo, mas, por si sós, enquanto condições constituintes daquela relação de integração, não bastam para que tal relação seja pensável com clareza e distinção.

C. As condições constituintes próprias da união da alma e do corpo -enquanto relação de integração ontológica e funcional/operatória explicitamente postas por Descartes, não sao suficientes para superar a dificuldade de representar com clareza e distinção a realidade do objecto da representação cartesiana da união da alma e do corpo, dificuldade esta resultante das determinações constituintes da alma e do corpo, tal como se acabou de mostrar. Assim:

a) no que respeita ãs condições constituintes próprias da relação de integração ontológica da alma e do corpo, explicitamente postas por Descartes . Estas condições reduzem-se ã determinação daquela relação

de integração como uma unidade de composição (8), isto é uma relação em que os seus membros (a alma e o corpo) constituam um novo ser, e conservem nele as suas identidades próprias, podendo assim vir a ser separados um do outro, "pelo menos pelo poder infinito de Deus"(9). Esta determinação explícita da união da alma e do corpo enquanto relação de dois seres tem a vantagem de esclarecer a posição de Descartes sobre este ponto do seu pensamento, no entanto ela não traz nada de novo para superar a dificuldade de conceber com clareza e distinção as relações que a alma e o corpo estabelecem entre si na sua integração enquanto seres. Uma tal determinação não faz mais do que pôr, de modo directo e coneiso, as condições anteriormente estabelecidas por Descartes relativamente a esta relação (e que a deixaram insuficientemente determinada) sem nada acrescentar sobre a participação de cada um dos membros da relação em causa, na constituição

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desta mesma relação e, assim, sem nada acrescentar também sobre a possibilidade de conceber tal relação com clareza e distinção;

b) no que respeita às condições constituintes próprias da relação de integração funcional/operatória da alma e do corpo, explicitamente postas por Descartes. Estas condições consistem, por um lado, na determinação daquela relação de integração como um componente de séries causais (as séries causais que constituem/explicam cada um dos conhecimentos sensoriais, dos movimentos voluntários e cada uma das paixões da alma (10)) e, por outro lado, na determinação geral dos "contributos" do corpo e da alma, enquanto membros daquela mesma relação de integração funcional/operatória.

A determinação geral do "contributo" do corpo para a sua relação de integração funcional/operatória com a alma consistem em:

- uma atribuição ao corpo das funções diversificáveis de causa eficiente e de efeito - consoante a série causal em que aquele"contributo"sedá, se inicia, ou termina no corpo - relativamente à alma;

- uma localização da realização destas funções de causa eficiente e de efeito na glândula pineal;

- uma redução operatória destas mesmas funções a figuras e a movimentos bem determináveis (ainda que não bem determinadas por Descartes) daque la glândula, isto é a alterações de posição daquela glândula, relativa-mente a pontos do interior da concavidade do cérebro, onde Descartes a situa (11).

Trata-se pois de uma determinação deste "contributo" do corpo que torna possível a sua delimitação/representação precisa, com o apoio de aparelhos conceptuais formais rigorosamente construídos, como a geometria e a mecâni-ca implicitas na determinação geral mecâni-cartesiana deste mesmo 'contributo" embo-ra Descartes não chegue a estabelecer determinações exactas daqueles

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movimentos, nem para casos individuais, nem para casos específicos. No entanto, ele põe as condições teóricas dessas determinações, pelo conjunto teórico em que as situa.

A determinação geral do "contributo" da alma para a sua relação de integração funcional/operatória com o corpo consiste, por uma lado, também na atribuição à alma das funções diversificáveis de causa eficiente e de efeito - consoante a série causal em que aquele "contributo" se dá, se inicia, ou termina na alma - relativamente ao corpo e, por outro lado, num apelo â experiência interior do homem, para estabelecer a identidade das diversificações específicas deste "contributo", pondo cada uma destas diversificações na -sua globalidade, como todos acabados, sem fazer a sua determinação analítica e sem qualquer apoio de um aparelho conceptual formal que permita a sua delimitação/representação precisa, como ocorre com a determinação do "contributo" do corpo para a relação em causa: "todas as vezes que ela [a glândula pineal] se coloca do mesmo modo, ela faz sentir a mesma coisa ao espírito" (12); "toda a acção da alma consiste nisto, q u e somente pelo facto de ela querer alguma coisa, ela faz com que a pequena glândula, l qual ela está estreitamente junta, se mova do modo que k requerido para produzir o efeito que se reporta a esta vontade" (13); "eles

[os espíritos animais] excitam um movimento particular nesta glândula, ° clu a l I instituído pela natureza para fazer sentir a alma esta paixão

[a do medo]" (14).

Nestas condições, um dos membros da relação de integração funcional/operatória da alma e do corpo fica insuficientemente determinado para que dele se possa ter uma representação clara e distinta e, por conseguinte, a relação de integração em causa, considerada no seu todo, e atingida por aquela insuficiência, tornando-se assim resistente a ser representada com clareza e distinção.

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Se se considerarem ainda as respostas dadas por Descartes às dificuldades postas pela princesa Isabel, a propósito da acção da alma relativamente ao corpo, reconhece-se que estas respostas não tornam mais claro e distinto o pensamento cartesiano sobre esta questão. Assim, ã pergunta da princesa Isabel "como pode a alma do homem determinar os espíritos do corpo, para fazer as acções voluntárias" (15)

sugerindo entretanto a princesa Isabel que é a definição da alma apresentada pelas Meditações, que é causa desta dificuldade (16) -, Descartes responde comaidentificação dos meios (gnosiológicos) pelos quais um sujeito de conhecimento pode conhecer "a força que a alma tem para mover o corpo, e o corpo para agir sobre a alma, causando nela os sentimentos e as paixões" (17).

Todavia esta força (ou forças) não é ali analiticamente determinada por Descartes. Assim, esta resposta não traz nada de novo para a constituição de uma representação clara e distinta da relação funcional/operatória da alma e do corpo.

A sugestão apresentada por Descartes de conhecer a força pela qual a alma age sobre o corpo através da identificação desta força com aquela pela qual se admite comummente que um corpo age sobre outro (18) (dado que ele pensa que a representação desta última força resulta de uma projecção representativa ilegítima, que os sujeitos do conhecimento fazem comummente da "noção primitiva" daquela primeira força), não traz nenhum elemento novo, significativo, para conhecer claramente a força em causa. Por conseguinte aquela sugestão cartesiana também não contribui significativamente para o conhecimento claro e distinto da relação funcional/operatória do corpo e da alma.

A própria negação declarada da possibilidade de representar a relação em causa por um "contacto de uma superfície com outra" (19) não traz também

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nada de novo, visto que a alma já estava posta como privada de superfície, pela sua natureza de não-extensa.

Por sua vez, os esclarecimentos dados por Descartes na sua carta ã princesa Isabel3de 26 de Junho de 1643 não são mais eficazes para se atingir uma representação clara e distinta daquela mesma relação da alma e do corpo, do que aqueles que anteriormente ele já havia dado, apesar de ele aqui afirmar que "as coisas que pertencem ã união da alma e do corpo [..•]conhe-sem-se muito claramente pelos sentidos" (20).

0 contributo desta carta para o esclarecimento do pensamento de Descartes sobre a união da alma e do corpo reside na sua declaração de que "as coisas que pertencem ã união da alma e do corpo não se conhecem senão obscuramente pelo entendimento só, nem mesmo pelo entendimento auxiliado pela imaginação" (21); "usando somente da vida e das conversações comuns, e abstendo-se de meditar e de estudar as coisas que ocupam a imaginação, é que se aprende a concerber a união da alma e do corpo" (22). 0 próprio artifício, proposto por Descartes à princesa Isabel, de conceder materia e extensão à alma, nao ajuda em nada ã solução da questão em causa

(23). Aliás a princesa Isabel mostra estar plenamente consciente da insuficiência de todos os esclarecimentos que Descartes lhe prestara, pois que repõe a este a sua questão inicial: "reconheço também que os sentidos me mostram que a alma move o corpo, mas não me ensinamnada(nada mais que o entendimento e a imaginação) sobre o modo como ela o faz. E, por isso, eu penso que há propriedades da alma, que nos são desconhecidas, que poderão talvez destruir aquilo que as vossas Meditações Metafísicas me persuadiram, com tao boas razoes, sobre a nao-extensão da alma. E esta dúvida parece estar fundada na regra que vós aí dais, ao tratar do verdadeiro e do falso, e que todo o erro nos vem de formarmos juízos sobre aquilo que não apreendemos suficientemente" (24).

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Da análise precedente das condições constituintes da representação cartesiana da união da alma e do corpo, conlui-se por uma insuficiência radical de determinação do conteúdo desta representação - uma privação de clareza e distinção na sua determinação - o que é uma violação de uma determinação constituinte/operatória fundamental comum aos princípios e regras metodológicas admitidas para (e por) a constituição do conjunto teórico onde esta representação se dá (o pensamento filosófico de Descartes) e das determinações constituintes/operatórias postas pela natureza do sujeito constituinte da presente investigação (25).

Em consequência desta insuficiência radical de determinação, a representação cartesiana da união da alma e do corpo aparece, no interior do pensamento filosófico de Descartes, privada de garantia de verdade, isto é de necessidade, relativamente ao princípio que estabelece esta garantia (a clareza e distinção conceptuais enquanto critério de verdade). Nestas condições, aquela representação fica privada mesmo de realidade, enquanto representação gnosiologicamente válida, o que não só a afecta a ela mas também ã totalidade do conjunto teórico em que ela se insere, em consequência da posição constituinte que ela ocupa neste conjunto (26).

Aquela mesma insuficiência radical de determinação - violando também uma determinação constituinte/operatória própria da natureza do sujeito constituinte da presente investigação - põe de imediato a representação cartesiana da união da alma e do corpo, relativamente a este sujeito, como um objecto de conhecimento insuficientemente determinado. Esta situação impede a realização imediata das restantes determinações operatórias/constituintes postas pela natureza deste mesmo sujeito, relativamente ã representação em causa, enquanto objecto de conhecimento, uma vez que, pela natureza mesma de tais determinações constituintes/operatórias, estas só se poderem realizar relativamente a

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objectos bem determináveis (ainda que estes inicialmente se d£em de modo não completamente determinado).

Apesar de os testemunhos cartesianos legitimarem a atribuição dos caracteres gnosiol5gicos acabados de apontar ã representação cartesiana da união da alma e do corpo, Descartes nunca os admitiu (nomeadamente a falta de clareza e distinção) como suficientes para impedir aquela representação de ser um conhecimento gnosiolõgicamente válido.

A validade gnosiológica que Descartes confere à sua representação da união da alma e do corpo fundamenta-se na força, ou consistência gnosiológica que ele admite relativamente a dados imediatos provenientes de uma apreensão reflectida da sua pr5pria realidade enquanto sujeito-de-conhecimento-homem: estes dados não lhe permitem de modo algum admitir uma cisão radical na realidade que captam. Esta posição de Descartes é testemunhada no Discurso do Mátodo (27) e nas Meditaçóes (28), quando ele aí sustenta que não se pode admitir que a alma e o corpo humanos mantenham entre si o mesmo tipo de relaçóes que mantám um piloto com o seu navio,

Mas o que aqueles dados manifestam é a unidade de ser do sujeito-de-conhecimento-homem, posta na sua globalidade de modo imediato, portanto sem qualquer mediação teórica; a representação cartesiana da união da alma e do corpo, por sua vez, reporta-se (ou p5e) a uma unidade ontológica e funcional/operatória de dois seres, ai postos pela mediação das suas respectivas representaçÓes teóricas cartesianas - a representação da alma e a representação do corpo, estabelecidas por Descartes, anteriormente ã afirmação da união da alma e do corpo.

Nestas condiçÓes, a representação cartesiana da união da alma e do corpo tem necessariamente um conteúdo diferente daquele que i posto e

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garantido pelos dados imediatos da auto-apreensão que o sujeito-de-conhecimento-homem faz da sua realidade/unidade de ser. E é justamente na integração representativa numa mesma representação

(reportando-se a um mesmo ser) dos conteúdos, teoricamente estabelecidos, das representações cartesianas da alma e do corpo - os quais não estão presentes na representação de "unidade de ser" posta por aqueles dados imediatos - que reside o núcleo da dificuldade de conceber clara e distamente a representação cartesiana da união da alma e do corpo, tal como a princesa Isabel o reconheceu (29).

1.3. 0 problema

Apesar dos caracteres gnosiológicos acabados de assinalar relativamente à representação cartesiana da união da alma e do corpo - nomeadamente a insuficiência radical de determinação do seu contudo essencial, com as respectivas consequências gnosiológicas - esta representação impõe-se como um dado a qualquer sujeito de conhecimento que tenha o pensamento filosófico de Descartes como seu objecto: ela está lã e ocupa uma posição fundamental na sua constituição. Ela é assim, para este sujeito, um objecto-dado (fundamental) a conhecer.

Tendo simultaneamente em conta os caracteres gnosiológicos da representação cartesiana da união da alma e do corpo, acabados de referir, e as determinações operatórias/constituintes próprias da natureza do sujeito de conhecimento constituinte da presente investigação, reconhece-se que aquela representação cartesianase dá como um ser-obstãculo para a realização imediata deste sujeito, nomeadamente se tal representação fõr considerada enquanto elemento constituinte nuclear do pensamento filosófico cartesiano. Assim:

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cartesiana da união da alma e do corpo torna não só este conteúdo (considerado em si mesmo) resistente â realização do sujeito de conhecimento constituinte da presente investigação (pela resistência que aquele conteúdo oferece ã realização da determinação operatória/constituinte deste sujeito, que poe a clareza e a distinção conceptuais como condição necessária ã constituição de representação), mas aquela insuficiência radical de determinação torna igualmente resistentes ã realização daquele sujeito as relações (ou séries de relações) onde aquele mesmo conteúdo se integra como um elemento constituinte . Assim, por exemplo, a inclusão da representação cartesiana da união da alma e do corpo numa série de relações explicativas da ocorrência de um conhecimento sensorial (segundo o modelo cartesiano de explicação deste tipo de conhecimento) torna impossível representar com clareza e distinção a zona desta série onde aquela representação se situeL, o que afecta o poder explicativo da totalidade da série, segundo a natureza do sujeito em causa (a menos que algum artifício metodológico isole o conteúdo representativo resistente a ser representado clara e distintamente);

b) a fundamentação gnosiológica da representação cartesiana da união da alma e do corpo torna esta representação resistente ã realização do sujeito de conhecimento constituinte da presente investigação, em consequência da resistência que esta fundamentação oferece ã realização da determinação constituinte/operatória deste mesmo sujeito de conhecimento, a qual estabelece que a constituição de representações se dê por relações

explicativas e/ou compreensivas, formalmente necessárias, em função de princípios relativos ã natureza dos objectos a conhecer. Esta situação de resistência gnosiológica torna-se particularmente manifesta se se tiver em conta que a determinação teórica anteriormente feita por Descartes dos componentes daquela união (isto é dos "contributos" da alma e do corpo para aquela união) põe aquela mesma união - pelo menos aparentemente

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resistente a ser representada de imediato com clareza e distinção, isto é resistente a ser representada em conformidade com uma determinação constituinte/operatória fundamental do sujeito de conhecimento constituinte da presente investigação. Ora, a representação cartesiana da união da alma e do corpo, tal como ela se dá no interior do pensamento filosófico de Descartes, é um dado imediato (isto é não é posta por uma série dedutiva). As duas únicas relações constituintes/explicativas possíveis, para esta representação cartesiana, são, por uma lado, a que estabelece a sua dependência constituinte (ontogenica) relativamente a Deus/Criação

(enquanto "noção simples" inata, segundo o pensamento filosófico de Descartes) e, por outro lado, a que estabelece a sua dependência gnosiológica (fundamentação gnosiológica) da intuição/critério de verdade. No que diz respeito ã primeira destas duas relações, ela dá-se pela admissão de um elemento (Deus/Criação) não representável pelo sujeito em causa de modo totalmente determinado; no que respeita ã segunda daquelas relações (bem assim como ã primeira), a insuficiência radical de determinação do conteúdo da representação cartesiana da união da alma e do corpo põe esta representação numa relação de não-conformidade (ou irregularidade constituinte) com o princípio/critério de verdade que, segundo o conjunto teórico onde esta representação cartesiana se dá, estabelece a garantia de validade gnosiológica dos resultados da intuição (pois o que de algum modo aparece garantido por aquele princípio/critério de verdade, tal como anteriormente se mostrou, é a unidade-de-ser(homem), cujo conteúdo constituinte nao coincide com o da representação cartesiana da união da alma e do corpo, em consequência dos elementos teóricos desta representação, como também se mostrou. Nestas condições a representação cartesiana da união da alma e do corpo aparece privada de relações constituintes/explicativas e/ou compreensivas suficientes para a determinar, segundo as condições postas pelo sujeito de conhecimento constituinte,

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da presente investigação, o que a pÕe privada de necessidade. Dado que esta "privação de necessidade" ocorre também relativamente a princípios e regras metodológicas fundamentais da constituição do conjunto teórico onde aquela representação se dá, ela aparece assim privada de necessidade na sua constituição e realidade mesmas (dado que aqueles princípios e regras sao constituintes (gnosiológicos) da necessidade do todo em que aquelas constituição e realidade se dão como partes);

c) A privação de relações constituintes/explicativas e/ou compreensivas estabelecidas com necessidade, acabada de referir, torna, por sua vez, a representação cartesiana da união da alma e do corpo resistente â realização da determinação operatória/constituinte (própria do sujeito de conhecimento constituinte da presente investigação) que estabelece que a representação de um objecto se constitua em conformidade com o princípio geral da razão suficiente, visto que a privação das relações mencionadas, priva a representação cartesiana da união da alma e do corpo da possibilidade de se lhe determinar uma "razão suficiente", com necessidade ;

d) A admissão simultânea da integração da representação cartesiana da união da alma e do corpo (apresentando os caracteres gnosiológicos mencionados) num dado conjunto teórico (o pensamento filosófico de Descartes) e da violação - pelo menos aparente - pela constituição daquela representação cartesiana, de princípios e regras (metodológicas) da constituição mesma deste conjunto teórico, produz uma contradição constituinte, ou incoerência funcional. Nestas condições, a constituição da representação cartesiana em causa torna-se resistente ã realização do sujeito constituinte da presente investigação, pois que ele não poderá representar aquela constituição (e a resultante desta constituição) em conformidade com a sua forma operatória geral:e]a oferece-se-lhe como o resultado de uma contradição (constituinte).

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^3

Assim, se o sujeito constituinte da presente investigação admite como u m dado definitivo esta situação constituinte da representação cartesiana da alma e do corpo, ou ele suspende definitivamente a sua realização, relativamente àquela representação cartesiana (e também em relação a grande parte do conjunto teórico onde ela se dá, em consequência dos efeitos gnosiologicos que produz a posição constituinte capital de tal representação neste conjunto), ou ele procura encontrar um fundamento suficiente, nao só para aquela representação cartesiana, considerada exclusivamente na sua realidade própria, mas também para a contradição constituinte, ou incoerência funcional assinalada, em que ela se dá. Isto e procura encontrar, para tal representação e para a situação constituinte em que ela se dá, uma "razão suficiente", que lhes confira necessidade.

Se o sujeito em causa fizer esta última opção, ele muda a sua relação com a representação cartesiana da união da alma e do corpo: esta passa de simples obstáculo (para a realização daquele sujeito) a "objecto" de um "problema". E a constituição de um novo conhecimento desta representação e da sua situação constituinte torna-se, para aquele sujeito, um verdadeiro "problema".

Dadas as condições em que a representação cartesiana da união da alma e do corpo se pÕe para o sujeito constituinte da presente investigação como "objecto" de um "problema", a procura de uma "razão suficiente", que confira necessidade aquela representação cartesiana e à situação constituinte em que ela se dá, fica sujeita as seguintes determinaçÓes constituintes (conjunturais):

a) Admitindo-se que a privação de necessidade nas relações constituintes da representação cartesiana da união da alma e do corpo resulta da não-conformidade destas relações com dados princípios e regras metodológicas, para se encontrar/conferir necessidade a estas relações

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torna-se necessário reportá-la a outro(s) princípio(s) que seja(m) suficiente(s) para as determinar como necessárias (conservando-lhes no entanto a sua identidade, inclusive a não-conformidade que elas manifestam relativamente aos princípios e regras metodológicas em causa):

b) Se se admitir que a privação de necessidade nas relações constituintes da representação cartesiana da união da alma e do corpo resulta da nao-conformidade destas relações com princípios e regras fundamentais que determinam "de direito" a constituição destas relações, a necessidade a encontrar/conferir relativamente a estas relações pressuporá necessidade na relação de não-conformidade que elas manifestam relativamente aos princípios e regras metodológicas em causa. Isto é o fundamento suficiente daquelas relações, terá de fundamentar suficientemente a violação daquela determinação "de direito". Caso contrário, por um lado, tais relações continuariam sendo a realização mesma de uma violação formal infundada e, por outro, o seu resultado imediato - a representação cartesiana da união da alma a do corpo - continuaria privada de realidade no seu género (enquanto conhecimento gnosiologicamente cons v^V-e^te), visto que aqueles princípios e regras são constituintes formais desta realidade. E, em consequência da determinação operatória/constituinte (posta pela natureza do sujeito de conhecimento constituinte da presente investigação), que estabelece a clareza e distinção conceptuais como condição necessária da constituição de representações, a fundamentação suficiente da relação de não-conformidade, acima referida, terá de ser estabelecida de modo explicito.

c) Em consequência do estabelecido nas duas alíneas imediatamente anteriores, o(s) princípio(s) (procurado(s)), que fundamente(m) com necessidade as relações constituintes da representação cartesiana da alma e do corpo, serã(serão) também um (uns) princípio(s) suficiente(s) para

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45

fundamentar com necessidade a relação de não-conformidade daquelas relações constituintes com os princípios e regras metodológicas que determinam "de direito" a constituição daquelas mesmas relações constituintes.

d) Tendo em conta o estabelecido na alínea imediatamente anterior, o princípio que fundamente com necessidade as relações constituintes da representação cartesiana da união da alma e do corpo será um princípio que determine, em geral, o uso dos princípios e regras metodológicas mencionadas, que determinam "de direito" a constituição daquelas relações constituintes - caso contrário tal princípio não seria suficiente para fundamentar em necessidade uma ocorrência de não-conformidade relativamente àqueles princípios e regras metodológicas.

e) Tendo finalmente em conta que os princípios e regras metodológicas referidas na alínea imediatamente anterior, são os princípios e regras metodológicas fundamentais da constituição do pensamento filosófico de Descartes em geral, o princípio (procurado) que fundamente, com necessidade, as relações constituintes da representação cartesiana da união da alma e do corpo, será um princípio que determine, em geral, o uso dos princípios e regras metodológicas fundamentais da constituição do pensamento filosófico de Descartes em geral.

Assim, tendo-se encontrado um princípio que reúna tais condições

e uma vez estabelecida, relativamente a ele, a necessidade nas relações constituintes da representação cartesiana da união da alma e do corpo._ esta representação muda uma vez mais de significado para a realização do sujeito de conhecimento constituinte da presente investigação, tornando-se agora um objecto-meio, ou instrumento desta realização (depois de ter sido um obstáculo e um "objecto" de um "problema"),

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N O T A S

Dir-se-ia ôntica e não ontológica esta relação de integração entre a alma e o corpo, se não se quisesse evitar uma distinção conceptual/terminológica que, reportando-se a um contexto conceptual completamente estranho a Descartes e ã sua época pode afectar a representação da constituição do pensamento filosófico de Descartes, que se procura atingir pela presente investigação.

Cf. Méd., VI, AT, IX-1, p.64. Cf. Disc. Méth., V, AT, VI, p.59. Cf. Rép., IV, AT, IX-1, p.177.

Cf. a Regius, Janeiro de 1642, AM, V, p.134.

Cf., Méd., VI, nomeadamente AT, IX-1, p.69-70. Aqui Descartes, ao procurar fundamentar a validade do conhecimento sensorial, põe a claro a participação conjunta e ordenada do corpo e da alma na constituição deste tipo de conhecimento, embora sem desenvolver este tema. No que toca ao Discurso do Método, a relação de integração funcional/operatória da alma e do corpo não aparece directamente abordada, no entanto na Dioptrica ela é manifestamente posta pela teorização do conhecimento sensorial (cf. Dioptique, IV, AT, VI, p.p.109-114).

Dado que os caracteres enunciados em relação à natureza da alma e ã do corpo são claramente manifestos e constantes nos escritos cartesianos e dado que estes escritos são bem conhecidos, não se apresentarão aqui senão passagens de dois destes escritos, a título meramente exemplificativo: Disc. Méth., VI, AT,VI,p .p. 31-40 e Méd.,

II, V e VI, AT, IX-1, p.p. 18-36, 50-58, 59-72, respectivamente.

Cf. Rép., VI, AT,__ IX-1, p.p.226-228. Retomar-se-á no decurso da presente investigação esta determinação cartesiana da união da alma e do corpo como uma unidade de composição (cf., infra, p.p.523-533. A concepção da união da alma e do corpo como unidade de composição aparece implicita em passagens do Discurso do Método e das Meditações pelo uso de formas do verbo composer (e do verbo componere, na versão latina das Meditações, cf., Méd., VI, AT, VII, p.81), para designar a relação aí afirmada entre a alma e o corpo - cf., respectivamente, Disc. Méth., V, AT, VI, p.59 e Méd., VI, AT, IX-1, p.64.

"Au moins par la toute puissance de Dieu", Rép., VI, ib., p.228.

Cf. nomeadamente Tr. Hom., AT, XI, p.p.119-202 e Pass., ib. , p.p.327-497.

Cf., entre outros testemunhos cartesianos: Tr. Horn., AT, XI, p. 176 e seg.; Pass.(nomeadamente I, 34, AT, XI, p.p.354-355.

Cf. Méd., VI, AT, IX-1, p.69, (sublinhado por nós). São exemplos das frequentes invocações cartesianas da experiência interna do homem em geral, como meio para identificar globalmente as diversificações do contributo da alma na sua relação de integração funcional/operatória com o corpo: "le mouvement [...] donnera occasion à l'âme [...] d'avoir le sentiment de la douleur" (Tr. Horn, AT, XI, p.144); "un mouvement

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