• Nenhum resultado encontrado

Da invisibilidade ao reconhecimento: experiência de roda de conversa e validação da bissexualidade em São Paulo

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Da invisibilidade ao reconhecimento: experiência de roda de conversa e validação da bissexualidade em São Paulo"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

Da invisibilidade ao reconhecimento: experiência de roda

de conversa e validação da bissexualidade em São Paulo

From invisibility to recognition: experience of conversation and validation of bisexuality in São Paulo

Cinthya Giselle Coutinho Oliveira dos SantosI, Natasha AvitalII, Santiago de Paiva BernardesIII,

Wesley Torres Rodrigues FerreiraIV

Abstract

This article discuss the “Circle of Validation of Bisexual Expe-riences”, that happened in São Paulo during eight months, and used crochet as a facilitator. The purpouse of the activity was to initiate discussion of the lived experiences, needs, positive and negative aspects of participant’s experiences, besides allowing union and strengthening of this population, in a place where they felt welcomed and comfortable to freely expose individual as-pects, seen as the experience of each participant, but seeking to understand if there are and what are the social issues behind these moments.

Keywords: Bisexuality; Validation; Conversation circle.

I Cinthya Giselle Coutinho Oliveira dos Santos (psi.cinthyasantos@gmail.

com) é bacharel em Psicologia pela

II Natasha Avital (jefreylidel@hotmail.com) é bacharel em Direito pela

Univer-sidade Católica de Santos (UNISANTOS), Técnica Administrativa na Procura-doria da República em Santos e moderadora do coletivo Bi-Sides.

III Santiago de Paiva Bernardes (santiagodepaiva@gmail.com) é bacharel em

Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), Psicólogo do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Campi-nas e moderador do coletivo Bi-Sides.

IV Wesley Torres Rodrigues Ferreira (wesleytorresr@hotmail.com) é bacharel

em Psicologia pela Universidade Paulista (UNIP), Psicoterapeuta em São Pau-lo e integrante do coletivo Bi-Sides.

V Pansexualidade é a atração afetiva e/ou sexual por todos os gêneros. VI Polissexualidade é a atração afetiva e/ou sexual por vários gêneros e não

tem relação com o termo “poliamor”, que é a relação amorosa de duas ou mais pessoas simultaneamente.

Resumo

O presente artigo trata sobre a realização da “Roda de Validação de Experiências Bissexuais” realizada em São Paulo durante oito meses, que se utilizou de técnicas de crochê como pano de fundo para facilitação dos encontros. A roda de conversa surgiu com o in-tuito de levantar uma maior discussão sobre as vivências, deman-das, aspectos positivos e negativos das experiências relatademan-das, além de proporcionar união e fortalecimento da população presen-te em um espaço onde se sentissem acolhidos e confortáveis para expor livremente aspectos individuais, entendidos como vivência de cada participante, porém buscando compreender se há e quais são as questões sociais por trás destes momentos.

Palavras-chave: Bissexualidade; Validação; Roda de conversa.

Introdução

U

tilizaremos o conceito de “monodissidên-cia” – termo que surgiu dentro do ativis-mo bissexual para definir as orientações que se atraem por mais de um gênero1 – para

citar a “pan”V, “poli”VI, bissexualidade e outras

identidades não monossexuais em um único ter-mo, facilitando assim, a apresentação deste arti-go. Para os sujeitos que se identificam com cada uma destas sexualidades, entende-se que a bis-sexualidade é a atração pelo seu próprio gênero e outros gêneros, enquanto que a pansexualida-de é a atração por pessoas inpansexualida-depenpansexualida-dentemente de seu sexo ou identidade de gênero e a polise-xualidade é a atração por múltiplos gêneros. O que há em comum entre estas três orientações é que o sexo e a identidade de gênero podem, ou não, ser um fator que discrimine o relacionamen-to com outras pessoas2.

Por terem a característica de não se atrair por apenas um gênero, os monodissidentes fre-quentemente sofrem preconceito por pessoas tanto homo, quanto heterossexuais. De modo ge-ral, indivíduos monossexuais enxergam os pan,

(2)

poli e bissexuais como pessoas em transição de uma sexualidade para outra, ou como em bus-ca de aceitação social em função da atração por pessoas do sexo oposto.

Este preconceito que bissexuais sofrem é denominado “bifobia”. De acordo com Oliveira, Machado e Neves3, a bifobia, assim como a

les-bofobia e a homofobia, é um conjunto de sen-timentos negativos e medos irracionais que se tornam nítidos por manifestar desprezo, incômo-do, antipatia, e outras atitudes discriminatórias e hostis. Especificamente falando sobre a bifobia, esta se apresenta também na forma de estereó-tipos e julgamentos que consideram o indivíduo que se identifica bi como promíscuo, portador/ vetor de IST (infecções sexualmente transmis-síveis), indeciso e infiel. É comum que pessoas evitem relacionamentos com os bissexuais por achar que serão traídos com pessoas do sexo oposto ou do mesmo sexo3.

Por conta do preconceito vivido, indivíduos monodissidentes sofrem constantemente o apa-gamento de suas experiências, sendo diminuídos ou excluídos, mesmo dentro da comunidade lébi-ca, gay, bissexual, trans, queer e outras sexuali-dades (LGBTQ+). Nela, existe uma prática homo-normativa em que os indivíduos que expressam desejo sexual por pessoas do gênero oposto so-frem exclusão, o que acaba reforçando a monos-sexualidade em detrimento da monodissidência dentro da comunidade4. Por exemplo, até certo

tempo, a sigla para representar pessoas não he-terossexuais era “GLS” (gays, lésbicas e simpati-zantes), sendo só depois incluída a bissexualida-de como uma sexualidabissexualida-de específica e não como um meio-termo.

Conforme apontado por Machado, Alves e Dickson5, um dos aspectos da invisibilidade

bis-sexual está relacionado a alguns papéis de gêne-ro. Por exemplo, os homens bissexuais são con-siderados gays que não se assumiram para fugir

do papel de afeminado apoiando-se no fato de que não é necessário se assumir heterossexual em um contexto heteronormativo5. Já as

mulhe-res bissexuais têm a sua sexualidade fetichizada até mesmo em estudos científicos, como os re-sultados da pesquisa publicada por Rieger e co-legas6, que apontou que todas as mulheres são

bissexuais, apontando o tom machista da discus-são deste, uma vez que o corpo feminino se torna alvo de fantasias como o ménage à trois (relação sexual a três), em que se idealiza principalmen-te o homem como dominador de duas mulheres submissas.

Também será explorada como a exclusão e a invisibilidade dessa população bissexual se dá, não somente do ponto de vista do senso co-mum, mas também com profissionais. Nos aten-dimentos em Psicologia e Psiquiatria, por exem-plo, a bissexualidade ainda é muito confundida com bipolaridade, transtorno borderline e outros diagnósticos relacionados a um senso instável de identidade e comportamento sexual de risco.

Partindo desses pressupostos, este artigo visa elucidar de forma prática as contribuições da “roda de validação de experiência para pes-soas bissexuais”, cujo intuito de criação consti-tui-se em lutar contra a invisibilidade através da legitimação desta sexualidade como uma orien-tação válida e existente, trocar experiências de apagamento a fim de reconhecer quando estas ocorrem, criar vínculos de apoio entre os partici-pantes, amenizar sofrimentos relacionados à pró-pria sexualidade e trazer temas pouco discutidos dentro e fora da comunidade LGBTQ+.

Método-Proposta

A Roda de Conversa e Validação das Expe-riências Bissexuais foi proposta por integrantes do coletivo Bi-sides e surgiu com a necessidade de reconhecimento e validação das orientações

(3)

sexuais monodissidentes, para que os participan-tes pudessem compreender sua própria orien-tação como válida frente ao contexto social de apagamento e exclusão em que comumente está inserida.

Os encontros desta roda foram realizados quinzenalmente entre os meses de novembro de 2017 e junho de 2018, no Centro Cultural de São Paulo, das 14:00 às 17:30 horas. A divulgação dos encontros era feita por eventos em redes so-ciais como o Facebook, através do site do coleti-vo Bi-Sides e por indicação de amigos. Para faci-litar o reconhecimento do grupo, deixava-se uma bandeira bissexual no centro da roda. Apesar de ser chamada de “roda de validação das experiên-cias bissexuais”, a roda era aberta para qualquer pessoa monodissidente – ou seja, que se difere da orientação voltada a apenas um gênero, caso da homo e heterossexualidade.

A roda de conversa não precisava de inscri-ção, nem de sinalização prévia dos participantes, funcionando de “portas-abertas”, de modo que qualquer pessoa que se interessasse pudesse participar, porém sendo ressaltado que o espaço seria de troca e validação de experiências para pessoas monodissidentes, de modo que essas se sentissem acolhidas e representadas, além de livres para expressar suas vivências sem jul-gamentos morais ou preconceitos.

A princípio, a proposta foi que a roda de validação fosse fechada com participação ex-clusiva de pessoas monodissidentes que não pudessem pagar por um acompanhamento tera-pêutico ou espaços semelhantes, porém no de-correr, decidiu-se que funcionaria em esquema aberto. Portanto, em alguns momentos houve a participação de pessoas monossexuais que co-meçaram a participar e se sentiram confortáveis nos encontros por enxergar ali um momento de troca, sem apresentar comportamentos que pu-dessem interferir de modo negativo no objetivo

dos encontros. Isso tornou o espaço acolhedor também para os que buscavam entender mais acerca do assunto e expressar a sua experiência enquanto monossexual em proximidade com as vivências monodissidentes.

Devido a esse tipo de funcionamento mais liberal, a roda de validação não contava com um número fixo de participantes por encontro. Em-bora não houvesse nenhuma restrição etária. Os participantes vinham de todas as regiões de São Paulo, inclusive alguns da região metropolitana ou cidades do interior, como Campinas, entre outras.

O crochê foi utilizado como “pano de fundo” para a troca de experiências, sendo que este não era um recurso obrigatório para a participação na roda. Quem não conhecesse a técnica poderia aprender a fazer com o material disponibilizado (lã e agulhas), caso tivesse interesse. Em alguns momentos, o crochê serviu como analogia para as vivências ou como mecanismo para aliviar a tensão de alguns debates. Com o decorrer das rodas, os participantes começavam a trazer su-as próprisu-as técnicsu-as, como desenho, criação de pulseiras, brincos e outras peças, tornando as atividades no grupo mais diversificadas.

Nenhum dos participantes era obrigado a expor suas vivências, visto que o pressuposto é que cada pessoa tem uma relação diferente com as suas experiências e abordar certos assuntos pode gerar sofrimentos. Dessa forma, quando as pessoas sentiam-se confortáveis para falar e “se abrir” acerca de determinado tema, lhes era da-do espaço para a discussão da-do tópico, além da possibilidade de realizar, junto com o grupo, cor-relações com os prováveis motivos da ocorrência de tal situação, permitindo que fossem levanta-dos eventos semelhantes convivilevanta-dos por outros integrantes que serviriam de contraponto ou não para esclarecer e evidenciar detalhes e definir a similaridade de vivências e situações às quais os bissexuais são expostos.

(4)

O grupo tinha total liberdade para propor assuntos a serem debatidos, porém, quando a proposta temática não surgia espontaneamente nos participantes, os mediadores dos encontros facilitavam a conversa propondo alguns temas.

Em um grupo como esse, o mediador tem a preocupação de se ater a tais detalhes para poder unir as semelhanças e diferenças do que for rela-tado e, de forma elucidativa e por vezes didática, evidenciar se tais eventos podem ser desencade-ados por um mesmo sintoma indicativo (como a bifobia, a sobrecarga das expectativas dos pais sobre os filhos, a relação entre machismo e a LGB-TQfobia, entre outros). Além disso, verifica a pos-sibilidade de exemplificar sobre qual tema o as-sunto pautado se refere, nos diferentes contextos (relacionamentos amorosos, trabalho, estudos, família, etc.) para esclarecer formas de lidar com cada um desses contextos, em dadas situações e como cada um dos participantes da roda de con-versa podem lidar com a mesma situação eviden-ciando que não existe uma maneira certa de agir e reagir, mas sim diversas maneiras, sendo todas caminhos possíveis que podem estar de acordo com a necessidade e a vontade do indivíduo.

É necessário ressaltar que, no início da for-mação das rodas, é comum as pessoas não es-tarem dispostas a se expressar, principalmente por não conhecerem o ambiente e não saberem o que poderá ser bem visto ou não em tal espaço. Por este motivo, os mediadores buscam sempre trazer informações e vivências para impulsionar o restante dos participantes a pensar em experi-ências pessoais, a respeitar as opiniões alheias e/ou adversas e, em caso de discordância, expor com o cuidado de como o outro iria receber tal opinião, de forma que o espaço não se torne tó-xico, além de possibilitar que as pessoas presen-tes pratiquem o acolhimento.

A roda foi uma iniciativa de baixo custo com mediação voluntária e de funcionamento simples,

sem necessidade de inscrição, preenchimento de formulários ou burocracia e sem o uso de uma linha teórica específica – visto que contou com mais de um mediador – explicitando que técnicas de manejo de grupo comuns podem ser aplicadas sem grandes dificuldades, independente das con-cepções teóricas de seus organizadores, sendo portanto um projeto de fácil aplicação, reprodu-ção e continuidade.

Descrição

A Roda de Conversa e Validação das Experi-ências Bissexuais teve uma alcance notável, com momentos de participação de 6 pessoas, outros de 30 integrantes, numa média de 12 participan-tes por encontro, com idades de 20 a 40 anos – demonstrando o interesse de participantes de-vido provavelmente à pouca existência de espa-ços que contam com a presença de profissionais capacitados para falar de bissexualidade e mono-dissidência e a manejar as discussões de modo que os preconceitos interiorizados e os eventos vividos de discriminação frente a essas práticas fossem debatidos de maneira saudável, questio-nando a forma como essa discriminação ocorreu e foi constituída.

No decorrer dos encontros foi possível cons-tatar que a quantidade de assuntos abordados foi crescendo gradualmente, devido à sensação de conforto e acolhimento desenvolvido pelos inte-grantes, devido à continuidade de participações. A cada encontro foram debatidos diversos temas, muitas vezes pautados pelos próprios participan-tes que traziam suas de vivências pessoais, que, com o tempo, se sentiam impulsionados a refletir criticamente acerca de novas experiências vivi-das e relatavivi-das.

O crochê enquanto facilitador de troca de experiências esteve disponível para os participan-tes, a quem quisesse fazer ou aprender. Mesmo

(5)

não sendo o enfoque dos encontros, notou-se que algumas pessoas tinham maior interesse em aprender e praticar essa arte, ao ponto de trazer materiais já feitos para serem apresentados na roda de conversa aos demais.

Os assuntos da roda de conversa sempre giraram em torno da bissexualidade e monodissi-dência, permeando também temas como formas de relacionamento e amor, papéis de gênero, identidades de gênero, relações familiares, tra-balho e representações sociais. Na maioria das vezes, foi marcante o relato da dificuldade de li-dar com preconceitos e discriminações frente a outros contextos, estando nítidos como tais con-flitos são geradores de angústias.

Observou-se que em alguns momentos, quando alguém relatava uma situação conflitu-osa vivida, os demais participantes que haviam passado por situações semelhantes, sugeriam ao grupo maneiras de como enfrentar tais situa-ções. Isso proporcionava que, no final das discus-sões, todos pensassem em conjunto sobre as formas de encarar a adversidade citada, visando a mudar a situação.

As diversas maneiras de ação e reação frente às experiências discriminatórias foram abordadas, proporcionando momentos de maior racionalidade e reflexão para lidar melhor com a situação e escolher a melhor atitude a ser to-mada, evitando ações baseadas apenas em rea-ções emocionais que podem ter consequências mais sérias para quem está sendo discriminado – principalmente quando a discriminação advém de alguém muito próximo – uma vez que a vítima tende a, muitas das vezes, entender o ato como um ataque pessoal e não como uma questão so-cial. Assim, o grupo pôde proporcionar várias re-flexões acerca de diversos preconceitos instau-rados na sociedade, facilitando que a vivência desses eventos fosse vivida maior preparo; além de proporcionar às pessoas que não viveram tais

situações, pudessem se preparar para lidar com ocasiões semelhantes.

Discussão

Por normalmente não serem aceitos e en-tendidos como uma sexualidade diferente da ho-mo e heterossexualidade, os ho-monodissidentes convivem com uma presença muito forte do sen-timento de solidão, o que se acentua por não te-rem referência de encontros e grupos nos quais possam se comunicar com pessoas que têm ex-periências semelhantes e que permitam a troca de vivências. As questões são vividas de forma individual, quando na realidade são ocorrências comumente enfrentadas por pessoas bi, pan e polissexuais, dentre outras identidades.

Frente a um contexto hostil de discrimina-ção, negação e exclusão dentro e fora da comuni-dade LGBTQ+, o acolhimento e a empatia se mos-traram ser recursos fundamentais para a manu-tenção dos encontros. O ambiente descontraído com respeito e cuidado com o próximo se fez níti-do em nível tanto individual quanto coletivo, como por exemplo, a atenção em acolher a identidade de gênero e o nome social dos integrantes – os quais em diversos espaços são desrespeitados. Esse acolhimento foi de fundamental importância para que os participantes se sentissem motiva-dos a irem aos encontros seguintes.

A relação dialógica estabelecida no grupo pelos mediadores pode ser compreendida a partir da teoria da Gestalt7, que pontua que a relação

estabelecida nesses grupos pode ser descrita por várias características, mas principalmente por: (1) presença; (2) confirmação; (3) inclusão; e (4) dis-posição para a comunicação aberta. A Gestalt aponta que a presença está representada pela postura disposta por parte do terapeuta, do clien-te (no caso, o participanclien-te) e do relacionamento, sem fingir interesses. A confirmação é entendida

(6)

pela postura de aceitação incondicional do outro, de que o outro é amado e valorizado independen-temente de concordar ou não com seus posicio-namentos. Já a inclusão é entendida como a pos-tura de comunicar a empatia ao cliente, de forma que seja possível validar sua experiência. Por fim, a disposição para a comunicação aberta, significa propiciar um ambiente em que o outro se sinta livre para dividir sua experiência7.

Na roda, mesmo se tratando de um conceito bastante utilizado na clínica psicológica individu-al, foi possível estabelecer uma relação dialógica com os participantes da roda de conversa. Essa atitude permitiu que fosse possível sentir, expe-rienciar e perceber o outro como uma pessoa e não como algo. À medida em que os facilitadores adotaram essa forma de contato com o outro, notou-se que os demais participantes também procuraram uma postura mais genuína e franca de estar na presença dos demais. Assim, com o ambiente acolhedor e uma postura não discrimi-natória, foram debatidos diversos assuntos rela-cionados à monodissidência; muitos deles pau-tados em preconceitos do qual foram alvo e situ-ações-problema vividas pelos participantes que lhes atingiram negativamente, causando dúvida, constrangimento, mal-estar e sofrimento. Essas vivências puderam nortear o tipo de discussão que seria plausível nos encontros seguintes, en-volvendo a prevenção e formas de lidar com no-vas experiências desagradáveis, embora as con-sequências psicológicas causadas pelo sofrimen-to vivido ainda tivessem deixado suas marcas. Por esse motivo, os integrantes do grupo sempre buscavam trazer mais situações para o debate, evidenciando a necessidade que tinham de falar sobre o assunto.

A experiência da roda de conversa mostrou que as pessoas monodissidentes enfrentam uma quantidade específica e significativa de precon-ceitos e estereótipos negativos ligados à sua

identidade. Isso se agrava porque também no meio acadêmico e científico há reflexos dessa vi-são distorcida sobre essa população e que não tem acompanhado a demanda de saúde psicos-social de que os monodissidentes precisam. Se-gundo Teixeira-Filho e Rondini8, os adolescentes

bissexuais apresentam maior índice de ideação e tentativas de suicídio em comparação com os monossexuais. Isso ocorre porque as pessoas bissexuais são constantemente incompreendidas devido a uma cultura sexual binária, que faz com que aqueles que se atraem por dois ou mais gê-neros sejam lidos como “confusos”, “indecisos” ou “imaturos”8.

Machado e colegas5 (p.3), ao falar sobre a

bissexualidade e a necessidade de se assumir ou identificar-se como bissexual, destaca que, diante a tanta confusão e estereotipação existen-te, por mais que haja o ideal da não-rotulação – uma vez que as pessoas de fato, não precisam da autoafirmação o tempo inteiro –, o bissexu-al sempre necessita de explicação e definição, justamente pelo fato de esse indivíduo não ser identificado ou compreendido. Nesse sentido, es-sa “necessidade” de dizer, já surge como um ato político e de resistência para amenizar a invisibi-lidade existente5.

Maria Leão de Aquino Silveira1, com outra

perspectiva quanto ao ato de se assumir como bissexual pontua que, diferentemente dos ho-mossexuais onde o ato de “sair do armário” sig-nifica formar laços comunitários com redução de sofrimento e estresse, a pessoa bissexual sofre pressão quando se assume por supostamente ter que “se decidir” quanto à própria sexualidade e ser cobrada a repensar o termo com o qual se identifica. Isso faz com que seu sofrimento não diminua7.

Carreiras9, em um estudo sobre autoestima

e nível de homofobia internalizada, realizado em Portugal com 89 participantes da comunidade

(7)

LGBT, incluindo 32 bissexuais, mostrou que os indivíduos que se identificavam como bissexuais apresentavam níveis significativamente inferiores de autoestima em comparação aos homens e às mulheres homossexuais. A baixa autoestima es-taria relacionada com a dificuldade das pessoas bissexuais se assumirem e também por possu-írem maior índice de preconceito internalizado, o que causaria maior tendência aos distúrbios psicossociais9.

Conforme esses autores, é percebida a gran-de necessidagran-de gran-de apoio profissional, gran-de qualida-de para o atendimento das qualida-demandas comuns e específicas da população bissexual. Porém, con-traditoriamente, muitas das vezes essa encon-tra mais discriminação dentro dos consultórios e instituições de saúde. Em estudo realizado nos Estados Unidos com terapeutas, Firestein10

de-monstrou que 16,7% dos entrevistados conside-rava a bissexualidade como sintoma de doença mental, 7,0% haviam atuado tentando converter pacientes bissexuais a tornar-se heterossexuais e 4,0% haviam tentado converter pacientes bis-sexuais à exclusiva homossexualidade. Também estudo realizado no Reino Unido por Mohr, Israel e Sedlacek11, demonstrou que terapeutas que

es-tavam em treinamento tinham uma visão estereo-tipada da bissexualidade, atribuindo a pacientes com essa condição problemas clínicos, indepen-dentemente de suas crenças com relação a gays e lésbicas, e atribuíam mais problemas clínicos a clientes fictícios com histórico de relacionamento que envolvia um homem e uma mulher, em com-paração com aos clientes fictícios com histórico de relacionamento com apenas um gênero, apon-tando o grande estereótipo na abordagem da bissexualidade.

É preciso destacar que, no Brasil, o Conse-lho Federal de Psicologia (CFP) não deixa claro à inclusão da bissexualidade e de outras orien-tações não monossexuais nas resoluções que

orientam o trabalho dos psicólogos. Na Resolu-ção nº 1 de 1999, que estabelece como esse profissional deve atuar com relação à orientação sexual, nenhum dos seis artigos mencionam ter-mos relacionados à monodissidência e/ou bisse-xualidade, sendo utilizado principalmente termos associados à homossexualidade, com destaque ao artigo 4º que menciona12:

“Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais exis-tentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica”

(artigo 4º).

Portanto, na área de Psicologia, as resolu-ções são contundentes no que diz respeito ao impedimento dos psicólogos agirem de maneira homofóbica. Porém, ainda há uma permissivida-de, mesmo que indireta, à prática da bifobia. Por esse motivo, ainda existem casos onde o tera-peuta busca uma decisão do atendido acerca de sua sexualidade, considerando apenas a homo e a heterossexualidade como alternativa e invisibi-lizando totalmente as identidades monodissiden-tes como aponta Leão de Aquino Silveira1:

“Em um mundo onde a heterossexualidade e a homossexualidade representam polarida-des opostas, vivências que navegam entre esses pólos e não se fixam em nenhum de-les são vistas como agentes de contamina-ção” (p. 38).

A bissexualidade, assim, ainda é vista por vários profissionais da saúde como um transtor-no ou desordem, como a bipolaridade, transtortranstor-no

borderline entre outros diagnósticos

relaciona-dos a um senso instável de identidade e de com-portamento sexual de risco, onde se patologiza e discrimina pessoas que estão em busca de

(8)

tratamento justamente por conta do sofrimento causado pelo preconceito.

Também há uma forte associação da pro-miscuidade com as identidades monodissiden-tes, havendo a preocupação quanto à possibili-dade dos bissexuais serem entendidos como ve-tores de algum vírus, como, por exemplo, o HIV. Como mencionado por Seffner13, para as

mulhe-res bissexuais e lésbicas, a aids é uma sombra difusa e de certa forma distante, que aparece de modo pontual e que é evocada como parte dos “perigos” do contato sexual direto ou indireto com homens. Já para os homens bissexuais e gays, a aids é uma associação naturalizada, vista como quase que imanente às suas práticas se-xuais, sendo uma realidade que vitima diversos membros de suas comunidades13. Isso explicita

a noção antiquada e ainda persistente em nossa sociedade, de que há uma “ponte bissexual para as infecções sexualmente transmissíveis (IST)” enfatizando que as pessoas bissexuais exercem papéis de “vetores” dos vírus, associando com-portamentos de promiscuidade e imprudência sexual aos monodissidentes. Tais generalizações criam e reforçam situações carregadas de pre-conceitos também dentro da comunidade LGB-TQ+, dificultando a socialização e os relaciona-mentos, principalmente de homens bi, mas tam-bém de mulheres bi que se veem responsabiliza-das pelas relações com estes homens.

Considerações finais

A Roda de Conversa e Validação das Ex-periências Bissexuais foi uma proposta de bai-xo custo com mediação profissional voluntária que possibilitou a construção de conhecimento juntamente com as pessoas que seriam contem-pladas por estes saberes. Apesar de usar o ter-mo “bissexual”, a roda foi constituída de forma aberta para todas as pessoas monodissidentes

e monossexuais que vissem os encontros como uma possibilidade de troca de experiências.

A característica de uma roda aberta em que todos pudessem dividir suas experiências e se-rem acolhidos de forma empática possibilitou que muitos dos participantes se sentissem con-fortáveis para dividir suas vivências, mesmo para falar de temas considerados mais dolorosos, co-mo o preconceito, a exclusão e a invisibilidade de sua orientação sexual. Dessa forma, se consti-tuiu como uma técnica que facilitou para que mui-tos dos participantes pudessem perceber sua ca-pacidade de lidar melhor com essas dificuldades. É evidente que as populações com necessi-dades específicas demandam dos profissionais de saúde um conhecimento maior acerca de suas vi-vências, para que esses possam estar incluídos em completude com a prática profissional, ou se-ja, no encontro com um paciente não monosse-xual. Quando o profissional expressa questões in-trínsecas à nossa sociedade, como papéis rígidos de gênero e uma cultura sexual exclusivamente binária, de forma preconceituosa, pode impossibi-litar que pessoas com vivências monodissidentes consigam estabelecer um vínculo adequado para o andamento dos processos terapêuticos, que se tornam desgastantes para o atendido, visto que muitas das vezes tais atendimentos serão gerado-res de confusão, dúvida e angústia.

Atualmente existem poucos estudos sobre a bissexualidade e suas especificidades, principal-mente no Brasil, o que corrobora para que o tema seja pouco explorado e difundido no campo aca-dêmico nacional. Por este motivo, é de grande im-portância ressaltar a necessidade da iniciação de pesquisas voltadas para esse público possibilitan-do maior exploração e divulgação e fazenpossibilitan-do com que profissionais da saúde, estudantes e pessoas monodissidentes entrem em contato com o ma-terial estudado e possam utilizar desses saberes para reforçar práticas mais saudáveis.

(9)

Ainda é possível considerar que o vasto campo de estudo acerca da sexualidade, em ge-ral, é pouco explorado, deixando inúmeras lacu-nas a serem preenchidas. Porém existem situa-ções em que os riscos podem ser minimizados no que tange a saúde pública de uma população com demandas específicas, como por exemplo, a atualização das diretrizes dos conselhos regio-nais e federais de Psicologia, de modo que haja uma maior proteção e respeito às pessoas com identidades monodissidentes.

A possibilidade de um ambiente aberto e se-guro para troca de experiências se fez como um espaço de resistência e união entre pessoas mo-nodissidentes, uma vez que, mesmo dentro da pró-pria comunidade LGBTQ+, os bissexuais têm suas vivências negadas, resultando em um processo de apagamento e invisibilidade. Atividades inclu-sivas como essas são, portanto, reforçadoras da identidade dos sujeitos e dão contornos nítidos às várias sexualidades que são negadas e/ou enten-didas como um meio-termo entre monossexuais.

Referências

1. Silveira MLA. Os unicórnios no fim do arco-íris: bissexu-alidade feminina, identidades e política no Seminário Na-cional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais. [dissertação]. Instituto de Medicina social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro; 2018.

2. Harper AJ, Ginicola MM. Counseling bisexual/pansexual/ polysexual clients. In: Ginicola MM, Smith C, Filmore JM. Affirmative counseling with LGBTQI+ people. Alexandria: American Couseling Association; 2017. p.171-182.

3. Oliveira CAN, Machado FLBS, Neves, S. Amor parental (in) condicional: estudo sobre a influência da perceção da acei-tação/rejeição parental em homossexuais, lésbicas e bis-sexuais. Coming-out for LGBT. 2012; 2(2):89-97. (on line). [acesso em: 3 ago 2018]. Disponível em: http://www.aca- demia.edu/6472101/Amor_parental_in_condicional_Estu- do_sobre_a_influência_da_percepção_da_aceitação_rejei-ção_parental_em_homossexuais_lésbicas_e_bi-sexuais

4. Lewis ES. Eu quero meu direito como bissexual: a mar-ginalização discursiva da diversidade sexual dentro do mo-vimento LGBT e propostas para fomentar a sua aceitação. In: III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade, 2012, Campinas: Universidade Federal de Campinas (UNI-CAMP); 2012.

5. Machado J, Alves A, Dickson M. A invisibilidade bissexual na novela “O Outro Lado do Paraíso”. In: XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Norte. Vilhena: Inter-com – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação; 2018.

6. Rieger G, Bailey JM, Chivers ML, Savin-Williams RC. Se-xual arousal and masculinity-femininity of women. Journ. Person. Soc. Psych. 2016; 111(2):265–283. (on line). [acesso em: 10 ago 2018]. Disponível em: http://www.apa. org/pubs/journals/features/psp-pspp0000077.pdf

7. Joyce P, Sills C. Técnicas em Gestalt: aconselhamento e psicoterapia. 1ª reimp. Petrópolis: Vozes; 2016.

8. Teixeira-Filho FS, Rondini CA. Ideações e tentativas de suicídio em adolescentes com práticas sexuais hetero e ho-moeróticas. Saúde e Sociedade. 2012; 21:651-667. [acesso em: 3 ago 2018]. Disponível em: https://www.scielosp.org/ scielo.php?pid=S0104-12902012000300011&script=sci_ arttext&tlng=en

9. Carreiras LMC. Autoestima sexual, identidade LGB e ho-mofobia internalizada numa população de lésbicas, gays e bissexuais. (Tese). Universidade do Algarves. Faro; 2014. [acesso em: 22 out 2018. Disponível em: https://sapientia. ualg.pt/handle/10400.1/8235

10. Firestein BA. Becoming visible: counseling bisexuals across the lifespan. Nova York: Columbia University Press, 2007. 11. Mohr JJ, Weiner JL, Chopp RM, Wong SJ. Effects of client bisexuality on clinical judgment: When is bias most likely to occur?. Journal of Counseling Psychology. 2009; 56(1):164-175. [acesso em: 6 ago 2018 ago 06]. Disponível em: http://psycnet.apa.org/buy/2009-00624-007

12. Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº 001/99. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em re-lação à questão da Orientação Sexual. Brasília: CFP; de 22 de março de 1999. [acesso em: 3 ago 2018]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/ resolucao1999_1.pdf

13. Seffner F. Derivas da masculinidade: representação, identidade e diferença no âmbito da masculinidade bisse-xual [tese]. Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre; 2003.

Referências

Documentos relacionados

Os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Na- turais do Estado de São Paulo também têm competência para os atos notariais de reconhecimento de firma, autenticação de cópia

A proposta aqui apresentada prevê uma metodologia de determinação da capacidade de carga de visitação turística para as cavernas da região de Bulhas D’Água

Muita gente já tinha escrito (verbo escrever, no Pretérito Mais-Que-Perfeito Composto do Indicativo) ao menino para lhe dizer que gostaria (verbo gostar, no Condicional) de

Violeta fez uma viagem ao campo durante o verão. Não gostava era de saber que lá existia uma alcateia que aterrorizava as ovelhas da quinta “Ramalhete”. Sublinha todos os nomes

Os navegadores foram surpreendidos pela tempestade – oração subordinante Que viajavam para a Índia – oração subordinada adjetiva relativa

10.. No poema, a palavra “vassoura” surge como um nome mas também como um verbo, tal como podemos confirmar no verso “Uma vassoura vassoura”.. 14. Esta frase é do tipo

Não estudei francês – oração subordinante; porque estava doente – oração subordinada adverbial causal. 9- Logo que entrei na sala, o Ricardo pediu-me ajuda

• The definition of the concept of the project’s area of indirect influence should consider the area affected by changes in economic, social and environmental dynamics induced