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IDEOLOGIA DE GÊNERO: UM CONCEITO EM DISPUTA? Leonardo Nascimento (autor) Bruno do Prado Alexandre (coautor)

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IDEOLOGIA DE GÊNERO: UM CONCEITO EM DISPUTA?

Leonardo Nascimento (autor) Bruno do Prado Alexandre (coautor)

Quando Jesus, segundo o evangelista Lucas, ensina o amor aos inimigos, cria espanto em seus ouvintes. Entretanto, é possível perceber que este aparente paradoxo do amor repousa no fato de que o inimigo é também uma criação. O inimigo, dependendo da perspectiva, é o diferente, é aquele ou aquela que ameaça, que exige a partilha de lugares, de poderes e de haveres. O inimigo é o diferente transformado em inimigo. É tornado o “outro”, um sujeito ameaçador. Por isso, o difamamos, o acusamos de herético, bárbaro, marginal, homossexual. O inimigo é aquele que atrapalha os meus planos, meu jeito de ser, minha ilusória harmonia. (…) Portanto, nessa perspectiva, ele é nossa criação. Amar o inimigo é não permitir que criemos continuamente divisões marcadas pelo medo de perder poder e prestígio. Esta inimizade é artifício dos poderosos, dos imperialismos, das religiões (…). É a desculpa criada por todos nós na recusa ao desfio de viver o respeito à diferença e à partilha dos bens disponíveis. É o escudo que inventamos para não mudarmos nossas relações, para não acolhermos a vulnerabilidade que nos é comum, para não sairmos de nosso lugar. Finalmente, o amor ao inimigo é expressão da dinâmica do perdão ou da reconciliação conosco e com os outros, num mundo onde todos, iguais e diferentes, possam caber. (Ivone Gebara, 2008)

O conceito de ideologia de gênero tem sido muito usado no contexto histórico do tempo presente para nomear, interditar e criminalizar os estudos e debates que têm como objetivo comum o enfrentamento teórico-político dos efeitos de poder sexistas do patriarcado, tangenciados pelo cissexismo, pelo heterossexismo, pelo racismo, pelo classismo e por outras práticas opressivas, em prol de uma sociedade equânime e democrática para todas e todos. Em linhas gerais, é possível dizer que existe uma apropriação e ressignificação conservadora-neoliberal dos conceitos de ideologia e gênero. Tal apropriação assenta-se em um movimento de pensamento pretensamente dialético, que ignora a materialidade dos efeitos de poder das opressões estruturais produzidas historicamente.

Ao mapear a historicidade das forças conservadoras que produziram o conceito na América Latina e na Europa, Richard Miskolci e Maximiliano Campana (2017) retomam textos mediante os quais é possível afirmar que o pânico moral e o campo discursivo conservador de ação, que circundam a gênese do processo de produção do conceito, vêm sendo instituídos há pelo menos vinte anos, sobretudo por líderes religiosos da igreja católica. O combate ao que os representantes dos setores conservadores, neoliberais ou não, vêm denominando como ideologia de gênero, ganhou terreno em escala global, associando-se a

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debates que giram em torno da saúde reprodutiva das mulheres, do reconhecimento de identidades não heterossexuais, do casamento igualitário e da educação sexual.

Na América Latina em particular, a obra de Jorge Scala (2011), uma vez alinhada à contraofensiva conservadora ao avanço dos direitos civis vinculados às pautas supracitadas, teve grande influência nesse combate, justificando teoricamente manifestações políticas que vão desde movimentos a favor da família tradicional, até manifestações contra governos de esquerda. Em um de seus livros, podemos ler que “a chamada ‘teoria’ (‘enfoque’, ‘olhar’ etc.) de ‘gênero’, é, na verdade, uma ideologia. Provavelmente a ideologia mais radical da história, já que, se fosse imposta, destruiria o ser humano em seu núcleo mais íntimo e, simultaneamente, acabaria com a sociedade” (p. 11; grifos do autor).

No movimento de pensamento conservador-neoliberal empreendido pelo autor, há um processo de apagamento do seu lugar de fala, como se representantes dos setores conservadores supostamente não falassem de nenhum lugar. Além disso, há um esvaziamento das análises e sentidos produzidos pelas teorias feministas e marxistas, seguido de sua ressignificação. O intuito desse esvaziamento é o de acusar tais teorias de ideológicas, como se esse lugar de fala naturalizado como verdade absoluta e inquestionável fosse a-ideológico, como se o feminismo fosse um movimento de pensamento homogêneo e como se tivesse um vínculo arbitrário com o método do movimento de pensamento marxista. Tal naturalização opera como um dispositivo de normalização, que produz efeitos de verdade que visam interditar o debate e reforçar as opressões estruturais.

Nesse sentido, emerge a seguinte pergunta: Por que o pensamento enunciado a partir desse lugar de fala conservador-neoliberal é considerado pelos representantes dos setores conservadores como sendo a-ideológico? No movimento de desnaturalização do discurso conservador-neoliberal, por meio do qual denunciaremos seu caráter parcial, anticientífico e opressor, defendemos a possibilidade de uma disputa pela significação do conceito de ideologia de gênero, bem como a potência da reapropriação anti-heteropatriarcal e anticapitalista desse conceito. Nesse sentido, propomos um resgate teórico das análises e sentidos produzidos pelo feminismo-marxista, por teóricas como Heleieth Saffioti (2003), para o uso do conceito de ideologia de gênero na perspectiva que defendemos, ainda que não nos posicionemos teoricamente a partir dessa perspectiva feminista.

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Um dos elementos necessários à produção de uma postura intelectual com implicações éticas, na nossa percepção, é a demarcação de um lugar de fala e a localização dos saberes por meio dos quais falamos. Tomamos emprestado de Djamila Ribeiro (2017) e Donna Haraway (1995) os conceitos de lugar de fala e de saberes localizados. Quando defendemos a necessidade dessa demarcação e dessa localização, o fazemos, assim como afirmam as autoras, no sentido de explicitar como nossa distribuição nas relações de poder e nossas experiências nos permitiram nos tornar o que somos, no sentido de sermos mobilizados eticamente a assumirmos uma perspectiva teórico-metodológica e filosófico-epistêmica específica possível, ao invés de outras.

Com isto, denunciamos o falso pressuposto de que é possível fazer ciência com neutralidade, como se não falássemos de nenhum lugar, ou de que é possível fazer ciência com onipresença, como se falássemos de todos os lugares. Nossa distribuição nas relações de poder é perspectivada, assim como nossos olhares são perspectivados. Da mesma maneira, os olhares dos conservadores que nomeam de ideologia de gênero os estudos que têm como objetivo comum a denúncia dos efeitos de poder sexistas do patriarcado, tangenciados por outras práticas opressivas, também são perspectivados.

Nossa singularidade é constituída por meio de uma subjetividade articulada e complexa. Ela interfere em nossa produção de conhecimento. Há planos de forças constitutivos de linhas estratificadoras que nos enquadram, por meio das normas morais e técnicas institucionais, e nos constituem materialmente como gueis, afeminados, proletários, latino-americanos, graduados em História, mestres em Educação, professores de História e pesquisadores das questões de gênero, sexualidade e suas interseccionalidades. Tais linhas estratificadoras são efeitos de poder de um processo histórico de naturalização das opressões estruturais.

Além dessas linhas estratificadoras, há espaço para a produção de linhas de fuga que nos permitem construir nossas subjetividades em uma perspectiva anti-estratificante, ainda que tenhamos determinados privilégios sociais. Com isso, queremos dizer que, apesar sermos atravessados por linhas que nos constituem, por exemplo, como gueis, estes sujeitos, ainda que partilhem experiências em comum em termos de identidade sexual e de inteligibilidade identitária, não responderão da mesma maneira aos efeitos de poder das opressões estruturais, seja pelos privilégios sociais não admitidos, seja pela alienação acerca da própria opressão,

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seja pelos diferentes modos conscientes de ser e existir no mundo e de responder às exigências e expectativas das normas morais. Ao mesmo tempo que somos sujeitos que partilham experiências em comum que nos permitem a organização política, somos sujeitos singulares.

Quando falamos de assumirmos uma perspectiva teórico-metodológica e filosófico-epistêmica específica, entendemos que essa postura é desafiadora, pois ela nos torna responsáveis pelas decisões que tomamos e nos obriga a admitir não apenas as possibilidades, mas também os riscos decorrentes da produção de conhecimento pensadas nessa perspectiva. Mas, vale reafirmar, é por ela que respondemos. Nesse sentido, o que nos difere dos representantes dos setores conservadores é a coragem de assumir a “responsabilidade da assinatura”.

Dito tudo isto, chegamos, então, ao gênero. Afinal, o que é o gênero? A partir das análises que fazemos das teses João Manuel de Oliveira (2012), entendemos que existem ao menos três esquemas feministas de conceituação do gênero nas ciências sociais, além de um esquema conservador-neoliberal de conceituação do gênero enquanto uma ameaça ao dispositivo da família canônica e aos princípios da religião cristã: a) a primeira delas se refere à noção do gênero como identidade psicológica; b) a segunda, à noção do gênero como relação social; c) a terceira, à noção do gênero como performatividade; e, acrescentamos, d) a quarta, à noção do gênero como corpo teórico falseador da realidade, tida como naturalmente dada, esquema que desnaturalizaremos nesse artigo. Não temos como objetivo nos ocuparmos da definição de todos os esquemas feministas de conceituação, mas queremos enfatizar que uma das razões pela qual estamos chamando a atenção para a existência destes é a necessidade de desnaturalizar a tese de que o feminismo é um movimento de pensamento homogêneo.

Assim como Berenice Bento (2006) e Judith Butler (2015), assumimos a noção do gênero como performatividade, isto é, do gênero como efeito de poder da repetição de atos, instituídos socialmente, que reforçam a construção dos corpos masculinos e femininos tais como nós os vemos. Os devires das representações, produzidos nas tensões com tudo o que está instituído, vão nos modelando enquanto mulheres ou homens ou enquanto sujeitos produzidos nos interstícios das fronteiras entre os dois, produzindo, assim, diferenças de gênero. Estamos, portanto, dentro e fora do gênero, dentro e fora da representação, e sempre

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em tensão com ela. A noção do gênero como performatividade nos ajuda perceber mais criticamente a historicidade da categoria de sexo, a insuficiência das categorias de mulher e homem, a diversidade desses sujeitos, o feminismo para além do sujeito unitário mulher e a denúncia da heteronormatividade constitutiva da matriz heterossexual sobre a qual o gênero é performado.

Entretanto, entendemos que essa noção não necessariamente exclui a do gênero como relação social. Entendemos que o sexo anatômico possui materialidade e que o dimorfismo sexual influencia decisivamente na lógica global de subordinação do gênero, porém entendemos também que as masculinidades e feminilidades são produzidas em territórios multivetoriais e polifônicos, de modo que gueis, travestis e mulheres trans, de um lado, e homens cisgêneros heterossexuais das classes dominadas, de outro, vão ser oprimidos de maneira distinta pela maneira como o gênero encontra-se articulado a outras linhas demarcadoras do processo de construção da identidade e da diferença.

Além destes esquemas feministas de conceituação, destacamos a distinção que Raquel Soihet e Joana Maria Pedro (2007) e Joan Scott (1990) fazem entre os campos epistêmicos feministas da história das mulheres e dos estudos de gênero. Nossa perspectiva está situada no campo dos estudos de gênero, no qual o gênero é pensado, simultaneamente, como categoria analítica de análise histórica e como construção sociocultural. Por uma questão de coerência, tomamos emprestado de Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2011), Osmundo de Araújo Pinho (2008), Raewyn Connell (1995) e Raewyn Connell e James Messerschmidt (2013) uma perspectiva masculina subalterna antissexista, anticissexista, anti-heterossexista, antirracista e anticapitalista de crítica à masculinidade hegemônica. Assim como esses autores, entendemos que a masculinidade hegemônica se distingue das outras masculinidades, nem tanto pelo seu sentido estatístico, mas pelo seu sentido normativo que incorpora a forma mais socialmente honrada de ser homem, produzindo exigências e expectativas sobre os homens com relação a ela, no interior de uma lógica global de subordinação das mulheres cisgêneras por estes.

Tomamos emprestado de Adrienne Rich (2010) e Judith Butler (2015) os conceitos de heterossexualidade compulsória e matriz heterossexual para denunciar a política que binariza e hierarquiza o gênero por meio oposições e correspondências. Esse processo produz e reifica o seguinte alinhamento: sexo—gênero—orientação do desejo afetivo-sexual—prática sexual. Em outras palavras, significa dizer que existe um alinhamento entre nascer com vagina,

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tornar-se mulher, desejar afetivamente um homem e se relacionar sexualmente apenas com ele. Da mesma maneira, existe um alinhamento entre nascer com pênis, tornar-se homem, desejar sexualmente mulheres e se relacionar sexualmente apenas com elas. Não só essa lógica subordina mulheres cisgêneras heterossexuais, como também estigmatiza pessoas intersexuais, lésbicas e homens trans, gueis e bissexuais, travestis e mulheres trans.

Tomamos emprestado de Michel Foucault (1999) os conceitos de sexualidade e família canônica, pensados como dispositivos. A sexualidade como dispositivo histórico de regulação, produtor de normalidades e anormalidades, que funciona de acordo com técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder, e a família canônica como dispositivo cujas dimensões marido-mulher e pais-filhos servem de suporte para o dispositivo de sexualidade e seus domínios de saber e mecanismos de poder, como a interdição do incesto, a histerização da mulher, a pedagogização do sexo da criança, a higienização e socialização das condutas heterossexuais, monogâmicas e procriativas e a psiquiatrização dos prazeres tidos como perversos, entre os quais a homossexualidade.

Aqui também pensamos o gênero como dispositivo histórico de regulação. Uma das estratégias de reificação desses dispositivos, produzidas no interior do campo discursivo conservador de ação, a partir das práticas articulatórias entre os dispositivos de sexualidade, família canônica e conservadorismo religioso, é o pânico moral quanto a uma suposta dissolução da família e a uma suposta degradação da infância. Nesse sentido, o conceito de família é enunciado como unitário e atemporal, de modo que tanto o pai e a mãe, quanto os filhos e filhas devem desempenhar papéis de gênero predefinidos e orientados para a heterossexualidade e para os princípios da religião cristã.

Para pensar as relações entre gênero, sexualidade, raça, classe e, eventualmente, outras categorias analíticas, tomamos emprestado de Helena Hirata (2014), Carlos Eduardo Henning (2015) e Kimberlé Crenshaw (2004) o conceito de interseccionalidade, que nos obriga a pensar as diferenças dentro da diferença. A dificuldade de incorporação do debate acerca das formas interseccionais de opressão acontece em razão das maneiras fragmentadas de pensar cada uma delas. Não se trata simplesmente da abertura de um ou dois movimentos sociais específicos, mas de provocar deslocamentos nas representações unitárias dos sujeitos de todos os movimentos sociais, no sentido de fazer com que todas as demandas políticas de todos os sujeitos sejam, de fato, representadas.

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Essa é a única maneira de construirmos o que Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2015) definem como democracia radical e plural. Tal perspectiva só pode ser consolidada a partir de práticas apoiadas na radicalização da política socialista, com campos de luta autonomizados, porém estrategicamente articulados, contra todas as relações de subordinação. Defendemos a necessidade de pensarmos a política representacional como uma coalizão aberta, tendo em vista os antagonismos e as intersecções no interior dos movimentos sociais, como forma de não excluir por antecipação as demandas políticas de nenhum dos sujeitos por eles representados.

Para pensar o conceito de ideologia, tomamos emprestado de Michel Foucault (1998) os conceitos de poder e regime de verdade. Para o autor, o poder não é uma repressão unidirecional, nem um lugar ocupável externo aos efeitos do poder, nem tampouco um objeto passível de ser possuído quando ocupamos esse lugar. Ele é uma relação de forças que só pode ser exercida e, além disso, possui um caráter produtivo. Esse exercício acontece por meio de técnicas institucionais e corporais de dominação e pela produção de saberes constitutivos das subjetividades e práticas sociais.

Esse caráter produtivo está diretamente ligado ao que o autor nomeia de regime de verdade, por meio do qual o poder é exercido no sentido de validar determinados saberes, em detrimento de outros. Isso quer dizer que o poder produz verdades antes de ideologizar e realidades antes de reprimir. O autor critica a noção de que a verdade seja antagônica à ideologia e à repressão. Para ele, não há sentido algum falar na batalha entre o discurso falso e o discurso verdadeiro, isto é, de como os aparelhos ideológicos do Estado produzem a ocultação da verdade (lida como realidade) e a alienação (lida como falsa consciência), mas sim, em como os discursos batalham entre si, produzindo seus efeitos de verdade.

Há perspectivas, distintas da que assumimos, em que há a defesa da noção de que há uma verdade antagônica à ideologia e à repressão. Chamaremos a atenção para elas para defender a noção de que o conceito de ideologia de gênero está em disputa. No início do artigo, afirmamos que existe uma apropriação e ressignificação conservadora-neoliberal dos conceitos de ideologia e gênero e de que tal apropriação assenta-se em um movimento de pensamento pretensamente dialético, que ignora a materialidade dos efeitos de poder das opressões estruturais produzidas historicamente. Em seu livro, Jorge Scala (2001) afirma que

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(…) uma ideologia é um corpo doutrinal fechado, com pretensões de oferecer uma explicação de toda a realidade e, por isso, oferecer pautas universais de comportamento. Parte de uma premissa não demonstrada e indemonstrável – porque é falsa (…). Por isso, quem aceita a premissa acriticamente e assim se introduz no sistema de pensamento ideológico não pode sair dele. Pelo contrário, nele se introduz cada vez mais profundamente, podendo chegar até ao mais irracional fanatismo. (p. 33)

Para melhor compreensão da noção de que há uma apropriação e ressignificação conservadora-neoliberal dos conceitos de ideologia e gênero e uma deturpação do movimento de pensamento dialético, faz-se necessária retomar a noção marxista de verdade enquanto realidade ontológica que precisa ser desvelada por meio da superação do capitalismo. Para tanto, recorremos à Marilena Chauí (2001), que, conservando o movimento de pensamento dialético acerca do processo de produção da realidade estabelecido pela materialidade histórica da luta de classes, afirma que

Em sociedades dividas em classes (e também em castas), nas quais uma das classes explora e domina as outras, essas explicações ou essas ideias e representações serão produzidas e difundidas pela classe dominante para legitimar e assegurar seu poder econômico, social e político. Por esse motivo, essas ideias ou representações tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia. Por seu intermédio, os dominantes legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas. Enfim, também é um aspecto fundamental da existência histórica dos homens a ação pela qual podem ou não reproduzir as relações sociais existentes, ou transformá-las, seja de maneira radical (quando ocorre uma revolução), seja de maneira parcial (quando fazem reformas). Em outras palavras, uma ideologia não possui poder absoluto que não possa ser quebrado e destituído. Quando uma classe social compreende sua própria realidade, pode organizar-se para quebrar uma ideologia e transformar a sociedade. Os burgueses destruíram a ideologia aristocrática (nos séculos XVI, XVII e XVIII), e os trabalhadores podem destruir a ideologia burguesa (como propôs Karl Marx). (p. 23-24)

Embora se gabe da análise pretensamente científica e a-ideológica que faz da objetividade da natureza humana, a religiosidade cristã de Jorge Scala (2001) fica implícita – para não dizer explícita! – quando este denuncia a suposta anticientificidade dos estudos de gênero e sexualidade. Segundo o autor, “o paradigma do conhecimento já não é a razão – iluminado ou não pela fé –, mas o que pode ser experimentado sensivelmente” (p. 39; grifos nossos), ou, ainda, “depreciando a natureza humana, destrói-se a antropologia que, com suas nuances, luzes e sombras, era comumente aceita no ocidente desde a antiguidade greco-romana e, mais intensamente, com o cristianismo” (p. 50; grifos nossos). Como se não

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bastasse, o autor desdobra seu pensamento afirmando que “o homem como uma unidade consiste em um espírito encarnado” (p. 50; grifos nossos). O objetivo desses grifos nos excertos do autor é o de colocá-los sob suspeita.

É consenso para a comunidade científica que existem limites absolutamente claros entre os campos científico e religioso. Entretanto, mais do que dizer que o autor ignora isso por má fé, queremos chamar a atenção para o esforço de naturalizar o lugar de fala por meio do qual ele enuncia. Sua teorização resulta da apropriação e ressignificação de uma noção rígida de método científico vinculada à técnica laboratorial e às premissas da aplicabilidade e da constatação. Seu objetivo é o de produzir uma verdade absoluta e inquestionável.

A contradição metodológico-científica de sua teorização reside no fato de que o paradigma do conhecimento na perspectiva de método científico assumida não admite “iluminação pela fé”, muito menos que o ser humano seja um “espírito encarnado”, uma vez que a experiência religiosa ou espiritual é efeito justamente daquilo que pode ser experimentado sensivelmente, algo que o autor critica. Para admitir a iluminação pela fé ou a noção de espírito encarnado, o autor precisaria recorrer a um outro, e esse método-outro também admitiria uma interpretação da realidade como a que ele busca negar e denuncia como sendo ideológica.

Marilena Chauí (2001) afirma que “falar em ideologia dos dominados é um contrassenso, visto que a ideologia é um instrumento de dominação” (p. 110). Nessa perspectiva, historicamente, se existe uma ideologia de gênero, ela deve ser entendida como uma ideologia conservadora de gênero. Se o conceito de ideologia foi disputado e ressignificado por representantes dos setores conservadores, o mesmo ocorreu com o conceito de gênero. Assim, é produtivo resgatar as análises e sentidos produzidos pelo feminismo-marxista para o uso do conceito de ideologia de gênero na perspectiva que defendemos.

Heleieth Saffioti (2003) afirma que “a ideologia de gênero procede através da naturalização das diferenças que foram construídas, podendo, por conseguinte, ser transformadas. No contexto do pensamento ideológico, a apresentação das diferenças como naturais constitui uma necessidade.” (p. 56) Ao empregar o uso do conceito de ideologia de gênero, a autora, diferente dos representantes dos setores conservadores, retoma a noção do gênero como categoria analítica de análise histórica e como construção sociocultural. Além disso, retoma também a noção estruturalista de que, no contexto capitalista e patriarcal, as

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mulheres desempenham papéis sociais vinculados à produção, sexualidade, reprodução e socialização das novas gerações, ao passo que isso é naturalizado pela ocultação da verdade, lida como realidade, e pela alienação, lida como falsa consciência, no seio da família burguesa ou do dispositivo da família canônica, para usar o conceito de Michel Foucault (1998).

Considerando os três esquemas de conceituação de ideologia e tendo em vista as variações na noção de verdade, é possível afirmar que existem pelo menos duas ideologias de gênero. Em uma concepção ampla, como a postulada por Michel Foucault (1998), poderíamos inferir que tanto os três esquemas feministas de conceituação do gênero, quanto o esquema conservador-neoliberal de conceituação do gênero de Jorge Scala (2011) e dos representantes dos setores conservadores, são ideológicos. Em uma concepção restrita, como a postulada por Marilena Chauí (2001) e apropriada e ressignificada por Jorge Scala, apenas o último esquema de conceituação é ideológico.

Analisando o gênero a partir da materialidade histórica das opressões estruturais, é possível afirmar que apenas este esquema é opressor, uma vez que seus efeitos de poder foram e são historicamente responsáveis pela nossa distribuição desigual nas relações sexistas, cissexistas e heterossexistas de poder. Quando representantes dos setores conservadores perguntarem qual a nossa posição teórica e política sobre a ideologia de gênero, podemos perfeitamente perguntar: Qual ideologia de gênero? E podemos, ainda, fazer a seguinte provocação: A ideologia conservadora de gênero?

Vivemos em uma sociedade fortemente caracterizada pelo obscurantismo intelectual. Devemos assumir uma postura intelectual com implicações éticas que nos obrigue a assumir um modo de ser e existir por meio do qual possamos avaliar a moralidade de nossas ações e sermos capazes de perceber como estas afetam a vida das outras pessoas. Práticas que reforçam as relações de poder que oprimem pessoas historicamente oprimidas podem perfeitamente ser definidas como antiéticas, uma vez que negam o direito de estas serem e existirem no mundo como são ou desejam ser. É impossível pensar a ética sem pensar, simultaneamente, na materialidade histórica das opressões estruturais, cujos efeitos de poder nos enquadram e nos distribuem de maneira desigual nas relações de poder, ao mesmo tempo que, inevitavelmente, criam espaço para a produção de linhas de fuga que nos possibilitam intervir na realidade e usar múltiplas estratégias possíveis para lidar com a violência simbólica das normas morais. A produção desse artigo, esperamos, é uma dessas estratégias possíveis.

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