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Estado Punitivo, Estado de Exceção e Redução da Maioridade Penal.

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Academic year: 2021

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Estado Punitivo, Estado de Exceção e Redução da Maioridade Penal.

“Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente- e de fato já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”. (Agamben, 2003)

A discussão sobre a redução da maioridade penal pode se realizar por várias perspectivas diferentes. Ela permite explicitar análises por campos de saber diversos: jurídicos, históricos, filosóficos, sociológicos, da psicologia, da psicanálise e etc... E em cada campo deste é possível ainda, desenvolver o estudo por horizontes e argumentos diversos. Por exemplo, pode se tentar argumentar a partir do direito comparado, se é necessário ou não manter uma justiça e uma medida penal especializada aos adolescentes entre 16 e 18 anos. Pode-se, também, discutir os efeitos “simbólicos” do direito penal para os adolescentes e adultos e suas repercussões concretas no campo social. Pode-se tratar, ainda, do ECA e de como foi ou não aplicado desde sua promulgação. Este texto se limitará a uma breve análise da segunda perspectiva, buscando fazê-la de maneira transdiciplinar.

“Práticas” e “discursos” sempre estão inseridos em um contexto histórico e cultural. O que é senso comum ou paradigma de certo campo da ciência varia no tempo e no espaço. Nós nos esquecemos disso e naturalizamos nossas posições e práticas como se elas se encaixassem perfeitamente em qualquer contexto. O Estado Democrático de Direito, por exemplo, é uma construção histórica. Os seus mecanismos de controle também o são.

Partindo destas premissas podemos afirmar que o Estado resolveu adotar a prisão como mecanismo majoritário e praticamente exclusivo de correção e prevenção às práticas delituosas no início da era moderna. A prisão como pena é um dispositivo histórico inventado pelo mundo ocidental. Em períodos históricos anteriores, em geral, funcionava como “instituição de sequestro” sem maiores pretensões de prevenção ao crime.

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Após mais de 200 anos dessa experiência concreta se pode questionar: A prisão funciona e atinge suas finalidades declaradas – prevenção geral e prevenção específica? Se a resposta for negativa caberiam outras indagações: 1 - em algum momento histórico ela funcionou? 2 – Se não funciona para suas funções declaradas funcionaria para atingir outros objetivos diferentes dos discursivos? O debate atual sobre redução da idade penal precisa estar dentro deste contexto.

A prisão como pena de correção e prevenção ao crime surge no século XVIII e está articulada a um conjunto de mudanças ocorridas no plano político, econômico, social e discursivo.

Segundo Foucault (2006), diante do esgotamento do modelo punitivo anterior há toda uma reforma do direito criminal em busca de “uma nova economia do poder de punir”. Os “suplícios” não cabem mais numa “sociedade disciplinar” que busca “aumentar efeitos diminuindo o custo econômico” em todos os seus segmentos. Diminuir “o custo econômico” para os reformistas da época significava não gastar em ações cujos efeitos que se pretende não serão sequer minimamente atingidos.

Poderíamos afirmar de maneira bastante resumida, que nos principais debates para a reforma do sistema penal no mundo ocidental durante o esgotamento do modelo anterior (suplícios), a prisão quase nunca é colocada como apta a materializar essa “nova economia do poder de punir”. A maioria dos reformadores via essa possibilidade como reprodutora de mais violência. Ineficaz, portanto, na prevenção e “correção” à “delinquência” e na “produção de corpos úteis e dóceis” à dinâmica industrial que se expandia com agressividade1. No entanto, 50 anos depois da Reforma e da sua reprovação pelos reformistas, este instrumento punitivo se torna quase uma unanimidade na prática penal da sociedade moderna ocidental. É necessário se perguntar qual o sentido de tal reprodução.

Colocamo-nos ao lado das análises segundo as quais um dispositivo só se conserva e se reproduz se tiver alguma função no campo onde se insere. Isso significa que para as referências teóricas com as quais trabalhamos, nos 200 anos de fracasso na prevenção ao crime (geral e específica) a prisão teve e tem outras funções. Do contrário, não se conservaria.

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Os reformadores não estavam preocupados com a crueldade dos suplícios ou das prisões, mas, sim com seus efeitos e a sua capacidade de controlar os crimes, em especial os crimes contra o patrimônio.

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Os últimos dados integrados do Ministério da Justiça2 demostram que em 2012 a população carcerária no Brasil era de 548.003 pessoas. Em 2010, a partir dos mesmos dados do Ministério da Justiça se constata que as prisões brasileiras abrigavam 496.251 pessoas. Ou seja, em 2 anos os presídios agregaram a sua população mais de 50.000 pessoas. O aumento vem se dando exponencialmente. Desta população, cerca de 74% tiveram suas condenações relacionadas a crimes contra o patrimônio e/ou os crimes vulgarmente chamados de tráfico de drogas. Noventa e cinco por cento dos apenados são pobres ou muito pobres. Sessenta e cinco por cento são negros ou pardos. Esse mesmo perfil de “cliente do sistema penal” é também a representação daqueles que são as maiores vítimas de homicídio no Brasil.

Não há relação entre aumento de presos e diminuição dos crimes que estes apenados cometeram. O índice de reincidência no Brasil é da ordem de 70% e os fatores que aumentam ou diminuem o número de crimes não estão ligados ao aumento da população prisional. Se assim o fosse o Brasil seria um país de poucos crimes, pois, possui a terceira maior população carcerária do planeta.

Ao agregarmos esses dados a determinadas linhas teóricas podemos construir algumas hipóteses:

a) O sistema penal não atua contendo as estruturas de produção da violência. Pelo contrário. Ele atua como estímulo a essas estruturas. No sistema penal brasileiro esse estímulo é ainda maior diante das condições degradantes dos presídios.

b) O sistema penal moderno materializa um “desejo punitivo” difuso pela sociedade e pelas estruturas de poder. Não está relacionado à chamada proteção do bem jurídico penalmente relevante.

c) A maior clientela dos estabelecimentos prisionais são pessoas de menor poder aquisitivo. Não porque sejam elas as que mais praticam crimes, mas sim porque é na direção delas que a máquina punitiva se dirige.

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Por uma questão de metodologia e de necessidade de síntese, o objeto deste pequeno texto se limitará a levantar alguns dados dos presídios exclusivamente do Brasil. Muito embora as estatísticas de todo mundo ocidental demonstrem que a maior clientela do sistema penal são pessoas de menor poder aquisitivo e de baixa qualificação para o mercado de trabalho, faz-se necessário delimitar o objeto de análise para que esta tenha alguma consistência.

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O problema aumenta na medida em que embora o direito penal não resolva a questão da criminalidade, cada vez mais tem sido colocado como solução para a sanha punitiva que assola a sociedade e, inclusive, muitos movimentos de esquerda. O desejo punitivo se amplifica, os presídios aumentam sua população e os índices de crimes preferidos ou não pelo sistema prisional não diminuem. O ciclo tende a radicalização.

Dentro da atual estrutura econômica e desse modelo de “produção de subjetividades”3 há paradoxos que são estruturais. Um deles é essa aparente contradição de um direito penal que ocupa cada vez mais espaços na solução de problemas e que se justapõe, não a diminuição do número de crimes, mas ao aumento da polarização e do ódio entre classes e à multiplicação da violência. Essa justaposição revela uma aparente contradição, mas, trata-se, na verdade, de um paradoxo estrutural e discursivo, pois, no âmbito da realidade (“práticas não discursivas”)4, o direito penal não serve majoritariamente a função de “ressocializar” ou prevenir novos crimes, mas sim de criminalizar e “controlar” aqueles que se encontram à margem da estrutura econômica e dos modelos hegemônicos de produção de subjetividades.

Quando a sociedade e os legisladores tomam o efeito5 pela causa e atacam aquele e não essa, tendem a radicalização. Na medida em que o problema não se resolve, ou melhor, só aumenta, a punição tende ao infinito, aproximando o direito penal do “estado de exceção”6, da morte

3 Conceito trabalhado por Deleuze e Guattari para quem a subjetividade humana (suas inclinações,

vontades, sonhos, visões de mundo) é produzida num processo micro e macro políticos onde dispositivos marcam o indivíduo de maneira, ora violenta e clara, ora de modo sútil e despercebido. A ideia de “dispositivos modernos” em Foucault, por exemplo, está ligada ao conceito de “produção de subjetividades” de Deleuze e Guattari . Ambos, por sua vez, bebem na fonte da “Vontade de Potência” nietzschiana.

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Deleuze em seu livro “Foucault” diferencia o modo como os discursos dominantes – em especial o discurso médico-jurídico - definem as funções de alguns dispositivos no mundo material (“Práticas discursivas”) e aquilo que, segundo a visão do autor, esses dispositivos efetivamente produzem na realidade (“Práticas Não discursivas”).

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Partimos do pressuposto de que a violência que a sociedade pretende coibir através do direito penal é um efeito e não uma causa. É um produto de fenômenos complexos, cada qual com sua complexidade que merece análises e tentativa de construção de saídas específicas.

6 Conceito de Estado de exceção criado por Giogio Agamben, segundo o qual um status de “vida indigna

de ser vivida” se difundiu e se estruturou pelo campo social na modernidade ou pós-modernidade. Essa categoria cria um espaço de indistinção que legitima a exceção, ou seja, a suspenção do ordenamento jurídico sob a justificativa de “caça” a essa vida indigna de ser vivida e manutenção da ordem. Diante de determinadas condições de tempo e espaço tendem a se ampliar mais ou menos. Segundo Agamben, este paradoxo está na essência do Estado de Direito Moderno.

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e da barbárie. O sistema penal e as condutas de extermínio vão se amplificando em metástases e se aproximando de qualquer cidadão.

Segundo a Anistia Internacional no ano de 2012, 56.000 pessoas foram vítimas de homicídio, dos quais 77% eram negros e negras. Deste total, 30.000 eram jovens entre 15 e 29 anos. Menos de 8% destes casos chegam sequer a ser julgados. Entre 2004 e 2007, 174.000 pessoas foram mortas nos 12 maiores conflitos mundiais. (Ai incluídas a Guerra do Iraque, Afeganistão e os conflitos na Palestina). No Brasil foram mais de 192.000 homicídios no mesmo período.

Então, chegamos ao ponto: E a redução da idade penal? Onde se insere neste contexto? A redução nada mais é do que um reverbe dessa tendência que busca entregar ao direito penal a solução de problemas que ele não é capaz de resolver. Ela está dentro desta lógica onde uma aparente contradição é na realidade um paradoxo da dinâmica econômica e social em que estamos inseridos. Trata-se de uma vertente desta tendência de ampliação do Estado Penal com alguns requintes de gravidade.

Somente cerca de 0,9% dos crimes são cometidos por menores de 18 anos. Se considerarmos a prática de homicídios, o índice cai para 0,5%. No entanto, cerca de 88% das crianças e adolescentes são vitimas de crimes. Se as casas de correção já são violentas e por sua vez amplificam a violência praticada pelo adolescente e pela criança, o que farão a sociedade e os legisladores se entregarem ao direito penal a tutela dos hoje atos infracionais praticados por adolescentes?

Trata-se de visualizar um processo mais amplo onde o Estado Punitivo está atuando a partir de um pressuposto e de um paradoxo que pede ao direito penal respostas a um número cada vez maior de práticas. A resposta real, entretanto, não é a que está nos manuais de direito criminal. A resposta, na prática, multiplica o número de vidas alocadas à categoria de indignidade. Nessa condição, “a guerra de todos contra todos” aumenta o número de algozes e de vítimas. E na medida em que se toma o efeito pela causa essa multiplicação tende ao infinito. Cada vez mais vidas indignas de serem vividas, cada vez mais práticas de extermínio. A resposta real à ampliação deste paradoxo são mais homicídios, mais torturas, mais ódio e maior polarização da violência.

Referências

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