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RAIMUNDO SANTOS TERRITÓRIO MULHERES JUVENTUDE RURAL SISTEMAS AGROALIMENTARES QUESTÃO AGRÁRIA AGRICULTURA FAMILIAR MECANIZAÇÃO AGRÍCOLA HOMENAGEM A

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Academic year: 2021

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ISSN@ 2526-7752 | ISSN-L 1413-0580

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fevereiro a maio de 2021 v. 29, n. 1

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Estudos Sociedade e Agricultura

Revista quadrimestral de ciências sociais aplicadas ao estudo do mundo rural Fevereiro a maio de 2021, volume 29, número 1

ISSN digital 2526-7752 | ISSN-L 1413-0580 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Instituto de Ciências Humanas e Sociais

Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (DDAS)

Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) Reitor: Ricardo Luiz Louro Berbara; Vice-reitor: Luiz Carlos de Oliveira Lima

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-graduação: Alexandre Fortes Chefe do DDAS: Carmen Andriolli

Coordenadora do CPDA: Leonilde Servolo de Medeiros

Editores: Raimundo Santos (in memoriam), Leonilde Servolo de Medeiros e Sergio Pereira Leite

Conselho editorial: Adonia Antunes Prado (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Angela Mendes de Almeida (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Antonádia Monteiro Borges (Universidade de Brasília), Berthold Zilly (Universidade Federal de Santa Catarina), Eli Napoleão de Lima (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), Eric Sabourin (Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Dével, UMR ART-Dev), Francisco Carlos Teixeira da Silva (Escola de Comando e Estado Maior do Exército), Gian Mario Giuliani (Universidade Federal do Rio de Janeiro), John Wilkinson (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), José Antonio Segatto (Universidade Estadual Paulista), Josefa Salete B. Cavalcanti (Universidade Federal de Pernambuco), Lena Lavinas (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Marcos Botton Piccin (Universidade Federal de Santa Maria), Maria de Nazareth Baudel Wanderley (Universidade Federal de Pernambuco), Maria José Carneiro (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), Marie France Garcia-Parpet (Centre de Sociologie Européenne/École des hautes Études en Sciences Sociales), Maria Stela Grossi Porto (Universidade de Brasília), Michel Zaidán (Universidade Federal de Pernambuco), Nelson Delgado (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), Regina Novaes (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Ricardo Abramovay (Universidade de São Paulo), Roberto José Moreira (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), Ruth Vasconcelos Lopes Ferreira (Universidade Federal de Alagoas), Sônia Maria Bergamasco (Universidade Estadual de Campinas), Susana Cesco (Universidade Federal Fluminense), Vera Mariza de Miranda Costa (Universidade de Araraquara), Vicente Palermo (Universidad de Buenos Aires) e Zander Soares Navarro (Universidade Federal de Viçosa).

Assessoria Editorial: Peter May (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e Dora Vianna Vasconcellos (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Assistente Editorial e Comunicação: Delcio Junior (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) Revisão: Vania Santiago

TI e Administração Web: Diego Jesus de Oliveira (InfoInterativa)

Apoio: Reitoria da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação (PROPPG), Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (DDAS) e Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA).

CPDA - Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade Av. Presidente Vargas, 417 – 6º a 10º andares – Centro – CEP 20071-003 – Rio de Janeiro – RJ

Tel.: +55 (21) 2224-8577

Editoria: estudoscpda@gmail.com Revista ESA on-line: https://revistaesa.com/

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ISSN@ 2526-7752 | ISSN-L 1413-0580 v. 29, n. 1, fevereiro a maio de 2021 Sumário

Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020)

6 Raimundo Santos, espesso

Coletivo do CPDA

10 Raimundo Santos, um homem e suas obsessões

Luiz Sérgio Henriques

15 Raimundo Santos, editor

Luiz Flávio de Carvalho Costa

19 Controvérsias com o reformismo democrático

Dora Vianna Vasconcellos

Artigos

594 Desenvolvimento, materialidades e o ator social: orientações metodológicas para aproximações territoriais

Alberto Arce, Flávia Charão-Marques

624 Mulheres atingidas por megaprojetos em tempos de pandemia: conflitos e resistências

Fabrina Pontes Furtado, Carmen Andriolli

644 Juventude rural no Brasil: referências para debate

Leonardo Rauta Martins

676 Estrutura intelectual da produção científica sobre mercados de agricultores e

sistemas agroalimentares locais: uma análise à luz das cocitações

Susã Sequinel de Queiroz, Adriana Maria De Grandi, Clério Plein

700 A intelligentsia de José de Souza Martins e outras questões agrárias

Bruno Costa da Fonseca

721 Valoração da distribuição e destruição de ativos biológicoscontabilidade ambiental aplicada a um assentamento em conflito na Amazônia : abordagem da brasileira

Frank Reginaldo Oliveira Batista, Roberto Porro, Edilan de Sant’Ana Quaresma

700 Feiras que promovem a inclusão de agricultores familiares em cadeias curtas de

comercialização

Thiago de Carvalho Verano, Gabriel Medina

721 Colheita mecanizada da cana-de-açúcar: o que nos revelam os especialistas do setor sobre as motivações e impeditivos da sua adoção na realidade canavieira de Alagoas?

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ISSN@ 2526-7752 | ISSN-L 1413-0580 v. 29, no. 1, February to May 2021 Table of contents

In honor of Raimundo Santos (1943-2020)

6 Raimundo Santos, ‘espesso’

CPDA’s collective

10 Raimundo Santos, a man and his obsessions

Luiz Sérgio Henriques

15 Raimundo Santos, editor

Luiz Flávio de Carvalho Costa

19 Controversies in democratic reformism

Dora Vianna Vasconcellos

Articles

594 Development, materialities and the social actor: methodological orientations towards territorial approaches

Alberto Arce, Flávia Charão-Marques

624 Women affected by megaprojects in pandemic times: conflicts and resistance

Fabrina Pontes Furtado, Carmen Andriolli

644 Rural youth in Brazil: references for debate

Leonardo Rauta Martins

676 Intellectual structure of scientific production on farmers’ markets and local agri-food

systems: an analysis based on co-citations

Susã Sequinel de Queiroz, Adriana Maria De Grandi, Clério Plein

700 José de Souza Martins’ intelligentsia and other agrarian issues

Bruno Costa da Fonseca

721 Valuation of the distribution and destruction of biological assets: environmental accounting approach applied to a settlement in conflict in the Brazilian Amazon

Frank Reginaldo Oliveira Batista, Roberto Porro, Edilan de Sant’Ana Quaresma

700 Farmers’ markets that promote inclusion of family farmers in short food supply chains

Thiago de Carvalho Verano, Gabriel Medina

721 Mechanized harvesting of sugar cane: what do industry experts reveal about the motivations and impediments to its adoption in the reality of Alagoas?

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Nossa homenagem ao colega Raimundo Santos, falecido em outubro de 2020, é fruto de muitos e edificantes anos de trabalho em uma instituição, cuja equipe tem como missão manter um projeto coletivo. Raimundo chegou com essa perspectiva ao Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA), nos anos 1980, vindo do então campus de Campina Grande da Universidade Federal da Paraíba, e para tanto não poupou dedicação. Aportou com seu jeito simples e discreto de ser para oferecer brilhante contribuição acerca do agrarismo brasileiro, fundamentado no pensamento social que no país se realizava em instituições e partidos, atento à realidade concreta que neles se refletia e se refratava, propondo novas perspectivas e novos parâmetros para análise, interpretação e avaliação desse “estilo de pensamento” como forma de cognição. Dizia-se um retratista de trajetórias intelectuais. Assim, também e como cientista político, buscava depurar a apreensão acerca dos movimentos sociais.

Dedicou-se com afinco, quase obsessão, ao mundo rural, debatendo, amiúde, com todos nós que nos debruçamos sobre estes estudos que se afirmam no campo da interdisciplinaridade. Dialogou com todos os colegas e com todos os múltiplos temas abordados no CPDA.

Pensamento social e repensadores do Brasil e da América Latina: nessa trilha, a literatura se lhe assombrava terreno fértil como fonte qualificada para informar e interpretar esse mundo. Quantas conversas, nas salas, corredores, cafés da tarde, sobre o povo do campo e a identidade nacional, a paisagem indomada do sertão, do interior, do altiplano, do pampa, do llano, antíteses enigmáticas do mundo dos letrados, paisagem, lugares misteriosos a serem descritos, analisados, revelados, transfigurados.

À revista Estudos Sociedade e Agricultura, a nossa revista, a menina de seus olhos, Raimundo dedicou-se de corpo e alma. Criou-a, juntamente com Luiz Flávio de

Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020)

Raimundo Santos, espesso

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Carvalho Costa, num momento em que poucos de nós acreditávamos na viabilidade do empreendimento. Inicialmente modesta, com poucas páginas, a ESA foi ganhando qualidade e melhorando sua avaliação no Qualis/Capes. A primeira edição, em novembro de 1993, já anunciava a ambição, numa apresentação feita a duas mãos: “Da experiência inicial, partiremos para melhorar a qualidade gráfica, aumentaremos a tiragem, ampliaremos a circulação, e, quem sabe, breve até, poderemos pensar numa melhor estruturação editorial com a criação de seções e de números mais tematizados.”

Meticuloso, fazia questão de acompanhar a produção de conteúdo detalhe a detalhe. Conhecia todas as regras editoriais e buscava obedecê-las, sempre tendo em mira uma melhor qualificação. Frequentador assíduo das reuniões sobre os periódicos científicos da Anpocs, Raimundo ali nos representava.

Quer em nossas reuniões de Colegiado Pleno, quer em suas apresentações em grupos de trabalho nos congressos, quer em sua representação na Anpocs com a nossa ESA, Raimundo sacava do bolso de sua camisa, geralmente em tom pastel, sua velha agenda. Todos brincávamos com seu hábito de fazer anotações nela, em pequenos papéis (guardanapos e afins) e até mesmo em suas mãos (que chamávamos de “palmtop”). Quando, em reunião, pedia para se inscrever, nos entreolhávamos e o riso já tomava conta dos rostos departamentais, pois sabíamos que seria um momento de gracejos e contribuições acadêmicas profundas. Um papel após o outro era sacado de seu bolso. Quando pensávamos que não teria mais, outro aparecia de um bolso que parecia não ter fim. Preenchido com suas anotações, os papéis eram generosos com Raimundo: sempre mostravam que havia mais um espacinho em branco onde ele poderia anotar algo. Sentar-se ao lado de Raimundo em uma reunião era um afago. Qualquer assunto se tornava mais leve diante dos seus comentários a miúdo e de suas atitudes excêntricas. Certa vez, precisou carregar seu celular, usado como relógio para não perder o horário de buscar seu neto na creche. Temeroso em esquecer o celular na tomada da sala, retirou um dos pés do sapato e colocou o aparelho para carregar dentro. Voltou para a sua cadeira, sentou-se e disse: “acho que não sairei somente com um pé de sapato...”.

Frequentador assíduo de livrarias e sebos, sempre indicava e/ou oferecia novidades, novas ou antigas, o que se tornava motivo de riquíssimos diálogos sobre tudo, principalmente sobre utopias agrárias. Verdadeiras aulas informais.

Raimundo era também habitual presença no que hoje é o Estação Net Rio e costumava ficar na cafeteria, esperando a sessão ou, mesmo após ela, tomando um

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café. Vários de nós ali esbarrávamos com ele, sempre no final das tardes de sábado, nunca nas últimas sessões.

Apaixonado pela poética de João Cabral de Melo Neto, Raimundo inicia seu artigo “Dois estilos de interpelação camponesa”, citando “A palo seco” do poeta das coisas reais, do materialismo dialético, nas palavras de Félix de Ataíde, encontrando nesses versos a motivação para revisitar, a partir do pensamento social brasileiro, o agrarismo mais contemporâneo. Voltar à tradição intelectual, era para ele de grande valia no sentido da possibilidade de aproximação “de uma formulação política (expressão dessa rica tradição) da reforma do mundo rural por ela visto sob múltiplas faces”. Assim, também, mormente para cotejar “os tipos de inspirações que movimentam os contingentes sociais que ali labutam para se constituir em seres cujo destino não tem porque seguir os habitantes das cidades. Ou seja, o de viver um cotidiano de relações sociais e intersubjetivas complexas, como reclamava Gilberto Freyre, denunciando a marca mutiladora deixada pela escravidão nos nossos desvalidos rurais” (SANTOS, 2008).

Presenteava, de forma inesperada, os colegas com poemas. Um dia, sem avisar, trouxe ao colega e amigo John Wilkinson um poema fotocopiado de João Cabral de Melo Neto que John nunca tinha lido – “O cão sem plumas” – e o leu muitas vezes pelo ritmo e pelo som. Foi um presente e tanto:

Porque é muito mais espessa a vida que se desdobra em mais vida,

como uma fruta é mais espessa que sua flor; como a árvore é mais espessa que sua semente; como a flor é mais espessa que sua árvore. ...

Espesso,

porque é mais espessa a vida que se luta cada dia,

o dia que se adquire cada dia

(como uma ave que vai cada segundo conquistando seu voo).

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Pensamento social vinculado às questões do mundo rural brasileiro foi feito seu desígnio/ tema/inspiração/compromisso, e Raimundo o adotou com a competência militante de quem procura a fonte de apreensão sensível da realidade. Resulta dessa trajetória sua proposta mais recente: a criação do Grupo de Pesquisa CNPq Literatura, Ciências Sociais e Mundo Rural.

Nossa gratidão e saudades, Raimundo.

Referências

MELO NETO, João Cabral de. O cão sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007.

SANTOS, Raimundo. Dois estilos de interpelação camponesa. In: COSTA, Luiz Flávio de Carvalho; FLEXOR, Georges; SANTOS, Raimundo. Mundo rural brasileiro: ensaios interdisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica: Edur, 2008.

Como citar

COLETIVO DO CPDA. Raimundo Santos, espesso. Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020). Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 6-9, fev. 2021.

Creative Commons License. This is an Open Acess article, distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License CC BY 4.0 which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium. You must give appropriate credit, provide a link to the license, and indicate if changes were made.

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Luiz Sérgio Henriques1

Ao nos deixar no dia 19 de outubro deste infausto 2020, Raimundo Santos, intelectual discreto e operoso, extremamente fiel aos seus temas de eleição e às convicções de toda uma vida, deixa um legado precioso de coerência, generosidade e solidariedade. Ele era um daqueles intelectuais que se juntaram na revista Presença, nos anos 1980, aferrados ao patrimônio “eurocomunista” à brasileira. Homens e mulheres diferentes entre si, com variada inserção na vida política e acadêmica, mas reunidos pelo empenho de indagar como é que o seu peculiar comunismo podia servir ao país, como é que se poria a serviço da grande causa democrática, sem se perder em discussões doutrinárias tão ao gosto de muitas correntes do marxismo e, inevitavelmente, do próprio Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Tendo estudado Ciência Política na Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e se doutorado na Unam (Universidade Nacional Autônoma do México) ainda nos tempos do exílio, Raimundo por quase dez anos seria professor da Universidade Federal da Paraíba (em Campina Grande), transferindo-se depois para a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, especificamente para o CPDA (Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade).

No CPDA, a sala do Raimundo, atulhada de livros e papéis de todo tipo – ele que, entre outras coisas, se autointitulava um “revisteiro” e era um dos principais responsáveis pela edição da revista Estudos Sociedade e Agricultura –, tinha na parede um retrato de Ivan Ribeiro, precocemente falecido com o ministro da Reforma Agrária Marcos Freire em desastre de aviação. Ivan, outro professor do CPDA como ele, outro singular comunista como todos nós, pouco afeito a proclamações revolucionárias e mais envolvido na aposta de uma lenta e constante democratização dos processos societais. Havia naquele retrato do Ivan, pendurado na salinha do Raimundo, um sentido altíssimo de continuidade e de fidelidade, que se impunha de modo forte, mas silencioso

1 Tradutor, ensaísta, um dos organizadores das Obras de Gramsci, pela Civilização Brasileira, em 10 volumes. Editor de Gramsci e o Brasil

Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020)

Raimundo Santos, um homem e suas obsessões

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e sem afetação. Era preciso continuar o Ivan, assim como se devia preservar/superar o legado de gente como Alberto Passos Guimarães, Nelson Werneck Sodré e, em especial, Caio Prado Jr.

O velho Partidão havia passado e se impunha aceitar realisticamente este fato. Organismos históricos nascem, vivem e num certo momento perdem a razão de ser, não importa a marca que tenham deixado em momentos críticos da História ou que esta mesma História não possa ser contada sem eles. No entanto, para Raimundo, o

pecebismo sobrevivia ao partido e devia seguir de pé, inspirando a ideia da centralidade da política, a necessidade vital de fazer política para além de rígidas demarcações classistas,

mas sempre em benefício dos setores subalternos que dependem essencialmente das formas democráticas para ter condições dignas de vida material e espiritual. E o objetivo de fazer sobreviver uma tradição toda atenta à política só poderia ser o de levar a esquerda, ou a nossa parte da esquerda, a sair de guetos minoritários e a participar plenamente da vida nacional, influenciando-a no sentido semelhante àquele apontado, décadas a fio, por Caio Prado Jr. – a nacionalização da economia e da sociedade, a internalização dos centros decisórios, o atendimento das carências da maioria da população. Tudo isso num contexto de reformas graduais e incessantes, a serem conduzidas dentro da legalidade e da ordem constitucional, fora das quais, para Raimundo, podia até haver salvadores da pátria, mas nunca salvação nem risorgimento nacional.

O lema gramsciano, aqui, não é por acaso. Raimundo era devotado leitor do famoso Caderno 19 do pensador sardo, um caderno voltado para as vicissitudes da formação tardia da nação italiana, conduzida, como se sabe, pelos conservadores do “partido cavouriano”. Por terem uma consciência mais elaborada de si mesmos e de todos os demais atores, eram capazes de se pôr à frente da unificação e, por isso mesmo, dirigir a ala esquerda do movimento segundo os ditames da revolução passiva – categoria sofisticadamente revista e atualizada por Gramsci, a partir de processos de transformação frustrados total ou parcialmente, como foi o caso do próprio

Risorgimento. Para Raimundo, no entanto, havia aqui uma preciosa sugestão inerente à

possibilidade de trocar o sinal daquele tipo de revolução, transformando-a de signo de fraqueza das forças mudancistas em sabedoria tática e visão estratégica, em capacidade de estabelecer “alianças pluriclassistas”, que, ao fim e ao cabo, implicariam uma ideia bastante inovadora da mudança social contemporânea. O socialismo, para usar a palavra incandescente, agora passaria a ser entendido como “um processo desdramatizado de reforma da sociedade, que se construiria numa dialética complexa e de muitas mediações entre gradualismo e ruptura, a partir da plena aceitação da

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alternância no poder, em processos falibilísticos de avanços e recuos” (SANTOS, 2001, p. 262). Se bem observarmos, nesta e em muitas outras passagens, o contido “marxismo da revolução passiva” sustentado por nosso autor era, e ainda é, uma revolução copernicana muito distante de ser plenamente entendida no campo progressista, que não raro se atrapalha com caudilhos e miragens rupturistas.

Eis que, quase sem nos darmos conta, já estamos em pleno território povoado pelas obsessões pungentes de Raimundo: Gramsci e o Risorgimento, Caio Prado e o agrarismo reformista, este último a se infiltrar paulatinamente na agenda do PCB, apesar da posição muitas vezes outsider do historiador paulista em relação ao partido “de que não saiu e não foi expulso”. Inúmeras vezes, em artigos e ensaios, Raimundo debruçou-se sobre o sindicalismo rural estimulado pelos comunistas do PCB, valorizando-o como o caminho real para mudanças profundas, mais até do que o choque frontal e muitas vezes violento em torno da propriedade da terra. Tanto no intelectual outsider como no seu partido, Raimundo capturou os essenciais pontos de contato apesar das estridentes polêmicas e, muito especialmente, apesar da terminologia datada e da ortodoxia revolucionária comum aos atores individuais e coletivos daquele tempo. Uma sugestão bastante interessante neste sentido é a de que, em Caio Prado, o PCB vai recolher já nos anos 1950, de modo um tanto oblíquo ou subterrâneo, as ideias que dariam substância ao seu agrarismo sindical, à valorização do trabalho no capitalismo brasileiro e à possibilidade de um singular “socialismo de reformas capitalistas”, que afinal unissem nação e povo, economia e sociedade, sepultando de vez os restos renitentes do passado colonial. O “Ocidente” – afirmou certa feita Raimundo – teria tido seu momento inaugural no PCB por meio de Caio Prado Jr., uma hipótese ousada e merecedora de renovada atenção (para esta afirmação e as antecedentes, cf. SANTOS, 2001, p. 41).

Por último, mas não em último lugar, entre as obsessões que configuraram o

pecebismo do querido amigo, lugar de relevo particularíssimo cabe à estratégia da

resistência democrática no pós-1964, derivada diretamente do “Manifesto de Março” de 1958. Em se tratando de um partido comunista clássico, não há como desvincular o documento de 1958 dos acontecimentos que dois anos antes haviam abalado o mundo comunista, com a denúncia dos crimes de Stalin – e a mitigada denúncia do stalinismo – durante o célebre XX Congresso do Partido soviético. O PCB, pequeno mas influente, semiclandestino ou apenas tolerado, também daria início à própria desestalinização e, não por acaso, a um movimento mais acentuado de enraizamento na política local, delineando, entre altos e baixos, sua fisionomia de esquerda legalista e positiva (para lembrar a expressão de um excepcional personagem, San Tiago Dantas).

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Torneios retóricos à parte (como ninguém ignora, a linguagem é a última roupagem de que conseguimos nos despir...), aquele “Manifesto” supunha uma compreensão da “revolução brasileira” como um processo baseado em “etapas”, em reformas incessantes, sem desconhecer, antes valorizando, a legalidade afirmada pela Constituição de 1946. Ora, no pós-1964, a consequência lógica desta nova posição, adotada não sem muitas e variadas cisões e contradições internas, só poderia ser uma estratégia avessa às armas e aos grandes gestos, enganosamente miúda, fundamentada em iniciativas como a Frente Ampla (1965), a participação eleitoral e a recusa do voto nulo, o entendimento deste mesmo voto como momento superior de luta. Assim, uma parte da esquerda – exatamente, a esquerda comunista tradicional, ritualmente demonizada pelo regime militar, como ocorria, por exemplo, nas comemorações do desastrado putsch de 1935 – surgia em tal dificílimo contexto com uma aguda consciência do seu papel e, também, do papel que caberia aos liberais e aos democratas em geral, por mais que isso lhe valesse censuras e incompreensões “à esquerda”.

Tratava-se, em desdobramento natural do “Manifesto”, de contribuir para a derrota

política do regime – não para a derrubada do capitalismo –, propugnando objetivos

factíveis e essenciais para a reestruturação da vida política, a saber, a anistia ampla, geral e irrestrita, bem como o chamado a uma Constituinte, que reconciliasse o país consigo mesmo e deixasse para trás a existência de homens e mulheres perseguidos e de correntes e partidos clandestinos. Este, em essência, era também o pensamento político de Raimundo, sua bússola constante, a estrela guia jamais negada. Por isso, posso afirmar com segurança que ele sabia de cor frases, parágrafos e seções inteiras daquele “Manifesto”, verdadeira carta de alforria do stalinismo e marco indicativo da vontade de transitar de um “partido-igreja” para um “partido da política”, o que, a seu ver, tinha sido o último e memorável feito do Partidão.

Esta derradeira e fundamental obsessão de Raimundo – a frente única ou, mais propriamente, a frente democrática contra a ditadura – o fazia homenagear, em conversas, palestras e livros, personalidades como Luiz Inácio Maranhão Filho, Marco Antônio Coelho e Armênio Guedes, este último seu companheiro no exílio chileno até que viesse o golpe de 1973 e muitos anos depois objeto de um livro específico (SANTOS, 2012). Em Luiz Maranhão, o “cardeal” do PCB, Raimundo exaltava a capacidade de diálogo com os católicos e até com as figuras mais altas da hierarquia, como D. Paulo Evaristo Arns e D. Eugênio Salles, que, no entanto, não puderam salvá-lo do suplício; e nos outros dois dirigentes, celebrava a capacidade de entender em profundidade a política e de elaborar, sempre e invariavelmente, “a tática das soluções positivas” adequada para as situações de impasse. Afinal de contas – era o que Raimundo dava a

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entender com deliberada ironia –, ideias e intelectuais, livros e professores, eleições e políticos é que haviam consumado a derrota da ditadura, deixando-a imóvel e esgotada num canto do ringue, enquanto liberais da mais alta estirpe, como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, encaminhavam a transição e deixavam aberto o caminho para que todos os brasileiros, com ou sem partido, com esta ou aquela filiação ideológica, ou mesmo sem nenhuma filiação proclamada, participassem orgulhosamente do renascimento – do risorgimento – do país.

Nesta hora particularmente dura, em que a democracia corre riscos um pouco por toda parte e, de novo, também por aqui, o discreto Raimundo vai fazer muita falta. Já está fazendo. Lembro-me agora, ao pensar na sua figura e no seu modo de ser, do protagonista da peça Rasga, coração, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha. O herói sem pose, o herói anti-herói: obstinado, constante, modesto. Vem ainda à memória um velho poema de Brecht segundo o qual era de lamentar que os comunistas, lutando por um mundo em que triunfasse a amizade, nem sempre tivessem tido tempo de serem amigos entre si, endurecidos como estavam pela luta de classes. Este não foi o caso do Raimundo: fez e deixou amigos que dele se envaidecem e se recordam com carinho. Eu tive, muitos tiveram, a sorte de encontrar o Raimundo nos meandros “do Partido” – um homem honrado, um intelectual decente, uma personalidade democrática, profundamente democrática. Não o esqueceremos.

Referências

SANTOS, Raimundo. Caio Prado Jr. na cultura política brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X, 2001. SANTOS, Raimundo (Org.). O marxismo político de Armênio Guedes. Brasília: Fundação Astrojildo

Pereira; Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

Como citar

HENRIQUES, Luiz Sérgio. Raimundo Santos, um homem e suas obsessões. Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020). Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p.

10-14, fev. 2021.

Creative Commons License. This is an Open Acess article, distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License CC BY 4.0 which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium. You must give appropriate credit, provide a link to the license, and indicate if changes were made.

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Recebido em 17 dez. 2020.

Luiz Flávio de Carvalho Costa 1

Uma má notícia nos pegou de surpresa em outubro de 2020: a morte de Raimundo Santos. Seus colegas souberam da gravidade da sua doença poucos dias antes do óbito, algo bem Raimundo – discreto e silencioso. Tive o privilégio de desfrutar de sua amizade por mais de 30 anos, e com ele compartilhar muitas atividades acadêmicas. Uma delas foi a criação e a editoria da revista Estudos Sociedade e Agricultura (ESA). No entanto, a responsabilidade pela publicação nestes 28 anos de existência esteve por mais de 16 anos inteiramente em suas mãos. Aproveitando a poesia do fado português, Raimundo agarrou a revista como se fosse uma criança: de forma protetora, amorosa, segura, firme e delicada. Portanto, falar de Estudos Sociedade e Agricultura é, em larga medida, falar de Raimundo Santos.

O periódico foi criado em novembro de 1993 no âmbito do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Nesse primeiro número nós escrevemos na apresentação:

Tomada a decisão de fazer a presente publicação há algum tempo, eis aqui o primeiro número de Estudos Sociedade e Agricultura, sobremaneira à espera de acolhida e colaboração dos colegas do CPDA e da comunidade da UFRRJ, para afirmar-se como um espaço de circulação de idéias na área das ciências sociais aplicadas ao estudo do mundo rural.

O começo modesto não esgota nossas pretensões, que são maiores. Da experiência inicial, partiremos para melhorar a qualidade gráfica, aumentaremos a tiragem, ampliaremos a circulação, e, quem sabe, breve até poderemos pensar numa melhor estruturação editorial com a criação de seções e de números mais tematizados.

1 Professor aposentado pelo Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: flaviodecarvalho@icloud.com.

Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020)

Raimundo Santos, editor

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Do começo modesto, porém pretensioso, a ESA chega hoje ao número 1 do volume 29. Nesses 28 anos de existência, sem interrupção e com periodicidade regular, a revista publicou centenas de artigos de centenas de autores, contou com muitos colaboradores entre membros de seu Conselho Editorial, pareceristas, revisores, diagramadores, digitadores, tradutores, trabalhadores de gráfica e distribuidores.

Quando penso na trajetória da revista, tudo fica centrado na passagem do “começo modesto às pretensões maiores”. Nosso começo foi inteiramente artesanal. Tínhamos a nosso cargo praticamente todo o trabalho da revista (com exceção, naturalmente, da parte gráfica), incluindo a distribuição e a entrega das matrizes à gráfica impressas em nossa pequena impressora particular e o próprio acompanhamento gráfico, trabalho pouco visível, porém essencial para evitar surpresas ruins no final do processo. Nos seus primeiros números a revista teve a estreita colaboração de Mamede de Souza Freitas com seu cuidadoso olhar sobre a qualidade do texto acadêmico. Aprendemos muito com ele.

Naquele ano de 1993 dois impulsos nos colocavam em movimento: primeiro, o aumento da pressão por publicar os resultados de pesquisa, com a crescente valorização de artigos em periódicos. Adotávamos, meio a contragosto, os modelos das ciências duras e biológicas, em desfavor dos livros tão caros às humanidades. O sistema de recompensa orientava-se para os periódicos científicos, fosse para acumular créditos nos currículos individuais, fosse para avaliar os programas de pós-graduação do país,

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recompensa que se convertia em prêmios para os pesquisadores e para os programas de pós-graduação.

O segundo impulso foi tentar passar a barreira que os periódicos consagrados levantavam aos autores de instituições externas à sua própria origem. Essa barreira se erguia em dois obstáculos. Primeiro, muitos periódicos estabelecidos (falo sobre as áreas das ciências sociais) davam preferência por autores da própria instituição; segundo, o volume crescente de pesquisa encontrava poucos canais para dar vazão aos seus resultados. Se admitirmos que a publicação submetida à crítica de seus pares e sua divulgação é a última etapa da pesquisa, acumulávamos na área de humanidades no Brasil uma formidável quantia de pesquisas inacabadas.

Nos primeiros anos da revista tivemos aconselhamentos importantes do experiente editor Charles Pessanha. Primeiro, a atenção ao financiamento da publicação, lembrando que poucas revistas sobreviviam de recursos próprios. Essa preocupação deveria ser permanente, e nos alertava no sentido de que a taxa de natalidade dos periódicos científicos no Brasil vinha sendo alta, assim como a taxa de mortalidade. Destacava também o papel dos editores, cuja independência em relação à instituição onde estavam vinculados era vital para a tomada de decisões, para estabelecerem a confiança na neutralidade da publicação e evitarem um possível indesejado corporativismo. Pessanha advertia, igualmente, que o tempo de revistas científicas genéricas já havia passado. Recomendava-nos adotar a especialização. Quanto a esse ponto, o berço da ESA garantia essa qualidade. No início dos anos 1990, apenas a pioneira Revista de Economia e Sociologia Rural (Sober, 1978) e a Revista de Política

Agrícola (Conab, 1992) abriam espaços especializados para a publicação de artigos

científicos voltados aos temas rurais. Porém, ambas com dedicação menor aos aspectos sociais e culturais do chamado mundo rural, lugar que Estudos Sociedade e

Agricultura propunha ocupar. Lembramos ainda que, em 1971, a Associação Brasileira

de Reforma Agrária (Abra), organização de apoio à reforma agrária no Brasil, começou a publicar um boletim que deu origem à revista Reforma Agrária. Embora sem as características de periódico científico, ao lado de textos de sindicalistas, políticos e técnicos apareciam, igualmente, resultados de pesquisas acadêmicas relacionados à segurança alimentar, ao padrão de vida da população rural e aos problemas ambientais e de emprego no campo.

Ainda que os primeiros números de Estudos Sociedade e Agricultura tenham tido limitação de acesso, projetávamos que se daria em futuro próximo um salto qualitativo, com a melhoria da qualidade gráfica e com a criação e posteriormente com a nacionalização e internacionalização do seu corpo editorial. A revista foi se tornando mais

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visível e, com isso, muitos pesquisadores passaram a submeter seus escritos, criando um campo mais competitivo em favor da qualidade. Com a ampliação da circulação e o acolhimento de um número maior de autores de outras instituições, diminuímos o grau de endogenia para alcançar referências aceitáveis aos padrões técnicos.

Outra tarefa que nos ocupou foi adicionar a revista aos índices acadêmicos. Sua indexação ao longo do tempo, indispensável ao alcance e ao aumento do impacto dos seus artigos, foi um marcador importante no reconhecimento da qualidade do periódico, atendendo aos índices básicos da publicação científica. Certamente, os procedimentos para a melhoria da qualidade da revista, conduzidos sobretudo por Raimundo Santos, ocorreram ao longo dos anos, e se pôde alcançar, finalmente, um nível de profissionalização que levou a publicação a se firmar como um periódico de ciências sociais de referência nacional dedicado ao estudo do mundo rural.

O CPDA e a UFRRJ (sua Reitoria e seu Decanato de Pesquisa e Pós-graduação) adotaram desde o início uma firme postura de apoio ao periódico, indispensável para que nossa publicação não fizesse parte da estatística da taxa de mortalidade. Durante toda a sua existência, além do CPDA e da UFRRJ, o financiamento veio de muitas direções. Com o risco de esquecer alguma contribuição, lembro da Rede de Instituições vinculada à Capacitação em Economia e Políticas Agrícolas na América Latina e Caribe (Redcapa), presidida por Wessel Eijkman, do Programa de Apoio a Grupos de Excelência (Pronex), coordenado por Francisco Carlos Teixeira da Silva, desenvolvido no âmbito do CPDA, e da ActionAid, coordenada por Jorge O. Romano. Na sua transição do papel ao

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texto digital, e na busca de ampliação de leitores sem domínio da língua portuguesa, ESA ganhou um espaço na plataforma SciELO Social Sciences: English Edition, graças ao apoio do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.

Com o avanço das tecnologias da informação foram criadas novas ferramentas de disseminação do conhecimento. Controles, fluxos, recepção, avaliação, feedback e, sobretudo, o acesso livre e imediato ao texto integral ganharam impulso mundialmente.

Estudos Sociedade e Agricultura procurou acompanhar esse movimento. A ampliação do

acesso à informação científica no país e no circuito internacional por meio de traduções de artigos para o inglês nos pareceu um caminho sem volta. Nesse sentido, foi criado um CDRom com os vinte primeiros números da revista, entendido como uma otimização da utilização dos recursos públicos e privados. Do papel ao texto digital foi um caminho natural – união da diminuição de custos com a ampliação do acesso ao conteúdo da revista. Finalmente, a revista tornou-se inteiramente digital, passou a ter periodicidade quadrimestral e ganhou os números do Digital Object Identifier (DOI).

Desde seu primeiro número nas páginas de crédito esteve o nome de Raimundo Santos. Este volume diante do leitor é o primeiro em 28 anos em que seu nome não aparece como editor, pois a morte lhe chegou em outubro de 2020. Do ponto de vista intelectual, ele nos deu uma grande contribuição ao pensamento social brasileiro, à nossa cultura política e aos estudos dos movimentos sociais. Recentemente, um novo tema vinha despertando seu interesse – a literatura como fonte para a compreensão de

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nosso mundo rural. Raimundo produziu de forma fecunda e criativa dentro da sua sala caótica com grandes pilhas de livros e de papéis em equilíbrio precário.

Além da dor familiar, sua ausência tem sido triste para seus amigos e colegas. Seu jeito calmo, discreto e prudente, fala mansa, porém firme, às vezes quase sussurrando, orgulhoso de sua origem nordestina, seu apreço pela literatura, pelo cinema e pela poesia (um admirador de João Cabral de Melo Neto), sua pequena agenda abarrotada de papeizinhos, a palma da mão toda anotada por caneta para não se esquecer das tarefas e compromissos (seu palmtop), um humor fino e sutil, Raimundo era querido e admirado pelas pessoas em sua volta. Tive e tenho por ele um imenso carinho.

Como citar

COSTA, Luiz Flávio de Carvalho. Raimundo Santos, editor. Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020). Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 15-20, fev.

2021.

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Recebido em 17 dez. 2020.

Dora Vianna Vasconcellos 1

Resumo: O artigo é uma homenagem a Raimundo Santos, professor e pesquisador que se dedicou à história das ideias e ao pensamento social brasileiro, com o objetivo de entender a relação entre a democracia e as mudanças sociais. Entre os temas de sua predileção estava a questão agrária, a atuação das esquerdas no século XX e a política. Raimundo se destacou no cenário intelectual brasileiro por abordar tais fenômenos sob o registro do reformismo democrático. Por esta razão, além de ser uma homenagem, o artigo trata também das controvérsias do reformismo democrático com a esquerda.

Palavras-chave: Raimundo Santos; pensamento social brasileiro; reformismo democrático; esquerda. Abstract: (Controversies of democratic reformism). The article is in honor of Raimundo Santos, professor and researcher who dedicated himself to the history of ideas and to Brazilian social thought, with the aim of understanding the relationship between democracy and social changes. The agrarian question, the role of the left in the 20th century and politics were among his preferred subjects. Raimundo stood out in the Brazilian intellectual scene for addressing such phenomena from the point of view of the democratic reformism. For this reason, besides being a tribute to him, the article equally addresses the controversies of democratic reformism with the left.

Keywords: Raimundo Santos; Brazilian social thought; democratic reformism; left.

Este artigo é uma homenagem a Raimundo Santos, professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Todavia é isso, mas não é apenas isso. É também um meio de interpretar algumas das controvérsias do reformismo democrático, posicionamento político a que Raimundo endossou ao longo de toda sua vida. Para além das divergências políticas a que faremos alusão ao longo deste texto, está o homem. Agradeço a Raimundo por seu amor às ciências sociais tê-lo feito me acolher como sua orientanda durante seus últimos 13 anos de vida, apesar de

1 Professora substituta do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(IFCS/UFRJ). Mestrado, doutorado e pós-doutorado em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). E-mail: doravianna.vasconcellos3@gmail.com.

Homenagem a Raimundo Santos (1943-2020)

Controvérsias com o reformismo democrático

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nossos diferentes posicionamentos políticos. Posso até dizer melhor. Por conta mesmo de nossas discordâncias é que fui aceita por este homem curioso que não gostava das polarizações na vida política, mas em sua vida pessoal se enriquecia sobremaneira com elas. Por isso, para não perder o hábito de nossas discussões, essa é mais uma das indagações que lhe direciono, não mais em forma de diálogo, porque infelizmente a morte é inelutável. Mas como uma homenagem a este homem acadêmico raro, que aceitava a diferença, e mesmo se alimentava delas.

Conheci o Raimundo em 2007, data que ingressei no curso de mestrado em Ciências Sociais do CPDA. Nesta época, ele estaria então com sessenta e poucos anos, tendo uma trajetória acadêmica bastante consolidada no campo da história intelectual e do pensamento social brasileiro.

Segundo seu próprio relato, seu interesse nas ciências sociais vinha dos seus anos de militância na juventude, sendo a política uma paixão marcante na sua vida. Raimundo concluiu mestrado em Ciência Política pela Facultad Latinoamericana de Ciências Sociales (1978) e doutorado em ciência política pela Universidad Autónoma de México (UNAN, 1984).

Sua vocação para os temas políticos rendeu-lhe estudos concernentes à transformação social e à democracia. Raimundo tinha nos autores clássicos das ciências sociais, principalmente no âmbito do marxismo e do reformismo, seus pontos de apoio. Do ponto de vista pessoal, sua paixão pela política custou-lhe um exílio no México, fato que lhe trouxe algumas marcas na vida acadêmica.

Extremamente preocupado com a circunstância política no verdadeiro sentido maquiaveliano da virtú, ele, não importando quais fossem as forças políticas atuantes, se conservadoras ou progressistas, colocava-se sempre partidário de um governo que tirasse proveito da conjuntura no sentido preciso de encontrar entre as forças contrárias sempre um interesse comum (MAQUIAVEL, 2015). No âmbito nacional, foi Carlos Nelson Coutinho quem lhe forneceu as bases teóricas para afirmar a institucionalidade democrática como um governo de colisão. Em termos mais políticos, isto quer dizer que o marxismo de Raimundo era tributário do realismo burguês, não sendo por isso propriamente de esquerda. Seu posicionamento político estava situado naquilo que o pensamento social brasileiro e a cultura política brasileira chamaram de reformismo democrático (COUTINHO, 2011).

Raimundo, ao contrário de mim, não via com bons olhos os acirramentos e polarizações políticas de tipo esquerdista. Depositava sempre suas esperanças na chamada fórmula do degelo da sociedade civil por meio de mobilizações políticas que se tornam atuantes à medida que o Estado esteja compactado ao mínimo (VIANNA, 1999).

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Sua graduação em direito lhe trouxe a predileção pela política que acontece institucionalmente e sem rompimento com o status quo burguês. Daí sua crença nos direitos civis e políticos. Sua filiação ideológica marcadamente habermasiana fazia sua militância atuar no alargamento da esfera pública por meio da corporificação de leis que corrigem o excessivo privatismo e individualismo burguês, mediante a consolidação de um direito civil e político de corte notadamente liberal (HABERMAS, 2011).

Raimundo não era partidário de políticas sociais veiculadas pelo Estado porque tais políticas acabavam por redundar na cooptação política, com a sociedade civil se tornando refém de um Estado cada vez mais burocratizado, asfixiador das liberdades civis e políticas e do desenvolvimento das forças produtivas. Vale dizer que Raimundo tinha como referência um mundo dividido pela Guerra Fria, em que o Ocidente simbolizava as ricas e tecnológicas democracias representativas garantidoras das liberdades civis e políticas, e o Oriente corporificava o socialismo real existente, com uma economia planejada deficitária e um Estado totalitarista.

Nos meus primeiros encontros com Raimundo na época de meu mestrado – faria ainda sob sua orientação, um doutorado e pós-doutorado –, lembro-me de ter achado um tanto curioso aquele homem que se cercava de livros de Marx, mas para se afirmar um crédulo nas prerrogativas abertas pelo Ocidente. Nas minhas indagações de estudante, perguntava-me em que medida o pensamento de Raimundo encarna o legado deixado pelo marxismo?

Diante de um posicionamento tão diferente do meu, que tem nas ações revolucionárias sua grande inspiração, os debates políticos entre nós se tornaram fertilmente constantes. De minha parte, apegava-me cada vez mais aos africanismos e aos indigenismos campesinos e suas ações subversivas na América Latina. Raimundo, por sua vez, embora se voltasse para a realidade latino-americana, ainda considerava o modelo ocidental de ida ao moderno como o único paradigma válido justamente porque foi ele que deu acesso à democracia política (SANTOS, 2014).

Dois questionamentos que direcionei a Raimundo não deixavam de ser instigantes para mim: se o legado do Ocidente é a democracia representativa e os direitos civis e políticos, o que dizer dos fenômenos do fascismo, do colonialismo e do racismo, que são o exacerbamento da política ocidental? Por outro lado, o próprio Habermas testemunha em seus primeiros estudos haver uma censura na democracia ocidental no que diz respeito às políticas sociais (HABERMAS, 1990). Intrigava-me saber que função exercia o marxismo numa elaboração teórica tão próxima da postura liberal.

À medida que direcionava tais indagações a Raimundo, nossos estudos dirigidos se tornavam cada vez mais densos. Raimundo tinha uma norma para a vida pessoal. Ele

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gostava do debate político e da peleja. O que não deixava de ser um tanto curioso para quem politicamente era tão afeito à conciliação política. Ou seja, para quem evitava o conflito e as radicalizações. E foi assim que iniciamos nossa parceria que duraria por anos a fio, até o final de sua vida.

O interessante na trajetória acadêmica de Raimundo é que seu posicionamento político foi elaborado como uma herança da atuação política do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele tomava as análises dos autores pecebistas como referência obrigatória para entender a circunstância política de seu tempo e sempre acabava por classificar a atuação das esquerdas na atualidade como inconclusas justamente porque contrariavam a principal herança deixada pelo PCB: o reformismo democrático (SANTOS, 2009).

Diante de tal elaboração política surgiu a suspeita de que talvez Raimundo tivesse razão em dar um estatuto reformista ao marxismo ocidental. Afinal, no Ocidente de fato a ideia de revolução passou a significar o processo de “antecipação das reformas capitalistas”, num sentido político estreito da consolidação de uma democracia burguesa como primeira etapa de uma longa transição para o socialismo. Há que se atentar que para boa parte dos marxistas ocidentais, e aqui me refiro a Lucien Goldman, o socialismo apenas viria do surgimento de uma política aliancista entre indivíduos hierarquicamente desiguais, num sentido quase caritativo de Durkheim (DURKHEIM, 2015), embora o autor se referisse a possível harmonização dos interesses de todas as classes sociais num ideal comum (GOLDMANN, 1978). Poderia vir também num sentido mais economicista de socialização da produção por toda sociedade, num sentido mais adorniano e marcusiano (MARCUSE, 1968). Ou seja, a meta da socialização dos meios de produção deixou de ser uma necessidade histórica reivindicada pelo marxismo devido às benesses trazidas pelo industrialismo no Ocidente para todas as classes sociais. Daí o reformismo ter ganhado uma força incrível no Ocidente. Esses dois modelos de ida ao moderno definitivamente se revelaram como não mutuamente excludentes na medida em que ambos davam como certo a atenuação dos conflitos existentes entre as classes sociais.

Deste modo, quanto mais entrava em contato com Raimundo, mais fortemente me indagava que papel cumpria o marxismo em seu pensamento. A necessidade desta compreensão parecia me revelar as tergiversações de um marxismo que estava cada vez mais distante de uma verdadeiramente intenção esquerdista, tanto no Ocidente, como também aqui no Brasil. Tanto é que, no final de sua trajetória, quando o conheci, Raimundo me parecia cada vez mais próximo de autores críticos ao marxismo, tal como Habermas, embora continuasse a citar constantemente em seus textos os construtos de

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Marx. Raimundo era muito mais crédulo na democracia representativa do que um marxista pode ser.

Desta minha indagação, ele se redimia dizendo que seu marxismo residia na sua crença na política como meio de mudar o curso dos acontecimentos. Valia-se de Habermas para justificar sua ideia de que a democracia liberal poderia ter suas bases alargadas, seja por meio da esfera jurídica, seja por meio da esfera comunicativa (HABERMAS, 1990). De certo modo, ele discordava de Lênin quanto ao fim último da tática marxista. Se para o marxismo-leninismo o longo processo evolutivo ocidental desencadearia futuramente a revolução comunista, para Raimundo o fim último seria o próprio adensamento da democracia liberal (SANTOS, 2014).

Deste modo, não se pode entender o pensamento político de Raimundo se não atentarmos para o seguinte detalhe: para ele, o Ocidente referendou o marxismo-leninismo numa tática histórica acertada de consolidação da democracia liberal, sobretudo porque a promessa da revolução comunista perdeu fôlego nos países ocidentais. Teria acertado o Ocidente, sobretudo, ao não se desvencilhar do realismo burguês para dar prosseguimento ao que a sociologia contemporânea denomina de fim da História e em seu lugar instituir um dinamismo social em que as mudanças são pequenos rearranjos e disjunções. Esta seria a condição para a estabilidade do regime democrático de direito.

Mas se Raimundo fazia referência a Lênin para exaltar o sentido claramente democrático burguês que as revoluções francesa, americana e inglesa assumiram no Ocidente, no caso brasileiro, a situação era outra. Lênin devia ser chamado num sentido mais sociológico de caracterização do atraso brasileiro (SANTOS, 2009).

Em termos sociológicos, o ponto de vista de Raimundo para o Brasil continuava a ser leninista, sobretudo no seguinte aspecto: tal como Lênin supôs para o contexto da Revolução Russa de 1917, aqui o capitalismo era periférico. Recorrentemente ele gostava de fazer referência ao livro Duas táticas da social-democracia na revolução democrática, de Lenin, para afirmar que, tal como na Rússia, no Brasil a população sofria não tanto do capitalismo, mas da insuficiência do desenvolvimento do capitalismo (LENIN, s.d.).

Assim como na Rússia, no Brasil a burguesia e o operariado não eram uma força política expressiva, tal como acontece nos países ocidentais industrializados. O Brasil teria uma classe operária e uma burguesia fracas demais para colocarem fim ao nosso atraso econômico. E para piorar, no nosso caso, também o campesinato era mal constituído, o que não acontecia na Rússia. Em razão de as elites agrárias brasileiras serem latifundiárias, elas instauram relações de trabalho extorsivas no campo. Daí o principal fato histórico brasileiro ser a ausência de um campesinato. Diferentemente do

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contexto russo e francês, a história brasileira teria como característica uma mão de obra migrante e de contato intermitente com a terra. Por sua vez, o Brasil teria também uma burguesia débil em função da situação colonial de nossa economia não permitir que a nossa indústria fizesse frente às manufaturas metropolitanas.

Por sua situação histórica suis generis de debilidade política dos atores revolucionários, Raimundo fazia referência ao leninismo para entender o contexto brasileiro num sentido diverso do caso russo, portanto. O Lênin de Duas táticas da

social-democracia, livro recorrentemente referenciado por Raimundo, fazia uma distinção

política clara entre a democracia parlamentar que os países ocidentais frequentemente dão origem e a democracia burguesa revolucionária que a Rússia deveria dar lugar, se a revolução consolidasse uma democracia representativa, com participação direta dos camponeses e do operariado. Na campo, a mercantilização da economia russa mediante a vigência da democracia representativa daria origem à proletarização da mão de obra no campo. Somente depois de passada esta etapa burguesa é que a agricultura se tornaria propriamente socialista.

Raimundo desfaz essa aporia ao considerar a situação política francesa, que tem uma democracia política mista e, no entanto, é o país de agricultura familiar.2 Deste modo, a

situação política francesa confirmava a ideia de Raimundo de que a república parlamentar não necessariamente revive relações feudais no campo. Afinal a agricultura francesa é de teor inegavelmente capitalista. Por esta razão, a modernização da agricultura vivida pela França foi considerada por muitos essencialmente democrática. Vale dizer que Marx, em O dezoito de Brumário, ao se referir ao caso francês, pontuou que a burguesia prescindiu do poder político para assegurar seu domínio econômico, dando origem a uma democracia parlamentar que tem no camponês sua base de legitimidade. É claro que ele não deixa de acrescentar que esta é um regime político essencialmente bonapartista, que é mais fruto dos anseios do campesinato conservador, ainda muito apegado à ideia de propriedade, do que do campesinato revolucionário, que pedia pelo fim das relações de vassalagem feudais e pela coletivização da agricultura (MARX, 1978).

Embora valorizasse sobremaneira o processo francês de mercantilização da agricultura conduzido pela burguesia parlamentar, Raimundo não via essa possibilidade como viável para a situação do Brasil, país cujos setores burgueses nacionais tinham uma relação fisiológica com o Estado, estando por conta disso constantemente em situação de atraso em a burguesia internacional.

O caso brasileiro comprovava o contrário, que era preciso primeiro superar o padrão colonial de nossa economia. Por isso, para Raimundo, a completa mercantilização de

2 A França modernizou sua agricultura mediante o incentivo dos arrendamentos das terras cultiváveis. Deste modo a propriedade da

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nossa economia se daria sob vigência da grande propriedade. Tal processo não necessariamente implicaria o fechamento do jogo democrático, porque traria como contrapartida o processo de proletarização da mão de obra no campo e a possibilidade dos desvalidos do campo serem representados politicamente. Munido dessas observações, Raimundo sustentou a interpretação de que o Brasil devia continuar a modernizar sua agricultura, sem necessariamente democratizar a estrutura fundiária. Deste modo, o leninismo de Raimundo é circunstanciado à realidade brasileira, característica que é marcante no reformismo democrático (SANTOS, 2009).

Raimundo endereçava uma crítica ao pecebismo de Alberto Passos Guimarães que se valia do leninismo para pontuar que dois tipos de desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira ainda eram possíveis, um revolucionário e, outro, reformista (SANTOS, 2007a).

O desenvolvimento capitalista revolucionário teria prosseguimento se o proletariado e os camponeses apoiassem as forças burguesas progressistas em sentido contrário ao latifundismo e claramente democratizante de consolidação da propriedade camponesa. Todavia, Alberto Passos Guimarães contextualizava o leninismo de acordo com a formação social brasileira e salientava que tal processo não se daria sem que antes não se concretizasse a luta anti-imperialista mediante a formação de uma frente ampla, com participação de burgueses, proletários e camponeses, que viabilizasse primeiro uma revolução agrária não camponesa. Deste modo, no caso brasileiro, seria necessário primeiro consolidar um capitalismo democrático-nacional que eliminasse os resquícios do escravismo no campo, num sentido claro de proletarizar a mão de obra do campo.

Esta etapa de reestruturação capitalista democrática-nacional apresentaria um sentido claramente não camponês na medida em que os grupos agrários mobilizados seriam os assalariados e semiassalariados rurais e não os camponeses. O capitalismo se concretizaria no campo primeiro à moda norte-americana ou farmer, isto é, mediante um processo de reestruturação mercantil que proletarizaria a mão de obra para tornar possível sua arregimentação em sindicatos rurais.3 Isso significa que a luta política no

campo, num primeiro momento, seria marcada somente pela busca por melhores empregos e salários no campo.

A desintegração dos latifúndios e a consolidação da pequena propriedade camponesa apenas ocorreriam na segunda etapa da reestruturação burguesa, cujo teor seria mais

3 Alberto Passos Guimarães com o qualificativo farmer fazia referência a um terceiro caso de desenvolvimento do capitalismo na

agricultura, o norte-americano. Nos EUA, a modernização da agricultura se deu mediante a marcha para o Oeste. Isto é, mediante a ocupação do solo favorecida pelo Estado, que acabou consolidando as chamadas plantations, que se diferem do latifúndio feudal brasileiro pelo seu alto índice de produtividade e mecanização. No que diz respeito à mão de obra, as plantations e favorecem a proletarização, por isso são reconhecidas como via farmer de desenvolvimento capitalista na agricultura. O latifúndio é economicamente atrasado em relação às plantations americanas porque sofrem com o padrão colonial da economia. A plantations seriam um tipo de agricultura de monocultura típicas de países de capitalismo avançado.

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democrático-popular. Deste modo, seria somente nesta segunda fase que o processo de desenvolvimento capitalista abriria espaço para uma política de reforma agrária de teor notadamente burguês, porque dirigida somente ao latifúndio improdutivo e não ao direito de propriedade em si.

Esta reestruturação capitalista realizada em duas etapas marcaria o que Alberto Guimarães denominou de desenvolvimento capitalista revolucionário, justamente porque eliminaria o latifundismo no campo.

Por sua vez, o outro tipo de desenvolvimento capitalista na agricultura, denominado por Alberto Passos Guimarães de reformista, permitiria que o latifundismo feudal cedesse espaço para o latifundismo-burguês, sem qualquer necessidade de uma reforma agrária no campo. É o processo histórico que chamamos normalmente de desenvolvimento capitalista junker.

Segundo Raimundo, este processo é também chamado de reformista, porque viabiliza a rápida mercantilização da agricultura e das relações de trabalho no campo sem grandes sobressaltos políticos. Quem mais deu representação política a esse tipo de desenvolvimento capitalista no Brasil foi Caio Prado Júnior, justamente porque ele não condicionava a saída junker ao ocaso da democracia no país. Pelo contrário, tal como Raimundo, Caio Prado Júnior achava que a vigência da democracia política no Brasil estava intimamente ligada à modernização reformista da agricultura (SANTOS, 2007b).

Para Raimundo, a saída reformista era a mais apropriada aos países de capitalismo periférico justamente porque a proletarização da mão de obra do campo por si só já suscitaria a formação de um mercado consumidor interno capaz de reverte o padrão colonial de nossa formação, cuja produção de matéria-prima comumente é toda voltada para fora.

Para ele, pontos de vista como de Caio Prado Júnior não seriam propriamente economicista, porque se reconhecia o perigo da via junker se tornar autocrática, isto é, uma revolução pelo alto. Daí Prado Júnior sempre reivindicar a necessidade de os partidos comunistas fazerem uma adequação entre teoria e prática, no sentido de aproximação do marxismo com o realismo burguês. Seria esta atuação política mais consequente, voltada para a luta das necessidades mais imediatas dos trabalhadores rurais, que permitiria ao Partido Comunista sempre incidir na vida política, tornando a democracia política mais representativa. A contrapartida dessa política mais próxima dos anseios burgueses seria a constituição de uma malha sindical no meio rural. Por permitir esse tipo de abertura política, a segunda etapa do desenvolvimento burguês, de caráter antifeudal, foi considerada tanto por Raimundo como por Caio Prado Júnior desnecessária historicamente (SANTOS, 2007c).

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Na época em que eu o conheci, Raimundo estava fazendo uma autocrítica ao reconhecer que o anseio da reforma agrária sempre fora para ele uma meta descompassada com a realidade brasileira, uma utopia de caráter eminentemente conservador, já que levava ao divórcio entre teoria e prática e ao reboquismo das classes revolucionárias. Ao longo dos anos de convivência com ele, fui percebendo que Raimundo não estava só. Existia uma vertente interpretativa significativa no Brasil que se utilizava dos escritos de Lenin para referendar o reformismo democrático. Este era o caso do próprio Caio Prado Júnior e também de Ivan Ribeiro (SANTOS, 2007a).

Deste modo, inviabilizados os caminhos russo, francês e norte-americano, apenas sobraria para nós a consolidação do capitalismo pela via prussiana. Raimundo sempre se referia ao conceito gramsciano de revolução passiva para qualificar positivamente o prussianismo brasileiro (GRAMSCI, 1999). E, assim, imprimia aos construtos de Lenin um adendo, sugerindo que as questões sociais têm primazia sobre a política.

Na realidade, Raimundo negava as interpretações de Nelson Werneck Sodré de que no Brasil o capitalismo se desenvolve à moda prussiana, sob ação e influência do imperialismo (SODRÉ, 1979). Daí os restos feudais serem conservados e o monopólio da terra assegurado, à medida que o capitalismo penetra na nossa agricultura.

Raimundo criticava, sobretudo, André Gunder Frank, para quem as relações de trabalho de caráter servil no campo são relações capitalistas típicas de países colonizados, cuja função na divisão internacional do trabalho é fornecer matérias-primas aos países de capitalismo central a preços baixos.

Gunder Frank era enfático ao pontuar que o Brasil revive constantemente o drama do pacto colonial. A exportação de matéria-prima a preços módicos para o centro do capitalismo e a importação de manufaturas a preços altos tornavam o nosso latifundismo cada vez mais recessivo no que diz respeito à exploração de mão de obra. É por esta razão que o capitalismo sempre reinaugura relações de trabalho servis no campo. Gunder Frank criticava especialmente o PCB quando este não reconhecia que o mal do Brasil era o próprio capitalismo. Sua tese é a de que o capitalismo é essencialmente colonialista e estrutura o mundo numa rede internacional composta de metrópoles-satélites que faz com que o capitalismo nos países colonizados seja não alodial do ponto de vista das relações de trabalho. Esta situação se repete também nos centros urbanos, porque o parque industrial dos países explorados é sempre colapsado pelas multinacionais, o que faz com que também nosso industrialismo seja débil e nossa população composta de uma massa sobrante que não se insere no sistema produtivo. Em razão de reconhecer esta situação como tipicamente capitalista, Gunder Frank

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