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ORTOTANÁSIA E CUIDADOS PALIATIVOS: RESPEITO À AUTODETERMINAÇÃO

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ORTOTANÁSIA E CUIDADOS PALIATIVOS:

RESPEITO À AUTODETERMINAÇÃO

CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat Mestre em Cognição e Linguagem pela UENF Autora das obras Síntese de Direito do Consumidor (2012) e Consentimento Informado no Exercício da Medicina e Tutela dos Direitos Existenciais: uma visão interdisciplinar – Direito e Medicina (2011);

coordenadora da obra Ortotanásia: Bioética, Biodireito, Medicina e direitos de personalidade (2015);

professora de Direito Civil com ênfase em Direito do Consumidor, Responsabilidade Civil, Família e Sucessões do Curso Jurídico da Universidade Iguaçu/ Itaperuna; Professora de Direito em Saúde no Curso de Medicina.

hildeboechat@gmail.com

SOUZA, Carlos Henrique Medeiros de Professor e Coordenador do Programa de Cognição em Linguagem da UENF chmsouza@gmail.com

BOECHAT, Ieda Tinoco Estudante de Mestrado do Programa de Cognição e Linguagem da UENF

Professora do Curso de Psicologia da UNIFSJ iedatboechat@hotmail.com

MOREIRA, Raquel Veggi Estudante de Mestrado em Cognição e Linguagem pela UENF. Pós-graduanda em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância pela UFF. Especialista em Direito Civil e em Assessoria Empresarial. Gestora Administrativa. Advogada rveggi@yahoo.com.br

RESUMO

O presente artigo objetiva apresentar a Ortotanásia como forma de respeitar a dignidade da pessoa enferma e sua autodeterminação, ressaltando a importância da adoção de cuidados paliativos a fim de proporcionar o maior bem-estar possível ao doente na fase final da vida. Justifica-se esta abordagem pela necessidade de se debater no meio acadêmico e no âmbito da sociedade a importância de não submeter o doente terminal a tratamentos que já não serão eficazes e não apresentam nenhuma utilidade por não produzirem cura ou melhoria de seu estado de saúde. Concluiu-se que a adoção da Ortotanásia como “morte no tempo certo” associada aos cuidados paliativos proporcionam morte digna e promovem o bem-estar do doente, além de respeitar a sua autodeterminação no momento mais delicado da vida, que é a finitude. A metodologia empregada foi qualitativa mediante pesquisa bibliográfica em livros e artigos científicos de estudiosos do tema.

Palavras-chave: obstinação terapêutica; dignidade humana; autodeterminação.

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142 ABSTRACT

This article aims to present Orthothanasia as a way to respect the dignity of the ill person to self-determination, emphasizing the importance of adopting palliative care in order to provide the highest possible welfare to the patient in the final stages of life. This approach is justified by the need to debate in academia and society the importance of not submitting the terminally ill to treatments that are no longer effective and have no utility for not producing cure or improvement of their health. It was concluded that the adoption of Orthothanasia as "death at the right time" associated with palliative care provide dignified death and promote the patient's well-being , and respect the self-determination in the most delicate moment of life, which is the finitude. The methodology used was qualitative through bibliographic research in books and scientific articles of the scholars of this subject.

Keywords: Therapeutic obstinacy; Human dignity; Self-determination.

INTRODUÇÃO

A morte humana é a única certeza dos seres humanos, por isso a humanidade a teme e prefere não discutir o assunto. Em regra, morrer não é uma opção, mas um desfecho comum a todas as pessoas, não lhes sendo possível vencer a finitude da vida.

Este artigo tem por escopo analisar a finitude da vida humana decorrente de grave enfermidade. Pretende-se destacar a necessidade de a Medicina contemporânea romper com o processo de contínua medicalização da morte, deixando de adotar o excesso terapêutico – Distanásia – e caminhar no sentido da proteção à autodeterminação do enfermo que escolhe a morte no tempo certo, em paz – Ortotanásia. Ortotanásia e a autodeterminação da pessoa são objetos de estudo da Bioética, que prestigia a dignidade da pessoa, constituindo-se o recorte do presente artigo. Este estudo se justifica pela importância da finitude da vida humana e a relevância de se cuidar da pessoa nos seus momentos derradeiros de vida.

A tutela constitucional da dignidade da pessoa humana reclama pelo respeito a escolhas livres e conscientes às quais o enfermo tem direito, segundo a atual perspectiva dos direitos de personalidade, em que a dignidade da pessoa humana, mais que princípio norteador do ordenamento jurídico, tem sido considerada um axioma a permear todas as condutas neste estado de direito. Justifica-se esta abordagem pelo prolongamento artificial da vida humana ora praticado, mesmo quando a terminalidade da doença é uma realidade inescondível e qualquer tratamento ou procedimento inútil, pois não concorrerá para a cura, em nada beneficiando o doente.

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143 Buscando-se demonstrar a aplicação ética da Ortotanásia, analisam-se os pressupostos para a aplicação ética no Brasil, suscitando-se reflexões sobre a Resolução nº 1.805/06 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que defende a legalidade da realização do procedimento ortotanásico no âmbito da deontologia médica.

Emprega-se metodologia qualitativa, mediante análise bibliográfica baseada em estudos, artigos e obras de estudiosos do tema como Leo Pessini (2007), Eduardo Luiz dos Santos Cabette (2012), Luciano de Freitas Santoro (2012), dentre outros. O artigo é apresentado em três seções: Ortotanásia e autodeterminação da pessoa; requisitos para aplicação da Ortotanásia no Brasil; os cuidados paliativos.

1 ORTOTANÁSIA E AUTODETERMINAÇÃO DA PESSOA

Estudos demonstram que a expectativa de vida da população aumentou, devido ao avanço tecnológico na área médica, que apresenta novas alternativas de medicamentos que permitem a cura ou o controle das doenças, além da utilização de avançadas técnicas cirúrgicas mediante emprego de tecnologia de ponta. Doenças antes incuráveis, hoje se mostram perfeitamente controláveis, com boa evolução e bons prognósticos. Neste sentido, Cruz e Oliveira assinalam que tais “mudanças foram determinantes para criar o dogma de que sempre deve ser alcançada a cura do paciente ou o prolongamento máximo da vida do indivíduo”

(CRUZ; OLIVEIRA, 2012, p. 406). Diferentes posicionamentos surgem a respeito do tema, suscitando “dilemas não apenas de ordem jurídica, como de cunho religioso, social e moral”

(CFM, 2010, p. 478).

É necessário que a pessoa tenha o direito de escolher em que circunstância deseja passar os últimos dias de vida. Principalmente quando está acometida de doença grave em estado terminal e já não há mais recursos que a Medicina possa disponibilizar que sejam capazes de promover a cura, pois a morte é iminente.

Ortotanásia é uma expressão cunhada por Jacques Roskam, da Universidade de Liege, Bélgica, no Primeiro Congresso Internacional de Gerontologia, em 1950, quando

[...] teria concluído que entre encurtar a vida humana através da eutanásia e a sua prolongação pela obstinação terapêutica existiria uma morte correta, justa, isto é, aquela ocorrida no seu tempo oportuno; por isso a utilização dos termos gregos

“orthos” (correto) e “thanatus” (morte) (SANTORO, 2012, p. 132).

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144 Maria Julia Kovásc destaca a íntima ligação entre a Ortotanásia e a dignidade da pessoa enferma:

[...] a ortotanásia busca a morte com dignidade no momento correto, com controle da dor e sintomas físicos, psíquicos, bem como questões relativas às dimensões sociais e espirituais. Por seu caráter multidisciplinar, busca oferecer apoio à família na elaboração do luto antecipatório e no pós-óbito. A ortotanásia é, portanto, atitude de profundo respeito à dignidade do paciente (KOVÁSC, 2014, p. 98).

Gerson Camata ressalva que “Defender o direito de morrer dignamente não se trata de defender qualquer procedimento que cause a morte do paciente, mas de reconhecer sua liberdade e sua autodeterminação” (CAMATA In PEREIRA; MENEZES; BARBOZA, 2010, p. 138). Então, direito à morte digna por meio da Ortotanásia não pode ser confundido com a abreviação da vida. Ortotanásia é, pois, uma forma humanizada de morrer na hora certa, não de antecipar a morte. Em sentido contrário, tem-se o prolongamento artificial da vida, a Distanásia, que para os doutos autores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald

[...] é o prolongamento artificial do processo (natural) de morte, ainda que à custa do sofrimento do paciente. É a continuação, por intervenção da Medicina, da agonia, mesmo sabendo que, naquele momento, não há chance conhecida de cura. Enfim, é uma verdadeira obstinação pela pesquisa científica, pela tecnologia e tratamento médico, olvidando o direito do paciente à sua dignidade intangível, mesmo no momento da morte (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 314-315).

Leo Pessini aborda a questão que demonstra a inutilidade da obstinação terapêutica:

A questão de fundo é definir quando uma determinada intervenção médica não mais beneficia o doente em estado crítico, terminal, em estado vegetativo persistente, ou o neonato concebido com seríssimas deficiências congênitas, e torna-se, portanto, fútil e inútil. A insistência em implementá-la vai resultar numa situação que caracterizamos como distanásica (PESSINI, 2007, p. 163).

Distanásia ocorre quando se impõe a obstinação terapêutica ao doente, que passa por sofrimento extremo, devido ao excesso de medicamentos e procedimentos a que é submetido.

Nesse contexto, a futilidade do tratamento significa sua absoluta desnecessidade, já que a medicalização não modificará o quadro do paciente, sendo irrelevante qualquer atuação, procedimento ou medicamento, pois nenhum deles promoverá cura.

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145 É importante que a finitude da vida seja encarada como uma realidade a fim de que sejam repensadas as práticas de prolongamento artificial fúteis da vida humana, que somente submetem o paciente e sua família a mais sofrimentos. É importante aceitar que

Podemos ser sim curados de uma doença classificada como mortal, mas não de nossa mortalidade. Quando esquecemos disso, acabamos caindo na tecnolatria e na absolutização da vida biológica pura e simplesmente. É a obstinação terapêutica adiando o inevitável, que acrescenta somente sofrimento e vida quantitativa, sacrificando a dignidade (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2012, p. 455).

Imperioso esclarecer o seguinte fato: mesmo que o doente tenha passado por ressuscitação, reanimação e/ou intubação, é possível a suspensão do esforço terapêutico (SET), em benefício do doente, a fim de proporcionar-lhe bem-estar, o que está perfeitamente compatível e em plena sintonia com a CF, conforme leciona Diaulas Costa Ribeiro:

A SET põe fim à obstinação terapêutica, à distanásia, à insistência tecnológica em se adiar a morte, como se isso fosse bom e possível para sempre. Com a evolução das tecnologias médicas, a cada dia há mais meios para se manter esse encarniçamento terapêutico, como dizem os espanhóis, que não pode ser visto como tratamento porque não cura. Apenas dá suporte a atividades vitais primárias e pode deixar vivo, por anos, e à custa de grande sofrimento e recurso de toda ordem, alguém que está clinicamente terminado. Com a SET, o paciente não morre de uma overdose de cianureto de potássio, de adrenalina ou de heroína; morre da própria doença, da falência da vida que só é eterna na prosa, na poesia e na visão perspectiva de algumas religiões (RIBEIRO IN PEREIRA, 2006, p. 280).

Destaca-se que a SET é considerada uma medida ortotanásica, desde que o doente esteja em estado vegetativo permanente e não haja nenhuma possibilidade de reversão do quadro.

Inclusive a SET já se encontra prevista desde 2009 em uma lei bem à frente destes debates – a Lei Estadual de São Paulo Nº 10.241/1999 (SÃO PAULO. LEI ESTADUAL Nº 10.241/1999) – que permite aos usuários dos serviços de saúde em estado terminal o direito de recusarem tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida. Mário Covas, governador do Estado à época, disse que sancionava a lei como político e como paciente (acometido de câncer já diagnosticado). Dois anos depois, estando em fase terminal, dela se utilizou, ao recusar o prolongamento artificial da vida, conforme relata Cabette (2013, p. 36).

2 REQUISITOS PARA APLICAÇÃO DA ORTOTANÁSIA NO BRASIL

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146 A Resolução No. 1805/2006 (BRASIL. CFM, 2006), que regulamenta a prática da Ortotanásia no âmbito da deontologia médica, autoriza a limitação ou suspensão de procedimentos e tratamentos destinados a manter a vida, ressalvando os cuidados necessários a aliviar o sofrimento, para buscar a assistência integral – o homem como ser biológico, psíquico, social e espiritual. Frisa ainda que essa decisão deve respeitar a vontade do paciente e de seus familiares. O artigo 1º da referida resolução preconiza que a limitação ou a suspensão de tratamento se aplica ao doente terminal, ou com doença grave e incurável, respeitada a sua vontade. Adverte ainda que o médico deverá esclarecer ao enfermo sobre as modalidades terapêuticas adequadas a cada caso, no cumprimento do dever de aconselhamento inerente ao consentimento informado no exercício da Medicina. Observe-se o artigo 1º da referida Resolução:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica (BRASIL. Conselho Federal de Medicina.

Resolução CFM Nº 1.805, 2006).

Salienta-se ainda que a decisão de limitação ou suspensão deve ser fundamentada e registrada no prontuário e que o doente pode requerer uma segunda opinião médica.

A referida Resolução foi atacada por Ação proposta pelo Ministério Público Federal, distribuída para a 14ª Vara da Circunscrição do Distrito Federal. Pela Ação Civil Pública nº 2007.34.00.014809-3, em o que o Ministério Público Federal pediu a suspensão da citada resolução do CFM, no que foi atendido pelo juiz da 14ª Vara da Circunscrição do Distrito Federal, com fundamento em que se estaria supostamente legalizando tipo de homicídio. Tese que foi prontamente descartada pela Comissão. Em 01 de dezembro de 2010, o juiz federal Roberto Luis Luchi Demo exarou decisão em que considerara improcedente o pedido do Ministério Público Federal de decretação de nulidade da Resolução em evidência. A decisão

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147 finalizou uma celeuma que perdurou por mais de três anos. Na sentença, o magistrado aduziu que, após refletir a propósito do tema, chegou “à convicção de que a resolução, que regulamenta a possibilidade de o médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, realmente não ofende o ordenamento jurídico posto” (CREMEGO – Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás, acesso em 2015). A decisão ainda avança mais ao entender que a Ortotanásia se insere num contexto científico da Medicina Paliativa. Após ressaltar a dificuldade em estabelecer a terminalidade, assim como a de diagnosticar uma doença rara ou optar por um tratamento em lugar de outros, assumindo a falibilidade da Medicina, a sentença afirma que a Resolução nº 1805/2006 representa a manifestação de uma nova ética nas ciências médicas, que destrói tabus do passado, decidindo enfrentar outros problemas de forma realista, com foco na dignidade humana. Consoante a Resolução nº 1.805/2006, a Resolução Nº 1.931/2009 – o vigente Código de Ética Médica (CEM) – trouxe importantes contribuições para o tema, em consonância com uma visão humanizada da atividade médica e atrelada à dignidade da pessoa humana. Alguns artigos da referida Resolução fazem menção ao seguinte: consentimento (art. 22); tratamento do ser humano com dignidade e sem discriminá-lo; direito de decidir livremente (23 e 24).

Merece destaque o fato de a atuação do médico se limitar à livre decisão do doente, salvo em caso de iminente risco de morte, advertindo que ao médico não é permitido abreviar a vida. O médico não deve mais prolongar a vida do paciente a qualquer custo, devendo sim preservar a autonomia individual e a dignidade do paciente, que receberá os cuidados necessários ao alívio de seu sofrimento, sendo facultada a opção de requisitar alta do hospital, para morrer de forma afetiva, ao lado da família.

A orientação contemporânea do CFM, exteriorizada através das mencionadas resoluções, representa uma conquista dos direitos existenciais (aqueles inerentes à dignidade da pessoa humana) e da autodeterminação: a aceitação de que a vida necessariamente tem por desfecho a morte, a despeito de todas as conquistas tecnológicas do homem moderno. Trata-se, enfim, de uma decorrência inevitável do princípio da dignidade humana permitir que cada um escolha o modo como deve passar seus derradeiros momentos.

A grande questão da Resolução que disciplina a Ortotanásia, refere-se à sua aplicação.

A aplicação ética da ortotanásia encontra-se limitada à verificação da existência de três

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148 pressupostos: constatação do estado de terminalidade da doença; pedido ou consentimento do paciente; adoção de cuidados paliativos.

A análise do estado terminal de doença exige primeiramente distinguir dois conceitos:

doença grave e doença terminal não são expressões sinônimas. No primeiro caso, existe uma doença que está sob controle de medicamentos e procedimentos adequados; já no segundo, o organismo do paciente já não responde aos medicamentos, as funções vitais caminham para a paralisação – a denominada falência múltipla de órgãos.

De acordo com o Conselho Federal de Medicina (2010), há uma dificuldade em se identificar o estado de terminalidade

a dificuldade em estabelecer a terminalidade não é menor ou maior que outras dificuldades enfrentadas pelos profissionais da medicina, ao diagnosticar uma doença rara ou ao optar por um tratamento em lugar de outros, sabendo-se que uma posição não exata poderá trazer consequências distintas para o paciente.

Isso porque não existe 100% de certeza na medicina. Assim, desejar que os médicos atuem frente a um doente terminal com absoluta certeza da inevitabilidade da morte não é um argumento válido para recusar a legitimidade da ortotanásia, porque a exigência é incompatível com o próprio exercício da Medicina, que não pode se obrigar a curar o paciente, mas pode comprometer-se a conferir-lhe a maior qualidade de vida possível, diante do seu estado e dos recursos técnicos existentes (CFM, 2010, pp. 485-486).

O Conselho Federal de Medicina (CFM) assevera:

diagnosticada a terminalidade da vida, qualquer terapia extra se afigurará ineficaz. Assim, já não se pode aceitar que o médico deva fazer tudo para salvar a vida do paciente (beneficência), se esta vida não pode ser salva. Desse modo, sendo o quadro irreversível, é melhor – caso assim o paciente e sua família o desejem – não lançar mão de cuidados terapêuticos excessivos (pois ineficazes), que apenas terão o condão de causar agressão ao paciente. Daí é que se pode concluir que, nessa fase, o princípio da não-maleficência assume uma posição privilegiada em relação ao princípio da beneficência – visto que nenhuma medida terapêutica poderá realmente fazer bem ao paciente (CFM, 2010, p. 484).

O avanço tecnocientífico deste novo milênio a serviço da saúde ampliou o tempo de duração da vida humana, mas trouxe a reboque o processo de medicalização da morte, acarretando aumento quantitativo de vida, entretanto, preocupante do ponto de vista qualitativo, no caminho inverso ao que se tem buscado, que é a qualidade de vida do doente. Não se pode

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149 dizer que uma doença esteja em fase terminal sem cauteloso exame, sendo necessário observar os critérios definidores do estado de terminalidade de uma doença. Suzana Braga enumera as principais características para a identificação do estado terminal:

a) presença de uma doença em fase avançada, progressiva e incurável;

b) falta de possibilidades razoáveis de resposta ao tratamento específico;

c) grande impacto emocional relacionado à presença ou possibilidade incontestável da morte;

d) prognóstico de vida reduzido em dias e no máximo alguns meses (BRAGA, 2008, p. 159).

Importante observar que no estado terminal a doença incurável progride; além disso, a resposta aos tratamentos não é razoável e há instabilidade emocional pela aproximação da morte (que pode ser inclusive medo), restando ao paciente alguns dias ou meses de vida. A angústia dos últimos dias é comentada por Léo Pessini, que aponta algumas atitudes a serem implementadas no sentido de aprender a lidar com a angústia, salvaguardando a consciência e promover o bem-estar do paciente por meio da assistência:

A angústia terminal não é causada por mau funcionamento orgânico ou dano, mas pela própria percepção e compreensão da situação. Por exemplo, existem pacientes que podem pensar que sua condição é inaceitável ou indigna por causa da dependência e da falta de controle físico, ou sem esperança por causa da memória dolorosa de experiências conflitivas de relacionamento com os outros, memórias que agora incomodam. O desafio é lidar com esta angústia mental, não pelo caminho da supressão da consciência mediante sedação, mas por meio de aconselhamento e assistência espiritual (PESSINI, 2007, p.

210-211).

O segundo pressuposto para a aplicação da Ortotanásia é o pedido ou consentimento do paciente – fundamental para que seja realizada a vontade do titular do bem jurídico vida. É necessário enfatizar que, em se tratando de paciente capaz, sua será a vontade levada a efeito pela equipe médica, cumprindo os ideais de autodeterminação. Entretanto, se não mais há capacidade, se em vida vegetativa ou completamente impossibilitado de manifestar sua vontade, somente nesse caso, subsidiariamente, é que será deferida à família a decisão sobre o procedimento a ser adotado. Assim, somente em face da impossibilidade fática de percepção

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150 inequívoca da vontade é que se impõe a solução de transferir à família o poder de escolha (CABRAL, 2011). Nada mais natural e em consonância com o vigente direito pátrio.

O terceiro pressuposto é a adoção de cuidados paliativos. Sem eles, não se poderia falar em Ortotanásia, mas em cruel abandono do paciente. Os cuidados paliativos, diferentemente dos curativos (que visam cura do paciente), eles visam somente proporcionar bem-estar ao paciente, trazendo-lhe conforto e segurança para caminha rumo à finitude. A terceira seção abordará os cuidados paliativos com maiores detalhes.

3 OS CUIDADOS PALIATIVOS

Salienta-se que a adoção de cuidados paliativos é a consequência direta da decisão pela Ortotanásia, um procedimento que não prescinde de cuidados, zelo e atenção ao doente, que retirando o foco da doença para lançá-lo sobre a pessoa do enfermo faz do momento da morte, dias intensos de vida, oportunidade de se sentir amado e acolhido pela família.

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP –, no livro Cuidados Paliativos, sustentou que os cuidados paliativos, em crescente importância no Brasil, se sustenta sobre dois pilares: olhar para o atendido como sujeito, e não como o objeto a ser estudado, ou um ser segmentado; e reconhecer a importância de um trabalho harmonioso em grupo com outros profissionais da área de saúde. Parte ainda da premissa de que em qualquer estágio de saúde há o que ser feito para ampará-lo e manter sua vida digna. Segundo a Organização Mundial de Saúde,

Cuidado Paliativo é a abordagem que promove qualidade de vida do paciente e seus familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual (SÃO PAULO: CUIDADO PALIATIVO, CREMESP).

Importante destacar, segundo entendimento do CREMESP, que só há Cuidados Paliativos quando realizados por equipe multiprofissional em trabalho harmônico e direcionado. Cabe citar aqui a importância do enfermeiro, psicólogo clínico, terapeuta de

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151 família, assistente social, psiquiatra se houver indicação e outros profissionais que se fizerem necessários para oferecer o melhor suporte emocional e espiritual ao enfermo. O foco da intervenção não é a doença a ser enfrentada, mas o doente entendido com um ser único, ativo, com direito à informação e à autonomia plena para as decisões a respeito de seu tratamento. A prática correta dos cuidados paliativos prioriza a atenção individualizada ao doente e à sua família, em busca do sucesso no controle de todos os sintomas e prevenção do sofrimento. O termo paliativo se origina da palavra pallium que, em latim, significa manto, faz crer que o objetivo dos cuidados paliativos é envolver com um “manto” de cuidados o doente em avançada fase da enfermidade, a fim de lhe proporcionar alívio da dor, conforto e qualidade de vida (VON-HELD, 2015). Nesse ponto, destaca-se a sintonia entre a Ortotanásia e os cuidados paliativos, a convergência de condutas para a morte ocorra de forma natural, no tempo certo, amparada e com o mínimo de dor e sofrimento. Ressalta-se que entre alguns princípios que norteiam os cuidados paliativos enunciados pela Organização Mundial de Saúde em 2002 (PESSINI; BERTACHINI, 2005) encontram-se alívio da dor, morte como processo natural (nem antecipado nem prolongado), integração de aspectos psicossociais ao cuidado e suporte ao paciente e à família para atravessarem o processo da doença, dentre outros.

O Projeto de Lei nº 524, de 2009, de autoria do Senador Gerson Camata, aborda os direitos das pessoas em fase terminal de doença, principalmente no que diz respeito à instituição, limitação e suspensão de procedimentos terapêuticos. Alerta, em seu art. 2º, para o fato de que o paciente naquele estado tem direito aos cuidados paliativos e mitigadores do sofrimento, proporcionais e adequados à sua situação. Na mesma linha de intelecção, o artigo 4º salienta que os profissionais responsáveis pelo cuidado às pessoas em fase terminal de doença devem procurar o alívio da dor e do sofrimento, no entanto, na medida do possível, sem comprometer a lucidez ou a capacidade de percepção, com o objetivo de que a pessoa mantenha os vínculos afetivos e a capacidade de interação, evitando-se a temida morte social. No art. 3º, incisos II a VI traz oportunas definições. Procedimentos Paliativos como procedimentos mitigadores do sofrimento, que promovam a qualidade de vida do paciente e familiares;

cuidados básicos como aqueles indispensáveis à manutenção da vida e da dignidade;

tratamentos desproporcionais que não preencham os critérios de proporcionalidade no caso concreto; tratamentos extraordinários como sendo aqueles cuja aplicação comporte risco.

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152 Entendido o que é cuidado paliativo e tratamento proporcional, cabe à equipe médica diagnosticar as condições de sobrevida, optar pelos tratamentos capazes de minorar o sofrimento e promover a dignidade humana, sem deixar de suprir o paciente e a sua família de todas as informações e ferramentas para que aquele continue decidindo os rumos de sua própria vida.

Vale lembrar a advertência do novo paradigma adotado pela prática dos cuidados paliativos, consistente em curar às vezes, aliviar muito frequentemente e confortar sempre.

(PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014), segundo o qual ao se substituir o tratamento curativo (que visa cura) pelo paliativo (que busca promover bem-estar e conforto ao enfermo), está-se cuidando integralmente da pessoa e não apenas de sua saúde, promovendo conforto físico, emocional, psicológico e espiritual.

CONCLUSÔES

A Ortotanásia é a conduta que deve ser implementada ao enfermo terminal que decide morrer sem a agonia das sucessivas intubações, no seio da família, sendo indispensável que lhe sejam igualmente dispensados todos os cuidados paliativos que promovam o alívio das dores e forneçam amparo emocional, consolo e bem-estar. Os cuidados paliativos possuem a função precípua de alívio das dores e apoio emocional e espiritual, devendo ser implementados, sempre que possível, no ambiente familiar do enfermo, no local onde se sente confortável, como o seio da família a quem ama e por quem se sente amado. As condutas paliativas respeitam a vontade, preservam a integridade psicofísica do enfermo e promovem-lhe a dignidade.

A atual perspectiva dos direitos existenciais – como a valorização da pessoa e a crescente humanização da Medicina – constata que mudanças estão ocorrendo no que tange à pessoa e aos direitos de personalidade que lhe são inerentes. Esses movimentos têm provocado uma mudança de paradigma também nas Resoluções do CFM e nos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional. Saliente-se, entretanto, que tais discussões se desenvolvem timidamente no âmbito acadêmico, ainda longe de ser conhecido pela população, fato

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153 verificável pelo desconhecimento das pessoas quanto ao conceito de Ortotanásia, o que contribui para que haja uma relutância em aceitá-la como “morte no tempo certo”, exatamente porque as pessoas confundem com a prática da Eutanásia (que abrevia a vida) – um quadro de desconhecimento que alcança o âmbito universitário e, não raro a classe médica e operadores do direito.

Explicou-se que a Ortotanásia somente pode e deve ser implementada mediante comprovação da existência de três pressupostos, quais sejam, a constatação da fase terminal da doença, o pedido ou consentimento do enfermo e a adoção de cuidados paliativos. Somente nessa configuração da realidade e do quadro clínico é possível se falar em aplicação ética da Ortotanásia.

Por derradeiro, é necessário que se admita a Distanásia somente se for uma decisão do enfermo para sua própria finitude. Nos demais casos, deve ser uma prática refutada, ainda que a família insista na manutenção da vida do doente. É necessário poupá-lo das profundas dores que lhe causam o excesso terapêutico, livrando-o da morte tardia, postergada e dolorosa, em um ambiente hospitalar frio e impessoal, que só lhe causa tristeza e angústia, ferindo-lhe a dignidade. Importa conscientizar a família e amigos sobre a importância de propiciar uma morte em paz, segura, com certo conforto e mínimo de dor, ao lado das pessoas a quem o enfermo ama – promovendo-lhe a morte digna, consoante o atual paradigma adotado pela Medicina Paliativa: curar às vezes, aliviar muito frequentemente e confortar sempre.

REFERÊNCIAS

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ESCUDEIRO, Aroldo (coord.). Tanatologia: conceitos, relatos, reflexões. Fortaleza: LC, 2008.

BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM Nº 1.805/2006. Disponível em:

http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm. Acesso em: 07.set.

2014. Texto Original.

______. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica – Resolução CFM Nº 1.931/2009 (Código de Ética Médica). Disponível em:

http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2009/1931_2009.htm. Acesso em: 07.set.

2014. Texto Original.

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154 ______. CREMEGO – Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás – Justiça valida

resolução do CFM sobre ortotanásia. Disponível em

http://www.cremego.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=21057:jus tica-valida-a-resolucao-do-cfm-sobre-ortotanasia&catid=3 Acesso em 15 nov.2015.

______. Constituição Federal de 1988. Disponível em www.senado.gov.br

______. Projeto de Lei do Senado PLS 524/2009. Dispõe sobre os direitos da pessoa em fase terminal de doença. Disponível em

http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=94323. Acesso em 06 set. 2014. Texto Original.

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