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O contrato de agência e a boa-fé *

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Academic year: 2022

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PROF. DOUTOR ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO

Sumário: 1. O Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho. 2. A carga cultural da boa-fé.

3. O papel técnico da boa-fé. 4. Os deveres acessórios 5. O regime dos deveres acessórios.

6. A concretização na agência; deveres do agente. 7. Segue; deveres do principal. 8. Aspetos do regime.

1. O Decreto- Lei n.º 178/86, de 3 de julho

I. O contrato de agência dispõe de um regime explícito: o adotado pelo Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 118/93, de 13 de abril. Este último diploma visou a transpo- sição da Diretriz 86/653, de 18 de dezembro1. Teve, na base, um anteprojeto apresentado pelo Prof. Doutor António Pinto Monteiro sendo unanimemente considerado como um exemplo de elaboração legislativa de alto nível.

II. O regime da agência funciona ainda como uma matriz normativa apli- cável, diretamente ou por analogia, aos contratos de distribuição, com relevo para a concessão e a franquia, comportando igualmente elementos úteis para as relações contratuais duradouras e para a teoria geral da representação. O estudo aprofundado da agência conduziria a um pequeno tratado de Direito privado.

III.  O Decreto-Lei n.º 178/86 reparte-se por seis capítulos: disposições gerais (1.º a 5.º), direitos e obrigações das partes (6.º a 20.º), proteção de ter-

* Em honra do Professor Doutor António Pinto Monteiro.

1 António Pinto Monteiro, Contrato de agência/Anotação ao Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, 7.ª ed. (2010), 192 pp.; António Menezes Cordeiro, Direito comercial, 4.ª ed. (2016), 776-793.

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ceiros (21.º a 23.º), cessação do contrato (24.º a 36.º), normas de confl itos (37.º e 38.º) e disposição fi nal (39.º). Nos direitos e obrigações das partes, quer o agente, quer o principal fi cam sujeitos ao princípio da boa-fé. Assim, segundo o artigo 6.º (princípio geral):

No cumprimento da obrigação de promover a celebração de contratos, e em todas as demais, o agente deve proceder de boa-fé, competindo-lhe zelar pelos interesses da outra parte e desenvolver as atividades adequadas à realização plena do fi m contratual.

Por seu turno, dispõe o artigo 12.º (princípio geral):

O agente tem o direito de exigir da outra parte um comportamento segundo a boa-fé, em ordem à realização plena do fi m contratual.

IV. Logo a uma primeira leitura, afi gura-se estarmos em face de concreti- zações do artigo 762.º/2, do Código Civil: o credor e o devedor devem agir de acordo com a boa-fé. Cumpre, agora, retirar as virtualidades destes dispositivos, para o contrato de agência.

2. A carga cultural da boa-fé

I. A boa-fé presta-se a desenvolvimentos linguísticos infi ndáveis. Agir de boa-fé seria atuar de acordo com as regras da moralidade, da lealdade e do res- peito pelos outros, com lisura, transparência e honestidade, demonstrando no plano das intenções uma consideração plena pelos interesses da contraparte e no do comportamento uma dedicação ao fi m do contrato. Além disso, agir de boa-fé pressupõe abdicar de atuações manifestamente condenáveis, contrárias aos mais elementares sentimentos ético-jurídicos e opostos ao sentimento de todos quantos pensem justa e equamente.

Pois bem: estas e outras asserções, perfeitamente inseridas numa conceção de “politicamente correto”, mais não fazem do que encobrir, sob uma fraseo- logia acolhedora, uma remissão para o casuísmo do caso concreto. A Ciência do Direito deve ser mais exigente.

II. A História da boa-fé traduz, no fundo, a evolução do próprio Direito Ocidental, nos últimos vinte e dois séculos. A fi des foi, inicialmente, uma noção religiosa ligada ao respeito pela palavra dada e ao domínio da confi ança. Mais tarde, reforçada pelo adjetivo bona, a fi des foi usada como um instrumento téc-

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nico-jurídico: para apoiar o poder criativo do pretor que, nos iudicia ex bona fi de, criou os ainda hoje principais contratos (compra e venda, locação, fi ducia, sociedade e mandato). Prosseguindo o seu caminho, a bona fi des, ainda sob os romanos, sofreu uma difusão horizontal, sendo desta feita apurada para sustentar regimes mais favoráveis para pessoas merecidas de proteção. Temos a posse de boa-fé, como exemplo. Boa-fé passa a exprimir um instituto de tipo subjetivo.

III. Esgotado o seu papel, a boa-fé fi cou disponível como referência apra- zível, miscegenizando-se com noções greco-cristãs: a justiça e a equidade. Fica disponível como tópico argumentativo.

No período intermédio, a bona fi des acolhe a infl uência germânica, pas- sando a traduzir a tutela da aparência. O Direito canónico deu-lhe um teor ético: a boa-fé implica ausência de pecado. Aquando das grandes reformulações codifi cadoras, a boa-fé apresenta-se como um grande repositório dos valores ocidentais, aperfeiçoados ao longo de uma conturbada evolução bimilenária.

3. O papel técnico da boa-fé

I. O papel técnico da boa-fé fl oresceu fundamentalmente no Direito ale- mão, sendo acolhido por outros Direitos da família romano-germânica, entre os quais o Direito lusófono. Com efeito, a boa-fé foi animada não por construções de tipo teórico ou linguístico, mas pela necessidade prática de encontrar solu- ções para problemas que não dispunham de expressa consagração legal. Nesse domínio, teve um papel decisivo a jurisprudência comercial alemã do século XIX. Com efeito, em todo esse século a economia alemã conheceu uma larga expansão. Todavia, só em 1861 foi adotado o Código Geral Comercial Ale- mão. Nessas condições, os tribunais comerciais alemães viram-se obrigados a resolver pontos importantes com recurso a valores gerais, fazendo apelo, desig- nadamente, à boa-fé. Como exemplo, recordamos que a aproximação entre a culpa in contrahendo e a boa-fé foi obra de um grande comercialista: Heinrich Thöl. O surto de aplicações da boa-fé, tecidas em torno do § 242 do BGB ale- mão, após 1900, teve como antecedentes imediatos, a jurisprudência comercial do século XIX: curiosamente, pouco conhecida na própria Alemanha.

II. Ao longo do século XX, a boa-fé foi usada particularmente em quatro ins- titutos: (a) o abuso do direito; (b) a culpa in contrahendo; (c) os deveres acessórios;

(d) a alteração das circunstâncias. Falamos de institutos complexos, traduzidos em milhares de decisões. Pergunta-se, todavia, se será possível explicar, numa breve noção, o efetivo papel da boa-fé em todas essas áreas. Vale a pena tentar.

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III.  A boa-fé consiste num método jurídico-científi co que permite, em cada caso concreto, a aplicação dos valores fundamentais do sistema normativo.

Postulamos que o Direito tenha uma harmonia interna, suscetível de tra- tar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença. A lógica daí derivada exprime-se num conjunto de valores suscetíveis de ordenação em função de pontos de vista unitários, isto é, de um sistema interno. A cada problema concreto corresponde uma solução legítima e justa: legítima por advir de um órgão competente e justa por corres- ponder às regras aplicáveis, à luz do sistema. Nunca se aplicam artigos sozinhos:

é sempre o ordenamento que opera, em cada situação. A boa-fé assegura essa comunicação.

IV. Na concretização da boa-fé, trabalhamos com dois subprincípios bási- cos: a tutela da confi ança e a primazia da materialidade subjacente. A tutela da confi ança protege as pessoas que, por ação da contraparte, tenham sido levadas a aderir a um certo estado de coisas, real ou suposto e que, nessa base, tenham efetuado um investimento de confi ança. A primazia da materialidade subja- cente recorda que, no Direito, importam as soluções materiais efetivas e não as meras conformações formais.

V. Pois bem: os artigos 6.º e 12.º da Lei da Agência inserem-se em toda esta sequência. E dentro da boa-fé, eles ligam-se, predominantemente, aos deveres acessórios. Vamos ver.

4. Os deveres acessórios

I.  Os vínculos obrigacionais oferecem ligações abstratas entre as par- tes. Duplamente irreais: por um lado, esquecem que, quando duas pessoas se encontram como credor e devedor, o entrecruzamento das esferas é, em regra, mais intenso do que o expresso pela obrigação linear; por outro, desconsideram toda a inserção dos sujeitos no meio social. O irrealismo em causa é uma fatali- dade: limitados pela linguagem, os seres humanos só são capazes de comunicar e, logo, de raciocinar, em planos bidimensionais muito simples.

A simplifi cação daí resultante refl ete-se no regime aplicável, sendo fonte de injustiças. Estas são empiricamente percetíveis, pelo que, desde sempre, se pro- curaram soluções. Tais soluções, como, hoje, é pacífi co, passam por uma ideia simples: quando envolvidas numa relação obrigacional, as partes, para além dos direitos e deveres inerentes à prestação principal e às prestações secundárias, resultantes do vínculo, fi cam ainda adstritas a uma série de deveres que visam:

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(a) acautelar materialmente o vínculo obrigacional; (b) proteger as partes, nas suas pessoas e no seu património; (c) proteger terceiros que, com a obrigação, tenham um especial contacto.

II.  Tais deveres têm base legal e um regime próprio, claramente dife- renciado do dos deveres de prestar: principal e secundários. São os deveres acessórios. A doutrina alemã, onde toda esta matéria foi desenvolvida, fala em Nebenpfl ichten (deveres laterais), a não confundir com os Nebenleistungspfl ichten (deveres de prestar laterais: os “nossos” deveres secundários). Aparecem, tam- bém, Schutzpfl ichten (deveres de proteção), Rücksichtspfl ichten (deveres de consi- deração) e Sorgfaltsfl ichten (deveres de cuidado)2.

III. Os deveres acessórios foram ainda impulsionados, para além da discus- são teorética, por institutos periféricos. Para os presentes propósitos, interessa apenas aludir a dois grandes temas: a complexidade das obrigações e a violação positiva do contrato. A ideia de que o vínculo obrigacional seria complexo impôs-se com o aparecimento, no tocante à natureza de obrigação, das dou- trinas realistas e, depois, com as teses mistas do débito e da respondência3. Seguiu-se a fórmula de Siber (a obrigação como organismo), retomada pela pena de Herholz (relação-quadro) e pela de Larenz (estrutura e processo)4. Está hoje assente que a relação obrigacional não se esgota na dupla crédito/débito, antes abrangendo diversas outras realidades. A experimentação, por vezes pos- sível em Direito, permite confi rmá-lo: a simples análise de uma obrigação em funcionamento documenta a sua complexidade intrínseca.

2 Em especial: Kai Kuhlmann, Leistungspfl ichten und Schutzpfl ichten/ein kritischer Vergleich des Leis- tungsstörungsrechts des BGB mit den Vorschlägen der Schuldrechtskommission (2001), 424 pp.; Wolfgang Schur, Leistung und Sorg falt/zugleich ein Beitrag zur Lehre von der Pfl icht im Bürgerlichen Recht (2001), XX + 390 pp. (123 ss. e passim); Hans Christoph Grigoleit, Leistungspfl ichten und Schutzpfl ichten, FS Canaris 1 (2007), 275-306; Dieter Medicus, Zur Anwendbarkeit des Allgemeinen Schuldrechts auf Schutzpfl ichten, FS Canaris 1 (2007), 835-855 (837 ss.); Dirk Olzen, no Staudinger II, §§ 241-243 (2009), § 241, Nr. 142 ss. (176 ss.); Harm Peter Westermann, no Erman/BGB, I, 13.ª ed. (2011),

§ 241, Nr. 8 e Nr. 10 ss. (777 ss.); Hans-Peter Mansel, no Jauernig/BGB, 14.ª ed. (2011), § 241, Nr. 9 ss. (171 ss.); Reiner Schulze, HandKommentar, 7.ª ed. (2012), § 241, Nr. 4 ss. (254 ss.); Peter Krebs, no NomosKommentar, 2/1, 2.ª ed. (2012), § 241, Nr. 44 ss. (18 ss.); Christian Grüneberg, no Palandt, 75.ª ed. (2016), § 241 (261-262); Martin Schmidt-Kessel, no PWW/BGB, 7.ª ed. (2012),

§ 241, Nr. 15 ss. (329 ss.); Peter Huber, Der Inhalt des Schuldverhältnisses, no Staudinger/Eckpfeiler des Zivilrechts (2012-2013), 211-244, Nr. 2-6 (212-213) e passim.

3 Vide o nosso Tratado de Direito civil, VI, 2.ª ed. (2012), 274 ss. e 283 ss..

4 Idem, 299 ss..

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IV. A violação positiva do contrato corresponde a uma descoberta de Her- mann Staub (1902), que teve largas repercussões, até hoje5. Na origem, temos uma lacuna do BGB que, de resto, também ocorre no Código Civil português de 1966. Perante uma obrigação, a lei prevê, grosso modo, dois tipos de violação:

a pura e simples não-execução, no momento indicado, da conduta devida e a impossibilitação, pelo devedor, daquilo que lhe era exigido. De fora fi ca uma terceira hipótese: a de o devedor violar a obrigação (o “contrato”) não por omissão, direta ou provocada, mas por ação. Teríamos, aí, a “violação posi- tiva”. Esta poderia ocorrer por diversas vias, incluindo a provocação de danos na outra parte. Apesar de criticada pela falta de unidade6, a teoria da violação positiva do contrato teve sucesso na jurisprudência, pela sua maleabilidade e pela impressividade da própria designação. Logicamente: os deveres acessórios inscrever-se-iam, com facilidade, no rol das situações cuja inobservância con- substanciaria a violação positiva.

V. Toda esta caudalosa evolução, espraiada em centenas de publicações e de decisões judiciais, veio a ser vertida no § 241 do BGB, aquando da reforma da lei civil alemã de 2001/2002. Foi, a esse preceito emblemático, acrescentado um n.º 2, segundo o qual: a relação obrigacional pode obrigar, de acordo com o seu conteúdo, cada parte à consideração pelos direitos, pelos bens jurídicos e pelos interesses da outra. Trata-se do reconhecimento legal de que, para além do dever de prestar, existem outros deveres obrigacionais: visam não o “interesse de equivalência”, prosseguido pelo dever de prestar, mas o “interesse de integridade”, que o suplanta7. A lei adotou a fórmula “deveres de consideração” (Rücksichtspfl ichten) como modo de transcender as múltiplas expressões existentes na doutrina.

Assim8: deveres de proteção (Thiele, Gerhardt, Soergel/Teichmann, Frost, Medicus, Kress, Jauernig/Mansel, Stoll e Westermann/Bydlinski/Weber);

deveres de cuidado (Larenz, Stürner e Evans-von Krbek); deveres de conduta ou outros deveres de conduta (Gernhuber, Larenz e Emmerich); deveres de bom comportamento (Fikentscher); deveres laterais ou acessórios (Esser/Sch- midt, Enneccerus/Lehmann, Erman/Werner, Kramer, Canaris, Henckel e von Bar). Resta acrescentar que a diversidade terminológica se manteve, depois da reforma alemã de 2002, tanto quanto nos é dado ver pelas obras publicadas

5 Hermann Staub, Die positiven Vertragsverletzungen, 26. DJT (1902), 31-56, reedit. 1904 e, depois, várias vezes republicado.

6 Heinrich Lehmann, Die positiven Vertragsverletzungen, AcP 96 (1905), 60-113 (92) e Ernst Zitel- mann, Nichterfüllung und Schlechterfüllung, FS P. Krüger (1911), 265-281 (265).

7 Dirk Olzen, no Staudinger Kommentar zum BGB (2015), § 241, Nr. 153 (185).

8 Olzen, idem, Nr. 154, com as fontes.

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depois dessa data. Manteremos o português jurídico “deveres acessórios”, que tem vindo a ser acolhido generalizadamente pela nossa literatura.

5. O regime dos deveres acessórios

I. Os deveres acessórios distinguem-se claramente do dever de prestar prin- cipal e dos deveres de prestar secundários, em função do seu escopo. Enquanto estes visam a satisfação do interesse do credor na prestação, aqueles promovem o interesse do credor na integralidade da própria prestação e, ainda, na into- cabilidade dos seus interesses colaterais: património e esferas física e moral.

Neste domínio, parece-nos útil fazer uma bipartição nos deveres acessórios, de modo a responder à crítica por vezes dirigida à conceção unitária do dever de proteção, desenvolvida por Canaris: a de que, havendo um contrato, nenhuma necessidade existe de recorrer à lei, para fundamentar um dever de proteção9. Assim, distinguimos: (a) um círculo interno, no qual se arrumam os deveres acessórios que visem o reforço e a substancialização do dever de prestar; temos, aqui, fundamentalmente, deveres de informação e de lealdade ao contratado;

(b) um círculo externo, que compreende os deveres dirigidos aos interesses circundantes e colaterais: integridade patrimonial, pessoal e moral; ocorrem deveres de segurança e de lealdade geral.

II.  Pergunta-se se os deveres acessórios incluídos no círculo interno não serão, afi nal, meros deveres secundários ou, se se preferir, delimitações, ex bona fi de, dos deveres de prestar. Summo rigore, todo o Direito (todo o Universo!) nada mais é do que um continuum, no qual o ser humano, com as suas limitações extremas, efetua sondagens pontuais, obtendo aquilo a que chama conheci- mento. Mas sobre essa humildade de princípio, podemos distinguir: (a) o dever de prestar tem a confi guração que resulte da sua fonte: paradigmaticamente um contrato; estamos em áreas disponíveis, pelo que faz todo o sentido concretizar e aplicar a matéria, à luz dos cânones negociais; todavia, a juridicidade e, daí, a efi cácia dos negócios, advêm do exterior, isto é, do Direito objetivo; ora este não é passivo: tem valores que dão sentido ao seu sistema de reconhecimento de normas e de situações; daí que resultem, além de limitações à autonomia privada, complementações “legais” que se impõem a ambas as partes; (b) os deveres acessórios, ainda quando reforcem e substancializem o dever de prestar,

9 Dieter Medicus, Vertragliche und deliktische Ersatzansprüche für Schäden aus Sachmängeln, FS Eduard Kern (1968), 313-334 (327 ss.).

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dão corpo à dimensão axiológica heterónoma do Direito, expressa nas limita- ções apontadas; complementam e delimitam o pretendido pelas partes.

III. Os regimes dos deveres de prestar e dos deveres acessórios não coinci- dem. Entre outros aspetos, temos, pelo menos, as seguintes clivagens:

(1) os deveres de prestar fundam-se, paradigmaticamente, na autonomia privada; os acessórios, na boa-fé; pode haver deveres de prestar não- -contratuais; seguem, tendencialmente, o mesmo regime, fi liando-se, então, nas normas legais que os imponham;

(2) os deveres de prestar vinculam o devedor; os deveres acessórios adstrin- gem ambas as partes;

(3) os deveres de prestar visam o “efeito prestação” ou, pelo menos, o

“efeito atuação”, quando este seja o visado; os acessórios dirigem-se para os efeitos “substancialização” e “integralidade”;

(4) os deveres de prestar são diretamente disponíveis (salvo recaindo em pontos que o não sejam); os acessórios, enquanto ex lege, operam sem- pre que se mostrem reunidas as respetivas condições constitutivas;

(5) os deveres de prestar surgem com o negócio e cessam com o cumpri- mento; os acessórios podem ser pré ou pós-efi cazes;

(6) os deveres de prestar cessam quando a respetiva fonte seja declarada nula ou anulada ou caso haja resolução, revogação, denúncia, oposição à renovação ou caducidade da prestação principal; os acessórios mantêm- -se, nessas eventualidades, prosseguindo os seus fi ns de proteção;

(7) os deveres de prestar adstringem e tutelam as partes; os acessórios podem tutelar terceiros;

(8) os deveres acessórios, designadamente os que se incluam no círculo externo, podem constituir-se ou manter-se sem que exista um dever de prestar; a obrigação subsistirá, então, apenas assente nos deveres acessó- rios, não requerendo uma prestação principal.

6. A concretização na agência; deveres do agente

I. A jurisprudência nacional manuseia o conceito de boa-fé e as suas con- cretizações com um grande virtuosismo. Neste momento, ela já ultrapas- sou a alemã. Trata-se de uma das mais importantes evoluções subsequentes ao Código Civil de 1966, designadamente a partir de meados da década de oitenta. Podemos adiantar que raro será o processo que chegue ao seu termo sem que o tribunal, a pedido ou ofi ciosamente, proceda a uma ponderação da decisão, à luz da boa-fé.

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II. No que tange à agência, não encontramos, no acervo das decisões dos nossos tribunais, aplicações incisivas dos artigos 6.º e 12.º da Lei da Agência.

Deve dizer-se que, em boa parte, isso se deve à excelência do próprio regime adotado em 1986: os seus meandros, mormente no ponto sensível da denúncia, estão tão perfeitos que basta aplicar a lei. Assim, esses preceitos são referidos para reforçar decisões judiciais apoiadas noutros lugares normativos. Um espe- cial relevo vai para a necessidade de pré-aviso adequado.

III.  Pergunta-se, todavia, se não poderemos ir mais longe e extrapolar deveres concretos que, com base nos dois referidos preceitos, possam impor-se seja ao agente, seja ao principal. Vamos ver. Recorrendo, em parte, à doutrina alemã, podemos apontar os seguintes deveres acessórios, quanto ao agente10:

– o dever de lealdade; para além da não-concorrência e do sigilo, legal- mente explicitados, fi ca vedado, ao agente, o aproveitamento de oportu- nidades do negócio, fora do que o contrato preveja;

– o dever de cuidado: o agente deve agir por forma a não prejudicar a potencialidade de negócio do principal;

– o dever de guarda: o agente deve resguardar e defender tudo quanto per- tença ou caiba ao principal;

– o dever de restituição: fi ndo o contrato, cabe ao agente restituir ao prin- cipal os objetos que tenha à sua guarda e que caibam àquele;

– o ius variandi: em face da evolução do contrato e na impossibilidade de colher instruções, cabe ao agente, com a necessária pendência, agir de modo a adaptar a sua conduta à evolução dos acontecimentos;

– o dever de sustar na execução do contrato: caso surjam obstáculos que o imponham e sempre que se aperceba de que essa execução se torna contraproducente; será o caso, designadamente, de o agente verifi car que promove contratos perigosos para a saúde ou para o ambiente;

– o dever de tutela do consumidor: o agente deve tomar medidas caso veri- fi que que os contratos a promover se reportem a bens ou a serviços que não tenham as características anunciadas ou que os negócios são nocivos para o consumidor;

– o dever de avisar o principal de qualquer circunstância suscetível de o afetar ou de prejudicar o negócio.

10 Gerrick von Hoyningen-Huene, no Münchener Kommentar zum HGB I, 4.ª ed. (2016), § 86, Nr.

54-57 (1209-1210); Klaus J. Hopt, em Baumbach/Hopt, Handelsgesetzbuch, 37.ª ed. (2016), § 86, Nr. 40-49 (407-409); Gottfried Löwisch, em Eb enroth/Boujong/Joost/Strohn, Handelsgesetzbuch 1, 3.ª ed. (2014), § 86, Nr. 2 e Nr. 20 ss. (718-719 e 724 ss.); relevamos os deveres acessórios sem base legal explícita.

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Note-se que os deveres de segredo e de não-concorrência resultam dos artigos 8.º e 9.º da Lei da Agência.

7. Segue; deveres do principal

I. Quanto a deveres acessórios a cargo do principal, apoiados no artigo 12.º da Lei da Agência, podemos apontar11:

– deveres de lealdade, os quais incluem o dever de sigilo e o de não-con- corrência, no âmbito do contrato ou à margem do nele acordado; embora a lei não o explicite quanto ao principal, afi gura-se que também ele deve respeitar os segredos do agente de que tenha conhecimento; além disso, não pode, no âmbito da agência, concluir novas agências ou negociar, ele próprio, por conta própria, salvo se essas atuações tivessem sido contra- tualmente asseguradas;

– deveres de resguardo: o principal deve proteger o agente, logo que tenha conhecimento de situações perigosas ou inconvenientes, relativamente aos bens ou serviços a distribuir;

– deveres de promoção: dependendo das circunstâncias, o principal pode ter o dever de promover o produto que o agente deva distribuir; designa- damente, ele pode fi car adstrito à divulgação das qualidades do produto a distribuir;

– dever de proteção: independentemente das explícitas sobre a cessação do contrato, o agente deve coibir-se de pôr termo à agência em termos que defrontem a confi ança legítima do agente, em especial se lhe tiver dado azo, por ação ou por omissão.

II. A Lei da Agência optou por enumerar direitos do agente e não, dire- tamente, deveres do principal. Todavia, não oferece dúvidas retirar, do artigo 13.º, o elenco dos deveres em causa. Pois bem: o artigo 12.º, ao remeter para a boa-fé, permite o alargamento prudente dos deveres em jogo.

11 Com alguns elementos: Gerrick von Hoyningen-Huene, no Münchener Kommentar cit., I, 4.ª ed., § 86a, Nr. 44-47 (1223-1224); Klaus J. Hopt, em Baumbach/Hopt, Handelsgesetzbuch cit., 37.ª ed., § 86.ª (410 ss.); Gottfried Löwisch, em Ebenroth e outros, Handelsgesetzbuch cit., 1, 3.ª ed., § 86a, Nr. 34 ss. (752 ss.).

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8. Aspetos do regime

I. Os elencos acima alinhados são meramente exemplifi cativos. No terreno, será possível apurar a existência eventual de outros deveres. O Direito vigente dá margem para o intérprete-aplicador, dentro dos parâmetros do sistema, con- cretizar o rico acervo cultural e científi co que se abriga à boa-fé.

II. Os deveres acessórios devem ser cumpridos. Um inadimplemento grave justifi ca os remédios habituais: exceção do contrato não-cumprido, resolução por incumprimento e responsabilidade civil.

III. Além disso, eles podem subsistir perante a invalidação do contrato, ou mesmo manter-se, em termos pós-efi cazes, após a cessação da agência. Admiti- mos, ainda, que possam ter um efeito de proteção de terceiros. O cliente preju- dicado pela omissão do cumprimento de um dever acessório de informação do principal pode demandar diretamente este, em termos obrigacionais.

IV. Finalmente: todas estas regras são aplicáveis, com as adaptações neces- sárias, diretamente ou por analogia, a outros contratos de distribuição, com relevo para a concessão e a franquia. Vale o preâmbulo da Lei da Agência, da pena do Prof. Pinto Monteiro e que tem operado, nos nossos tribunais, como lei escrita formal. Em boa hora!

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