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O Devaneio Poético no Conto Tresaventura, de Guimarães Rosa

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Academic year: 2020

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Resumo: Tresaventura é uma narrativa que cuida de

lembran-ças, na vida real ou na imaginária. As recorrentes imagens do conto nos levam ao devaneio poético do autor-modelo que instiga o leitor-modelo a uma interpretação do mundo infantil, artístico, mágico, o mundo ideal pensado, ao devaneio poético do leitor.

Palavras-chave: Devaneio, imagens, mundo infantil,

lembran-ças, arte

Sandra Regina Paro

O DEVANEIO POÉTICO

NO CONTO TRESAVENTURA,

O

conto Tresaventura, de João Guimarães Rosa, está em Tutaméia:

ter-ceiras estórias, o autor, que dedica todas suas narrativas

essencialmen-te ao homem e aborda questões humanas universais em seus essencialmen-textos, não deixa de fazê-lo em sua última obra publicada. O amor, o ódio, a traição, a vin-gança, o ciúme, temas que, neste autor, inserem-se nas personagens e se fundem num drama atemporal, onde o homem é colocado como um eter-no criador em contato com a realidade mágica da vida, são freqüentemente abordados nas Terceiras estórias. Tresaventura é um conto que fala de amor, do (trans-) real, além do real, o amor que existe apesar do mundo e das pessoas, o amor que brota nas “gentes”.

Tutaméia é um livro de contos breves, estórias curtas e é, talvez, desse

ponto que venha a noção que o título envolve de ‘ninharia’, ‘quase nada’, ‘coisa pouca’, ou para causar uma provocação maior, buscar nesses signifi-cados, atrelados às estórias do livro, alguma significação maior no ‘pouco’, num milésimo acha-se muito, como ocorre em Tresaventura, em que uma menininha, revela-se detentora da grande sabedoria, da capacidade de criar um mundo além do real.

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As estórias nessa obra são divididas tematicamente através de seus quatro prefácios, como esclarece Paulo Ronai1: em Aletria e Hermenêutica, ocorrem pequenas anedotas que desvendam o absurdo; em Hipotrélico, aparecem mais as inovações vocabulares que apontam para o direito que tem o escritor de criá-las; em Nós, os Temulentos, observamos anedotas de bêbados e, finalmente, em Sobre a escova e a dúvida, um longo prefácio que indicaria as estórias que contêm confissões mais íntimas que acontecem através de metamorfoses léxicas e sintáticas. É desse último grupo o conto

Tresaventura. Sem contar com os quatro prefácios, a obra apresenta 40 contos

curtos, ninharias, bagatelas, como quer atribuir o autor às suas estórias. O conto Tresaventura traduz a aventura de uma menininha. É, portan-to, situado no tempo da infância e revela, do ponto de vista artístico, particu-laridades dessa época, colocando a criança como o pivô da criação artística.

Em palavras do autor, observemos um depoimento sobre a infância:

Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, es-tragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada (ROSA apud COSTA, 2006, p. 78).

Nesse depoimento do autor entendemos que ao ambientar Iaí ou Dja2 na época da infância deseja revelar o poético, a imaginação, o devaneio, a recordação e a sabedoria advinda desse tempo.

Bachelard dizia que “A infância conhece a infelicidade pelos homens”, e a protagonista do nosso conto se vê dividida entre dois mundos: o dos adultos, cheio de regras e “nãos”, e o infantil, em que o devaneio pode acal-mar a criança através da solidão, a criança, então, passa a sonhar e o sonho é a dádiva do poeta. Iaí queria esse momento de alçar vôo, como definiria Bachelard: “Quando sonhava em sua solidão, a criança conhecia uma exis-tência sem limites. Seu devaneio não era simplesmente um devaneio de fuga. Era um devaneio de alçar vôo” (BACHELARD, 1996, p. 94). No texto a menininha queria “recordar o que valia” (ROSA, 2001, p. 243), chamava o sono, dele é que vinha o sonho.

São vários os símbolos de vida e de amor suscitados nesse conto de Rosa: o arroz, a água, a reza, o sapo, a cobra; todos eles convergindo para um mesmo ponto, o da vida, da criação, da transcendência, do mundo superior, o infantil, o artístico. Vejamos alguns referentes.

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O texto começa por: “Terra de arroz. Tendo ali vestígios de pré-ida-de?” (ROSA, 2001, p. 243). O arroz é uma planta aquática de grãos bran-cos, originário da Ásia, é o símbolo da fecundidade no Oriente, especialmente em cerimônias religiosas. Seu cultivo é considerado um dos mais antigos da história, na Índia é associado a importantes fases da existência humana. E é desse modo que Guimarães Rosa já nos coloca em posição de desauto-matização, como leitores-modelo, função que como diria Eco (2006, p.12), “Às vezes o narrador quer nos deixar livres para imaginarmos a continu-ação da história”. Devemos, como leitores-modelo, optar, apostar, num texto narrativo, optamos por traduzir o velado de Rosa, a questão que en-volve a transcendência na criação, como acontece em Tresaventura, esse aspecto devemos à personagem infantil e seu mundo criados pelo autor-modelo.

Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo. Na verdade, essa obrigação de optar existe até mesmo no nível da frase individual [...] Quando a pessoa que fala está prestes a concluir uma frase, nós como leitores ou ouvintes fazemos uma aposta (embora in-conscientemente); prevemos sua escolha ou nos perguntamos qual será sua escolha [...] (ECO, 2006, p. 12).

Assim, inconscientemente, nesse texto, fizemos nossa escolha, um texto que traduz a mitologia bíblica no sentido de apontarmos para o não-real, o imaginário infantil levando-nos ao mundo mítico.

Como podemos observar, a simbologia trazida pelo grão é antiga, é da pré-idade e traduz através dos ‘vestígios’ deixados pelo narrador de que se trata de uma terra de além, da recordação, mesmo na epígrafe desse conto podemos notar essa referência de ‘pré-idade’: “[...] no não perdido, no além passado [...]”3. “Parece que os voltados para os devaneios da nossa infância nos fazem conhecer um ser anterior ao nosso ser, toda uma perspectiva de ‘antecedência de ser’” (BACHELARD, 1996, p. 103). Ao arroz, um grão, uma “ninharia” associada em sua história à existência humana. O arrozal, simbolizado pelo alimento da vida e da imortalidade, da felicidade e da fertilidade.

Localizado o espaço, diga-se de passagem, absolutamente impreciso, a não ser pela referência ao cultivo, o que nos leva a inferir o ambiente rural, temos a apresentação da protagonista, “Só a tratavam de Dja ou Iaí, meni-ninha de babar em travesseiro. Sua presença não dominava 1/1.000 do ambiente” (ROSA, 2001, p. 243).

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Uma criança, pequena, um milésimo de presença, ou seja, ‘ninharia’, ‘quase nada’, praticamente imperceptível. O narrador em terceira pessoa evoca o leitor-modelo para que este atente para o fato da possível insigni-ficância da menina: estranhamento! O leitor-modelo desconfia e busca orientar-se pela antífrase4 .

Sua essência era inventada, “De ser, se inventava: – ‘Maria Euzinha ...’ – voz menor que uma trova, os cabelos cacho, cacho (ROSA, 2001, p. 243). A recorrência aos diminutivos remonta o mundo infantil, é um mundo assim construído, com neologismos típicos da linguagem infantil, que evocam o estado de infância, ainda na fase de aquisição da língua, são inúmeros no texto: “menininha”, “ideiazinhas”, “suspirinhos”, “coelhinho”, “mentirinhas, “alicer-cinhos”, “narizinho”, “mansinho”, “vividinho”, “florinhas”, “traseirinha”, “pou-quinho”, “pontinho”, “perninhas e mãozinha”, “voz menor que uma trova”, segundo o narrador.

A menininha que “os segredos a guardavam”, “queria o arrozal”, “verde com luz”. A cor verde remete à natureza, obra de Deus, que leva até Deus, de onde vem o alimento do homem, o arrozal, antes, pela cor verde, a esperança, o que nos leva a lutar nessa vida, o que nos alimenta. A luz, o amarelo, a energia, o caminho, o arrozal, ela “queria o arrozal”, a menini-nha misteriosa e sábia cujos “segredos a guardavam”. “Que grande é a vida quando meditamos nos seus começos! Meditar sobre uma origem, não é isso sonhar? E sonhar sobre uma origem não é ultrapassá-la?” (BACHELARD, 1996, p. 104).

Note-se que o cultivo do arroz é dividido em três momentos: seme-adura, floração e colheita, um ciclo que comparado ao humano, temos: nascimento, vida e morte. No texto, as referências ao ciclo estão expressas nas cores, verde e luz (amarelo); verde, no momento da semeadura, antes da floração e colheita, esta última, a luz, o dourado. “Queria o arrozal, o gran-de vergran-de com luz, gran-depois amarelo ongran-deante” (ROSA, 2001, p. 243).

Dja que “gostava, destriste, de recuar o acordado”, o mundo dos acordados é enfadonho, no sono é que o sonho vem. O mundo dos deva-neios. Quando sonha o arrozal, é tomada pelo amor, mas nesse sonho “A alma e o mundo estão assim, juntos, abertos para o imemorial” (BACHE-LARD, 1996, p. 98). Entra em confronto com o mundo dos adultos, pois “Lá não a levavam: longe de casa, terra baixa e molhada, do mato onde árvores se assombram – ralhavam-lhe; e perigos, o brejo em brenha – o vento e nada, no ir a ver [...]” (ROSA, 2001, p. 244).

O texto começa a se desenhar em dois mundos: o da criança e o dos adultos. A oposição fundamental inicia-se nos diferentes pensamentos que

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confrontamos sobre o arrozal, o primeiro e mais sério, real e intransigente é o que revela perigos e feiúra; já a definição de Iaí, contém beleza, ela sabia-o, sentia-sabia-o, como se o conhecesse: “o arrozal lindsabia-o, por cima do mundsabia-o, no miolo da luz – o relembramento” (ROSA, 2001, p. 244). A recordação de quê, se ainda é uma criança? De um mundo além deste. De algo sabido por ela, a menina que rezava? Segundo Frye (1973, p. 185), “O caráter perene-mente infantil da estória romanesca assinala-se por sua nostalgia de extra-ordinária persistência, por sua busca de algum tipo de idade de ouro imaginativa no tempo e no espaço”. A nostalgia do relembramento:

O passado rememorado não é simplesmente um passado da percep-ção. Já num devaneio, uma vez que nos lembramos, o passado é designado como valor de imagem. A imaginação matiza desde a origem os quadros que gostará de rever (BACHELARD, 1996, p. 99).

Iaí rezava quando a queriam convencer dos perigos e do “O ror [...]” (ROSA, 2001, p. 244) do arrozal. O ato de rezar remete antes de tudo a uma maneira de transcender, Iaí reza, busca o contato com o divino, sublimação, afastamento do mundo real, busca do mundo sublimado. “Para reviver os va-lores do passado, é preciso sonhar, aceitar essa grande dilatação psíquica que é o devaneio, na paz de um grande repouso” (BACHELARD, 1996, p. 99).

A menininha, sobre as recomendações dos mais velhos, “Tapava os olhos com três dedos” (ROSA, 2001, p. 244), curiosamente o número três, o número da criação, da natureza tríplice de Deus (criação – conservação – destruição), desenvolvimento ordenado e harmonioso do universo, a sínte-se espiritual, a composição do homem (corpo, alma, espírito), as três esferas concêntricas do universo (natural, humano e divino), a síntese espiritual. “Não cedia desse desejo” (ROSA, 2001, p. 244) como afirma Frye (1973, p. 185) sobre o desejo na estória romanesca:

A estória romanesca é, de todas as formas literárias, a mais próxima do sonho que realiza o desejo, e por essa razão desempenha, socialmente, um papel curiosamente paradoxal. Em todas as idades a classe social ou intelectual dominante tende a projetar seus ideais nalguma forma de estória romanesca, na qual os virtuosos heróis e as belas heroínas representam os ideais e os vilões, as ameaças à supremacia daqueles.

Os vilões são os adultos que tentam dissuadi-la de seu desejo de ir para o arrozal, ameaçando-a com um discurso que revelaria os perigos da empreitada.

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Inicia-se, então, o momento em que no discurso explicitam-se as negações, são três: § 8 “- “O ror [...]” – falava o irmão, da parte do mundo trabalhoso”; § 10 “ – ‘A água é feia, quente, choca, dá febre, com lodo de meio palmo...’; § 12 “ – ‘Tem o jararacuçu, a urutu-boi...’ – que picavam” (ROSA, 2001, p. 244).

Como já inferimos, o número três é de grande importância simbó-lica, remete ao equilíbrio e à união, é o número da Santíssima Trindade e muito recorrente na literatura e nas artes de um modo geral.

Mas há outro aspecto a ser levantado sobre o número, é a intertextua-lidade com o texto bíblico: Jesus Cristo foi negado três vezes:

JOÃO 14:37 Disse-lhe Pedro: Por que não posso seguir-te agora? Por ti dareia a minha vida.38 Respondeu-lhe Jesus: Tu darás a tua vida por mim? Na verdade, na verdade te digo que não cantará o galo enquanto me não tiveres negado três vezes.

[...]

JOÃO 18:17 Então a porteira disse a Pedro: Não és tu também dos discípulos deste homem? Disse ele: não sou.

[...]

JOÃO 18:25 E Simão Pedro estava ali, e esquentava-se. Disseram-lhe pois: Não és também tu um dos seus discípulos? Ele negou, e disse: Não sou.

[...]

JOÃO 18:26 E um dos servos do sumo sacerdote, parente daquele a quem Pedro cortara a orelha, disse: não te vi eu no horto com ele? [...].

JOÃO 18:27 E Pedro negou outra vez, e logo o galo cantou (ROSA, 2001, p. 214, 222).

Numa clara referência bíblica o enredo se aproxima do mito religi-oso. Isso nos levará mais tarde a uma consideração sobre o título da obra

Tresaventura.

Há ainda algumas imagens que devemos considerar simbólicas para alcançarmos o entendimento da obra, a imagem do espantalho, por exem-plo, evocado pelo irmão num discurso pernicioso remete à figura do demo-níaco “Tinha de ali agitar os pássaros, mixordiosos, que tudo espevitam, a tremeter-se, faziam o demônio. Pior, o vira-bosta. Nem se davam do espan-talho...”. Na fala do irmão, os pássaros é que são os causadores de proble-mas, o irmão ligado ao demoníaco faz oposição fundamental à idéia da

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menininha. O espantalho representa o mundo real, em algumas culturas é o símbolo do imobilismo cultural, ou o próprio anticristo, na zona rural é um tipo de amuleto muito particular, colocado no meio da lavoura, sua função é espantar aves, roedores e outros animais. Frye (1973, p. 145) ad-mite que para as imagens do mundo divino demoníaco uma idéia de “fado inescrutável ou necessidade externa”, que é para o irmão o que vai, em ter-mos de trabalho na lavoura, auxiliá-lo, mas nem mesmo as aves se afastam em função do espantalho.

Já para a menina, o espantalho não é uma das suas imagens “Negava ver. Tudo negava o espantalho – de amordaçar os passarinhos, que eram só do céu, seus alicercinhos. Rezava aquilo” (ROSA, 2001, p. 244). Novamente a criança reza e tenta o seu contato com o mundo imaginário, sua conexão com o sublime, o amor. Segundo Frye (1973, p. 148), “as imagens apocalípticas da poesia associam-se estreitamente a um céu religioso, assim o seu avesso dialético une-se intimamente a um inferno existencial que o homem cria na terra [...]”. Em oposição fundamental ao pensamento do irmão a criança se liberta do mundo de imagens demoníacas e se refugia rezando, criando a sua conexão e suscitando, como diz Frye, as imagens apocalípticas.

Para o mundo dos adultos, por exemplo, a imagem da água é demo-níaca neste conto: “– ‘ A água é feia, quente, choca, dá febre, com lodo de meio palmo... ’” (ROSA, 2001, p. 244), a segunda negação partida dos adultos; para Dja, “E eis que a água! A poça de água cor de doce-de-leite, grossa, suja, mas nela seu rosto limpo límpido se formava. A água era a mãe d’água” (ROSA, 2001, p. 245). Na terra, a água é mãe, é fonte de todas as coisas, está na origem da criação; ao contrário, a terra sem água, o deserto, é sinal de morte. Ela é fonte de vida e causa de morte; é criadora e destrui-dora, simultaneamente. Sendo sinal de purificação física, ela é também fi-gura da purificação moral no batismo, na aspersão com água benta, no “lavabo” da missa. A água é também símbolo do espírito. A água regenera (gera de novo) mesmo a vida.

Todas as negações feitas à Dja foram ignoradas por ela, “‘Arrenegava. Apagava aquilo: avesso antojo’” (ROSA, 2001, p. 244), na construção, o narrador intercala os pensamentos dos adultos e as considerações de Dja sobre esses pensamentos, a dualidade de idéias.

No enredo, chega o momento da aventura, Tresaventura a empreita-da de Iaí: a iempreita-da ao arrozal, contrariando a todos os adultos, na tentativa de satisfazer o seu desejo, para Frye (1973, p. 185), “O elemento essencial da trama, na estória romanesca, é a aventura, o que significa que a estória

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ro-manesca é naturalmente uma forma consecutiva e progressiva; [...]”. É, portanto necessário observar que o conto de Guimarães Rosa atende a todos os componentes da estória romanesca em sua composição.

Uma procura que envolva conflito admite duas personagens prin-cipais, um protagonista ou herói, e um antagonista ou inimigo. [...] O inimigo pode ser uma criatura humana comum, mas quanto mais próxima a estória romanesca estiver do mito, tanto mais o inimigo assumirá qualidades míticas demoníacas. A forma básica da estória romanesca é a dialética: tudo se foca num conflito entre o herói e seu inimigo, e todos os valores do leitor ligam-se estreitamente ao herói. Por isso o heróis da estória romanesca é análogo ao Messias mítico ou libertador que vem de um mundo superior, e seu inimigo é aná-logo ao poderes demoníacos de um mundo inferior. O conflito, contudo, ocorre em nosso mundo, ou em qualquer hipótese diz-lhe respeito, primariamente, e esse mundo, que está no meio, caracteri-za-se pelo movimento cíclico da natureza. Por isso os pólos opostos dos ciclos da natureza assimilam-se à oposição do herói e seu inimi-go. O inimigo associa-se com o inverno, as trevas, a confusão, a esterelidade, a vida agonizante e a velhice, e o herói com a primavera, a alvorada, a ordem, a fertilidade, o vigor e a juventude (FRYE, 1973, p. 186).

Como podemos observar, dois mundos se confrontam no conto, voltemos ao título para alcançar uma compreensão maior deste texto, seria uma aventura a três ou uma aventura em três tempos? O elemento tres- remete ao numeral três ou ao seu significado prefixal tres (= trans-) com o signifi-cado de para ir além de? De qualquer modo trata-se de uma aventura que coincide o mundo pensado do tempo infantil com a ficção. O mundo exis-tente na mente da menina é mágico, ideal e o dos adultos, carregado de desencantos.

Na nossa infância, o devaneio nos dava a liberdade. E é notável que o domínio mais favorável para receber a consciência da liberdade seja precisamente o devaneio. Apreender essa liberdade quando ela inter-vém num devaneio de criança só é um paradoxo quando nos esque-cemos de que ainda pensamos na liberdade tal como a sonhávamos quando éramos crianças. [...] é no devaneio que somos seres livres (BACHELARD, 1996, p. 95).

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Firme em sua aventura a menina faz o seu percurso entre, abóboras, cajus, porcos, pato, flores, o cão e segue

– lépida, indecisa, decisa”. [Encontra a água e vê] nela o seu rosto limpo límpido se formava. [E então o clímax de sua aventura:] O mal-as-sombro! Uma cobra, grande, com um sapo na boca, estrebuchado [...] [Dja] [...] cuspiu na cobra. Atirou-lhe uma pedrada paleolítica, veloz como o amor. [Essa seria a principal ação de sua aventura desejada e por milagre] o desenlace: a cobra largara o sapo, e fugia-se assaz, às moitas folhuscas, lefe-lefe-lhepte, como mais as boas cobras fazem (ROSA, 2001, p. 245).

Toda infância é fabulosa, naturalmente fabulosa. [...] É no seu pró-prio devaneio que a criança encontra as suas fábulas, fábulas que ela não conta a ninguém. Então a fábula é a própria vida: [...] (BACHE-LARD, 1996, p. 113).

Elementos da fábula são encontrados no conto, sapos, cobras, ine-rentes aos contos de fada, do fabuloso, além da palavra “enfeitiço” (ROSA, 2001, p. 244) que também nos remete a esse universo fantasioso.

Novamente observamos a simbologia para termos um melhor enten-dimento do desenrolar dos acontecimentos. A cobra ou serpente remete a uma imagem associada, antes de tudo, à fonte original da vida, guarda em si gran-des paradoxos, podendo significar a luz ou as trevas, o bem ou o mal, a sabe-doria ou a paixão cega, a vida ou a morte. A serpente é aquela que mais fortemente encerra toda uma complexidade de arquétipos. Presente em todas as culturas, sua imagem mitológica assume sempre um papel fundamental, associada que está, antes de tudo, à essência primordial da natureza, à fonte original de vida, ao princípio organizador do caos, anterior à própria criação. Já o sapo é um animal mágico, figura freqüente nos contos de fadas, ensina a ‘saltar’ para outros níveis de consciência e deste para o ‘outro mun-do’, é um guardião de tesouros ocultos e um protetor do lar para muitas cul-turas.

Para redescobrir a linguagem das fábulas, é necessário participar do existencialismo do fabuloso, tornar-se corpo e alma de um ser admira-tivo, substituir diante do mundo a percepção pela admiração. Admi-rar para receber os valores daquilo que se percebe. E, no próprio passado, admirar a lembrança (BACHELARD, 1996, p. 113).

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Nesse ponto, Djaiaí percebe a força da voz adulta: “A mãe, de lá gri-tando, brava, ralhava. Volveu” (ROSA, 2001, p. 245) não chegara a ver o arrozal, ainda no seu imaginário “lugar tão vistoso: neblinuvens”, lugar desejado, paraíso, semelhante ao céu, imaginado, o belo. Sobre o zombamento do irmão disse; “–‘Você não é você, e eu queria falar com você [...]’” (ROSA, 2001, p. 245), imagina-o adulto, abandonou o seu estado infantil, ele não é ele, não pode mais entendê-la, nem a ela, e nem o mundo dela, separados que estão em mundos diferentes.

A menininha, então chama o sono “-‘Devagar, meu sono... ’ – dona em mãozinha de chave dourada, entre os gradis de ouro da alegria” (ROSA, 2001, p. 244). Ela e a chave para o seu mundo, o mundo da imaginação da criação, como vimos em todas as figuras recorrentes no texto, um mundo sublimado que o sono traz, o mundo imaginário, dos sonhos, de fantasia, o (trans-) mundo, da transcendência e sua Tresaventura, o mundo da criação, dos poetas, do divino, do maravilhoso, um mundo de amor e de alegria.

Notas

1 Paulo Ronai escreveu Os Prefácios de Tutaméia, uma introdução na edição consultada.

2 Nomes atribuídos à personagem de Tresaventura: Dja, Iaí, Maria Euzinha, Djaiaí. Notem que a

re-ferência Maria Euzinha parte da própria personagem em relação a si, no entanto temos uma curiosidade aqui, o narrador intercala os nomes atribuídos a menininha no decorrer da narrativa começa com “Dja ou Iaí” no primeiro parágrafo, no sétimo refere-se a ela como “Dja,” no 13º, como Iaí, no 14º, como “Iaí, Dja,” e começa nova seqüência, “Iaí”, no 18º., “Dja”, no 20º. E termina no 21º, com “Djaiaí”, uma fusão dos dois nomes.

3 Epígrafe atribuída à Mnemônicum em Tutaméia (2001, p.243).

4 [do Lat. Antiphrase< Gr. Anti, contra + phrásis, fala. S.f. Ret., emprego de palavra ou frase em

sen-tido contrário à sua significação verdadeira; antinomia; ironia] (SITE: <http://www.priberam.pt/dlpo/ dlpo.aspx>, 2007).

Referências

BACHELARD, G. A poética do devaneio. Tradução de Danesi, Antônio de Pádua. São Paulo: M. Fontes, 1996.

COSTA, A. L. M. Guimarães Rosa por ele mesmo. In: COSTA, A. L. M. João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles (IMS), 2006. Cap. IV, p. 76-93. (Cadernos de Literatura Brasileira). ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Feist, Hildegard. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.

EVANGELHO DE JOÃO. O novo testamento. Tradução de Almeida, João Ferreira de. Filadélfia: Cia. Nacional de Publicidade, 1979.

FRYE, N. Anatomia da crítica. Tradução de Ramos, Péricles Eugênio da Silva. São Paulo: Cultrix, 1973.

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RONAI, P. Prefácios. In: ROSA, J. G. Tutaméia. 8. ed. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 2001. ROSA, J. G. Tutaméia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

SITE: <http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx>. Acesso em: 24 jul. 2007.

Abstract: ‘Tresaventura’ is a narrative that takes care of memories, in the

real life or in the imaginary. The appealing images of the story take us to the poetic dream of the author-model that urges the reader-model to an interpretation of the world infantile, artistic, magic, the thought ideal world, to the reader’s poetic dream.

Key words: Daydream, images, infantile world, memories, art

Artigo apresentado para fins avaliativos da disciplina Literatura Brasileira do Século XX, ministrada pela Profª. Drª. Maria de Fátima Gonçalves e Prof. Dr. Divino José Pinto.

SANDRA REGINA PARO

Mestra em Literatura e Crítica Literária pela Universidade Católica de Goiás. E-mail: sandra.paro@gmail.com

Referências

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