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A vergonha social e o medo: obstáculos para a superação da violência doméstica contra a mulher/ Social shame and fear: obstacles to overcome domestic violence against women

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Academic year: 2020

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761

A vergonha social e o medo: obstáculos para a superação da

violência doméstica contra a mulher

Social shame and fear: obstacles to overcome domestic violence against

women

doi:10.34117/bjdv5n11-069

Recebimento dos originais: 10/10/2019 Aceitação para publicação: 07/11/2019

Eva Dayane Almeida de Góes Doutoranda em Estado e Sociedade

Instituição: Universidade Federal do Sul da Bahia - UFSB

Endereço: Reitoria - Rua Itabuna, s/n, Rod. Ilhéus – Vitória da Conquista, km 39, BR 415, Ferradas, Itabuna-BA, CEP 45613-204, Brasil (institucional)

E-mail: evadayane.ufsb@gmail.com

RESUMO

A violência doméstica contra a mulher como consequência de uma cultura machista, sexista e patriarcal, produz milhares de vítimas diariamente no Brasil. As políticas públicas voltadas para o enfrentamento à violência doméstica buscam colaborar para que essas mulheres superem suas relações violentas. Contudo, muitas delas, por diversos motivos, ainda possuem dificuldades para romper seus relacionamentos ou buscar ajuda. Neste sentido, o objetivo deste artigo é discutir as dimensões do medo e da vergonha como obstáculos para que as mulheres suplantem a situação de violência doméstica que vivenciam. Para isso, realizamos uma breve abordagem teórica sobre a violência doméstica, o medo e a vergonha; em seguida nós nos apoiamos na literatura existente e analisamos qualitativamente quatro entrevistas semiestruturadas de mulheres com histórias de violência doméstica vivendo sob graves ameaças de seus parceiros. Entendendo que o medo e a vergonha fazem parte de um leque de sentimentos e da subjetividade dessas mulheres, percebemos que eles são fundamentais para a sujeição das mulheres aos seus agressores e a permanência delas nos relacionamentos abusivos e violentos.

Palavras-chave: Violência Doméstica contra a Mulher, Vergonha Social, Medo, Emoções, Rota Crítica.

ABSTRACT

Domestic violence against women as a consequence of a chauvinistic, sexist and patriarchal culture produces thousands of victims daily in Brazil. Public policies aimed at addressing domestic violence seek to help these women overcome their violent relationships. However, many of them, for various reasons, still have difficulty breaking their relationships or seeking help. In this sense, the aim of this article is to discuss the dimensions of fear and shame as obstacles for women to overcome the situation of domestic violence they experience. To this

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 end, we take a brief theoretical approach to domestic violence, fear and shame; We then draw on existing literature and qualitatively analyze four semi-structured interviews of women with histories of domestic violence living under grave threats from their partners. Understanding that fear and shame are part of a range of feelings and subjectivity of these women, we realize that they are fundamental to the subjection of women to their abusers and their permanence in abusive and violent relationships.

Keywords: Domestic Violence against Women, Social Shame, Fear, Emotions, Critical

Route.

1 INTRODUÇÃO

A violência doméstica contra a mulher é um fenômeno social que faz parte de uma estrutura cultural e socioeconômica onde a mulher historicamente esteve subjugada e discriminada. Essas discriminações têm sido mantidas através de inúmeras desigualdades no âmbito social e privado, sendo a violência contra a mulher um dos fatores mais importantes para o domínio do homem.

A violência doméstica explicita o poder masculino no âmbito da vida privada e até os dias atuais ainda é naturalizada, tolerada e invisibilizada pela sociedade, além de frequentemente culpabilizar a vítima pelas agressões sofridas.

A violência doméstica tem destruído a vida de milhares de mulheres no Brasil e no mundo, seja através do feminicídio ou mesmo aniquilando sua autoestima e sua dignidade. Ela também elimina a qualidade de vida das mulheres e dos filhos que convivem com a situação, sendo um grave fator de desagregação familiar. Além disso, possui um grande impacto nos gastos públicos com os cuidados na área da saúde, sendo uma grave violação dos direitos humanos e que no Brasil pode ser alçada a um problema de saúde pública.

No Brasil a violência doméstica só começou a ser encarada com mais responsabilidade pelo Estado quando o caso de Maria da Penha, farmacêutica cearense que sofreu duas tentativas de homicídio e que em decorrência disso ficou paraplégica, foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), pois o seu ex-marido e agressor ainda vivia em liberdade - dezoito anos após a tentativa de assassiná-la. O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana e assim necessitou tomar providências sobre a matéria.

Cinco anos após a condenação do Brasil na CIDH/OEA a Lei Maria da Penha - Lei 11.340/2006 - foi sancionada e passou a vigorar, sendo a criminalização do agressor um dos pontos mais importantes da lei, além de extinguir o pagamento de cestas básicas e evitar a

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 impunidade dos agressores. A lei reconhece a necessidade de ressocialização do agressor e aponta ações de prevenção à violência contra a mulher.

Em 2015 foi aprovado o Decreto - Lei nº 2.848/40 que modifica o artigo 121 do Código Penal, popularmente conhecido como Lei do Feminicídio, qualificando e incluindo o homicídio de mulheres no grupo dos crimes hediondos.

A violência doméstica contra a mulher, por ser um fenômeno responsável por um grande número de feminicídios, necessita de atenção especial. Acreditamos que se as mulheres conseguirem evitar a manutenção de relacionamentos violentos, elas possuem uma chance de permanecerem vivas.

Este artigo tem como objetivo principal discutir as dimensões do medo e da vergonha como obstáculos para que as mulheres em situação de violência doméstica perpetrada por seus parceiros, consigam superar a violência rompendo o relacionamento ou denunciando o seu agressor. Assim, buscamos responder à pergunta: quais as dificuldades que as mulheres encontram para romper o ciclo1 de violência doméstica que vivem com seus parceiros afetivos? E mesmo entendendo que há outros tipos de barreiras para a superação da violência doméstica trataremos apenas do medo e da vergonha social.

Pontuamos que esse tema surgiu a partir de provocações em debates/conferências públicas onde buscamos discutir, demonstrar ou chamar atenção da população para o fenômeno da violência doméstica ao nosso redor, assim, percebemos que as pessoas procuram entender porque as mulheres não se separam e/ou denunciam seus parceiros violentos pois entendem que essa é a maneira mais fácil de uma mulher se livrar da violência doméstica. Contudo, não consideram as subjetividades e os sentimentos (para além do amor) dessas mulheres.

O não entendimento dessas subjetividades e desses sentimentos – amor, medo, vergonha, insegurança, baixa autoestima e outros – associados a uma cultura machista e patriarcal leva a sociedade a julgar e culpabilizar a vítima pelas agressões sofridas, pelo “fracasso” no casamento e por não dar um ponto final na vida de violências. Todo esse contexto além de retrair ainda mais as mulheres que se encontram nessas condições, também leva a um atendimento ruim nos órgãos que recebem essas vítimas, levando-as muitas vezes a sofrerem novas violências - como a violência institucional, colaborando para que essa mulher não busque ajuda nas instituições.

1 Sobre as etapas do ciclo de violência doméstica consulte: BRASIL. Enfrentando a violência contra a mulher:

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 2 METODOLOGIA

Fruto da serendipidade2 de uma pesquisa de campo realizada em 2018 para um estudo

dissertativo de mestrado, esse tema se apresenta como uma oportunidade importante e necessária quando se trata dos motivos pelos quais as mulheres não conseguem romper relacionamentos afetivos violentos. Assim, inicialmente realizamos uma rápida discussão sobre a violência doméstica no Brasil, depois buscamos uma literatura que pudesse nos auxiliar na discussão teórica de como a vergonha e medo se manifestam social e individualmente nessas mulheres e por fim analisamos os relatos de mulheres vítimas de violência doméstica e como esses sentimentos influenciaram no não rompimento do ciclo de violência que vivenciavam. Essas análises foram realizadas a luz de alguns autores que discutem as questões aqui colocadas.

Assim, apresentamos um trabalho de caráter qualitativo, onde foram realizadas quatro entrevistas semiestruturadas com mulheres negras vítimas de violências doméstica de seus companheiros. É válido ressaltar que essas entrevistas não tiveram como objetivo captar o sentimento da vergonha e do medo aqui estudados, mas sim apreender situações da violência doméstica sofrida e suas consequências para a vida afetiva posterior dessas mulheres. Contudo, a vergonha social e o medo foram colocados pelas entrevistadas de maneira contundente no processo do (não) rompimento do ciclo de violência e também durante as violências vivenciadas, o que nos incitou a discutir a questão.

Fazemos questão de pontuar que apesar dessas entrevistas terem sido realizadas co m mulheres negras não faremos o recorte de raça mais aprofundado nesse trabalho, pois acreditamos que seria necessário informações mais detalhadas das depoentes e nós não possuímos.

Nas análises das entrevistas realizadas escolhemos usar nomes fictícios para essas mulheres, assim preservamos sua identidade e não retiramos a representação humana das falas, pois essas violências fazem parte da vida de centenas de Marias, Larissas, Milenas e Andrezas. Nos negamos a utilizar a expressão “entrevistada 1, 2 ou 3...”, porque ao nosso ver coloca a violência num patamar de afastamento das pessoas e da realidade relatada, Desta forma, apresentamos nossas entrevistadas à época (agosto de 2018): Maria – 43 anos, 2 filhos; Andreza – 27 anos, sem filhos; Larissa – 37 anos, 2 filhos e Milena – 27 anos, 1 filho. Todas essas mulheres viviam em aéreas periféricas da cidade e a maioria delas não ganhavam mais

2 Serendipidade é uma palavra utilizada para descrever uma situação em que descobrimos ou encontramos alguma

coisa, enquanto estávamos procurando outra, mas para o qual já tínhamos que estar preparados. (GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. 2019, p. 9, 19ª ed.)

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 que um salário mínimo; elas já estavam separadas de seus agressores há algum tempo e estavam sem relacionamentos afetivos no momento, porém, todas elas já tinham vivido outra(s) relação(ões) após terem se separado do agressor.

Nessas entrevistas o medo3 e a vergonha não foram abordados diretamente, mas surgiram em diversos momentos nos relatos das entrevistadas. Vale destacar que o medo não surgiu apenas em relação as agressões e ameaças sofridas, mas também em relação ao futuro dos filhos (criação, alimentação e cuidados) e em outras situações, nos fazendo perceber as variadas dimensões do medo para essas mulheres.

3 DISCUSSÕES E RESULTADOS

3.1 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER NO BRASIL

A Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher – Convenção de Belém do Pará, define em seu artigo 1º que “entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. (Convenção de Belém do Pará, 1994, s/p).

Leila Barsted (2002) afirma que a violência contra a mulher está inserida no contexto da dominação masculina, sendo essa violência de amplo espectro e que no Brasil a conquista pela cidadania feminina foi, em grande parte, voltada para a eliminação de leis discriminatórias e para a declaração de novos direitos, pois a tradição jurídica não reconheciam as mulheres como sujeitos de direitos.

Essa violência ainda hoje carrega o peso das leis desiguais que vigoraram durante séculos no país, uma legislação que conferia ao homem o poder e direito sobre a vida das mulheres – mães, irmãs, filhas e esposas. Nesse sentido, Barsted (2012) pontua que não podemos subestimar o impacto ideológico das Ordenações Filipinas4 - que declaravam

explicitamente o direito do marido de matar a sua mulher ao encontrá-la em adultério - e mesmo esse direito sendo revogado em 1840 ele ainda foi utilizado durante muitos anos, dando origem a tese da legítima defesa da honra – tese empregada para defender homens que matavam suas esposas, namoradas e companheiras.

3 No roteiro de entrevista o medo aparece apenas em uma pergunta – que não se refere ao parceiro ou a violência

perpetrada por ele, mas sim ao medo de voltar a vivenciar situações de violência doméstica outra vez e com novos parceiros. Contudo, durante os relatos a questão do medo esteve muito presente, em algumas entrevistas de forma mais intensa e contundente que em outras, o que nos levou a fazer algumas indagações a respeito.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 Essa tese nefasta ainda encontra guarida na cultura machista que vivenciamos e por conta dela ainda enterramos centenas de mulheres anualmente - vítimas dos homens que escolheram para amar. Ainda hoje o movimento feminista possui como uma de suas principais bandeiras a luta para reduzir e abolir os feminicídios, uma batalha a ser vencida a partir de uma profunda mudança educacional, cultural, socioeconômica e jurídica.

A partir do avanço legislativo na Constituição Federal de 1988, as mulheres passaram a gozar de maior igualdade jurídica, contudo,

tendo por paradigma a Constituição de 1988, a legislação brasileira, finalmente, a partir de então, reconheceu as mulheres como sujeitos de direitos em igualdade de condições com os homens. Esse reconhecimento, no entanto, não impactou, ainda de forma definitiva, a sociedade e especialmente a cultura jurídica nacional. As resistências das instituições de segurança pública e da justiça à plena implementação da Lei Maria da Penha exemplificam a permanência da grande distância entre os direitos formalmente reconhecidos e a dificuldade para sua eficácia legal. (BARSTED, 2012, p. 98)

Porém, mesmo com todas as dificuldades para a implementação - de fato - da Lei Maria da Penha os avanços alcançados a partir dela são inegáveis, principalmente no que se refere a um aumento na confiança da vítima no sistema de justiça, pois antes da existência da lei a impunidade do agressor era certa, o que fazia com que muitas mulheres desistissem de denunciar, pois ao fazê-lo ele permanecia livre e a violência contra ela se intensificava. A partir da lei, a quantidade de mulheres que denunciaram seus agressores cresceu5 significativamente e muitas mulheres, por já conhecerem a lei, a utilizam em sua defesa.

Sobre a violência doméstica contra as mulheres, Emilse Naves afirma que

as violências repetem-se em todos os aspectos de suas vidas. Começam devagar, como abdicar de um desejo para atender ao desejo do outro. Depois, submetem-se às palavras mal-ditas e em seguida seus corpos se colocam passivamente, mas não sem consentimento, disponível para a colocação em ato do pior. E nos piores dos casos, o limite chega a ser a morte literal. A mídia e as estatísticas não nos poupam de notícias de mulheres assassinadas por seus companheiros, depois de reiteradas situações de intensos maus-tratos. (NAVES, 2014, p. 457)

5 “O número de denúncias, pedidos de informação e relatos de violência à Central de Atendimento à Mulher

saltou de 204 mil para 269 mil entre 2007 e 2008, um aumento de 32%. Na avaliação da ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire, a divulgação da Lei Maria da Penha foi a principal responsável pelo crescimento das notificações.” (JUSBRASIL, 2008, s/p)

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 Algumas organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde – OMS, a Organização Panamericana da Saúde e o Banco Mundial, além de organizações profissionais de saúde, como a Associação Médica Americana, têm divulgado elevadas prevalências da violência doméstica perpetrada por parceiros íntimos. (SCHRAIBER, et all, 2007). As consequências dessa violência atingem além da sua saúde física e mental a sua subjetividade e as consequências se refletem na sua vida emocional e afetiva6, mesmo após anos livre da

violência e do agressor. Vale lembrar, que os filhos também são vítimas da violência doméstica sofrida pelas mulheres, pois vivenciam em um ambiente violento e hostil para seu crescimento e desenvolvimento psicossocial.

Assim, é preciso lembrar que a violência doméstica não é um problema único e individual de cada mulher. Ela é um fenômeno social e, portanto, uma responsabilidade do Estado e de toda a sociedade, sendo um grande avanço para as mulheres terem esse assunto desatrelado da vida privada e trazido para a esfera pública.

3.2 A VERGONHA SOCIAL E O MEDO

Em uma sociedade machista e patriarcal que impõe à mulher o casamento como sucesso na vida privada, torna-se ainda mais difícil para um grande contingente de mulheres assumirem o insucesso na vida a dois. Assim, admitir socialmente que a pessoa que você escolheu para amar é um agressor, ainda é um processo árduo para muitas delas, principalmente porque o medo do julgamento e a vergonha perante a sociedade ainda são fatores que limitam essas mulheres a pedirem ajuda e assim conseguirem se livrar da violência que vivem.

Para Sarah Ahmed (2015) reconhecer as ofensas sofridas é entrar no campo da vergonha, pois segundo a autora, nos envergonhamos ao reconhecermos que cometemos atos ou omissões. A autora descreve a vergonha como sendo “uma sensación intensa e dolorosa que está ligada com el modo em que se siente el yo acerca de si miesmo, um sentimento que el cuerpo siente y que se siente en él.” (AHMED, 2015, p. 164), para Ahmed a vergonha imprime no corpo um sentimento de que a pessoa está contra si mesma.

Aqui, entendemos a vergonha social como sendo um sentimento de fracasso perante a sociedade, seja a família, os amigos, os atendentes nos órgãos públicos de apoio, assistência e

6 Ver dissertação de GÓES, Eva D. A. Intersecções entre a violência contra a mulher negra e as configurações

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 enfrentamento à violência, os vizinhos e as inúmeras pessoas com quem se convive nos diversos espaços sociais.

Os sentimentos de medo e vergonha estão presentes na sociedade regulando a cultura, e consequentemente os comportamentos humanos. A vergonha é um “estado de alma especificamente humano”; é um sentimento moral que se estabelece pela transgressão da norma social criada na identidade de um grupo, num dado contexto social e econômico marcado por desigualdade nos acessos, e que determinam os padrões sociais e valores normativos destes grupos (FIORIN, 1992; HARKOT-DE-LA-TAILLE, 1999; DE LA TAILLE, 2002 apud TERRA, D´OLIVEIRA & SCHRAIBER, 2015, p. 117).

As mulheres violentadas acabam escondendo as situações de violência doméstica que sofrem devido ao sentimento de vergonha que sentem e isso implica em uma passividade maior frente a situação vivenciada, pois a vergonha envolve sentimentos de desonra, humilhação, rebaixamento frente a outros, insegurança, medo do julgamento das pessoas, etc., e ao ser vítima de violência doméstica as mulheres sentem que perderam a sua dignidade, e por este motivo se sentem envergonhada.

O autor Ives de La Taille afirma que

o problema essencial do sentimento de vergonha é o lugar do juízo alheio. Uma forma comum de pensar este sentimento é afirmar que ele é simplesmente desencadeado pela opinião de outrem e que, portanto, ele pertence ao domínio da heteronomia pois corresponderia à dimensão afetiva relacionada a um controle externo. É o que, por exemplo, sugere a definição de Spinoza segundo a qual “a vergonha é a tristeza que acompanha a ideia de alguma ação que imaginamos censurada pelos outros”. (LA TAILLE, 2002, p. 17)

Em relação ao medo, Ahmed afirma que “el miedo, como el dolor, se siente como uma forma desagradable de intensidade. Pero aunque la experiencia vivida de miedo puede ser desagradable em el presente, el displacer del miedo también se relaciona com el futuro” (AHMED, 2015, p. 109). Nesse sentido, o sentimento do medo surge a partir de um perigo a que estamos ou podemos estar expostos e se traduz em nosso corpo quando tomamos consciência da situação, ou seja, “el miedo implica uma antecipación de daño o herida, nos

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 proyecta del presente hacia um futuro. Pero la sensación de miedo nos pressiona hacia ese futuro como una experiencia corporal intensa en el presente” (AHMED, 2015, p. 109). As consequências do medo podem ser diversas. Envolve sentimentos, sensações corporais, danos psicológicos, propensão à fuga ou total paralisação de ações e atitudes.

Desta forma, Freud afirma que o medo pode funcionar como um mecanismo de defesa frente a uma situação de perigo (AHMED, 2015). O que explica os sentimentos das mulheres vítimas de violência doméstica por seus maridos/companheiros/namorados, levando-as a retração ou paralisação de suas atitudes para preservar suas vidas e/ou as vidas dos seus entes queridos.

O medo e a vergonha encontram-se na vida das mulheres que buscam livrar-se da violência doméstica praticada pelos seus parceiros. Esse caminho de tentar sair de relações conjugais violentas a autora costa-riquenha Monteserrat Sagot chamou de Rota Crítica. A autora define a Rota Crítica somo sendo

un proceso que se construye a partir de la secuencia de decisiones tomadas y acciones ejecutadas por las mujeres afectadas por la violencia intrafamiliar y las respuestas encontradas en su búsqueda de soluciones. Este es un proceso iterativo constituido tanto por los factores impulsores e inhibidores relacionados con las mujeres afectadas y las acciones emprendidas por éstas, como por la respuesta social encontrada, lo que a su vez se convierte en una parte determinante de la ruta crítica. En ese sentido, con el concepto de ruta crítica se reconstruye la lógica de las decisiones, acciones y reacciones de las mujeres afectadas, así como la de los factores que intervienen en ese proceso. (SAGOT, 2000. p. 90)

Sagot (2000) considera que o começo desta rota crítica é rompimento do silêncio em relação a violência sofrida. Porém, observamos que para essas mulheres iniciarem essa rota precisam superar as diversas dimensões de medo que vivenciam e a vergonha social de serem julgadas como culpadas pelo que estão sofrendo. Para autora a vergonha e o medo se inter-relacionam e atuam sobre a subjetividade das mulheres, seja para fortalecê-las ou para debilitá-las em sua decisão de iniciar ou permanecer na busca de uma ajuda para sua situação. Iniciar ou não essa rota crítica envolve muitos riscos para as mulheres, principalmente no que se refere ao aumento da violência ou ao risco de perda de bens patrimoniais (SAGOT, 2000).

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 3.3 AS DIMENSÕES DO MEDO E DA VERGONHA NAS MULHERES DO SUL DA BAHIA

Em nossas entrevistas foi possível observar as diversas dimensões do medo pontuadas por nossas entrevistadas. Assim, o medo se relacionava às agressões físicas que elas sofriam: Maria e Larissa afirmaram que tinha muito medo de ficar sozinha com seus maridos e que esse medo era frequente. Larissa explicou que o medo era devido a agressividade dele. Entretanto, o medo era somente pessoal. Temer pela família, pelos amigos e pelos filhos também foram os motivos que levaram essas mulheres a suportar a violência sofrida.

As violências a que as mulheres estão expostas decorre da situação de subordinação e de vulnerabilidade das mulheres em relação aos homens, sujeição essa que é perpetuada secularmente com a imagem do homem como superior a mulher.

Para além do medo das violências físicas, essas mulheres também sofreram estupros por temendo a magnitude da violência física, “cediam” ao sexo devido as ameaças dos parceiros. Maria afirmou: “Eu nem queria mais [fazer sexo com o marido], ainda mais que ele me batia direto, eu não sentia era nada [de prazer durante o sexo], eu ficava esperando meus filhos crescerem para eu poder sair de casa, pra não deixar os meus filhos pequenos lá”. E completa: “ele me pegava apulso7, quem vai aguentar com um homem forte dentro do quarto,

um homem parecendo um rambo8?”. Desta forma, com receio das agressões se intensificarem, ela “cedia” ao sexo, renunciando ao domínio do seu corpo e das suas vontades. Neste sentido, a violência doméstica expõe as mulheres ao rebaixamento pessoal, conforme explicita Axel Honnet:

aquelas formas de maus-tratos práticos, em que são tiradas violentamente de um ser humano todas as possibilidades da livre disposição sobre seu corpo, representam a espécie mais elementar de rebaixamento pessoal. A razão disso é que toda tentativa de se apoderar do corpo de uma pessoa, empreendida contra a sua vontade e com qualquer intenção que seja, provoca um grau de humilhação que interfere destrutivamente na auto relação prática de um ser humano, com mais profundidade do que outras formas de desrespeito, pois a particularidade dos modos de lesão física, como ocorrem na tortura ou na violação, não é constituída, como se sabe, pela dor puramente corporal, mas por sua ligação com o sentimento de estar sujeito a vontade de um outro, sem proteção, chegando a perda do senso de realidade. (HONNET, 2003, p. 214/215)

7 Na linguagem informal, pegar apulso significa pegar a força, obrigar a pessoa a fazer algo sob o domínio da

força.

8 Se refere a um personagem de uma série de filmes. Rambo era um homem extremamente grande e forte que

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 Além do rebaixamento pessoal, a violência a que essas mulheres são vítimas destroem sua autoestima, sua visão de si mesma, seu respeito social e ainda danifica sua moral. Sobre as agressões físicas Honnet afirma que,

um daño físico, pues, se convierte em una injusticia moral si la persona afectada ve en el uma actuación que lo menosprecia intencionalmente em un aspecto essencial de su bienestar; no es ya el dolo físico como tal, sino la consciência resultante de no ser reconocido em la propia concepción que uno tiene de si mismo lo que constituye la condición del daño moral. (HONNET, 2009, p. 24)

Honet (2009) também afirma que a tortura e a violação podem ser consideradas as formas mais básicas de humilhação do ser humano, já que o privam da sua autonomia física em sua relação consigo mesmo e destroem uma parte de sua confiança básica no mundo. O autor ainda assegura que a autoconfiança, que é o estrato básico para a segurança emocional e física, constitui a premissa psíquica para o desenvolvimento de todas as formas de autoestima e segundo ele, a autoconfiança é desenvolvida a partir da esfera do amor, que é o estrato mais básico de segurança emocional e física.

Andreza nos contou que também foi ameaçada de morte quando o seu namorado percebeu que estava perdendo o controle sobre ela e que a mesma estava em vias de terminar o relacionamento, principalmente por conta da violência moral e psicológica que estava sofrendo, além das agressões físicas, que segundo ela, foram pontuais (ele bateu forte na sua mão e no seu braço evitando que ela diminuísse o volume do carro para poder atender um telefonema e apertou o seu pescoço em um momento de briga). Andreza nos relatou:

Ele chegou a me ameaçar já perto do término, ele falou que ia me matar, eu gravei a ligação, ele falou aquele clichê: que se eu não fosse dele eu não seria de mais ninguém. Que ele iria me matar. Ele foi à porta do meu trabalho. [...] tinha policiais fazendo a segurança do local e ele foi a porta do meu trabalho [...] e ficou esperando eu sair, os policiais ficaram comigo esperando minha hora de ir embora e me colocaram no ponto de ônibus, aí ele desistiu e foi embora, mas ele chegou a ir para minha porta do trabalho.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 Ameaçar as pessoas próximas também faz parte da cultura do medo instituída a essas mulheres. Com Larissa percebemos que o medo se relacionava com as ameaças que ela e os entes queridos dela sofriam. Ela afirmou: “Eu não tinha amizades, ele não deixava, minhas amigas quando vinham falar comigo, ele ameaçava [...]. A mãe de uma amiga falou comigo: eu vou deixar de deixar minha filha andar com você porque seu esposo ameaçou ela. [...]todo mundo se afastava de mim”. E completou: “teve um caso do meu amigo que ele destelhou a casa e ameaçou o menino, o menino se afastou de mim”. Larissa também relatou ameaças de morte ao filho do casal quando o mesmo ainda estava com poucos meses de vida: “ Ele botava a criança de cabeça para baixo e botava a faca” [no pescoço]; Ela tinha muito medo de que ele machucasse seu filho: “na época que eu me separei dele o menino estudava em um colégio público, tipo uma creche. Ele invadiu a creche e sequestrou a criança, para eu voltar. Aí ficou um mês para eu tomar essa criança dele”; e relatou também as ameaças a seus familiares: “ele falava que mataria meu irmão”.

Milena também foi vítima deste tipo de medo, ela nos contou as ameaças que os familiares sofriam quando tentavam defendê-la: “depois do episódio que meu irmão deu um murro nele, ele disse que ia matar meu irmão [...] ele vivia com ameaças, dizendo que ia matar e não sei o que9 [...]”

A vida dessas mulheres foi permeada por medo, não apenas por si próprias, mas medo de que seus parceiros realmente colocassem em prática as ameaças proferidas a seus entes queridos e amigos. Desta forma, sentiam-se cada vez mais presas a eles e não vislumbravam a possibilidade de livrar-se daquela situação que as amedrontavam e as aprisionavam ao agressor.

Ahamed afirma que “el miedo funciona a través y sobre los cuerpos de quien se van transformados en sus sujetos, asi como en sus objetos” (AHAMED, 2015, p. 105) e continua: “el miedo miedo no solo proviene de dentro y de ahí se mueve hacia fuera, hacia los objetos y los otros, en vez de ello el miedo funciona para asegurar la relación entre esos cuerpos; los reúne y los separa mediante los estremecimientos que si sientem en la piel, en la superficie que emerge a través del encuentro”. (AHAMED, 2015, p. 106)

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 Andreza também foi uma vítima das ameaças graves do seu namorado:

Inicialmente ele não era[agressivo], não demonstrava ser ciumento, não demonstrava ser possessivo, e quando ele sentiu que o relacionamento estava perto de terminar, aí ele ficou mais agressivo. Me perseguiu, foi armado para minha casa, e [...] falou coisas à minha mãe e a minha avó que não cabiam para elas, por conta da idade, da religião. Então, ele chegou a ir armado para minha casa, então eu considero isso a coisa mais grave, mais grave até que me agredir. Ele ter ido na minha residência, na minha ausência, armado conversar com a minha mãe e minha avó.

Ir armado até a casa de Andreza e falar coisas incabíveis sobre ela para sua mãe e sua avó idosa, foi a maneira que o agressor encontrou de ameaçá-la mais gravemente e mesmo com medo do que poderia acontecer a si e à sua família, Andreza não recuou e rompeu o relacionamento. Contudo, o medo de retaliações perdurou por muito tempo.

As autoras Maria Fernanda Terra, Ana Flávia Pires Lucas d´Oliveira & Lilia Blima Schraiber, (2015) afirmam que um dos obstáculos descritos no trabalho de Sagot (2000) foi o medo de retaliação pelo agressor, somado ao medo de atitudes estigmatizantes da comunidade em que viviam e dos profissionais da rede de serviços, que por ventura procurassem.

Em todas as situações aqui relatadas, o sentimento que predominou nessas mulheres, foi o medo. Medo de morrer ou de que alguma pessoa que amava fosse assassinada ou se machucasse. Medo por si e pelos outros, afinal, diante de tantas agressões já sofridas e de tanta agressividade dos parceiros, como acreditar que eles não cumpririam suas ameaças? Para elas, muitas vezes, o risco era muito grande para aventurar-se.

3.4 A VERGONHA SOCIAL

A vergonha foi um dos sentimentos que essas mulheres sentiam, por serem vítimas da violência de seus parceiros.

Larissa nos contou que ao relatar as violências sofridas para sua amiga ela não acreditou, o que a deixou ainda mais distante de tentar buscar ajuda com outras pessoas, pois estava sendo vista, naquele momento, como mentirosa. Ela relatou: “uma vez eu falei com minha amiga [sobre as violências que sofria], ela falou: - oxe, ele não parece que faz isso! Tipo: que eu estava mentindo. Ninguém acredita né?!” Com essa reação a amiga de Larissa,

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 além de não a ajudar, ainda colaborou para que ela não voltasse a conversar sobre as violências vividas com outras pessoas. Larissa continuou:

Ninguém acredita né?! Porque ninguém conviveu com a gente [ela e o companheiro], e eu não era de ta falando, porque eu acho que era uma vergonha para mim também, porque eu estava passando por isso e aí o povo ia falar: ah você era descarada porque convivia com ele. Mas ninguém sabia o que eu passava com ele. Porque muitas mulheres são chamadas de descaradas, que não tem vergonha na cara, porque não sabe o que a gente passa dentro de casa com a pessoa. As ameaças, o que ele fala, porque com 15 anos [se refere a idade dela quando ela começou a namorar com ele], eu não tinha noção de nada eu pensava que ele ia fazer mesmo... se ele vinha em cima de mim para fazer, ele não ia fazer com os outros? [se refere as ameaças ao filho do casal, aos seus amigos e à sua família].

A situação de vergonha descrita nessa fala de Larissa coaduna com as falas das mulheres que Terra, d´Oliveira & Schraiber (2015, p. 114) entrevistaram em sua pesquisa:

Estar em situação de violência atestaria também a sua própria falta de vergonha, já que, segundo elas, os vizinhos e a própria família diziam que sofrer violência só acontece com as mulheres ‘sem vergonha’, “... eles (vizinhos) acham que eu sou uma tremenda sem vergonha” (Entrevistada 7).

Para as autoras, “o sentimento de vergonha dificulta o diálogo, aumenta o isolamento e a culpa das mulheres que se sentem mal vistas, “responsáveis” pelo sofrido e, portanto, obrigadas a aguentarem tais situações ou a resolverem o problema sozinhas” (TERRA, D´OLIVEIRA & SCHRAIBER, 2015, p. 114), ou seja, sentir-se envergonhada pela violência doméstica sofrida faz com que as mulheres silenciem e permaneçam isoladas nesse processo. Milena também relata a vergonha social de sofrer violências do companheiro em público ou na frente de outras pessoas e por receio, obedecia à violência psicológica praticada por ele. Ela contou:

Eu só podia visitar a casa da minha mãe e a casa da mãe dele na companhia dele. Ele dizia que não era pra eu sair, se eu saísse ia me fazer passar vergonha, me xingar na frente das pessoas e ai eu optava por não ir, pra evitar passar por isso. Já aconteceu de eu sair, fui com a mãe dele para um barzinho e ele foi lá e me trouxe puxando pelos cabelos.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 Nesta situação, a violência é corroborada socialmente como uma punição ao “erro da mulher”, pois se está sendo arrastada pelos cabelos “é porque alguma coisa ela fez”. Aqui a vergonha não está apenas no fato das pessoas saberem que o seu companheiro é violento ou controlador, é principalmente não permitir ser humilhada em público e por isso ela “optava” em não sair sem ele, como ele ordenava.

Milena afirmou que devido a sua família ser cristã evangélica ela teve dificuldades para romper o ciclo de violência vivido, pois não encontrava apoio da sua família, principalmente da sua mãe, sendo que esse apoio era fundamental para que ela pudesse se separar já que seu companheiro não permitia que ela trabalhasse e ela não tinha para onde ir com o seu filho. Quando perguntamos se ela buscou ajuda da sua família, ela nos respondeu: “falava mais com a minha mãe. Falava do que ele fazia comigo. Mas ela dizia que era normal, que ele estava com ciúme e não sei o que, mas que era eu para relevar que homem era assim mesmo e casamento é para vida”.

Nesse contexto a violência é legitimada a partir das crenças religiosas, das relações de gênero e da cultura patriarcal e machista. Por não encontrar apoio em casa Milena não tinha coragem de contar o que sofria para outras pessoas e isso fez com que seu sofrimento se prolongasse ainda mais. Diante de situações de violência doméstica as mulheres buscam inicialmente ajuda da família e dos amigos mais próximos, essa rede de relações está inserida na sua base de confiança principal.

A vergonha também atinge outras dimensões e Maria a vivenciou quando foi prestar queixa do seu companheiro na DEAM – Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, assim ela nos descreveu o que sentiu ao ser atendida:

porque quando eu fui lá dar a queixa dele o rapaz que estava lá conversou comigo e me falou muita coisa: “A senhora é uma mulher bonita não tem precisão disso”. Às vezes eles botam a gente muito lá embaixo, eu saí de lá com minha cara no chão, porque a gente se sente envergonhada das coisas que eles falam com a gente. (MARIA)

Essa é uma situação muito comum, as mulheres relatam a vergonha de buscar ajuda nos órgãos institucionais, pois não é raro o reforço da humilhação ao acessar esses espaços. Assim, o sentimento de vergonha, o medo, a violência vivida solitariamente - por não ter em quem se apoiar, a falta de credibilidade das instituições públicas de apoio e da legislação vigente foram situações relatadas pelas mulheres que entrevistamos e isso nos permitiu entender alguns motivos que as afastavam do rompimento de laços com seus agressores.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 Nos municípios onde há uma estrutura mínima da rede de enfrentamento à violência contra a mulher a sociedade cobra uma atitude dessas mulheres frente à situação de violência, “aquelas que, apesar dos serviços disponíveis, continuam em situação de violência são vistas como sem caráter e que aceitam a violência, acabando mais uma vez por reforçar a vergonha e a culpabilização das mulheres pela situação em que vivem”. (TERRA, D´OLIVEIRA & SCHRAIBER, 2015, p. 118). As autoras ainda afirmam que

“a vergonha se apresenta na percepção da violência como uma fraqueza, algo proibido ou ridículo, o que tem o poder de bloquear a sua ação. A manutenção de uma conduta defensiva e de sigilo visa evitar a exposição desta fraqueza ou falta para assegurar o controle sobre a sua imagem social” (TERRA, D´OLIVEIRA & SCHRAIBER, 2015, p. 118/119)

A vergonha está no campo da exposição da vida conjugal, da intimidade do casal e do julgamento social sobre as razões da violência sofrida. Envolve também o embaraço por ter se envolvido, por ter amado e confiado em uma pessoa violenta, controladora, agressiva e abusiva, por ter fracassado na vida marital, ou seja, envolve expor um conjunto de fragilidades que muitas mulheres ainda não estão preparadas para viverem, porque sentem-se envergonhadas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas entrevistas realizadas percebemos que o sentimento de vergonha e de medo foram fundamentais para que essas mulheres, por um tempo, não buscassem ajuda. Assim, através dos discursos delas observamos a percepção de medo e da vergonha como limitadores para a superação da violência doméstica que sofriam e paralelo a isso a naturalização da violência na vida conjugal e o isolamento social fortaleceu a permanência no relacionamento.

Percebemos que o sentimento de medo em um contexto de graves violências e ameaças levou à sujeição dessas mulheres aos seus agressores, seja a partir de uma situação real ou imaginária10. Enquanto isso a vergonha se encaixa na desmoralização moral da mulher perante a sociedade. Esses dois sentimentos subjetivos colaboraram diretamente para o isolamento

10 Não nos referimos a ‘imaginária’ sem fundamentação real, mas de imaginar situações drásticas de violências

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 social da mulher violentada, sendo reforçado pela falta de apoio da sua rede de relações sociais mais próxima, como a família e os amigos.

Vários são os fatores a se considerar nos casos de violência contra a mulher, pois em uma sociedade culturalmente patriarcal, em que as meninas são educadas para serem mães e esposas zelosas, ter um relacionamento afetivo estável e “garantidor de felicidade plena” é um sinal social de sucesso na vida afetiva/privada. Contudo, a culpabilidade deste “insucesso” ou “fracasso” no relacionamento é frequentemente imputado à mulher. Neste sentido também, mulheres solteiras são mal vistas socialmente, a elas são imputados termos pejorativos como “solteironas”, “encalhadas”, “infelizes”, “mal-amadas” e que “vão ficar para titia”, o que colabora para que a mulher repense o fim de relacionamentos abusivos ou violentos por conta da pressão social de cunho machista.

Dentre a diversidade de fatores que envolvem e se relacionam com a dificuldade de romper com um relacionamento abusivo e violento, podemos citar além do medo e da vergonha: o ideal de amor romântico difundido culturalmente e que faz com que as mulheres acreditem que toda sua felicidade está diretamente ligada ao um relacionamento estável e feliz; as dificuldades financeiras, pois muitas são proibidas de trabalhar e desta forma não possuem recursos para sustentar os filhos; vinculado à falta de independência financeira está a possibilidade de não ter como levar os filhos consigo, assim, muitas delas permanecem num relacionamento violento para proteger e criarem e seus rebentos.

REFERÊNCIAS

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 11, p23627-23645 nov. 2019 ISSN 2525-8761 BRASIL. Presidência da República. Enfrentando a Violência contra a Mulher: orientações práticas para profissionais e voluntários (as). Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. Disponível em: < https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-

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HONNET, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução: Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. 296 p.

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1 JUSBRASIL. Número de denúncias de violência doméstica cresce 32%. 2008. Disponível em: < https://agencia-brasil.jusbrasil.com.br/noticias/609631/numero-de-denuncias-de-violencia-domestica-cresce-32 >. Acesso em 31 de jul. de 2019.

2

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(19)

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