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Enredos/desenredos de Berenice e Penélope: paralelo entre as personagens de O Manto de Marcia Tiburi e Odisséia de Homero

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SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 15, n. 29, p. 29-37, 2º sem. 2011

paralelo entre as personagens de O Manto de

Marcia Tiburi e Odisséia de Homero

Alexandre Veloso de Abreu*

Resumo

Neste artigo são analisadas as relações intertextuais entre o romance O manto, de Márcia Tiburi e Odisséia, de Homero. Através de uma sofisticada estratégia de elaboração ficcional, a autora contemporânea constrói densas metáforas sobre o ato de escrever, elegendo Penélope como uma espécie de ur-tessitura. Nos fragmentos gravados de Berenice se faz e se desfaz a narrativa, perpetuando a escrita como essencial ato de sempre se refazer, idêntico ao exercício da rainha de Ítaca de enredar e desenredar sua tela. Palavras-chave: Romance; Intertextualidade; Epopeia; Narratologia; Metalinguagem.

* Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUCMinas.

Márcia Tiburi conclui sua “Trilogia íntima” com o volume O manto (2009). As primeiras duas obras exploraram com desenvoltura o intrínseco universo feminino. No entanto, o último volume aprofunda-se tanto na alma feminina quanto no fazer literário. A autora declara que levou sete anos para finalizar a narrativa. Tal elaboração é percebida no desenvolvimento do romance.

Foi inevitável a associação intertextual com a Odisséia de Homero. O marido de Berenice, protagonista do romance de Tiburi, volta depois de vinte anos para casa, tempo que levou o basileu de Ítaca para voltar da Guerra de Tróia. Berenice, atordoada, fecha-se no armário e começa a gravar o que sente. A gravação registra o íntimo e a solidão, temas que percorrem toda a “Trilogia íntima”, mas é n’O

manto que o exercício romanesco da escritora aflora. O livro divide-se em três

partes. Na primeira, um prólogo – talvez o mais extenso da literatura brasileira contemporânea – onde a filha de Berenice recebe a casa da mãe de herança. No

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SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 15, n. 29, p. 29-37, 2º sem. 2011 armário, dentro da caixa de sapatos, encontra nove fitas cassete. A personagem decide então transcrever as fitas e transformá-las em um romance. A segunda e a terceira parte são as transcrições dessas fitas. A narradora insere notas de rodapé fundindo o gênero acadêmico com a narrativa ficcional, recurso que deixa presente a sua voz entremeada na voz de sua mãe. A filha monta os retalhos da mãe, mas ainda não tem visão do todo, do inteiro. No desfecho do romance, uma misteriosa carta para a autora empírica surge, ainda tentando alinhavar o manto/mosaico de Berenice.

Em nove fitas cassete tece-se o discurso de Berenice no romance O manto. Quem o apresenta é a sua filha. O número nove tinha valor ritualístico na Grécia Antiga. No Hino homérico a Deméter (2003) a deusa da agricultura ruma mundo a fora durante nove dias à procura da filha Perséfone. Sabe-se que Leto sofre nove dias e nove noites as dores do parto e parteja Apolo e Ártemis escondida em uma caverna. As nove Musas nascem de Mnemósina, a memória, após essa deusa unir-se a Zeus por nove noites. Na Teogonia (1991) de Hesíodo existe a informação que uma bigorna de ferro levaria nove dias e nove noites para cair do céu até a terra. A mesma bigorna levaria o mesmo tempo para cair da terra até o submundo. Nove anos é o tempo que um deus é punido quando jura falsamente perante as águas do Estige. Emblematicamente nove meses é o tempo da gestação humana. Por ser o último da série dos algarismos simples, o nove anuncia o fim de um ciclo e o início de um novo, simbolizando a busca que alcança o objetivo.

Confronta-se, aqui, o ato de tecer das protagonistas. Curioso notar que rapsódia deriva de ραπτω (rhapto) significando coser, tramar, urdir. O exercício do aedo muito lembra a ação de Penélope. A rainha desfazia o já contado para recontar. Pretendente algum percebera que estava sendo enganado pela narrativa. Tecer e narrar parecem ter a mesma implicação. O urdume enganava, assim como o discurso, como a narrativa ficcional, um retrato do referente que muitas vezes expõe muito mais a realidade. A habilidade de dominar esse discurso é o grande talento da heroína. Alegoricamente pode-se considerar a tela como sendo a representação do argumento, um discurso argumentado, sutilmente tecido, dialeticamente adiando o intuito dos pretendentes. Penélope tem o dom do discurso, sendo assim o dom de iludir.

Nos primórdios da escrita, os escribas escreviam seus textos em pedaços de tecido, daí o vocábulo latino textere significar coisa tecida, algo a se tecer, posto em tecido. Obviamente a aproximação entre discurso e tessitura deve-se a essa base etimológica. Um estudo mais aprofundado do nome Penélope revela que a estrutura πηνη (pene), termo grego para lançadeira ou naveta da roca, ou até

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mesmo, fio de lã, tecido, pano, figura como o radical em Πηνελόπεια (penelopeia) assim como em outras declinações. Esse material encontra-se nas rocas da era micênica e figurava em quase todos os lares. Jenny Strauss Clay lembra que os nomes próprios dos gregos têm significados bem transparentes. Considerando tal afirmativa, teríamos algo parecido com: Ação-do-fio, Tecer-da-lançadeira ou Fiar-de-lã como significado do nome Penélope. A etimologia mais aceita, no entanto, entende que Penélope deriva de πηνέλοψ(penélopsi) uma espécie de pato selvagem. Sendo a rainha de Ítaca filha de uma Náiade, associá-la à ave aquática teria sentido. Dídimo Chalcenterus nos lembra que o nome original de Penélope era Ameirace, Arnacia, Arnaea ou Nauplia. Os pais rejeitaram a infante e a arremessaram no mar, onde ficou a deriva e fora alimentada por aves marinhas, dando origem ao nome da futura rainha de Ítaca. A associação com o pato causa ambiguidade. Há certa exuberância no pato, ao mesmo tempo em que há, também, certo desleixo, fator que ajuda a confirmar um lado mais enigmático de Penélope.

Penélope demiurgicamente refaz o que enreda, tendo, nesse caso, como autora e tecelã, mais domínio do tecido que as próprias Moiras. Tanto que, de modo divinal, Penélope mantém Ítaca em uma letargia quase mítica por cerca de quatro anos. Tudo com a habilidade de tecer, o domínio do discurso. Entende-se que Penélope transcende as Musas1 e as Moiras, a memória e o destino, por dominar

o fio da meada, o ponto crux da narrativa épica. A etimologia da palavra enredo também é bastante marcante, remetendo-nos ao ato original de enredar, fazer a rede e seus pontos. Alegorizar a ação de tecer de Penélope com o ato de discursar parece-me bem plausível, ao contrário do que W.B. Stanford (1996) pensa. O helenista deixa claro a estranheza e as inaplicabilidades das leituras alegóricas na Odisséia de um modo geral. A tela era desfeita durante a noite. Fato muito curioso, pois os pretendentes não tinham acesso ao gineceu. Estudiosos entendem que Penélope já estava ciente da possível traição de algumas servas que tinham se mancomunado com os pretendentes e a única maneira de manter o ardil era desfazendo o bordado a noite. No entanto, os atos de fazer e desfazer são partes inerentes da construção narrativa. Além de ludibriar os pretendentes, existe um estímulo de sempre se reinventar. Penélope é sempre lembrada por certa placidez, languidez, passividade e fidelidade. Certas estereotipias não correspondem ao verdadeiro caráter da personagem, geralmente descrita como arguta e sensata.

Provavelmente a tela de Penélope continha um tema. Podemos inferir tal fato baseando-nos na cena de Helena tecendo na Ilíada. “Tecia uma urdidura, cor de

1 - As musas são: Calíope(Poesia Épica), Clio (História); Euterpe (Flauta e Tragédia); Melpomene (Lira e Tragédia) Terpsícore (Dança); Erato (Música); Polímnia (Dança); Urânia (Astronomia); Talia (Comédia).

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SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 15, n. 29, p. 29-37, 2º sem. 2011 pórfiro, ampla, dupla trama. Bordava nela os muitos prélios que os doma-corcéis Troicos e os Aqueus de veste brônzea à discrição de Ares por ela pugnavam.” (Ilíada, Canto III: v. 125-8) Não raro sudários e mortalhas traziam bordados temas relacionados a algum feito heróico. Mesmo não mencionado nos versos da

Odisséia, podemos supor dois temas possíveis. Como se tratava de um presente

para Laertes, a trama poderia girar em torno da Argonautica, aventura em que participou o pai de Odisseu, ou, mais provável, Penélope tecia as aventuras do próprio marido, ou seja, o conteúdo da própria Odisséia. Notamos que ambos os temas são metatextuais. Se se considerar, por exemplo, que o tema da tela seja a própria Odisséia, Penélope participa, juntamente com o aedo, de todo o contar épico. No entanto, ela deixa em aberto o que conta, pois os seus pontos são desfeitos e refeitos. Esse faz e desfaz da história à revelia ainda é mais sofisticado que a ação de recitar. Metáfora clara de que a escrita pode ter as artimanhas da fala. O tecido se sobrepõe à memória.

Enquanto a memória é um faz e desfaz contínuo na Odisséia, em O manto, ela é construída. A filha nunca havia conhecido a mãe. As fitas com registro de voz são a memória materna. Quem organiza o material mnemônico é a filha e essa escolhe o gênero romance para montar uma memória de sua mãe. Ela mesma diz que: “Eu tinha em mãos um romance, e não tinha. Invertida a perspectiva, era ele que me tinha.” (TIBURI, 2009, p. 135).

Como a própria autora lembra no subtítulo do livro: “Ornitomance das Berenices”, a hibridez do gênero permite que seja “tudo” e “nada” ao mesmo tempo. Algo sem lugar ou definição. Temos a possibilidade da memória e a total ausência no mesmo espaço. O romance dá conta dessa variedade. As vozes das fitas já se perdiam. A narradora esclarece que: “a voz, com todo o seu poder de impacto, não era suficiente para explicar-se, nem para guardar o conteúdo de que era dito.” (TIBURI, 2009, p. 134).

Explicações sobre o exercício de construção romanesco apresentam-se durante toda a narrativa, transformando O manto em grande reflexão metatextual:

Tratava-se, mais exatamente, de um romance, o inespecífico gênero literário que até onde pude entender, depende da liberdade de quem escreve. Muito aos poucos fui percebendo que dependia da liberdade de quem ouve a história, no caso, também de quem faz a leitura. (TIBURI, 2009, p.78)

Para a narradora, a fluidez do entendimento do que seja romance talvez seja a única maneira de alinhavar a voz da mãe ausente. Uma tessitura em aberto

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para ter uma memória que não viveu. “Que o enredamento — o meu pânico do enforcamento, ao qual me dirigia sem saída não se tornou menor por isso — possuía o enredo inteiro.” (TIBURI, 2009, p.78).

O jogo intertextual com a Odisséia continua, desta vez, com alusões mais específicas. Na terceira parte: “Livro à noite ou Livro da Urdidura”, Penélope é diretamente citada na voz de Berenice e transcrita pela narradora. A voz usa a rainha de Ítaca como uma referência de sua própria condição: “Que quer a Berenice que não descansa seus olhos, Penélope impotente diante da destruição, Clitemnestra disfarçada em sua dor? Que esperar?” (TIBURI, 2009, p.518).

Nas páginas finais do romance é que surgem as tessituras intertextuais mais elaboradas com os versos homéricos. Berenice confronta as primas micênico-espartanas, uma, arquétipo da mulher vulnerável e vingativa, a outra da fidelidade e complacência. Habilmente a rede intertextual se tece. Coladas nas costas uma da outra, temos Clitemnestra urdindo o manto para usar como uma arma contra Agamêmnon. Cada ponto, cada tropo, tinha essa finalidade. Noite chega, é a vez de Penélope com seu sensato e ardiloso ato de desenredar. Uma oposta à outra, mas análogas ao mesmo tempo:

à noite inverteu a posição que ocupava durante o dia. Clitemnestra em suas costas grita que cesse de desmanchar o manto, toda a sua história se aniquila diante do gesto da Penélope. Durante o dia, ela tem a chance de refazer o que a outra destruiu. Um, eco da outra, enfastia-se com a sina que lhe foi reservada. Sentem o mesmo ódio ao mesmo tédio, nem redenção, nem espera lhes convém. (TIBURI, 2009, p.576-577)

Odisséia inicia-se com a comparação entre a casa de Micenas e a casa de

Ítaca. Zeus dá exemplo de um mundo que ruiu por causa da falta de bom senso dos mortais. Por causa da áte, Clitemnestra se alia a Egisto, filho de Tiestes e ambos assassinam Agamêmnon. A rainha de Micenas transformou-se em uma espécie de representação da insensatez e da ira. Já Ítaca mantém-se em seu estado mítico devido a uma atitude contrária da de Clitemnestra. Penélope é o oposto, a sensatez ao invés da vendeta. Duas heroínas opostas, mas com autênticas tessituras. Berenice é uma mescla das duas. A sua tessitura cromada e magnética é um misto de passionalidade e juízo racional. É na imaginação de Berenice que as duas rainhas se colam. A ávida Clitemnestra tece o manto com a intenção de usá-lo como uma arma. Com um grito desesperador reprime Penélope, pois essa destece, desenreda, desconcerta. Metaforicamente representa o que o gênero romance faz.

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SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 15, n. 29, p. 29-37, 2º sem. 2011 Constrói-se para desconstruir. Faz-se para em seguida desfazer-se. Penélope é a rainha do manto, assim do romance. Lembra Berenice.

Os helênicos também alegorizavam o destino através da tessitura. As Moiras2

2 - Na mitologia grega três entidades primordiais eram associadas ao destino, à Moira (Μοῖραι). Em caverna escura e isolada, viviam as Moiras, também chamadas de Parcas e associadas às Queres. De acordo com Hesíodo, na Teogonia, elas eram três irmãs, filhas da Nýx, a Noite (Νύξ), uma das forças mais antigas do universo. Outras tradições entendem que são filhas de Zeus e Têmis. Sérias e quietas, as Moiras provocavam medo em mortais e tinham o respeito dos deuses, pois eram as responsáveis pelo destino de todos, sendo que nem mesmo o poderoso Zeus atrevia-se a interferir. Cloto (Κλωθώ) era a fiandeira. Seu nome deriva de klothein (κλοθειν): “fiar e fazer andar a roda.” Aparenta ser a menos velha das três. Sentada no chão, ela ficava trançando cuidadosamente os fios do destino de cada criatura, tão logo nascesse. Amores, amizades, família, encontros e desencontros, tudo planejado por ela. Depois de terminar sua parte, passava os fios para as mãos de Láquesis (Λάχεσις), a mediadora. O nome dessa Moira deriva do verbo lankhánein (λανχάνειν): “sortear, tiro a sorte”. (BRANDÃO, 1997, p. 141) Ela examinava tudo e decidia qual a melhor hora em que todas as coisas deveriam acontecer. Depois, os fios chegavam às mãos de Átropos (Άτροπος), a cortadora. Etimologicamente o nome deriva de tropein(τροπειν) ou troopoo: “voltar”, sendo que o a - alfa privativo -, tem o significado de não, de negativo ou oposto. Então, tem-se: “a que não volta atrás ou inflexível.” (BRANDÃO, 1997, p. 141) Ela avaliava cada vida e determinava, com justiça, o dia em que deveria morrer, cortando o fio trabalhado pelas irmãs. Aparecia como sendo a mais idosa das três, trajando púrpuro e negro, portando pequena foice ou tesoura. Hesíodo também menciona o Destino (Μορος), entidade primordial, filho do Caos e de Nýx. Misterioso e poderoso, seus decretos gravados em bronze poderiam ser adiados, mas nunca anulados pelos deuses. É representado, na forma antropomórfica, como cego e soturno, sendo tão obscuro e sombrio quanto a sua progenitora. Alguns mitólogos assinalam que as Queres (Κηρες) são entidades distintas das Moiras. Na verdade, são emissárias das Parcas. Aparecem como entidades horrendas, aladas e com dentes compridos e pontudos. Dilaceram e bebem o sangue dos cadáveres antes de arrastar-lhes a alma para o Hades. Abrem o caminho para outro emissário das Moiras, Tânatos (Θάνατος), ceifar a vida da vítima. É comum as Queres e Tânatos dividirem um cortejo, onde as criaturas aladas aparecem cercando um ser de rosto seco, pálido, desfeito e de órbitas ocas, coberto por um véu e com uma foice na mão. Possuía, ainda, um coração de ferro e entranhas de bronze. No entanto, principalmente na

Ilíada, não aparece em sua forma antropomórfica. Importante, no entanto, é destacar o estudo feito

por Junito Brandão, no primeiro volume de sua série intitulada Mitologia. Remetendo-se à escatologia presente na Ilíada, o estudioso clássico esclarece que nos poemas homéricos a palavra Moira significa quinhão, metade, parte ou lote. Há um sinônimo, um equivalente ao vocábulo em arcado-cipriota (um dos dialetos de Homero): Aîsa(Αισα), associado especificamente ao ato de fiar. Por não terem sido antropomorfizadas em nenhum momento do épico, tem-se a impressão que as Moiras pairam soberanas, acima dos deuses e dos homens, e suas decisões são irrevogáveis. Tal ideia é questionada por alguns helenistas. Acredita-se que, nos épicos homéricos, a Moira se confunde com a vontade dos deuses, principalmente com a vontade de Zeus. Em vários momentos tem-se a impressão de que Zeus é nitidamente usado como equivalente à Moira ou ao Fado, como observa Junito Brandão: “O que se pode concluir, salvo engano, é que, por vezes, Zeus se transforma em executor das decisões da Moîra, parecendo confundir-se com a mesma.” (BRANDÃO, 1999, p. 142).

A ideia de uma Moira agindo como o destino de todos os mortais se desenvolveu de várias maneiras. Na Antigüidade Clássica, o destino se projetou na representação de três fiandeiras, pois a concepção de vida e morte parece ser inerente à função de fiar. Na obra de Homero, associa-se o fio à vida humana, simbologia significativa nos versos do poeta. O nascimento tem muito a ver com a função de Moira. Frequentemente Cloto, Láquesis e Átropos aparecem junto a Ilítia, deusa que ajuda e zela pelos partos. Se se considerar a origem latina, Parca vem do verbo parere, “parir, dar à luz”, o que ajuda a aproximar as Moiras do fenômeno do nascimento. Nota-se que a entidade Tique (Τυκη), a Sorte, o Acaso, muito se assemelha às Moiras. Na mitologia romana é chamada de Fortuna: “a que ‘pilota’ a vida dos homens”, ou: “a deusa que presidia a todos os acontecimentos, e distribuía os bens e os males conforme seu capricho.” (SPALDING, 1965, p. 108) A Sorte, assim como o Destino, era representada como sendo cega. Fortuna era vista como uma mulher calva, cega ou com um pano cobrindo os olhos.

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teciam a vida de cada mortal e ficava a cargo delas a extensão e o término do bordado. As Moiras, porém, não tinham o poder de desfazer e refazer o tecido. O que está fiado, fiado está. Penélope e o romance subvertem a ação da tessitura com um fim. Tem-se agora a tessitura como um meio.

No prólogo, a narradora explica os motivos de ter escrito o livro. Escrever na verdade não é o termo, transcrever. Romance feito com a voz de outra. Construir uma memória sem a presença, somente com a voz. O teor das fitas é a tessitura. Esquizofrênica voz de uma mãe que é enredada pela filha. Mãe que se registrou na clausura, que agora é reescrita pela filha. O enredo tem uma mãe ausente. Curiosamente a voz não é uma presença, a filha só soube que a mãe existia após sua morte, foi criada por outra mãe, pela avó. Herdou somente uma velha casa de madeira, objetos sem valor e nove fitas cassete. O teor das fitas trouxe Berenice, mãe que a filha conheceu através da voz, manifestação parcial, pulsão que invoca, em fitas antigas – gravadas dentro de um guarda-roupa.

Penélope, então, é a ur-tecelã do romance. As Berenices se espelham nela e Clitemnestra quer que a história tenha um fim, quer que o manto tenha propósito. N’O manto Penélope cede: “Penélope generosamente dá O Manto a Clitemnestra.” (TIBURI, 2009, p. 621) Tiburi dá solução para sua narrativa insolucionável, como a serva que delata Penélope para os pretendentes. Eventualmente, um romancista tem de terminar seu romance. Mas, para Penélope, basta fazer para depois desfazer e refazer...

Abstract

This article analyzes the intertextual relations between O manto by Marcia Tiburi and Homer’s Odyssey. Through a sophisticated fictional exercise, the contemporary Brazilian author constructs dense metaphors about narrative elaboration, naming Penelope’s act of looming in the epic an ur-texture. In the fragmented recording of Berenice, protagonist of Tiburi’s novel, we see the phenomenal doing and undoing of the text, perpetuating writing as an essential act of renewal and reconstruction, act that was inaugurated by Penelope in the Odyssey.

Key words: Contemporary Novel; Intertextuality; Epic; Narratology, Odyssey.

Na maioria das vezes, entidades relacionadas ao destino são representadas com imagens femininas, já que o ato de tecer, urdir ou fiar ficava a cargo das mulheres. A influência helênica fez com que outras entidades femininas fossem associadas ao destino, em diversas culturas e sociedades.

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