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O LIBER IURATUS: A MAGIA SOB O TESTEMUNHO DOS
PERSEGUIDOS
THE LIBER IURATUS: MAGIC UNDER THE TESTIMONY OF THE
PERSECUTED
Odir Mauro da Cunha Fontoura
Universidade Federal do Rio Grande do Sul odirfontoura@gmail.com
Resumo: Este artigo tem por objetivo tratar da
magia na Idade Média a partir do Liber iuratus, um manual do começo do século XIV que pretende defender e legitimar a arte mágica (ars magica). Será analisado sobretudo o Prólogo deste tratado: por um lado, neste texto é construída uma relação de alteridade dos praticantes dessa arte em relação à instituição da Igreja (ecclesia), que é retratada como influenciada pelos demônios e injusta na sua perseguição aos magos. Por outro, o Prólogo também aponta para uma série de normas ou estratégias que deveriam ser assumidas para defender a magia da perseguição. A conclusão deste estudo aponta para a possibilidade de trabalhar o conceito de magia no medievo como um conceito em disputa, que foi instrumentalizado por diferentes agentes a fim de construir diferentes legitimidades e diferentes ortodoxias no âmbito da expressão religiosa ou da teologia; mas também instrumentalizado em um sentido moral e político.
Palavras-chave: Magia; Inquisição;
Perseguição.
Abstract: This article aims to deal with magic in
the Middle Ages from the Liber iuratus, a manual from the early 14th century that intended to defend and legitimize the magical art (ars magica). The treatise will analyze mainly the Prologue of the book: on the one hand, this text builds a relationship of otherness among practitioners of this art in relation to the institution of the Church (ecclesia), which is portrayed as influenced by demons and unfair in his persecution of the magicians. On the other hand, the Prologue also points to a series of norms or strategies that should be adopted to defend the magic of persecution. The conclusion of this study points to the possibility of working with the concept of magic in the Middle Ages as a concept in dispute, which was instrumentalized by different agents in order to build other kinds of legitimacies and different orthodoxies within the scope of religious expression or theology; but also instrumentalized in a moral and political sense.
Keywords: Magic; Inquisition; Persecution.
Introdução
Tradicionalmente, os debates historiográficos que giram em torno das práticas consideradas “mágicas” na Idade Média se desenvolvem a partir das fontes normativas ou jurídicas que visaram às condenações da magia. Trata-se de uma escolha justificada, uma vez que esses textos correspondem a uma parte significativa da documentação que chegou até nós. No entanto, é preciso ter em mente que esses documentos, se são reveladores da ortodoxia, referem-se apenas a
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uma ortodoxia ou a uma expressão (ou um conjunto de expressões) daquilo que foi
considerado correto ou legítimo. Sabemos que a Igreja medieval foi uma instituição que abarcou muitos embates e disputas internamente; uma análise sobre os diferentes posicionamentos que foram tomados por diferentes lugares da “ortodoxia” a respeito da questão da magia, por exemplo, alerta para essa diversidade.
Alguns desses posicionamentos podem ser encontrados, entre os penitenciais da Alta Idade Média, nos tratados que testemunham o renascimento do direito romano, como o Decreto de Graciano, da primeira metade do século XII, e, de forma mais detalhada, nos manuais de inquisidores a partir do século XIII. Podemos encontrar, nesses documentos, ampla adesão ao entendimento de que as operações mágicas correspondiam a alguma forma de envolvimento com os demônios, pressupondo uma espécie de desafio aos mandamentos divinos. Porém, não houve consenso a respeito de como os praticantes dessas artes demoníacas deveriam ser tratados: as respostas variam no tempo e no espaço e vão desde a imposição de jejuns e orações, passando pela prisão perpétua, ocasionalmente chegando até a pena de morte.1
O estudo dessas fontes pode revelar a diversidade dos instrumentos utilizados pela Igreja no seu esforço disciplinador, seja no âmbito da correção e da
1 Para autores como Norman Cohn e Jeffrey Russel, o procedimento inquisitorial inovou, dito
respectivamente, com uma abordagem “muito mais sinistra”, repercutindo em punições “mais pesadas” ao longo do tempo. Mais recentemente, Jennifer Deane explicou o avanço dessa hostilidade nos termos de uma “virada” (turning point) que teria se dado apenas no começo do século XII. Essa diversidade de tratativas, no entanto, não pode ser interpretada nos termos de uma evolução cronológica em direção a um possível agravamento do crime de magia até o fim da Idade Média. Uma análise detalhada dos penitenciais da Alta Idade Média, por exemplo, pode apontar para evidências de que enquadramentos classificados como “pesados”, como a prisão perpétua, por exemplo, já eram definidos antes mesmo da existência dos inquisidores. Ver: COHN, N. Los Demonios Familiares de
Europa. Trad. Oscar Cortés Conde. Madrid: Alianza, 1980. p. 213. Na tradução: “mucho más siniestra”;
RUSSEL, J. F. Witchcraft in the Middle Ages. Ithaca; London: Cornell University Press, 1972. p. 149. No original: “heavier punishments”; DEANE, J. K. Lawyer popes, Mendicant Preachers and New Inquisitorial Procedures. In: Idem. A History of Medieval Heresy and Inquisition. Lanham et al: Rowman & Littlefield, 2011. p. 88; um aprofundamento da discussão sobre a diversidade do tratamento da magia a partir dos penitenciais pode ser encontrado em: FONTOURA, O. “Uma história de condenações: das preocupações pastorais às iniciativas papais em direção à magia clerical”. In: Idem. O Rebanho Infectado: Inquisição e clérigos e praticantes de magia no século XIV. Tese (Doutorado em História). 272f. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020. p. 68-78.
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emenda ou no da punição propriamente dita.2 Essa literatura normativa pode, ainda,
apontar para a intimidade das esferas que hoje separamos e chamamos de “religião” e “direito”, sobretudo no processo de transformação da magia em heresia, que ocorreu de forma definitiva na primeira metade do século XIV.3
No entanto, sabemos que, contrariamente à rigidez das tratativas prescritas em boa parte dessa literatura, a definição ou a imposição das normas pressupõe frequentemente um jogo de poder ou um espaço de disputa que nem sempre aparece — pelo menos não de forma explícita — nos textos normativos. Estudos de casos, de maneira geral, já têm evidenciado a maleabilidade das normas medievais e suas negociações, ou, em outras palavras, têm apontado para os limites do poder autoritário ou coercitivo.4 Dito de outra forma, resta provar até que ponto as
prescrições que condenavam a magia eram seguidas na prática.
No caso específico da magia, sabemos que o que escreveram seus perseguidores nos ajudam apenas em parte no esforço de entender como as práticas mágicas eram encaradas no medievo. Outras interpretações podem ser apontadas a partir do que escreveram os perseguidos a respeito das suas próprias crenças e ritualísticas: a exemplo de uma literatura pouco explorada pela historiografia até recentemente,5 o Liber iuratus Honorii, ou Livro jurado de Honório,6 do começo do
2 Sobre a diferença entre a correctio e a sanctio do direito romano, ver, por exemplo: THÉRY-ASTRUC,
J. Atrocitas/Enormitas. Esbozo para una historia de la categoria de ‘enormidad’ o ‘crimen enorme’ de la Edad Media a la época moderna. In: DELL’ECINE, E.; MICELI, P.; MORIN, A. (Org.). Artificios Pasados:
Nociones del derecho medieval. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 2017. p. 136-137.
3 IRIBARREN, I. From black magic to heresy: A doctrinal leap in the Pontificate of John XXII. The
American Society of Church History. v. 76, n. 1, 2007. p. 32-60.
4 GUAVARD, C. et al. “Les normes”. In: SCHMITT, J.-C.; OEXLE, O. G. (Org.). Les Tendances Actuelles de
l’Histoire du Moyen Âge en France et en Allemagne. Actes des colloques de Sèvres (1997) et Göttingen (1998) organizés par le Centre National de la Recherche Scientifique et le Max-Planck-Institut für Geschichte. Paris: Publications de la Sorbonne, 2002. p. 461-492.
5 Quanto ao estudo específico dos manuais de magia, Julien Véronèse, em 2014, disse se tratar de um
campo de pesquisa relativamente recente. Em 2017, Richard Kieckhefer assumiu que não haveria exagero em dizer que estávamos entrando em uma nova era desses estudos. Ver: VÈRONESE, J. La parole efficace dans la magie rituelle médievale (XIIe-XVe siècle). In: BÉRIOU, N. et al. (Org.). Le
Pouvoir des mots au Moyen Âge. Turnhout: Brepols, 2014. p. 409; KIECKHEFER, R. Angel Magic and
the Cult of Angels in the Later Middle Ages. In: KALLENSTRUP, L. N.; TOIVO, R. M. (Ed.). Contesting
Orthodoxy in Medieval and Early Modern Europe: Heresy, Magic and Witchcraft. London et al: Palgrave
Macmillan, 2017. p. 74.
6 HEDEGARD, G. (Ed). Liber Iuratus Honorii. A Critical Edition of the Latin Version of the Sworn Book
of Honorius. Acta Universitatis Stockholmiensis. Studia Latina Stockholmiensia, 48. Stockholm;
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século XIV, pode nos ajudar nesse sentido. Por um lado, esse tratado evidencia algumas das resistências em relação ao entendimento “ortodoxo” (ou de um tipo de ortodoxia) de que as práticas mágicas pressupunham a submissão aos demônios ou eram desagradáveis a Deus. Por outro, ainda sinaliza para normas, juramentos e fidelidades alternativas dos autodeclarados “magos” que ignoram as determinações da Igreja, descaracterizando essa instituição da ecclesia como referência moral ao retratá-la como perversa e como inimiga. Em outras palavras, aqui pretendemos tratar de algumas das normas que envolvem a magia no começo do século XIV, não apenas sob o viés dos seus perseguidores, mas sobretudo a partir do que disseram os perseguidos sobre suas próprias crenças e práticas.
A ortodoxia e a magia como um conceito em disputa
Se quisermos definir o que foi a “magia” na Idade Média, precisamos levar em consideração, em primeiro lugar, que o termo latino magia foi empregado no medievo de modo a dar conta de diferentes práticas e acabou atribuindo entendimentos diversos a essas operações. Sobretudo no seu sentido pejorativo, foram enquadradas como “mágicas”, por exemplo, operações moralmente ambíguas, como as que visavam adivinhar o futuro por meio da observação dos astros ou as que faziam uso de amuletos ou ligaduras para provocar a saúde ou afastar as doenças. Com mais facilidade, foram classificadas como magia as operações mais declaradamente maléficas, como a feitura de estatuetas de cera que, com a intenção de prejudicar os inimigos que serviam de modelo a essas imagens, eram espetadas ou quebradas, o que, em tese, provocaria um prejuízo a distância nesses adversários.
Algumas interpretações diminuem o raio de alcance da palavra “magia”: Roger Bacon (c. 1219-1292), por exemplo, afirmou que nem todo amuleto ou ligadura corresponderia a uma operação mágica. Ele acreditava que um pergaminho contendo os nomes dos três reis magos poderia ser usado, preso ao pescoço, para curar a epilepsia (morbo caduco), e isso nada tinha de mágico, uma vez que a força
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dessas palavras vinha do mundo espiritual e, mais especificamente, de Deus.7
Alberto Magno (c. 1200-1280), por outro lado, atribuindo um sentido positivo à magia, ao defender a existência de uma magia natural (magica naturalis), alargou a abrangência do conceito. Explicou que o manuseio de amuletos visando prender a força ou energia (vis) dos planetas ou das estrelas correspondia a uma forma de magia autorizada e legítima, uma vez que não lidava com as forças espirituais, mas com as da natureza, da “física”.8 Ambos os entendimentos vão em uma mesma
direção ao reservar àquelas práticas de caráter devocional ou religioso e que de alguma maneira envolviam o contato explícito com os demônios o sentido pejorativo, pecaminoso e proibido da magia “demoníaca”.
Os testemunhos dos autodeclarados magos, ou magi, por sua vez, apontam para outros juízos de valor a respeito dessa arte. Esses operadores são frequentemente retratados como exemplos de retidão: no caso do Liber iuratus, precisam seguir uma rotina árdua de orações, meditações, abstinência e doação de esmolas para poder ter acesso às benesses da “arte mágica” (ars magica), chamadas honrosamente de “sacramentos”, ou sacramenta. Nesse manual, a própria palavra
magia é ressignificada em relação aos textos que a condenam, de modo a disputar
uma outra noção de ortodoxia quando explicada em termos pretensamente etimológicos: “Não se deve acreditar que o nome ‘mago’ deva implicar algo ruim”, é apontado no texto. “Por exemplo, ‘mago’ quer dizer filósofo em grego, escriba em hebraico e sábio em latim. É dito, então, que a arte mágica é a arte dos magos, que são os ‘sábios’”.9 Para o autor do Liber iuratus, a magia é, em resumo, a ciência dos
sábios (sciencia sapientum) realizada pelo homem sábio (homo sapiens) “que por meio disso conhece todo o presente, passado e futuro”.10 Trata-se de um testemunho
significativo que vai no sentido contrário ao da literatura normativa citada
7 BRIDGES, J. H. (Ed.). The Opus Majus of Roger Bacon. v. 3. Frankfurt: Minerva, 1964. C. XIV (Lê-se
Capitulum XIV). p. 123.
8 D. Alberti Magni Ratisbonensis Episcopi. Mineralium libri quinque. In: Idem. Opera Omnia. Ed.
Augusti Borgnet. t. 15. Parisiis: 1890. L. II, t. III, c. I. p. 48a. (Lê-se Liber II, tractatus III, caput I, página 48, coluna “a”).
9 Liber iuratus... Op. Cit. p. 66. No original: “non credendum est, quod in hoc nomine ‘magus’ debeat
malum includi. Nam magus per se philosophus Grece, Hebraice scriba, Latine sapiens dicitur. Sic ars magica a ‘magos’ dicitur, quod est ‘sapiens’”.
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anteriormente — a exemplo dos penitenciais, dos tratados de direito ou dos manuais de inquisidores —, o qual frequentemente circunscreve a magia e seus operadores à esfera do desvio e do pecado.
Uma diferença significativa precisamente do Liber iuratus em relação aos tratados de autores mais renomados, como Roger Bacon ou Alberto Magno, é a característica abertamente transgressora deste primeiro em relação à ecclesia. Isso aparece em diferentes graus, de pelo menos três maneiras: 1) no Prólogo do manual, sobretudo, há uma caracterização depreciativa da Igreja enquanto instituição política. São atacadas sua organização e as normas que visam, por exemplo, à condenação dos magos à morte. 2) Há oposição também em relação a alguns ensinamentos teológicos da Igreja, como os que tratam, por exemplo, da natureza dos anjos. Em mais de um momento, o autor do Liber iuratus pretende corrigir os ensinamentos da ecclesia e explica suas razões. 3) Em resposta à declarada perseguição imposta pela Igreja em direção aos praticantes da magia, é listada, no Prólogo do manual, uma série de normas ou estratégias de segredo e fidelidade. Essas prescrições visam à proteção, à manutenção e à transmissão da ars magica a despeito das intenções dessa ecclesia, que é construída no Livro jurado como uma instituição corrompida e injusta na sua perseguição aos magos.
É a partir dessa alteridade, que faz da ecclesia um “outro” fajuto e projeta nos magos a luz da legitimidade, da honradez e da ortodoxia, que o Liber iuratus reivindica um entendimento elogioso não apenas da magia, mas, de forma mais ampla, de outra ortodoxia que não é a mesma reivindicada pelos textos que condenam os recursos mágicos.
O Liber iuratus como um testemunho dos perseguidos
Os manuscritos mais antigos do Liber iuratus são do começo do século XIV. Pelo menos duas tradições textuais são conhecidas desse texto. Uma delas aparece na Suma sacre magice, ou na Suma da magia sagrada, um compêndio atribuído a Berengario Ganell da década de 1340 que inclui, dentre outros textos de magia, o
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1324 e 1344 desde o norte da Catalunha até o sul da França.11 Outra versão do texto
aparece em pelo menos dois manuscritos latinos, provavelmente de origem britânica, também do início do século XIV. Esta segunda tradição textual foi editada por Gosta Hedegard e serviu de base para esta discussão.12
O Liber iuratus Honorii, ou Livro jurado de Honório, recebe esse nome — segundo a narrativa do Prólogo do tratado, analisado a seguir — em razão do juramento de segredo e fidelidade que o leitor ou o operador deveria assumir ao receber o texto das mãos do seu mestre. A figura de Honório é possivelmente fictícia: Hedegard assume que honorius pode ser um trocadilho para “honorável” ou “honesto”.13 A atribuição dos tratados de magia a autores lendários como Hermes
ou Mercúrio, ou mesmo a personagens antiquíssimos como Salomão ou Aristóteles, foi um recurso recorrente no final da Idade Média. Isso é explicado, pelo menos em parte, como uma forma de proteger da censura ou da perseguição os verdadeiros autores ou compiladores desses textos, dado o caráter abertamente maléfico ou explicitamente demoníaco dos rituais que ali poderiam ser ensinados.
Uma parte significativa do Liber iuratus é dedicada a ensinar o praticante a alcançar a visão beatífica, ou a visão divina (visio divina), o que significa, em outras palavras, levar o operador à presença do próprio Deus. Esse êxito depende de uma série de práticas devocionais desenvolvida ao longo de várias semanas, a qual envolve jejum, orações e obras de caridade. Dentre as outras possibilidades apontadas pelo manual estão a capacidade de adivinhar o futuro (de futuris sciendis), a de reconhecer os espíritos do inferno (de cognicione infernorum spirituum), a de provocar tempestades (de tonitruo provocando et pluvia facienda), a de descobrir ladrões e os bens roubados (de fure et furto revocando) e também a habilidade de incitar o desejo sexual nas mulheres (de mulieribus habendis ad libitum). Essas ambições também prescindem de um estrito regime de purificação, uma vez que o poder para realizar tais ações vem diretamente de Deus, sendo delegado ao mago
11 MESLER, K. The Liber iuratus Honorii and the Christian Reception of Angel Magic. In: FANGER, C.
(Ed.). Invoking Angels: Theurgic Ideas and Practices, Thirteenth to Sixteenth Centuries. Pennsylvania: Pennsylvania University Press, 2010. p. 119.
12 HEDEGARD, G. (Ed.). Liber Iuratus... Op. Cit. 13 Ibidem. p. 11.
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por meio dos anjos, que servem como intermediários do Criador.
Não há contradição moral, para o leitor/operador do Liber iuratus, entre as ambições espirituais e as que evocam algum tipo de controle sobre as coisas terrenas. A natureza ambígua dessas operações, que ora se dirigem aos demônios, ora aos anjos ou ao próprio Deus, não é uma novidade do Liber iuratus, mas um elemento recorrente na literatura mágica medieval. Incompreensível, por sua vez, ao olhar dos defensores de uma ortodoxia — que eventualmente reconheceram ler o que escreveram os magos14 —, toda essa diversidade de intenções e recursos foi
resumida enquanto objeto de condenação.
Um texto importante15 da literatura normativa que visou a condenação da
magia, sobretudo a de tipo letrada, foi a bula publicada em 1326 ou 1327 pelo papa João XXII, Super illius specula. Esse texto pode ser entendido, se não como uma consequência direta, como, pelo menos, como em parte relacionada às preocupações do mesmo papa que, em 1320, convocou uma equipe de especialistas para decidir se a magia poderia ser considerada um tipo de heresia ou se era apenas superstição.16 Na bula de João XXII, é dito que “muitos que são cristãos apenas no
nome (…) entram em aliança com os mortos e fazem pacto com o inferno, para sacrificarem aos demônios e os adorarem”,17 o que remete a uma acusação bastante
conhecida em relação aos praticantes da magia. Uma vez que é atribuído aos inquisidores um papel de natureza pastoral (pastoralis offici), é dito que é preciso,
14 Ver, por exemplo, a explicação do inquisidor Nicolau Eimérico que, no seu Directorium inquisitorum
(1378), fala dos livretos heréticos e errôneos que leu antes de queimar, obras “condenadas por causa dos muitos erros encontrados nelas”. Nicolai Eymerici Ordinis Praed. Directorium inquisitorum (cum
commentariis Francisci Pegñae...). Romae: in aedibus Populi Romani, apud Georgium Ferarium, 1587.
Nicolai Eymerici Ordinis Praed. Directorium inquisitorum (cum commentariis Francisci Pegñae...). Romae: in aedibus Populi Romani, apud Georgium Ferarium, 1587. p. 316aE-bA. No original: “[Isti
libelli] condemnati propter multos errores in eis repertos”.
15 Importante, mas não fundador, dado que a condenação da magia é resultado de um processo lento,
e construído gradativamente desde pelo menos a Alta a Idade Média. Ver nota 1, cf supra. Ver também: PROVOST, A. Domus Diaboli. Un évêque en procès au temps de Philippe le Bel. Paris: Belin, 2010. p. 321-322.
16 BOUREAU, A. Le Pape et les Sorciers: Une consultation de Jean XXII sur la magie en 1320 (Manuscrit
B.A.V. Borghese 348). Roma: École française de Rome, 2004.
17 Bullarum Diplomatum et Privilegiorum Sanctorum Romanorum Pontificum. Taurinensis editio. t. IV.
Augustae Taurinorum: Seb. Franco, H. Fory et H. Dalmazzo Editoribus, 1859. p. 316a. No original:
“quamplures esse solo nomine christianos (...) quod cum morte foedus ineunt et pactum faciunt eum inferno, daemonibus namque immolant, hos adorant”.
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por um lado, “trazer de volta ao rebanho de Cristo as ovelhas que estão vagando por caminhos desviantes” e, por outro, “excluir do rebanho do Senhor as que estão doentes para que não adoeçam as demais”.18 Resolvendo o problema que motivou a
consulta de 1320, João XXII prescreve que “sejam impostas todas e quaisquer penas (…) que são, através do direito, devidas aos hereges”,19 o que foi determinante no
tratamento da magia como um negócio ou um affaire inquisitorial.
Fazendo menção explícita aos saberes letrados, João XXII determina:
Que ninguém tenha livros, escrituras de quaisquer tipos que contenham os erros condenáveis já mencionados, que não os tenham ou guardem ou façam estudos disso (…). Dentro de um espaço de oito dias a partir do conhecimento do nosso decreto, que se desfaçam e os queimem, integralmente e em todas as suas partes.20
O texto encerra estabelecendo não apenas a excomunhão (sententiam
excommunicationis) como punição devida aos praticantes da magia, mas também o
que chamou de penalidades mais pesadas ou mais graves (ad poenas alias graviores), se referindo provavelmente às condenações executadas pelo braço secular.
A bula Super illius specula tem sido usada como referência indireta para a datação do próprio Liber iuratus, que, sendo explícito a respeito da perseguição empreendida pela Igreja visando à condenação dos magos, não poderia ser anterior ao pontificado de João XXII (1316-1334), o primeiro papa a circunscrever as práticas mágicas às preocupações dos inquisidores.21 O que nos diz, afinal, o Liber iuratus a
respeito dessas iniciativas?
O Prólogo inicia contando que os demônios, se aproveitando da
18 Ibidem. No original: “officii oves oberrantes per devia teneamur ad caulas Christi reducere, et
excludere a grege dominico morbidas, ne alias corrumpant”.
19 Ibidem. No original: “ad infligendas poenas omnes et singulas (...), quas de iure merentur haeretici”. 20 Ibidem. p. 316b. No original: “quod nullus eorum libellos, scripturas quascumque ex praefatis
damnatis errobus quicquam continentes, habere aut tenere vel in ipsis studere praesumat (...) infra octo dierum spatium ab huiusmodi edicti nostri notitia computandum, totum et in toto et in qualibet sui abolere et comburere teneantur”.
21 HEDEGARD, G. (Ed.). Liber iuratus... Op. Cit. p. 13; MESLER, K. “The Liber iuratus...” Op. Cit. p. 15;
KIECKHEFER, R. The Devil’s Contemplatives: The Liber Iuratus, the Liber Visionum and the Christian Appropriation of Jewish Occultism. In: FANGER, C. (Ed.). Conjuring Spirits: Texts and Traditions of
Medieval Ritual Magic. Pennsylvania: Pennsylvania University Press, 1998. p. 254. Ver também nota
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debilidade ou da fraqueza dos homens (utilitatem fragilitatis humane), planejaram disseminar a hipocrisia e a inveja (ypocrisim cum invidia seminantes) dentre eles. Visaram a um grupo estratégico, a saber, “os bispos e os prelados, enraizados na soberba, [junto] ao senhor papa com os cardeais”,22 e, reunidos em concílio (in
unum), teriam chegado à seguinte conclusão, que é construída pelo autor do Liber iuratus de modo a servir de base para as réplicas que se seguirão:
A salvação que o Senhor deu ao seu povo foi convertida em danação pelos magos e pelos nigromânticos. E agora os magos (…) procedem, cegados, contra os santos estatutos da madre Igreja, e transgredem os preceitos do Senhor que dizem: ‘Não tentarás o Senhor, teu Deus, e apenas a ele servirás’. Deste modo, negando o sacrifício [que é devido apenas] a Deus, e tentando [Deus], pelos nomes do Criador, invocam os demônios e os tributam com sacrifícios, o que é contrário ao preceito do sagrado batismo.23
Por meio dessas “conclusões”, o autor do tratado demonstra conhecer as imputações recorrentemente atribuídas aos praticantes da magia. Tanto a ideia de que a magia seria uma espécie de desvio ou transgressão dos ritos legítimos estabelecidos pela Igreja quanto a acusação dos sacrifícios aos demônios ecoam, por exemplo, referências da bula Super illius specula.24 Ainda é atribuído a este suposto
concílio a acusação de que os magos “provocam todas as pessoas [a seguir] nos seus erros, e com suas ilusões maravilhosas atraem os ignorantes, alcançando, por meio disso, a danação da alma e do corpo”.25 As acusações terminam com a definição da
pena capital para os que cultivam os grãos ou as sementes dessas artes (cultoribus
seminum hujus artis), o que também ecoa as definições da bula supracitada quando
esta submete os magos ao mesmo tratamento dado aos hereges.26
22 Liber iuratus... Op. Cit. p. 60. No original: “pontifices et prelatos in superbia radicantes, dominum
papam cum cardinalibus”.
23 Ibidem. No original: “Salus quam dedit Dominus plebi sue, modo per magos et nigromanticos in
dampnationem convertitur cujuscumque. Nam et ipsi magi (…) contra statuta sancte matris ecclesie procedentes ac preceptum Dominicum transgredientes, sic dicens: ‘Non temptabis Dominum Deum tuum sed ei soli servies’, ipsi Deo sacrificium abnegando et temptando, nomina creatoris, demones invocando et eis sacrificia tribuendo, quod est contra baptismatis sacri preceptum”.
24 Ver nota 18, cf. supra.
25 Liber iuratus... Op. Cit. p. 60. No original: “prosecuntur set universum populum in suis erroribus
provocaverunt, cum suis mirificis illusionibus attrahentes ignorantes pro huiusmodi anime et corporis dampnationem optinere”.
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Na réplica das acusações, o autor do Liber iuratus insiste na ideia de que esses homens estariam influenciados ou inspirados pelo Diabo (vero Diabolo
inspirante) ao determinar essas normas, e que por isso elas seriam ilegítimas. É
afirmado ainda que “são movidos pela inveja e ansiosos para publicar a falsidade como se fosse verdade, dizendo coisas falsas e absurdas”,27 o que inverte a lógica das
acusações tradicionais movidas pela ecclesia atribuindo aos acusadores aquilo que normalmente era associado aos acusados. É explicado:
É impossível que um homem iníquo e imundo possa verdadeiramente operar a arte ou que o homem seja forçado pelos espíritos, pois, ao contrário, são estes [os espíritos] que são, contra sua vontade, compelidos a responder diante dos homens puros e realizar completamente suas vontades.28
Os “espíritos” seriam os anjos que ocupam um papel central nas operações do Liber iuratus. Nada pode ser alcançado por essa ars magica se não for por intermédio desses seres, tanto por meio do pedido ou da súplica, quando visados os anjos superiores ou celestiais; quanto pela obrigação ou pela coação dos anjos infernais (angelorum… infernorum), que são, dito de outra forma, os demônios — os quais também são anjos, mas anjos “caídos”.29
A partir da segunda metade do Prólogo, o autor do Liber iuratus aponta para estratégias de fuga da “congregação” (congregationis… manus evadere) que foram utilizadas no passado e outras que deveriam ser aplicadas, pelos leitores do tratado, em resposta à perseguição empreendida pela ecclesia. “Fizemos um concílio geral dos mestres, onde, dos 89 mestres de Nápoles, Atenas e Toledo, foi escolhido um deles, chamado Honório, filho de Euclides, mestre de Tebas”.30 Honório, para que
27 Liber iuratus... Op. Cit. p. 60. No original: “moti invidia et cupiditate sub similitudine veritatis
falsitatem publicantes quod falsum est dicere et absurdum”.
28 Ibidem. No original: “quia virum iniqum et immundum impossibile est per artem veraciter operari,
nec spiritibus aliquibus homo obligatur, sed ipsi inviti coguntur mundatis hominibus respondere et sua beneplacita penitus adimplere”.
29 Ver mais: ELLIOT, D. “On Angelic Disembodiment and the Incredible Purity of Demons”. In: Idem.
Fallen Bodies. Pollution, Sexuality, and Demonology in the Middle Ages. Pennsylvania: University of
Pennsylvania Press, 1999. p. 127-156.
30 Liber iuratus... Op. Cit. p. 60. No original: “ob hoc unum consilium fecimus magistrorum generale, in
quo ex 89 magistris a Neapoli, Athenis et Tholeto congregatis elegimus unum nomine Honorium, filium Euclidis, magistrum Thebarum”.
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trabalhasse por todos os mestres (pro nobis omnibus operari), foi imbuído da tarefa de compilar em um único volume todos os saberes da arte mágica. Isso foi realizado da seguinte maneira:
Ele, consultando o anjo chamado Hocrohel, de sete volumes da arte mágica, tomou para nós [apenas] a flor e abandonou as cascas. [A partir] destes volumes, ele extraiu 93 capítulos, e com todos os poderes dessa arte, abreviou o seu conteúdo, sendo fiel às palavras [originais], compondo este livreto que chamamos de “sagrado” ou de “jurado”. Assim o chamamos por causa dos 100 nomes sagrados de Deus que são a matéria deste livro. E além disso “sagrado” porque é como se seus atos viessem do sagrado ou se emergissem do sagrado; ou [ainda] é sagrado porque vem dos anjos e porque o anjo Hocrohel chamou [o livro] de sagrado perante o Senhor.31
A respeito do concílio dos mestres, segundo Jean-Patrice Boudet, trata-se de uma história “muito bela para ser autêntica”,32 conclusão que tem sido reforçada por
outros pesquisadores.33 Já a narrativa anteriormente mencionada, sobre a
compilação de um único tratado a partir de outras fontes, descrita por meio de uma metáfora (deffloravit), tem sido identificada como uma ação plausível, o que faz do
Liber iuratus, como diversos outros tratados de magia medieval, uma obra
autoconsciente do seu processo de extração, seleção ou síntese de outras obras precedentes.34 O relato da intervenção angélica, por sua vez, possui um papel de
31 Ibidem. p. 61. No original: “Qui consulente angelo Hocrohel nomine 7 volumina artis magice
deffloravit nobis florem accipiens et aliis cortices dimittendo. De quibus voluminibus subtraxit 93 capitula cum omnibus virtutibus huius artis que sub verbis brevibus continentur, de quibus libellum composuit quem sacrum sive juratum vocamus hac de causa quoniam 100 sacra Dei nomina sunt materia hujus libri; et ideo sacrum quasi actus ex sacris, vel quia per istum exeunt sacra vel quia ab angelis est sacratus et quia cum hoc angelus Hocrohel eum sacratum a Domino appellavit”.
32 BOUDET, J.-P. Magie théurgique, angélologie et vision béatifique dans le Liber sacratus sive juratus
attribué à Honorius de Thèbes. Mélanges de l'Ecole française de Rome. Moyen-Age. t. 114, n. 2, 2002. p. 859. No original: “[l’histoire du concile des 89 magiciens est] trop belle pour être authentique”.
33 Gosta Hedegard atenta para o fato de que o número de 89 mestres varia de acordo com a
documentação. Um manuscrito em inglês do tratado, por exemplo, menciona 811 mestres. Já Robert Mathiesen reconhece o caráter simbólico ou mítico atribuído as cidades de origem de alguns mestres: Nápoles seria onde estaria a tumba de Virgílio, outro personagem bastante associado, de forma póstuma, à magia no medievo. Atenas seria o seio de todo conhecimento grego. Toledo onde os judeus e árabes teriam ensinado a magia com mais liberdade, como Tebas, um importante centro de estudos no Egito, que também esteve miticamente associado à magia. Ver: HEDEGARD, G (Ed.). Introduction. In: Idem. Liber Iuratus... Op. Cit. p. 26; MATHIESEN, R. A Thirteenth-century Ritual to Attain the Beatific Vision from the Sworn Book of Honorius of Thebes. In: FANGER, C. (Ed.). Conjuring Spirits:
Texts and Traditions of Medieval Ritual Magic. Pennsylvania: Pennsylvania University Press, 1998. p.
148-149.
238
legitimação: a ars magica não é apenas resultado de estudos feitos por homens, mas trata-se de um saber divino, de origem celestial, sendo literalmente um saber sobre-humano, sacratus.35
Como dito anteriormente, anjos como Hocrohel são figuras de central importância na performance ritual ensinada pelo Liber iuratus. Em outro momento do tratado, é explicado sobre as diferentes naturezas desses espíritos: para além dos ensinamentos da Igreja, é dito que eles não estariam apenas no céu, mas também nos ares, na terra e nos infernos. Todos seriam passíveis de algum tipo de contato por parte do mago. A respeito dos anjos ou espíritos aéreos (spirituum aeris), por exemplo, é dito — em outro momento de confronto direto com a ecclesia — que “nesse lugar há espíritos que a santa mãe Igreja chamou de condenados,36 mas eles
próprios garantem que o oposto disso é verdade, e por isso nós preferimos dizer que não são nem bons nem maus”.37
Nesse caso, a autoridade reivindicada pelo Liber iuratus se coloca como superior à da própria ecclesia a respeito do tema, uma vez que a solução para essa questão teológica foi elucidada pelos próprios anjos (ou demônios?) aos magos. Essa reivindicação, somada às constantes referências de autoridade que atribuem a ars
magica à autoridade do Salomão bíblico, por exemplo,38 faz da magia per se uma
Renaissance. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press, 2013. p. 121-122.
35 A menção de Guilherme de Auvergne, no século XIII, de um liber sacratus de magia foi considerada
por muito tempo uma evidência indireta de que a circulação do Liber iuratus Honorii deu-se antes do século XIV. Essa foi a opinião de autores como Lynn Thorndike e Robert Mathiesen. Mais recentemente, autores como Richard Kieckhefer têm apontado a primeira metade do século XIV como data provável do surgimento deste texto. Dentre outros argumentos, está a ideia de que liber
sacratus é um título pouco específico e que muitos tratados de magia se consideravam “sagrados”.
Ver: THORNDIKE, L. A History of Magic and Experimental Science: Twelfth and Thirteenth centuries. v. 2. London: MacMillan, 1923. p. 238-239; MATHIESEN, R. “A Thirteenth-century Ritual...” Op. Cit.; KIECKHEFER, R. The Devil’s Contemplatives... Op. Cit. p. 254.
36 Trata-se de um entendimento antigo. Para Agostinho, por exemplo, os demônios, justamente por
terem seus corpos formados pelo ar (aerium corpus), teriam uma percepção aguçada e seriam muito velozes. Isso lhes permitiria saber das coisas humanas por antecipação, em relação aos sentidos limitados dos homens, e assim convenciam os mortais de que adivinhavam quando, na verdade, apenas faziam deduções muito precisas das coisas terrenas. Ver: S. Aurelii Augustini Hipponensis Episcopi. De divinatione daemonum liber unus. In: Opera omnia. Patrologia Latina. Ed. J.-P. Migne. t. 6. 1865. p. 584.
37 Liber iuratus... Op. Cit. p. 125. No original: “In quo sunt spiritus, quos sancta mater ecclesia
dampnatos appellat, set ipsi oppositum asserunt esse verum, et ideo eos neque bonos neque malos volumus appellare”.
38 Logo após o Prólogo, antes do índice dos conteúdos do tratado, vemos o seguinte testemunho de
239
ponte ou uma via de acesso privilegiada e até mais efetiva do que a oferecida pela
ecclesia em direção ao mundo espiritual. Trata-se de um desafio significativo ao
poder, supostamente delegado com exclusividade à Igreja, simbolizado pelas chaves de Pedro, de “ligar e desligar” o reino dos céus (mas não somente o dos céus).39
Ainda sobre o Prólogo: próximo ao final desta primeira seção do manual, são listados, por fim, os juramentos que o novo leitor ou operador deve fazer ao ser iniciado na ars magica. Todos eles giram basicamente ao redor de três temas principais, indissociáveis uns dos outros: o segredo, a fidelidade e a pureza.
“Em primeiro lugar, que este livro não seja dado a ninguém até que o mestre esteja à beira da morte; e que não sejam feitas mais do que três cópias dele”.40 Essas
medidas, além de reforçar a segurança do operador da arte, pretendiam evitar que um conteúdo tão sagrado caísse em mãos indignas. Também é prescrito que o livro não seja dado a nenhuma mulher (nulli dabitur mulieri), o que não apenas reforça a “natureza masculina” da magia erudita medieval,41 mas também aponta para os
limites impostos às mulheres no que diz respeito ao acesso ao letramento, dito de forma ampla; tampouco o manual deveria ser entregue a qualquer homem “a não ser que aja de forma madura, e que seja excelente na sua fé, e que seja reconhecido pela sua conduta e pelas suas posições ao longo de [pelo menos] um ano”.42 Esse
juramento também remete aos critérios de dignidade e pureza esperados em relação ao postulante a aprendiz da arte mágica.
Em caso de morte do magister ou do proprietário do livro, são estabelecidas as seguintes instruções:
e verdadeiro, eu, Honório, a obra de Salomão assim organizo no meu livro (...) de modo a tornar claro o que se segue (...)”. Liber iuratus... Op. Cit. p. 61. No original: “In nomine igitur omnipotentis Domini
nostri Ihesu Christi, vivi et veri Dei, ego Honorius opera Salomonis in libro meo taliter ordinavi, (...) que secuntur (...)”.
39 VÉRONÈSE, J.; BOUDET, J.-P. Lier et délier: de Dieu à la sorcière. In: GENET, J.-P. (Org.). La Légitimité
implicite. Paris-Rome: Éditions de la Sorbonne; École française de Rome, 2015. p. 78-112.
40 Liber iuratus... Op. Cit. p. 61. No original: “primo quod nulli dabitur iste liber, donec magister fuerit
in extremis; et quod nisi tribus tantum copietur”.
41 DAVIES, O. Grimoires. A History of Magic Books. Oxford: Oxford University Press, 2009. p.42; ver
também: KLASSEN, F. Learning and masculinity in manuscripts of ritual magic of the Later Middle Ages and Renaissance. The Sixteenth Century Journal, v. 38, n. 1, 2007. p. 49-76.
42 Liber iuratus... Op. Cit. p. 61. No original: “nec homini nisi maturo actu, tantum et probissimo ac fideli,
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E que, no mais, [este livro] não seja destruído, mas devolvido aos sucessores [do mestre]. E se não for encontrado um homem apropriado a quem o livro deva ser dado, que [antes de morrer] o mestre confie àqueles ligados a ele por fortes juramentos, [a tarefa] de que seja enterrado no túmulo; ou ele mesmo, em vida, deve enterrá-lo em algum lugar limpo e honrado, e não deve revelar o lugar a ninguém sob quaisquer circunstâncias.43
A ideia de que um tratado de magia poderia ser enterrado junto ao seu antigo mestre é outro elemento que aqui deve ser analisado sobretudo no seu caráter mítico, que ecoa as lendas medievais a respeito do tema. Essa narrativa aparece, por exemplo, vinculada ao manual da Ars Notoria, que teria sido descoberto na tumba de Virgílio, em Nápoles.44 O mítico Toz, o Grego, também teria encontrado textos
mágicos ao descobrir a tumba de Salomão.45 O tratado alquímico da Tábua de
Esmeralda, atribuído ao também mítico Hermes Trismegisto, teria sido encontrado
no seu túmulo.46 Em resumo, essas lendas pretendem reforçar o caráter ancestral,
antiquíssimo e secreto da magia ou dos saberes ocultos, que, sendo reservados apenas a uma elite de iniciados, não poderiam ser facilmente descobertos.
A respeito do comportamento dos estudantes ou discipulos, é dito que estes devem respeitar o treinamento do magister, “não investigar a respeito do que seu mestre disse ou fez e não revelar aos outros as tais coisas que sabem deste mestre, bem como não declarar sobre as circunstâncias [em que o mestre disse ou fez suas coisas]”.47 Nesse caso, a insistência do segredo e da fidelidade do grupo é retomada,
assim como a autoridade do mestre é enfatizada.
43 Ibidem. No original: “et quod de cetero non destruetur sed danti restituetur aut eius successoribus; et
quod si non inveniatur homo sufficiens cui liber dari debeat, quod magister secum faciat in tumulo sepeliri executores per iuramenta fortissima constringendo vel ipsum alicubi in vita sua sepeliat munde et honeste, nec locum alicui per aliquas circumstancias revelabit”.
44 A Ars notoria, provavelmente do século XIII, foi bastante influente na redação do Liber iuratus. Uma
parte significativa das orações do Liber iuratus foi diretamente tomada deste primeiro manual. Ver: VÈRONESE, J. (Ed.). L’Ars Notoria au Moyen Age. Introduction et Édition Critique. Firenze: Sismel, Edizioni del Galluzzo, 2007. p. 22.; PETERS, E. The Magician, the Witch and the Law. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1978. p. 54-55.
45 BOUDET, J.-P.; VÈRONESE, J. Le Secret dans la Magie Rituelle Médievale. In: BOUDET, J.P. (et. all.)
La Magie au Moyen Âge. Firenze: Sismel; Edizioni del Galluzzo, 2016. p. 25; THORNDIKE, L. A History of Magic... Op. Cit. p. 227.
46 KIECKHEFER, R. Magic in the Middle Ages. 2 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. p.
134.
47 Liber iuratus... Op. Cit. p. 61. No original: “et quod habens non inquiret de dictis vel factis magistri sui,
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É nas últimas linhas do Prólogo que isso fica mais claro. O texto conclui da seguinte forma:
E assim como um pai está ligado aos seus filhos, o mestre também está ligado aos seus discípulos, em amor e concórdia, então que uns suportem as perdas dos outros, e que nenhum revele o segredo dos outros, mas que sejam fiéis, harmoniosos e que hajam de acordo. Em nono [lugar, é preciso] jurar que, tendo recebido estes juramentos acima mencionados, depois irá passá-los adiante. É por causa disso que chamamos esse livro de “jurado”.48
Assim o Prólogo encerra, firmado no compromisso de que o leitor ou o operador dessa arte, um dia, levará às gerações futuras esses conhecimentos que supostamente remontam a tempos antiquíssimos. No entanto, para além das questões míticas que são subjacentes à narrativa, o que essas últimas palavras do Prólogo nos dizem a respeito da comunidade de homens que leu o Liber iuratus no começo do século XIV?
Frank Klaassen, que analisou o Liber iuratus junto a outros manuais de magia, reconheceu que muitos desses textos evocam frequentemente as noções de magister e discipulos. Por um lado, esses termos apontam para a natureza religiosa ou devocional das operações desses magos. Por outro, essas normatividades que regem as relações de mestre e discípulo apontam para a identidade de grupo, da guilda, e para as relações de educação e fidelidade que ecoam, sobretudo, as relações do âmbito da universidade.49 Nesse sentido, o Liber iuratus nos ajuda a entender outro
aspecto do universo letrado do medievo, que foi entendido, por exemplo, nos termos de um “mundo sombrio” de leituras que orbitava o currículo oficial dos estudiosos universitários no final da Idade Média.50
48 Ibidem. No original: “et quod sicut pater alligat filios suos, ita magister discipulos suos alligabit in
concordia et amore, ita quod unus detrimentum alterius pacietur, nec unus secretum alterius revelabit, sed erunt fideles, unanimes et concordes. Nono iurabit recipiens – et post istud transsibit juramentum – hec omnia predicta observare, et ob hanc causam librum hunc vocitamus iuratum”.
49 KLASSEN, F. Learning and masculinity... Op. Cit. p. 72.
50 BAILEY, M. Fearful Spirits, Reasoned Follies: The Boundaries of Superstition in Late Medieval Europe.
Ithaca; London: Cornell University Press, 2013. p. 57. No original: “[elite forms of magical practice (...)
these either made inroads into the official curriculum of the schools where these men had trained or existed in a] shadowy world [that ringed them]” ou “[formas de práticas de magia de elite (...) se
inseriram no currículo oficial das escolas em que esses homens haviam sido treinados ou lá estavam, em um] mundo sombrio [que os cercava]”.
242
É motivo de debate, no entanto, até que ponto esse regime estrito de normas estabelecido no Prólogo do Liber iuratus foi seguido, na prática, pelos seus leitores/operadores. Autores como Jean-Patrice Boudet e Julien Véronèse têm atestado, por um lado, que a insistência no segredo e na ocultação dos saberes mágicos é um princípio recorrentemente evocado nessa literatura medieval.51
Alguns processos inquisitoriais motivados pelo crime de magia também parecem apontar para essa preocupação.52 Por outro lado, evidências sobre esses alegados
praticantes também deixadas pelos inquisidores apontam que muitos acusados de magia foram processados justamente em razão do seu envolvimento público com tais operações. Nesses casos, as referências à má fama ou à infamia são recorrentes.53
Conclusão
É difícil tratar o tema da magia na Idade Média sem abordá-lo, pelo menos indiretamente, sob o viés da perseguição. Isso acontece porque a palavra magia e suas derivações (magica, magus, magi, etc.) foram frequentemente evocadas, na
51 BOUDET, J.-P.; VÈRONESE, J. Le Secret... Op. Cit.; ver também: MENDONÇA JÚNIOR, F. de P. S.
Secretum Secretorum: O lugar do esoterismo nas cortes papal e imperial no medievo. História Revista.
v. 2, n. 1, 2007. p. 4-18.
52 Em 1323, dois clérigos de Toulouse confessaram diante do arcebispo dessa região, em razão de um
processo em que estes eram acusados, dentre outras coisas, de se envolverem com alquimia e de batizarem imagens para propósitos maléficos. Um destes clérigos, Pedro Raimundo, relatou que o prior de São Sulpício certa vez foi até a sua casa para tratar destes assuntos com outros homens. Pedro Raimundo, ainda desconhecendo o tema das conversas do prior com essas outras pessoas, questionou o sacerdote a respeito de uma “reunião tão secreta” (consilium sic secrete) que se passou em um quarto da sua casa. Este respondeu: “nada para ti, porque tu és tão tagarela que não pode guardar segredo” (nichil ad te, quia tu es ita loquax, quod nichil potes secrete tenere). Depois de certo tempo, o prior reconsiderou: “No entanto, se tu pretendes ser fiel e guardar segredo, eu bem diria a ti” (tamen si tu velles esse fidelis et tenere secrete, ego bene dicerem tibi). Pedro Raimundo, depois de prometer ficar em silêncio, ficou sabendo dos procedimentos necessários para o batismo de imagens que, segundo se esperava, se batizada em um momento astrológico apropriado, poderia indicar onde estariam tesouros escondidos. Ver: VIDAL, J.-M (Org.). Bullaire de l’Inquisition Française au XIVe siècle
et jusqu’a la fin du Grand Schisme. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1913. p. 120.
53 Em 1326, o cônego Betrando, de Agen, foi acusado pela inquisição papal de se envolver com
diversas pessoas para a prática de magia (familiares, socios, etc.). O papa João XXII escreve ao seu inquisidor a respeito do caso e explica que suas práticas atentavam “contra os bons costumes e para o prejuízo de muitos” (contra bonos mores, et in detrimentum plurium [utebatur]). Bertrando seria conhecido por se dedicar a essas práticas não apenas onde morava, em Agen, mas em vários outros lugares (sed aliis locis pluribus) e também por se associar publicamente (convesando publice cum
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literatura normativa ou teológica do medievo, para tratar do “outro”: o maléfico, o demoníaco, o herético. Se nos determos a essas narrativas, podemos ser levados a acreditar que esse entendimento pejorativo do termo magia provocou um consenso na época. Nada mais enganoso.
Na bula Super illius specula, do começo do século XIV, por exemplo, os magos são retratados como adoradores de demônios e como hereges — em outras palavras, como ovelhas apartadas do rebanho de Deus. Nessa literatura normativa, à magia é reservado um sentido pejorativo e depreciativo. Por outro lado, quando nos debruçamos sobre o que escreveram os perseguidos sobre suas próprias crenças e práticas, podemos encontrar outros entendimentos a respeito desta palavra. Segundo o Liber iuratus, também das primeiras décadas do século XIV, os magos não adoram aos demônios, mas os obrigam e os dominam pelo poder de Deus. Sua arte não é herética, mas divina, muito antiga e colocada até mesmo em posição de corrigir aquilo que a Igreja eventualmente concluiu de forma equivocada. Uma vez que os praticantes dessa arte são perseguidos pelos homens da ecclesia — estes sim influenciados pelos demônios —, se veem no direito de assumir estratégias de proteção e manutenção da ars magica.
O termo “magia” na Idade Média pode ser compreendido como um conceito em disputa, porque frequentemente aponta para embates subjacentes que contestam as legitimidades de um tipo para evocar as de outro. No caso do Liber
iuratus, a palavra é ressignificada em oposição àquilo que é chamado genericamente
de ecclesia para reivindicar formas específicas de contato com o divino, com o transcendente, mas também com o mundo terreno. O estudo da magia, por fim, permite-nos perceber que também os conceitos de justeza, legitimidade ou ortodoxia são relativos e, por isso, em disputa.
Artigo recebido em 15.05.2020 Artigo aceito em 21.08.2020