• Nenhum resultado encontrado

O brincar e o conhecer: o lugar do sujeito

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O brincar e o conhecer: o lugar do sujeito"

Copied!
77
0
0

Texto

(1)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Bety Ribeiro Corrêa

O brincar e o conhecer:

o lugar do sujeito

Niterói 2019

(2)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

O brincar e o conhecer:

o lugar do sujeito

Bety Ribeiro Corrêa

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Educação.

Orientadora: Profª Dra. Luciana Gageiro Coutinho

Niterói 2019

(3)

C824b Corrêa, Bety Ribeiro

O brincar e o conhecer : o lugar do sujeito / Bety Ribeiro Corrêa ; Luciana Gageiro Coutinho, orientadora. Niterói, 2019.

76 f. : il.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSEDUC.2019.m.00641055714 1. Psicologia educacional. 2. Psicanálise infantil. 3. Psicopedagogia. 4. Produção intelectual. I. Coutinho, Luciana Gageiro, orientadora. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.

CDD - Ficha catalográfica automática - SDC/BCG Gerada com informações fornecidas pelo autor

(4)

Bety Ribeiro Corrêa

O brincar e o conhecer: o lugar do sujeito

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Educação.

Aprovado em 26/02/2019.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________ Profª. Drª. Luciana Gageiro Coutinho (Orientadora – UFF)

____________________________________

Profª. Drª. Maria Angélica Augusto de Mello Pisetta (UFF)

____________________________________

Profª. Drª. Ana Celina Junqueira de Aquino Barreto de Vasconcellos (PUC/RJ)

Niterói

(5)

Dedico este trabalho às crianças, que me inspiram a continuar buscando conhecer e aprender.

(6)

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Léo e Sheina Ribeiro Corrêa, que sempre me acompanham nas minhas travessias;

Aos meus irmãos, Márcia e Fernando Ribeiro Corrêa, pela amizade, amor e incentivo nessa caminhada;

Às minhas sobrinhas, Paula e Bruna Ribeiro Corrêa Delgado sempre presentes na minha vida; Ao meu marido, Alexandre Camargo, pela cumplicidade, amor e incentivo;

À Bebel, pela boa companhia nas muitas horas de estudo.

À Profª Luciana Gageiro Coutinho, pelo espaço e confiança para desenvolver a minha autoria, e pela orientação atenta e comprometida em todo o processo da pesquisa;

À Profª Cristiana Carneiro, pelo estímulo em todo o processo do mestrado;

À Ana Celina Vasconcellos e Maria Cecília Almeida e Silva, pela possibilidade de realização da pesquisa no Instituto Superior de Educação Pró-Saber;

À Ana Celina Vasconcellos pela dedicação à supervisão clínica;

À Profª. Angélca Pisetta e à Profª Milene Santiago, assim como aos colegas da linha de pesquisa Linguagem, Cultura e Processos Formativos, pela experiência generosa e afetiva de reelaboração do projeto da pesquisa;

Às colegas psicopedagogas da equipe da clínica do Pró-Saber, em especial à Adriana Martins Reis e Luciana Moraes, pela colaboração e trocas no processo;

Aos colegas do grupo de pesquisa Mal-estar docente e educação, pelos momentos de estudo compartilhado;

(7)

“A experiência do pensamento é

uma experiência sem mapa, exposta ao acontecimento, à vinda do outro, do outro não apropriável”.

(8)

Resumo:

A presente pesquisa de mestrado estuda a relação entre o brincar e o conhecer e suas implicações para o processo de constituição do sujeito. Nosso objetivo é investigar em que medida a falta ou a presença do espaço do brincar, o qual permite o desenvolvimento da capacidade simbólica na criança, pode interferir na relação do sujeito com o conhecer. A partir do referencial teórico da psicanálise e da psicopedagogia, debruçamo-nos sobre os pressupostos teóricos sobre o brincar e estudamos crianças nos anos iniciais do ensino fundamental. Nessa etapa as crianças vivenciam intensas mudanças no seu processo de escolarização quando boa parte do espaço/tempo para as atividades lúdicas desaparece e um outro ritmo se instaura. A metodologia utilizada é a pesquisa-intervenção, aliada ao método clínico que embasa os princípios da pesquisa pela psicanálise. O atendimento de três crianças foi realizado em uma clínica social psicopedagógica ao longo de um ano. Nas sessões as crianças tiveram livre acesso a diversos materiais, jogos e brinquedos, podendo fazer suas escolhas. Foram observadas e registradas em um diário de campo as formas de manifestação do brincar. A partir do material registrado um dos casos foi analisado. O estudo do caso evidenciou que o espaço do brincar contribuiu para o processo de subjetivação da criança e para a construção do conhecimento. Palavras-chave: brincar; construção do conhecimento; subjetividade

(9)

Abstract:

The present research work studies the relation between the playing and the knowing and its implications for the process of constitution of the subject. Our objective is to investigate to what extent the lack or the presence of playing space, which allows the development of the symbolic capacity in the child, can interfere in the relation of the subject to the knowledge. Based on the theoretical framework of psychoanalysis and psychopedagogy, we focus on the theoretical assumptions about playing and studying children in the early years of elementary school. At this stage, the children experience intense changes in their schooling process when much of the space/time for playful activities disappears and another rhythm is established. The methodology used is the intervention research, allied to the clinical method that bases the principles of the research on psychoanalysis. The care of three children was carried out in a psychopedagogical social clinic for one year. During the sessions, the children had free access to various materials, games and toys, and they could make their choices. The forms of manifestation of playing were observed and recorded in a field diary. From the recorded material, one of the cases was analyzed. Such case showed that the playing space contributed to the process of subjectivation of the child and to the construction of knowledge.

(10)

Lista de ilustrações: Anexo A - letra de música Anexo B - Seleção do mundo Anexo C - fotografia 1 - casa

Anexo D - fotografia 2 - exposição de criação com Lego Anexo E - fotografia 3 - exposição de criação com Lego Anexo F - letra de música

(11)

SUMÁRIO

Introdução ... pág. 11 Capítulo 1: A criança e o brincar ... pág. 15 1.1. Olhares sobre a infância: repercussões na educação ... pág.15 1.2. O brincar na constituição do sujeito: a perspectiva da psicanálise ...pág. 23 Capítulo 2 – O brincar e o conhecer: contribuições da Psicopedagogia ... pág. 34 Capítulo 3 – Entrando no campo ...pág. 44 3.1 – Bases metodológicas ... pág. 44 3.2 - Apresentação do caso Lúcio (nome fictício) ……… pág.46 3.3 - Os atendimentos em 2018 ... pág. 51 Conclusão ... pág. 66 Referências bibliográficas ...pág. 67 Anexos ...pág. 70

(12)

Introdução

A presente pesquisa de mestrado teve como objetivo estudar a relação entre o brincar e o conhecer. Partimos da ideia de que para se chegar a um novo conhecimento é preciso lançar- se ao desconhecido. Como pressuposto, tanto para a psicanálise como para a psicopedagogia, há sempre um sujeito no processo de construção do conhecimento, com sua história, seu desejo de saber e sua singularidade.

Nesta dissertação não será diferente. Há aqui uma pesquisadora / autora que agora se apresenta para que o leitor possa saber de que lugar eu falo, como surge essa pesquisa em minha história. Minha trajetória profissional se iniciou no campo da arte, mais precisamente das artes cênicas. Na adolescência comecei a estudar teatro e me tornei atriz profissional. Atuando usava a minha sensibilidade para dar vida a diferentes personagens. É algo como esculpir, mas ao invés de barro, sua matéria-prima é seu corpo, sua voz e sua sensibilidade. Depois como professora de teatro passei a ensinar aos alunos a arte dessa criação. Com o passar dos anos meu interesse foi se voltando mais para o sujeito e para o seu crescimento a partir daquela experiência artística do que para a cena ou para o resultado final do espetáculo. O que ficaria daquela experiência para o ator? Como aquela experiência o estava modificando? Percebi que meu objeto de estudo e trabalho estava deixando de ser o ator em formação para se tornar o ser humano em formação. Eu estava fazendo a passagem da arte para a vida, da estética para a ética, dos personagens das peças de teatro para os sujeitos da vida. Assim, pelo interesse no humano e no seu potencial, cheguei ao campo da Educação, e dentro dele, meu interesse convergiu para a Psicopedagogia e para a Psicanálise. Minha ação como psicopedagoga visa colaborar para que as crianças superem obstáculos em seu processo de aprendizagem na busca de suas potencialidades.

Ao cursar a disciplina Psicologia e Educação, como componente curricular do mestrado, ministrada pelos professores Zoia Prestes e Jader Janer, na qual estudamos a obra “Psicologia da arte”, tive um encontro inspirador com Vigotski. Logo conheci sua trajetória profissional. Formou-se na Faculdade de Humanidades e se tornou crítico literário. Segundo Luria (1992, p.44), em seus estudos literários Vigotski já revelava “uma capacidade impressionante de realizar análises psicológicas”. Ou seja, no plano da ficção, da arte, ele já exercitava sua sensibilidade para analisar o homem. Em seu primeiro emprego como professor em uma escola normal em Gomel aproximou-se de crianças com defeitos congênitos, como cegos, surdos e deficientes mentais. O desejo de ajudar essas crianças a se desenvolverem em suas

(13)

potencialidades fez com que Vigotski se interessasse pela psicologia acadêmica. Ele não se desligaria mais do estudo das crianças deficientes, sempre buscando suas capacidades e suas possibilidades de desenvolvimento.

Senti uma forte identificação com a trajetória de Vigotski, que me fez compreender a ligação entre as duas áreas, entre as duas profissões - o teatro e a psicologia. Até que ponto esse exercício de análise psicológica das personagens, tão necessário para o trabalho do ator, criou em mim um subsolo para o posterior surgimento da pedagoga e da psicopedagoga?

Ao buscar a ligação do meu objeto de pesquisa com a minha trajetória pessoal e profissional na disciplina Temas de Pesquisa, ministrada pelas professoras Milene Santiago e Maria Angélica Pisetta, tive que revisitar as minhas próprias experiências de aprendizagem. Nesse processo encontrei diferentes formas de ligação e ruptura que estabeleci com a aprendizagem. Depois de uma trajetória de escolarização bem sucedida e criativa no ensino fundamental, passo ao desinteresse pela escola nos anos do ensino médio e descubro um novo campo de aprendizagem profissional. Após explorá-lo com ricas experiências, procuro uma religação com a aprendizagem acadêmica. Mas essa ligação precisou ser reconstruída, passo a passo. A busca pelo conhecimento sempre me moveu, me fez ser capaz de transformar-me e de transformar a minha realidade. Hoje, como psicopedagoga, contribuo para essa religação dos sujeitos com o conhecimento e com o seu saber.

Os sujeitos de nossa pesquisa são crianças nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Aos seis anos de idade as crianças ingressam no 1º ano do Ensino Fundamental e sua relação com o conhecimento de coisas novas se intensifica. A organização pedagógica dos seus anos na Educação Infantil fica para trás e se inicia uma nova etapa. Nessa passagem boa parte do espaço/tempo para as atividades lúdicas, para o brincar, desaparece. As crianças são apresentadas a uma outra forma de organização pedagógica e um outro ritmo se instaura. Entretanto, o desenvolvimento das crianças não se dá de forma tão linear e para algumas fazer essa passagem torna-se um desafio por vezes penoso ou difícil.

Em minha experiência na clínica psicopedagógica tenho observado que crianças são encaminhadas pelas escolas para avaliação psicopedagógica já no 1º ano do Ensino Fundamental ou até mesmo nos anos finais da Educação Infantil. Poderíamos estranhar ou questionar o encaminhamento de crianças que mal começaram sua escolarização. Recebemos crianças que não conseguem avançar em seu processo de alfabetização e letramento, por exemplo. O fato da Educação Infantil vir assumindo práticas de escolarização anteriormente

(14)

iniciadas apenas no 1º ano do Ensino Fundamental, como a alfabetização, pode estar contribuindo para uma maior exigência de rendimento do aluno no 1º ano. Temos observado que essas crianças precisam da atividade simbólica vivenciada no brincar para alimentarem seu processo de desenvolvimento e aprendizagem. Entretanto, o espaço para o brincar não é mantido na escola a partir do início do Ensino Fundamental. E muitas vezes essas crianças não têm oportunidades de brincar com outras crianças fora da escola.

A origem desse tema remonta à pesquisa que desenvolvi no curso de Pós-Graduação com especialização em Psicopedagogia Clínica, Escolar e Comunitária (CORRÊA, 2015), no qual realizei um estudo de caso, a partir do referencial teórico da psicopedagogia (PAÍN, 1985, 1994; ALMEIDA E SILVA, 2010) em diálogo com Winnicott (1975, 1994), com o objetivo de estudar o desenvolvimento do self de uma criança e sua relação com o conhecimento, e a importância do espaço do brincar nesse processo. O estudo de caso evidenciou a falta do espaço do brincar na vida escolar da menina, de 6 anos, espaço esse desejado por ela e reconhecido pela coordenadora pedagógica de sua escola como o único momento em que a menina estava ativa, viva e se destacava na escola (grifo meu).

Nesse sentido, podemos pensar em que medida a falta ou a presença do espaço do brincar, entendido como espaço para o desenvolvimento da capacidade simbólica, pode interferir na relação do sujeito (criança) com o conhecer. Duas questões tornam-se, então, centrais em nossa pesquisa. Qual é o papel do brincar no processo de constituição do sujeito? Qual é o papel do brincar na relação do sujeito com o conhecer?

Encontramos eco para essas questões ao apresentar o trabalho citado anteriormente (CORRÊA, 2015) no XI Colóquio Internacional do LEPSI, na UFMG, em Belo Horizonte, em setembro de 2016. Como relatora da sessão do Fórum de comunicação livre do qual participei, tomei contato com a relatoria das outras sessões do eixo Infância e Inclusão e me deparei com trabalhos que apresentavam essa mesma inquietação: a falta de "espaços vazios" para o brincar espontâneo na organização do tempo escolar que permitam o exercício da simbolização e da criação infantil.

Recorrendo à psicanálise para avançar na construção de elementos para pensar nessas relações, acreditamos que o trabalho a partir de tais questões pode contribuir para uma maior integração das ideias de Freud, Winnicott, Mannoni, Aberastury, entre outros psicanalistas, ao campo da Educação, ampliando a compreensão da importância do brincar no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças.

(15)

Para desenvolver a pesquisa partimos dos princípios teórico-clínicos da psicopedagogia e da psicanálise e utilizamos a metodologia da pesquisa-intervenção (CASTRO, 2006). Nesta metodologia o objeto a ser pesquisado não está dado a priori, pois ele também é construído no processo da pesquisa com a participação do pesquisador. Essa metodologia esteve associada ao método clínico que embasa os princípios da pesquisa pela psicanálise (ELIA, 2000), uma vez que nosso campo se situava na própria clínica. Desse modo nossa metodologia se construiu na clínica e foi constantemente realimentada por novas questões que dela emergiram no encontro da pesquisadora com as crianças.

As principais estratégias utilizadas na pesquisa foram a observação direta dos eventos estudados (as sessões de atendimento psicopedagógico), os registros das sessões em um diário de campo, entrevistas e acompanhamento dos pais, entrevistas com educadores na escola. O trabalho contou ainda com reuniões de supervisão clínica individuais (bimestrais) e reuniões da equipe clínica (quinzenais).

Participaram da pesquisa três crianças: dois meninos e uma menina, com 8 anos de idade, que cursavam o 3º ano do ensino fundamental em 2018. O atendimento das crianças foi realizado na clínica psicopedagógica social do Instituto Superior de Educação Pró-Saber. Inicialmente foi realizada uma avaliação diagnóstica individual em sete sessões (de 13 de outubro a 19 de dezembro de 2017). As queixas iniciais se referiam à agitação, falta de concentração, indisciplina e atraso na alfabetização. A intervenção psicopedagógica foi conduzida de acordo com os resultados obtidos nas avaliações e os pressupostos teóricos que nortearam a pesquisa, entre 5/03/18 e 10/12/18, com atendimentos semanais. Os pais também foram acompanhados durante o processo. Nas sessões a oferta do espaço lúdico, do brincar, foi privilegiada. As crianças tiveram acesso a diversos materiais, jogos e brinquedos. O trabalho foi conduzido a partir das suas escolhas. Foram observadas e registradas as formas de manifestação do brincar nas crianças e relacionadas às hipóteses diagnósticas levantadas. Ao término dos atendimentos um dos casos foi eleito para ser analisado a partir do material registrado no diário de campo.

(16)

Capítulo 1: A criança e o brincar

Neste primeiro capítulo iremos refletir sobre a importância do brincar na vida da criança. Inicialmente, na primeira sessão, dentro do campo da Educação e da Psicologia, pretendemos fundamentar a concepção de criança que adotamos, na qual o brincar tem uma importância fundamental e suas repercussões na educação. Na segunda sessão, analisaremos as implicações do brincar na constituição do sujeito na perspectiva da Psicanálise.

1.1. Olhares sobre a infância: repercussões na educação

Partindo do princípio constitucional de que todos os cidadãos têm direito à Educação, “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, faz-se necessário promover ações para a inclusão de cada um, de cada sujeito, no processo educacional (Brasil, 1988, art. 205). O conceito de inclusão normalmente é aplicado aos alunos com necessidades especiais. Entretanto, podemos pensá-lo de forma mais ampla também, abrangendo todos os sujeitos em sua singularidade. Para a Psicopedagogia e para a Psicanálise, cada aluno é um sujeito, com sua história, suas características, seu desejo de saber. A maneira e o ritmo de aprender também podem se diferenciar. Alguns desses alunos chegam aos poucos espaços de atendimento psicopedagógico gratuitos existentes no Rio de Janeiro. Na clínica social do ISEPS (Instituto Superior de Educação Pró-Saber), localizado no bairro de Botafogo, recebemos crianças encaminhadas pelas escolas de diversas áreas da cidade. Nossa intervenção visa contribuir para que esses sujeitos superem obstáculos e possam prosseguir em seu percurso de aprendizagem e formação. Nesse sentido nosso trabalho favorece a inclusão dos sujeitos no processo educacional.

O ingresso da educação infantil nos sistemas de ensino a partir da Emenda Constitucional nº. 59, de 2009, a qual prevê a obrigatoriedade da educação básica dos quatro aos dezessete anos, “tem provocado o retorno, o reforço e a continuidade de práticas que associam educação à instrução”, com ênfase em atividades mecânicas cujo objetivo é treinar as crianças para seguir instruções tais como cobrir pontilhado, copiar e repetir (KRAMER, 2011, p. 71).

A obrigatoriedade de frequência das crianças de 4 e 5 anos à escola pode levar à compreensão de que é aí que a educação básica começa, reiterando a antiga cisão entre creches e pré-escolas e trazendo de volta à cena o ideário de preparação para o ensino fundamental (KRAMER, 2011, p.75).

(17)

Entretanto, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009), que reúnem princípios, fundamentos e procedimentos para orientar as políticas públicas e propostas pedagógicas e curriculares, afirmam que

O currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade (BRASIL, 2009).

As Diretrizes Curriculares Nacionais preconizam que as práticas pedagógicas da Educação

Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e as brincadeiras.

A preocupação com a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental também está presente nas DCN, que em seu Art. 11, definem que

na transição para o Ensino Fundamental a proposta pedagógica deve prever formas para garantir a continuidade no processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, respeitando as especificidades etárias, sem antecipação de conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental (BRASIL, 2009).

Certamente a formação integral e humanística da criança proposta pelas DCN não poderá ser alcançada através de práticas meramente preparatórias para os conteúdos dos primeiros anos do ensino fundamental. Segundo Kramer (2011), tanto as instituições de educação infantil, quanto as de ensino fundamental, precisam incluir em seu currículo estratégias de transição entre as duas etapas da educação básica. Cabe à educação infantil a formação do leitor, garantindo os direitos das crianças à cultura oral e escrita. “É preciso que as crianças estabeleçam relações positivas com a linguagem, a leitura e a escrita, e que lhes seja produzido o desejo de aprender a ler e a escrever”. (KRAMER, 2011, p.79). Ao ensino fundamental caberá a inserção das crianças na cultura escrita e a alfabetização. Entretanto, na educação infantil como nos primeiros anos do ensino fundamental, “predominam práticas estéreis, mecânicas e instrumentais e prevalece uma concepção de língua como objeto, conjunto de informações, normas e regras. O treinamento motor, os exercícios repetitivos e a cópia” são enfatizados, no lugar das experiências estéticas através das diversas linguagens artísticas (KRAMER, 2011, p. 80).

Acreditamos que as crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem nos anos iniciais do ensino fundamental estejam sendo submetidas a práticas que não respeitem ou atendam suas necessidades, sejam elas de ordem racional, emocional ou relacional. Kramer (2011) destaca que os avanços teóricos e legais alcançados não correspondem às práticas vigentes na atualidade em nosso país.

(18)

Esse contexto de transição entre as duas etapas da educação básica, em que está prevalecendo a antecipação de conteúdos e o espaço do brincar está sendo suprimido, nos permite pensar nas possíveis consequências para a qualidade da formação dos sujeitos e para as dificuldades de aprendizagem que podem surgir. O que está em jogo é a concepção de criança que nossa sociedade está assumindo, que por sua vez gera uma concepção de educação e uma prática educativa. Diferentes olhares sobre a criança levam a diferentes visões de educação.

Atualmente conduzir a prática psicopedagócica numa perspectiva que contemple o desenvolvimento integral da criança e respeite sua singularidade e subjetividade é um desafio. Nas últimas décadas o campo de estudos sobre a infância se ampliou, consolidando a noção de que a criança é um sujeito que participa ativamente da vida social e produz cultura, desde bem pequena. Entretanto, há uma corrente que busca diagnósticos biologizantes e lida com a criança como objeto do saber do adulto, do saber científico, destituindo seu saber e sua voz. Vivemos num contexto em que a medicalização de crianças e adolescentes coloca em evidência o discurso médico, discurso moderno baseado em certezas, que produz diagnósticos a partir de uma avaliação pontual da criança. Essa objetividade alimenta o anseio de pais e professores em relação a respostas e definições sobre padrões de normalidade ou anormalidade das crianças. As análises críticas de Leandro de Lajonquière (2002), ao inflacionamento (psico)pedagógico da educação, e de Solange Jobim e Souza (2007), à psicologia do desenvolvimento nos permitem avançar nessa discussão.

Segundo Lajonquière (2002), na década de 90 estava em curso um processo de renúncia educativa, uma crença na impossibilidade da educação realizar-se, tanto na esfera familiar quanto na esfera escolar. Para dar conta dos sujeitos que não conseguiam aprender, consolidava- se um sistema de cuidados paralelos, alimentado por ilusões cientificistas. O discurso psicopedagógico, baseado nos saberes psicológicos modernos, passava a ser o detentor do saber sobre os problemas da educação. A discussão pedagógica, articulada em torno de uma realidade psicopedagógica ideal a ser realizada, estava voltada à adequação e ao controle das diferenças e acabava por reforçar a impossibilidade ou dificuldade do ato educativo. Enquanto anteriormente

a discussão pedagógica podia se articular em torno de valores existenciais a serem transmitidos, bem como dos conhecimentos considerados mínimos à manutenção de uma certa tradição epistêmica, hoje em dia, o faz em torno de uma realidade psicopedagógica sempre suposta ideal que deve ser realizada (LAJONQUIÈRE, 2002, p. 31).

(19)

Observamos que o autor está se referindo a uma exagerada influência do campo da Psicologia sobre o campo da Pedagogia. É importante esclarecer que a crítica de Lajonquière (2002, p. 25) ao inflacionamento psicopedagógico se refere ao “sistema para-educativo de cuidados psi” e ao seu transbordamento ideológico sobre a Pedagogia, e não à impossibilidade de uma clínica psicopedagógica voltada a casos particulares em que há necessidade de uma intervenção. O autor acredita que “é possível a sustentação de um campo clínico das fraturas no aprender” (LAJONQUIÈRE, 2002, p. 25).

Como parte da renúncia ao ato educativo está a crença de que os adultos devem se apagar em relação às crianças, o que os leva a se demitirem da posição de educadores. Assim, eliminam-se as diferenças entre o adulto e a criança. Parece-nos que Lajonquière está falando de uma perda de potência, de um desempoderamento dos educadores. Tanto os pais quanto os professores conferem aos especialistas a atribuição de cuidar das crianças e jovens supondo que eles é que têm o saber e, num círculo vicioso, acabam por reforçar sua impotência.

A pedagogia moderna, centrada no aluno e em suas capacidades psicomaturacionais, gerou uma educação do “possível psicológico”. As intervenções junto à criança tinham que ter uma justificativa, deveriam estar cientificamente embasadas de acordo com parâmetros pré- definidos pela Psicologia para cada fase ou situação vivida. A ideologia naturalista alimenta a ideia de que há um suposto saber natural nas crianças, logo a intervenção educativa deveria se ajustar ao estado natural dos alunos e seu desenvolvimento. O adulto, na tentativa de dar sustentação a esse saber natural infantil, fica imobilizado, sem saber como agir. "O adulto sempre espera um pouco mais na intenção de agir em nome de uma certeza” (LAJONQUIÈRE, 2002, p. 37).

Nessa perspectiva o brincar é concebido pelos adultos muito mais como meio de fazer amadurecer as potencialidades infantis, de acordo com os saberes psicológicos e as teorias do desenvolvimento, do que como forma das crianças se apropriarem da tradição e da cultura na qual estão inseridas. "Realizam-se pesquisas no intuito de descobrir brinquedos que tenham a capacidade de fazer amadurecer adequadamente ou de forma rápida, límpida, livre e certa as potencialidades infantis" (LAJONQUIÈRE, 2002, p. 38). Nessa concepção em que o brincar é um meio para a educação, a criança é vista como objeto e não tem lugar para vivenciar a brincadeira como uma produção autoral. Entretanto, como veremos, num outro ponto de vista, baseado na Psicanálise, o brincar é concebido como um espaço que favorece a subjetivação e a simbolização da criança, permitindo que ela assuma o lugar de sujeito. Ao brincar a criança se

(20)

inscreve num passado ao mesmo tempo em que se projeta para um futuro, na tentativa de responder à demanda dos adultos significativos para ela. Esse “um futuro” é alimentado por uma memória passada. As crianças se interessam pelo passado, "pois, se elas não sabem do passado, morrem subjetivamente. Para que um sujeito do desejo opere na criança, ela deve entrar numa história paterna. É aí que mora o desejo do qual a criança quer se apoderar” (LAJONQUIÈRE, 2002, p. 42).

Enquanto para a psicologia do desenvolvimento se trata de “o futuro”, uma vez que se supõe saber as etapas a serem seguidas para que determinados resultados sejam alcançados, para a psicanálise, trata-se de “um futuro”, pois ele não é previsível. Não se sabe como ele será independentemente dos meios utilizados. Segundo Lajonquière (2002, p. 26), de acordo com Freud, no ato de educar “o ponto de chegada não reitera o de partida”.

A educação longe de ser - como pensa a (psico)pedagogia moderna - o resultado de um ajuste ao meio atual ou futuro, graças ao desenvolvimento de um saber natural contido na origem, é, ao contrário, o efeito da produção de um lugar numa história para um sujeito, em virtude da transmissão de marcas simbólicas advindas do passado (LAJONQUIÈRE, 2002, p. 49).

Seguiremos em nossa pesquisa com essa concepção de educação, na qual a criança é vista como sujeito, um sujeito com uma história e produtor de história.

Podemos ampliar essa reflexão com Jobim e Souza (2007) que apresenta uma discussão crítica sobre o papel da psicologia do desenvolvimento no mundo ocidental. Segundo a autora, há uma compreensão consensual entre os psicólogos de que “a psicologia do desenvolvimento pretende, objetivamente, observar e medir as mudanças exibidas pelos indivíduos ao longo de sua trajetória de vida”, baseando-se nos avanços do conhecimento especializado, em métodos e técnicas sofisticados e em medidas precisas, buscando objetividade e neutralidade (JOBIM e SOUZA, 2007, p.40). Nessa perspectiva, o processo de desenvolvimento humano não é concebido como uma produção social, mas sim como um processo regido por determinações naturais, de acordo com a ideologia naturalista apresentada por Lajonquiére (2002).

Entretanto, por mais que a psicologia do desenvolvimento busque uma neutralidade político-ideológica, sua produção teórica e sua prática são influenciadas pela sociedade na qual está inserida.

Na medida em que a psicologia do desenvolvimento segmenta, classifica, ordena e coordena as fases do nosso crescimento e define o que é e o que não é crescimento, ela engendra um discurso desenvolvimentista que estipula as formas e possibilidades com base nas quais o curso da vida humana pode fazer sentido (JOBIM e SOUZA, 2007, p. 41).

(21)

O papel dessa psicologia extrapola a observação e a descrição do desenvolvimento, uma vez que formula os próprios ideais para o desenvolvimento e os meios para atingi-lo. O conjunto de conceitos oriundos dos estudos e pesquisas psicológicos acaba por interferir na constituição dos sujeitos, influenciando a própria forma como o desenvolvimento de crianças e adolescentes ocorre, em função do que se espera deles.

As teorias do desenvolvimento humano, a partir do século XIX, se caracterizam por apresentar uma abordagem universalizante na qual a natureza e o lugar social dos sujeitos são demarcados “segundo estágios ou etapas unidirecionais de desenvolvimento, ou segundo sua idade cronológica” (JOBIM e SOUZA, 2007, p.44). A concepção de tempo linear, cumulativo, homogêneo e vazio, sempre apontando para o futuro, permite uma compreensão da infância como etapa marcada pela incompletude, pela transitoriedade, e a criança é aquele sujeito que ainda virá a ser, pois ainda não é. A criança é vista de forma fragmentada de acordo com seus comportamentos e/ou habilidades, desvinculada do lugar social que ocupa.

A perspectiva do progresso, da evolução linear do homem, assim como de sua universalidade, tem suas bases na modernidade. O projeto epistemológico da modernidade produziu um ideal de homem plenamente racional. O sujeito da modernidade deveria se impor a autodisciplina de um método que fosse capaz de eliminar toda a sua irregularidade, tudo que não fosse confiável, de modo a “constituir uma subjetividade purificada e elevada ao exercício da razão e da experiência na sua invariância e na sua universalidade”. O método seria capaz de produzir um “sujeito epistêmico pleno, sede, fundamento e fiador de todas as certezas” (FIGUEIREDO, 1995, p.17). Um sujeito plenamente consciente de si, que controla sua vontade, capaz de conhecer e representar os objetos com toda isenção. Assim, a modernidade fez uma opção por um determinado tipo de discurso, eleito como o legítimo, o científico, o verdadeiro. Segundo Pessanha (1992, p. 28), “a razão ocidental se empobreceu a partir da modernidade, quando fez a opção exclusiva pelo modelo matemático”, pois a forma de cientificidade moderna deixou de lado as ideias ambivalentes e obscuras.

A crítica de Jobim e Souza (2007, p.46) às teorias do desenvolvimento humano se deve ao fato de que essas teorias “têm fornecido os elementos necessários para a legitimação ‘científica’ de um crescente processo de racionalização e institucionalização da infância e da adolescência”. A compreensão das capacidades humanas construídas por essas teorias está a serviço da racionalidade técnica predominante no mundo moderno ocidental capitalista, que tem como ideal um sujeito produtivo, e ao mesmo tempo, consumidor.

(22)

Para a autora, as limitações da psicologia do desenvolvimento podem ser enfrentadas e superadas através de uma outra perspectiva, a qual rompa com sua identificação com os instrumentos de dominação e controle social. Essa perspectiva alternativa está embasada na teoria histórico-cultural desenvolvida por L. S. Vigotski e outros psicólogos russos, dentro da psicologia não clássica. A linguagem e suas possibilidades lúdicas podem levar a uma outra compreensão do desenvolvimento integral da criança que valorize a experiência estética, através da qual abre-se um campo de questionamento da realidade e a possibilidade de transformá-la. “A experiência estética é a criação de uma possibilidade utópica de questionamento da realidade existente, ou o desejo de construir um mundo melhor por intermédio do trabalho artístico” (JOBIM E SOUZA, 2007, p. 54). O jogo e a brincadeira são compreendidos como experiências estéticas. A experiência racional, por outro lado, permite que o mundo externo nos imponha sua estrutura e seu modo de funcionamento, promovendo uma adaptação à realidade externa, sem nenhuma intenção de transformá-la. A partir dessa perspectiva podemos pensar na limitação de uma educação que não inclua as experiências estéticas.

De acordo com Jobim e Souza (2007), as teorias do desenvolvimento humano de Freud e Piaget se inserem no paradigma evolucionista das psicologias do desenvolvimento, “em que os atributos e funções psicológicos são passíveis de mudanças dentro de uma sequenciação hierarquizada” (p.42). Essa crítica é uma leitura possível, entretanto há outras leituras possíveis de Freud e Piaget tanto no campo da psicanálise quanto na psicopedagogia. Nesse trabalho, assim como em nossa prática na clínica psicopedagógica (ALMEIDA E SILVA, 2010; PAÍN, 1985, 2012; FERNÁNDEZ, 2001a, 2001b, 2010) estamos privilegiando um outro olhar, que não seja normativo e linear, baseado na psicanálise.

Para avançarmos na exposição da perspectiva psicopedagógica que adotamos, a ser apresentada no capítulo dois, a obra de Maud Mannoni é inspiradora. De seu texto “As dificuldades de colaboração entre psicanalistas e educadores em instituição” (MANNONI, 1999), podemos extrair alguns pontos norteadores da forma como podemos nos posicionar em relação à criança.

Inicialmente, Mannoni (1999) se pergunta se “não há, de fato, uma interação entre a psicanálise e a pedagogia; nesse caso, seria pertinente repensar a pedagogia à luz das descobertas psicanalíticas” (p.233). A diferença entre a posição pedagógica e a posição analítica consiste no fato de que a primeira se baseia numa ação adaptativa à realidade da criança, no

(23)

caso da instituição em questão, crianças débeis e psicóticas, enquanto a segunda parte da interrogação do analista baseada na representação que faz da criança.

Em nossa relação com a criança, sabemos que o sujeito se encontra geralmente em um

outro lugar diferente daquele em que se apresenta para nós. Toda a arte do analista é

poder, justamente, interpretá-lo neste outro lugar em que nos foge e foge de si mesmo (MANNONI, 1999, p.233).

A concepção pedagógica tradicional para a educação dessas crianças com necessidades especiais está baseada em critérios de adaptação. “A crença na origem fisiológica dos distúrbios psíquicos deu bases médicas à pedagogia. As técnicas educativas visam realizar aprendizagens de compensação que bastariam a uma adaptação relativa” (MANNONI, 1999, p. 235). Nessa posição o educador supõe saber quais são as necessidades e os interesses da criança, sem desconfiar que na verdade se tratam das suas próprias necessidades e interesses. Oferece à criança a sua própria representação da infância. “Pode resultar disso um desconhecimento da criança como sujeito de uma fala ou de um desejo” (MANNONI, 1999, p. 235). Essa situação limite da educação de crianças psicóticas exige a reinvenção do educador, pois com elas as técnicas usuais não funcionam e por isso se constitui numa contribuição para se pensar a prática pedagógica num sentido mais amplo. O caminho, apontado pela psicanalista, será o nascimento do desejo entre o educador e a criança.

O educador não deverá limitar a ação das crianças, deixando-as ir “além do ponto em que a demanda do adulto as fixa. As descobertas do pedagogo com esse tipo de criança se situam sempre no âmbito do que a criança não chega a fazer” (MANNONI, 1999, p.239). O adulto precisa estar atento e aberto ao que a criança traz de inesperado. Assim, poderá escutar a criança para além de suas dificuldades.

Ver a criança em suas potencialidades e não apenas em suas dificuldades. Deixar a criança surgir como sujeito desejante, deixar que ela manifeste suas demandas, ao invés de oferecer a ela a minha própria concepção de infância. Não assumir um lugar de saber a priori sobre a criança. Estar aberta ao que ela pode trazer de novo. Essas ideias de Mannoni vão ao encontro de nossa prática psicopedagógica. Em nossa atuação clínica procuramos mobilizar nossa sensibilidade para perceber a criança, para escutá-la. Não só através da sua fala, mas através de toda sua expressão (corporal, gestos, emocional) e dos produtos que realiza nas

sessões1. Dizemos para a criança desde a entrevista inicial que ela é a pessoa mais importante

1 Chamamos de produto o que é realizado na sessão psicopedagógica, desde uma conversa até um desenho, uma

(24)

ali. Também damos conta do meio em que ela vive e para isso ouvimos sua família, sua escola e quando for o caso, algum especialista. O importante é que consigamos analisar esses discursos de modo que a criança realmente se mantenha como a nossa protagonista, se mantenha como sujeito.

Para aprofundar a compreensão da importância do brincar no processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças, recorremos ao referencial teórico da Psicanálise que nos possibilita um olhar para compreender o sujeito e suas relações afetivas. A psicanálise é uma das teorias que embasam a perspectiva psicopedagógica que adotamos. Devido à complexidade do seu objeto de estudo, a Psicopedagogia é um campo formado pela confluência de conhecimentos específicos de diversas teorias, com o objetivo de compreender os problemas da aprendizagem humana. Sendo assim, os profissionais da Psicopedagogia fazem diferentes escolhas teóricas para sustentar sua prática, gerando diferentes possibilidades de enquadre e abordagem. Bossa (2011) destaca que essas escolhas feitas pelo psicopedagogo são influenciadas pelas suas experiências pessoais. Acredito que minha opção pelo referencial da psicanálise na pesquisa certamente tem a ver com a minha experiência pessoal de análise.

1.2 - O brincar na constituição do sujeito: a perspectiva da Psicanálise

Nesta sessão nos propomos a fazer uma revisão bibliográfica de alguns autores da Psicanálise sobre o tema do brincar. Inicialmente iremos à obra de Freud, considerada o marco inicial dessa teorização sobre o brincar na infância.

Em “Além do princípio do prazer”, Freud ([1920]1996) se debruça sobre o princípio de repetição presente nas neuroses. Supondo que as atividades lúdicas sejam submetidas ao mesmo princípio, propõe-se a examinar o método de funcionamento mental presente na brincadeira das crianças, introduzindo um elemento novo em relação ao trabalho de Pfeifer (1919), que estudara as teorias sobre a brincadeira infantil do ponto de vista psicanalítico. Ao trazer para o primeiro plano o motivo econômico que leva a criança a brincar, Freud pretende levar em conta a questão pulsional envolvida nessa atividade, que pode proporcionar o escoamento de uma quantidade de excitação presente no aparelho psíquico.

Freud descreve, então, uma brincadeira inventada por seu neto de um ano e meio com o qual conviveu proximamente por algumas semanas e pôde observar. Era considerado um bom menino, "obedecia conscientemente às ordens de não tocar em certas coisas, ou de não entrar em determinados cômodos e nunca chorava quando sua mãe o deixava por algumas horas”

(25)

(Freud, [1920]1996, p.25). Entretanto, esse bom menininho repetia constantemente uma atividade: apanhava quaisquer objetos e os atirava longe, de modo que era difícil encontrá-los depois. Esse movimento era acompanhado por um som de o-o-o-ó e por uma expressão de interesse e satisfação. Freud e a mãe do menino perceberam que não se tratava apenas de um som, mas que representava a palavra alemã fort, que significa ir embora. Era um jogo, no qual o menino usava seus brinquedos para brincar de ir embora com eles.

A observação de outra brincadeira permitiu que Freud confirmasse sua interpretação.

O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele. O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá- lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia entre as cortinas, ao mesmo tempo em que o menino proferia seu expressivo o-o-o-ó. Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da’ (‘ali’) (FREUD, [1920]1996, p. 26).

A interpretação do jogo proposta por Freud relacionava-se à renúncia à satisfação instintual que o menino realizara ao permitir que sua mãe fosse embora sem protestar (ele nunca chorava quando ela saía). Através da encenação do desaparecimento e retorno dos objetos que podia alcançar, o menino elaborava as partidas e retornos de sua mãe. O sentido do jogo poderia ser explicado pela obtenção de prazer vivenciada no momento do retorno do brinquedo. Contudo, o menino repetia com maior frequência apenas a primeira parte do jogo, a partida, uma experiência desagradável e aflitiva. “A criança procuraria, assim, controlar pelo jogo experiências desagradáveis, ou seja, reproduzir uma situação que foi originalmente penosa” (MANNONI, 1999, p. 20). Segundo Mannoni (1999), com o Fort-da, Freud descobre “o papel exercido pelo princípio de repetição como função de domínio de situações desagradáveis” (p.21).

O que aparece no jogo do ‘fort-da’ é o surgimento da dimensão simbólica na relação mãe-filho. A criança pontua com uma palavra o que poderia ser interpretado como rejeição e retorno da mãe. São estas palavras fort, da, que introduzem uma dimensão terceira: para além da ausência da mãe real, a criança encontra, através de um vocábulo, a mãe simbólica (MANNONI, 1999, p.21-23).

Aberastury (1992) comenta que “este brinquedo permitia ao menino descarregar, sem risco algum, fantasias agressivas e de amor em relação à mãe, já que era senhor absoluto da situação. Além disso, elaborava deste modo sua angústia diante de cada despedida da mãe” (p.15).

Com a repetição da experiência, mesmo que desagradável, a criança saiu de uma situação de passividade em que era dominada pela experiência, para com seu jogo assumir um papel ativo que lhe permitiu elaborar, simbolizar essa experiência. As experiências desagradáveis, como uma consulta médica, por exemplo, também podem ser material para as

(26)

brincadeiras. “Quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa

maneira, vinga-se num substituto” (FREUD, [1920]1996, p. 28).

Bittencourt (2009) destaca a relação estabelecida por Freud entre o jogo de desaparecimento e retorno dos objetos e as cenas vividas cotidianamente pelas crianças: as saídas e retornos da figura materna quando sai para trabalhar e depois retorna, ou quando deixa a criança na escola e depois retorna para buscá-la.

Em ambas situações, a mãe deixa a criança aos cuidados de um outro. Uma mescla de angústia e dor, por um lado, em decorrência da perda, e de prazer e satisfação, por outro, em virtude da (re)apropriação, pela criança, do objeto perdido temporariamente

(BITTENCOURT, 2009).

Com sua brincadeira o menino criou uma forma de reconstruir a situação vivida com sua mãe na realidade, em um espaço de simbolização, de representação. A pulsão é uma força que se move, uma quantidade de afeto que precisa se vincular a uma ideia, para assim ser simbolizada. Através dessas simbolizações o processo de subjetivação avança. Com isso, Freud nos mostra que o brincar está ligado ao desenvolvimento das experiências afetivas da criança, demarcando a contribuição singular da psicanálise para a compreensão da importância do brincar na infância.

Arminda Aberastury (1992), em sua prática clínica como psicanalista de crianças, se interessou por observar “que relações entre a maturação e o desenvolvimento levariam ao aparecimento ou desaparecimento de um brinquedo em determinada idade” (p.13, p.14). Desse modo a autora traz uma contribuição importante para esse estudo nos ajudando a compreender o significado do brincar através da teoria psicanalítica. Percorrendo as etapas do desenvolvimento infantil, incluindo a sexualidade, Aberastury (1992) nos mostra como o brincar vai permitindo à criança lidar com as situações que se apresentam ao longo de sua vida, na medida em que funciona como um espaço de elaboração de suas experiências, sobretudo as que lhe causaram angústia ou ansiedade. A cada fase vão surgindo necessidades que precisam

ser atendidas. A atividade lúdica2, o brinquedo, proporciona à criança experiências que

correspondem às necessidades específicas de cada etapa do desenvolvimento.

2De acordo com o dicionário Michaelis:

Lúdico (adj)

1 Relativo a jogos, brinquedos ou divertimentos. 2 Relativo a qualquer atividade que distrai ou diverte.

(27)

Por volta dos quatro meses de idade tem início a atividade lúdica. “Algo fundamental ocorreu na vida mental da criança: os objetos funcionam como símbolos” e as mudanças em seu corpo facilitam sua exploração do mundo (ABERASTURY, 1992, p.25). O bebê começa a poder controlar seus movimentos e coordená-los com o olhar e já consegue tocar com a mão os objetos. Quando é capaz de se sentar, por volta dos seis meses, adquire maior habilidade para pegar os objetos que estejam ao seu alcance. Os objetos, próximos ou distantes, adquirem vida, passando a representar outras coisas e o estimulam a novas experiências. “O pedaço de lençol que leva à boca e atrás do qual se esconde representa a mãe; o chocalho que sacode, chupa e morde, representa seu dedo” (ABERASTURY, 1992, p. 25).

A primeira atividade lúdica é brincar de se esconder. A criança se esconde atrás do lençol. Some e reaparece. Aberastury (1992) observou a ocorrência do brinquedo de se esconder, aparecer e desaparecer ou o de fazer aparecer e desaparecer objetos entre os 4 e os 6 meses, mais cedo, portanto, do que Freud havia observado no Fort-da. É a etapa em que o bebê vive a “posição depressiva”, na qual “tenta elaborar a necessidade de se desprender da relação única com a mãe para poder passar para a relação com o pai” (ABERASTURY, 1992, p.16). Com essa brincadeira o bebê elabora a angústia de desprender-se, “a desolação por um objeto que deve perder”: sua mãe (ABERASTURY, 1992, p.26). O processo de desprendimento da relação de exclusividade com a mãe e a abertura para o pai, abre para a criança um campo de novas possibilidades e interesses no mundo exterior, assim como a possibilidade de formar laços com pessoas e objetos.

O outro brinquedo fundamental surge na segunda metade do primeiro ano, entre os sete e os 12 meses. Esse período é intensamente marcado pela genitalidade que encontra formas de descarga no brincar de “meter e retirar coisas, introduzir objetos penetrantes em orifícios, encher recipientes com pequenos objetos, explorar buracos” (ABERASTURY, 1992, p.14). Essa descoberta anuncia a “forma adulta de manifestar amor: entrar em alguém, receber a alguém dentro de si, unir-se e separar-se” (ABERASTURY, 1992, p.35). Primeiro o bebê faz experiências com seu próprio corpo e com o corpo das pessoas que o rodeiam, para num segundo momento explorar objetos inanimados. Segundo a autora, esses dois brinquedos são os fundamentos do desenvolvimento de toda a atividade lúdica posterior.

As descobertas do próprio corpo, os sons que pode emitir, as diferenças anatômicas entre os sexos irão se manifestar no brinquedo. As fezes e a urina que seu corpo produz lhe fornecem modelos fantasiados do que venha a ser a concepção: "entram alimentos em sua boca, passam

(28)

através do corpo e saem transformados; os sólidos, susceptíveis de originar formas, transformam-se no símbolo de sua capacidade criadora” (ABERASTURY, 1992, p.40). A criança começa a se interessar pela fecundidade. Ao final do primeiro ano, a bola e outras formas esféricas como o tambor e o globo simbolizam o corpo da mãe e também o seu próprio corpo. A criança se identifica com a mãe e, assim como ela, deseja ter um filho dentro do seu corpo. Imagina esse filho e brinca com esse desejo alimentado pelas fantasias de união. Segundo Aberastury (1992), esse filho, esse desejo depois se tornará palavra, “já que a palavra é para a criança um objeto concreto, capaz de substituir magicamente o objeto real externo” (p.44). Esses filhos imaginados serão corporificados nas bonecas e nos bichos preferidos, com os quais poderão elaborar suas experiências biológicas, cuidando, alimentando e castigando-os.

Apesar de possuir características dos objetos reais, o brinquedo, pelo seu tamanho e por poder ser dominado pela criança, uma vez que ela é autorizada pelo adulto para isso, torna-se “instrumento para o domínio de situações penosas, difíceis, traumáticas”, presentes nas relações com os objetos reais (ABERASTURY, 1992, p.15). Além disso o brinquedo é substituível e permite que a criança repita as situações, sejam prazerosas ou dolorosas, as quais não podem ser reproduzidas ou controladas por ela no mundo real. “A canalização de afetos e conflitos para objetos que ela domina e que são substituíveis cumpre a necessidade de descarga e de elaboração, sem pôr em perigo a relação com seus objetos originários” (os objetos reais) (ABERASTURY, 1992, p. 16).

Segundo Aberastury (1992), a criança quando brinca investiga o mundo a sua volta, fazendo experiências em seu ambiente. “Seu mundo é rico e, em contínua mudança, inclui um intercâmbio permanente entre fantasia e realidade. (p.55) Os brinquedos simples, aqueles que facilitem a projeção de fantasias, são os que possibilitarão a elaboração das situações vividas. Nesse mesmo sentido, Mannoni (1999) defende que não há necessidade alguma da criança ter muitos brinquedos à sua disposição, pois “o sentido pode ser criado com qualquer coisa” (p.23). "Com o crescimento surgem novos interesses, novas situações de mudança e os brinquedos se modificam. O brinquedo infantil, quando normal, progride constantemente para identificações cada vez mais aproximadas da realidade” (ABERASTURY, 1992, p.17). A entrada na escola é um momento de mudança profunda no mundo do brinquedo quando as letras e os números se tornarão brinquedo também. Para Aberastury (1992), a curiosidade da criança pelo conhecimento após sua entrada na escola será a "continuação da curiosidade que sentiram pelo mundo circundante até os cinco ou seis anos (p. 68). Nessa etapa a criança "amadurece

(29)

para os processos formais da aprendizagem de leitura, escrita e construção lógico-matemática. As brincadeiras tornam-se mais organizadas como o pensamento” (TEIXEIRA, 2018, p.2). A criança começa a se interessar pelos jogos. Inicialmente por jogos mais perceptivos e figurativos e, num segundo momento, por jogos que envolvem o raciocínio lógico.

Esse percurso desenvolvido por Mannoni e Aberastury sobre o brincar e os brinquedos utilizados pelas crianças, bastante ancorada nas suas experiências clínicas com crianças, nos permite obter elementos para pensar a função elaborativa dos mesmos. Veremos agora um autor para o qual a função do brincar ocupa lugar central em sua teoria sobre a constituição do psiquismo.

Winnicott (1975), com sua experiência clínica como pediatra, psiquiatra e psicanalista, e sua sensibilidade para observar as crianças conforme nos mostram seus relatos sobre os casos, trouxe uma contribuição fundamental para a teoria do brincar. Sua hipótese sobre os objetos transicionais e os fenômenos transicionais, apresentada originalmente em 1951, mostra que o brincar na infância surge como consequência desses fenômenos transicionais presentes no início da vida psíquica. Ou seja, o brincar não é uma condição inata ou natural. É uma capacidade que surge no indivíduo “como recompensa por uma combinação satisfatória de influências ambientais com os processos hereditários de maturação” que acabam por firmar uma área intermediária muito importante para a vida do indivíduo (WINNICOTT, 1975, p.49). Os objetos transicionais representam uma zona de trânsito do bebê de um estado em que está fundido com a mãe para um estado em que se relaciona com ela como um objeto externo e separado. De acordo com Winnicott (1975, p.18), o objeto transicional é uma “possessão original ‘não-eu’”, desde o punho na boca do recém-nascido, passando pelo polegar, pela ponta de um cobertor, um travesseiro, até a ligação com um ursinho, uma boneca ou outro brinquedo macio. A verdadeira qualidade do objeto transicional faz com que ele seja “mais importante do que a mãe, uma parte quase inseparável do bebê” (WINNICOTT, 1975, p. 20). Os fenômenos transicionais envolvem o uso de "objetos que não fazem parte do corpo do bebê, embora ainda não sejam plenamente reconhecidos como pertencentes à realidade externa” (WINNICOTT, 1975, p.14).

(30)

Winnicott (1975) sugere que o padrão dos fenômenos transicionais começa a surgir nos

bebês entre os quatro3 e seis meses e os oito e doze meses. Esses intervalos extendidos mostram

intencionalmente que pode haver amplas variações nesse processo.

O brinquedo inventado pelo menino descrito por Freud no Fort-da pode ser um exemplo de fenômeno transicional, pois Winnicott (1975) considera que o balbucio de um bebê também pode incidir sobre essa área.

À medida que o bebê começa a usar sons organizados (‘num’, ‘ta’, ‘da’), pode surgir uma ‘palavra’ para designar o objeto transicional. O nome dado pelo bebê a esses primeiros objetos é frequentemente significativo e em geral apresenta uma palavra empregada pelos adultos, parcialmente incorporada a ele (WINNICOTT, 1975, p.18).

No caso dos objetos que o menino lançava, o fenômeno em si era o gesto e o som a ele associado, já que lançava qualquer objeto ao seu alcance. A ação de jogá-los combinada ao som, cumpria a função de defendê-lo da ansiedade de se separar da mãe. Depois com o carretel preso ao berço, pôde experimentar a ida e a volta do brinquedo que estava amarrado por um cordão e acrescentou um som para o movimento da volta. Segundo Maia (2014, p.26), a área transicional é aquela "em que ocorre a primeira possibilidade de um símbolo (o objeto transicional) entrar em jogo”.

Em sua concepção de desenvolvimento psíquico do ser, Winnicott (1994) mostra-nos que no estágio mais primitivo da vida do bebê sua dependência é absoluta. A “mãe dedicada comum” ou “mãe suficientemente boa” é aquela que percebe as necessidades do seu bebê e é capaz de se adaptar a elas. Nesse estágio ele não se distingue da mãe; o corpo da mãe é percebido como um prolongamento do seu. Toda a ideia que o bebê tem de um espaço circundante é mantida pela mãe. Ele está fundido ao ambiente, que só gradualmente vai se transformando em algo separado dele.

A origem da capacidade de fantasiar é um marco no processo de separação do bebê. O surgimento do impulso de morder marca o início de um estágio muito difícil e inevitável no qual o bebê tentará destruir a mãe. A forma como a mãe reagirá a esse impulso será determinante. Ela terá a função de sobreviver às mordidas, arranhões, puxões de cabelo ou chutes do bebê. Se ela for capaz de se proteger, sem reagir movida por retaliação e vingança, “o bebê encontrará um novo significado para a palavra amor, e uma nova coisa surgirá em sua vida: a fantasia”. O bebê ama a mãe por ela ter sobrevivido à sua tentativa de destruí-la. Ele

3 O início dos fenômenos transicionais a partir dos quatro meses coincide com a idade apontada por Aberastury em que começa a atividade lúdica.

(31)

pode destruí-la em seus sonhos e em sua fantasia porque a ama. Esse processo “objetifica a mãe, coloca-a num mundo que não é parte do bebê” (WINNICOTT, 1994, p.26).

Se no começo a adaptação da mãe às necessidades do bebê, quando suficientemente boa, é quase completa, fazendo com que ela dê a ele a ilusão de que existe uma realidade externa que corresponde à sua própria capacidade de criar, com o passar do tempo a mãe “adapta-se cada vez menos completamente, de modo gradativo, segundo a crescente capacidade do bebê em lidar com o fracasso dela” (WINNICOTT, 1975, p.25). Assim, a mãe estará oferecendo ao bebê experiências de desilusão. O bebê pode se beneficiar com a experiência da frustração, pois a adaptação incompleta às suas necessidades permite que os objetos se tornem reais, ou seja, amados ou odiados, enquanto que a continuação da adaptação exata da mãe manteria a ilusão de que os objetos são fruto da criação do bebê. Entretanto, se nas etapas iniciais a adaptação da mãe não for exata, o bebê não poderá “começar a desenvolver a capacidade de experimentar uma relação com a realidade externa ou mesmo formar uma concepção dessa realidade” (WINNICOTT, 1975, p.25). Aqui se apresenta o problema da relação entre o que é objetivamente percebido e o que é subjetivamente concebido, problema com o qual todo ser humano estará envolvido ao longo da vida.

Com o conceito de objeto transicional, Winnicott buscou

um termo que designe a raiz do simbolismo no tempo, que descreva a jornada do bebê desde o puramente subjetivo até a objetividade. Quando o simbolismo é empregado, o bebê já está claramente distinguindo entre fantasia e fato, entre objetos internos e objetos externos, entre criatividade primária e percepção (WINNICOTT, 1975, p. 19). De acordo com Maia (2014, p.34), “o paradoxo da transicionalidade aponta para um lugar onde o que impera é a ruptura, a descontinuidade, a lacuna e a diferenciação. É um lugar onde pode a significação do mundo aparecer para o bebê em forma de símbolo, já que a transicionalidade é o espaço da invenção“.

Os fenômenos transicionais evoluem para o brincar, que depois evolui para o brincar compartilhado. A imaginação “começa no espaço potencial entre o bebê e a mãe, quando a experiência produziu no bebê um alto grau de confiança na mãe” (WINNICOTT apud NEWMAN, 2003, p.304). Winnicott (1975) chama esse espaço de playground, pois é aí que começa a brincadeira.

A atividade do brincar infantil é entendida pelo autor como uma experiência criativa. Deixando-me envolver em sua leitura por esse espírito criativo, transformei em poesia as ideias

(32)

que sintetizei sobre o brincar extraídas do capítulo III, O Brincar (1975). Winnicott nos convida a criar!

O brincar

O brincar tem um lugar que não é dentro e nem é fora. O brincar tem um tempo.

O que importa na brincadeira não é seu conteúdo. O que importa é o estado de concentração

em que as crianças entram quando brincam. Esse lugar do brincar

não pode ser facilmente abandonado. Não admite intrusões

Não deve ser contestado Precisa ser respeitado.

Essa área da brincadeira se encontra na tênue linha teórica entre o subjetivo, o mundo interno, e o objetivamente percebido, a realidade compartilhada. É uma área de fronteira. “A importância do brincar é sempre a precariedade do interjogo entre a realidade psíquica pessoal e a experiência de controle de objetos reais” (WINNICOTT, 1975, p.71). A criança traz para dentro da área do brincar fragmentos da realidade externa que são usados a "serviço de alguma amostra derivada da realidade interna ou pessoal" (WINNICOTT, 1975, p.76). Através desses fragmentos seu potencial onírico pode se manifestar. É um processo de criação: a partir de um material da realidade externa a criança vai criar algo colorido pelo seu mundo interno.

É no brincar que o indivíduo (criança ou adulto) tem oportunidade e espaço para ser criativo, para vivenciar sua criatividade e, assim, descobrir o eu. Contudo, o sentimento do eu não será encontrado em produtos de experiências criativas ou artísticas. Há aqui uma dimensão ética na concepção de Winnicott que merece ser ressaltada: trata-se de uma forma de viver criativamente.

Nessa concepção de vida, a criatividade é entendida “como um colorido de toda a atitude com relação à realidade externa" (WINNICOTT, 1975, p. 95). Viver criativamente é um estado saudável, que traz a valorização da vida. Em oposição, há uma forma submissa de relação com

(33)

a realidade externa, que leva estritamente à adaptação, à adequação ao que o mundo exige e se associa à ideia de que a vida não vale a pena.

É a brincadeira que é universal e que é própria da saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros (WINNICOTT, 1975, p. 63).

As atividades lúdicas da infância podem evoluir para uma vida cultural rica na fase adulta. A arte está entre as manifestações culturais que se inserem no espaço transicional que permanece na vida adulta.

Freud ([1908] 2015) já havia apontado uma relação entre a atividade criativa do adulto, no caso de sua análise, do escritor, e o brincar infantil. A criança em sua brincadeira, que é sua “ocupação mais querida e mais intensa”, comporta-se como um criador literário, na medida em que constrói para si um mundo próprio usando os elementos da realidade em que vive (p.327). A brincadeira é vivida com seriedade pela criança que emprega nessa criação grande quantidade de afeto. Ela é capaz de distinguir perfeitamente seu mundo de brincadeira da realidade, baseando “nas coisas palpáveis e visíveis do mundo real os objetos e situações que imagina” (FREUD, [1908] 2015, p.327). Segundo Freud, as brincadeiras infantis são guiadas pelo desejo específico de ser grande e adulto. Com o crescimento o indivíduo para de brincar e o ganho de prazer que tinha com a brincadeira é substituído pelo ato de fantasiar, que, então, não estará mais apoiado em objetos reais. O fantasiar é uma internalização do ato de brincar na vida adulta. Freud ([1908] 2015, p.328) enfatiza que não se trata de uma renúncia ao prazer experimentado, mas de uma formação substitutiva porque “quem conhece a vida psíquica do ser humano sabe que nada é tão difícil para ele quanto renunciar a um prazer que já experimentou”.

Vivemos num tempo em que as formas de brincar sofreram mudanças e parte dos brinquedos oferecidos às crianças são equipamentos eletrônicos com jogos e atrações audiovisuais virtuais. Julieta Jerusalinky (2018) alerta para os riscos envolvidos no excesso de exposição das crianças a esse tipo de oferta, fenômeno denominado pela psicanalista de “intoxicação eletrônica”. Enquanto a lógica dos aplicativos é uma lógica binária, baseada apenas em “sim ou não”, a lógica de uma brincadeira compartilhada, assim como de uma conversa, é uma lógica mais complexa, em rede.

Quando a gente conversa com o outro a gente tem que considerar a polissemia da linguagem, o mal entendido e os próprios equívocos e atos falhos que a gente pode cometer. Tudo isso está suprimido desses aplicativos. Brincar e conversar é muito mais imprevisível porque implica essa lógica em rede (JERUSALINSKY, comunicação oral, 2018).

(34)

O brincar é a construção de uma ficção com um outro. Por isso coloca a criança em relação, é trabalhoso. Os brinquedos eletrônicos podem tirar a criança da relação, caso ela brinque sozinha. Entretanto, pode haver situações em que sejam jogados com outras crianças e promovam sua relação.

(35)

2 – O brincar e o conhecer: contribuições da Psicopedagogia

“Talvez o único modo de contar das crianças seja através de seus jogos”.

(Alicia Fernández) Neste capítulo buscaremos refletir sobre a relação entre o brincar e o conhecer a partir do referencial teórico da Psicopedagogia com o qual trabalhamos (ALMEIDA E SILVA, 2010; FERNÁNDEZ, 2001a, 2010; PAÍN, 1985, 2012). Antes de avançar nessa perspectiva é importante situá-la dentro do campo teórico da Psicopedagogia de um modo mais amplo.

Alicia Fernández, assim como Sara Paín, participaram do processo de construção da Psicopedagogia como campo específico na Argentina a partir dos anos 60. A busca pessoal e profissional descrita por Alicia, em entrevista concedida em 2008, ilustra esse processo de construção do objeto da Psicopedagogia, que surge da sobreposição dos campos da Psicologia e da Pedagogia e se torna um campo independente. Alicia conta que buscava uma formação voltada para a atuação clínica e para a psicologia, que não fosse a medicina, e que ao mesmo tempo contemplasse as “singularidades dos partícipes da cena educativa”, o que o curso de Licenciatura em Ciências da Educação não abarcava (LELIS, 2008, p. 187). Ingressou, então, no primeiro curso organizado para graduação em Psicopedagogia na Argentina. Entretanto, nesse momento não se tinha clareza de qual era o objeto da Psicopedagogia. “Pensava-se a questão da aprendizagem enquanto um déficit e, o psicopedagogo seria aquele que deveria reeducar naquilo que faltava, por isso até o nome de ‘Pedagogia Emendativa’” (LELIS, 2008, p. 188). O curso tinha muitas matérias de psicometria e todo tipo de testes era estudado. Piaget já havia sido introduzido por alguns professores, sendo considerado uma grande novidade na época. A Psicanálise ainda não era estudada. Por ser aluna do curso de Psicopedagogia, Alicia foi contratada para atuar como Orientadora Educacional numa escola pública da periferia de Buenos Aires. Buscando o que o curso de Psicopedagogia não lhe oferecia, ingressou no curso de Psicologia na Universidade Nacional de Buenos Aires, onde teve como professores grandes nomes da Psicanálise, inovadores em seu trabalho, como Pichon Rivière, Bleger e Borolavsky. Entretanto, em 1966, se inicia uma ditadura militar na Argentina que fecha a Universidade. Nesse período, que vai até 1970, surgem associações de resistência que unem diversos profissionais da saúde. Um grupo de psicanalistas propõe que a psicanálise se volte mais para o social. Alicia participava de todo aquele movimento social e estava próxima desses

Referências

Documentos relacionados

Para entender o supermercado como possível espaço de exercício cidadão, ainda, é importante retomar alguns pontos tratados anteriormente: (a) as compras entendidas como

De seguida, vamos adaptar a nossa demonstrac¸ ˜ao da f ´ormula de M ¨untz, partindo de outras transformadas aritm ´eticas diferentes da transformada de M ¨obius, para dedu-

Com o objetivo de compreender como se efetivou a participação das educadoras - Maria Zuíla e Silva Moraes; Minerva Diaz de Sá Barreto - na criação dos diversos

18.1 O(s) produto(s) deverá(ao) ser entregue(s) rigorosamente dentro das especificações estabelecidas neste Edital e seus Anexos, sendo que a inobservância desta condição

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

QUANDO TIVER BANHEIRA LIGADA À CAIXA SIFONADA É CONVENIENTE ADOTAR A SAÍDA DA CAIXA SIFONADA COM DIÂMTRO DE 75 mm, PARA EVITAR O TRANSBORDAMENTO DA ESPUMA FORMADA DENTRO DA