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A Cidadania e os desafios e embates entre o Estado Liberal e o Estado Plurinacional: perspectivas para a integração Latino-Americana

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM INTEGRAÇÃO CONTEMPORÂNEA DA AMÉRICA LATINA (PPGICAL)

A CIDADANIA E OS DESAFIOS E EMBATES ENTRE O ESTADO LIBERAL E O ESTADO PLURINACIONAL:

PERSPECTIVAS PARA A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA

ARUANÃ EMILIANO MARTINS PINHEIRO ROSA

Foz do Iguaçu 2019

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM INTEGRAÇÃO CONTEMPORÂNEA DA AMÉRICA LATINA (PPGICAL)

A CIDADANIA E OS DESAFIOS E EMBATES ENTRE O ESTADO LIBERAL E O ESTADO PLURINACIONAL:

PERSPECTIVAS PARA A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA

ARUANÃ EMILIANO MARTINS PINHEIRO ROSA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Integração Latino-Americana.

Orientadora: Prof. Drª Renata Peixoto de Oliveira

Foz do Iguaçu 2019

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A CIDADANIA E OS DESAFIOS E EMBATES ENTRE O ESTADO LIBERAL E O ESTADO PLURINACIONAL:

PERSPECTIVAS PARA A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Integração Latino-Americana.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Orientador: Prof. Drª Renata Peixoto de Oliveira

UNILA

________________________________________ Prof. Drº Félix Pablo Friggeri

UNILA

________________________________________ Prof. Drº João Roberto Barros

UNILA

________________________________________ Prof. Drª Luciana Ballestrin

UFPEL

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Gostaria de agradecer a todas que fizeram parte desta minha caminhada dentro da UNILA e da cidade de Foz do Iguaçu. Foi uma caminhada de luta, dor e alegria. Acho que é o preço da construção da liberdade.

À minha família pelo apoio incondicional e a minha mãe por acreditar nos meus sonhos e fazer com que eu nunca desista deles. Obrigado por me guiar e acolher. Todo meu amor e carinho a você. Minha irmã Indaiá e meu irmão Irapuã pelo carinho. Minha vó Orvalina (in memoriam) que tanto me ensinou sobre amor e humildade. Minha vó Zélia pelo zelo e proteção.

A Deus, às Deusas, aos seres das matas e das águas que me levantaram de um período sombrio. Obrigado pela força espiritual, física e mental.

À minha querida orientadora Drª Renata Peixoto de Oliveira pela imensa paciência, dedicação e carinho sempre presente em nossas conversas e por me mostrar que é preciso me cuidar primeiro para alcançarmos aquilo que acreditamos. Não tenho palavras para agradecer aos teus ensinamentos teóricos e de vida.

À minha amiga Marta, Hannah, Besna, Bruno, Henrique, Chichi, Paula Q, Paula C, Gérman, Dayque, por todo o apoio, os encontros e incentivo, e por me possibilitar ser livre sempre. Em especial, à memória de Raquel Stern (Magnólia) e Rafa por me ensinarem tanto sobre a vida e sobre o mundo político que nos cerca. Nossos karaokês, a feijoada e nosso encontro de almas me fortaleceram para permanecer nisso aqui.

À Agnes e Iara por me lembrarem de que nossas vidas importam e que o céu não é o limite quando temos amigas que sempre reforçam a tua existência. Amo vocês.

Ao Tom, Ícaro, Fhrans, Felipe, Marian, obrigado por fazerem minha passagem pela cidade ficar mais leve. Sem isso, Foz teria ficado difícil. À Bruna e Suzana, o reencontro mais lindo das fronteiras. Obrigado por me fortalecerem e me darem suporte quando precisei, amo vocês até o fim do mundo. Ao Taciano por me lembrar dos prazos e pelos encontros sempre alegres.

Se não citei alguém não foi por falta de consideração, é cansaço do trabalho.

A UNILA por me apresentar um mundo tão novo e pelo apoio financeiro fundamental para minha permanência e para desenvolvimento da pesquisa.

A cidade de Foz do Iguaçu por renovar minhas forças e me fazer renascer diante das águas. Devo de alguma maneira sinalizar os problemas de saúde que tive durante este processo do mestrado, no qual mais uma vez renasci.

Agradeço também a Djamila Ribeiro, Maria Clara Araújo, Angela Davis, Sueli Carneiro e tantas outras autoras negras que me ajudaram a criar mecanismos de amor,

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Por fim, aos povos indígenas das Américas e a meus ancestrais por sempre me lembrarem de onde vim e por onde devo caminhar. África e América do Sul estão vivas. É preciso nomear para se restituir humanidades.

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Podes inscrever-me na História Em mentiras amargas e retorcidas. Podes espezinhar-me no chão sujo

Mas ainda assim, como a poeira, vou-me levantar. Minha impertinência incomoda?

Por que ficas soturno

Ao me ver andar como se tivesse em casa Poços de petróleo jorrando?

Como as luas e como os sóis, Como a constância das marés, Como a esperança alçando voo, Assim me levanto.

Querias ver-me alquebrada? Cabeça pensa e olhos baixos? Ombros caídos como lágrimas, Enfraquecida de tanto pranto? Minha altivez o ofende?

Não leve tão a peito assim: Eu rio como quem minera ouro Em seu próprio quintal

Podes fuzilar-me com palavras Podes lanhar-me com os olhos Podes matar-me com malevolência

Mas ainda assim, como o ar, eu me levanto

Minha sensualidade perturba? Por acaso te surpreende

Que eu dance como quem tem diamantes Ali onde as coxas se encontram?

Do fundo das cabanas da humilhação Me levanto

Do fundo de um pretérito enraizado na dor Me levanto

Sou um oceano negro, marulhando e infinito, Sou maré em preamar

Para além de atrozes noites de terror Me levanto

Rumo a uma aurora deslumbrante Me levanto

Trazendo as oferendas de meus ancestrais Portando o sonho e a esperança do escravo Ainda me levanto

Me levanto Me levanto

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Repensar as perspectivas epistemológicas, éticas e políticas a partir da América Latina torna-se a principal contribuição que este trabalho almeja alcançar a partir da ótica da cidadania. Neste sentido, a pesquisa se desenvolve em três eixos principais: Estado, cidadania e integração em um contexto localmente situado na região andina. O primeiro capítulo da pesquisa apresenta o que se denominou de Estado Liberal e seu entrelaçamento com o regime democrático e suas concepções de sociedade, política, cidadania e, como este modelo de Estado tornou-se preponderante na região analisada desde o século XIX com imposições de um projeto que não atendia as demandas da maioria populacional, levando a crescentes processos de marginalização e desigualdades. A partir de outras perspectivas políticas, econômicas, sociais, culturais e epistêmicas, se procura entender no capítulo dois como na região andina surge o Estado Plurinacional em meados do século XXI, corporificado nas constituições de alguns países latino-americanos e que nos possibilitou falar em uma Cidadania Comunitária como contraponto a matriz cidadã liberal e estatal, pois se fundamenta em outro sentido de vida, do ser e do viver, com o vivir bien/buen vivir (bem viver/viver bem) como horizonte do que se deve construir sócio politicamente fora do eixo do individualismo e da racionalidade modernizante presente na ótica (neo)liberal. Recorremos à análise do Território da Autonomia Indígena Originário Campesino de Raqaypampa na Bolívia como momento final do segundo capítulo para demonstrar na práxis os eixos delimitados no trabalho, com as coexistências democráticas, o pluralismo jurídico e à autodeterminação territorial, étnica e social atravessando o relacionamento destes povos com um Estado em constante processo de descolonização. O terceiro capítulo amplia nosso olhar em relação às questões trabalhadas, procurando entender como os processos de integração regional foram transformados a partir destas mudanças institucionais e na própria concepção de política internacional vislumbrada pelo Estado Plurinacional. Por fim, a pesquisa se baseia em bibliografia especializada, documentos oficiais e alguns levantamentos estatísticos para responder aos questionamentos levantados.

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Repensar las perspectivas epistemológicas, éticos y políticos de América Latina se convierte en la principal aportación que este trabajo pretende alcanzar desde la perspectiva de ciudadania. En este sentido, la investigación se desarrolla en tres ejes principales: el Estado, la ciudadanía y la integración en un contexto situado en la región andina. El primer capítulo se presenta lo que se denomino Estado liberal y su enredo con el régimen democrático y sus concepciones de la sociedad, la política, la ciudadanía, y cómo este modelo de Estado se convirtió en predominante en la región analizada desde el siglo XIX, com imposiciones de un proyecto que no atendía las demandas de la mayoría de la población, llevando a un aumento de los procesos de marginación y desigualdad. A partir de otras perspectivas políticas, económicas, sociales, culturales y epistémicas, se busca entender en el capítulo dos como en la región andina surge el Estado Plurinacional a mediados del siglo XXI, corporificado en las constituciones de algunos países latinoamericanos y que nos posibilitó hablar en una Ciudadanía Comunitaria como contrapunto a la matriz ciudadana liberal y estatal, pues se fundamenta en otro sentido de vida, del ser y del vivir, con el vivir bien / buen vivir como horizonte de lo que se debe construir socio políticamente fuera del eje del individualismo y de la racionalidad modernizante presente en la óptica (neo) liberal. Recurrimos el análisis del Territorio de la Autonomía Indígena Originario Campesino de Raqaypampa en Bolivia como momento final del segundo capítulo para demostrar en la praxis los ejes delimitados en el trabajo, con las coexistencias democráticas, el pluralismo jurídico y la autodeterminación territorial, étnica y social atravesando la relación de estos pueblos con un Estado en constante proceso de descolonización. El tercer capítulo trata de comprender cómo los procesos de integración regional han sido modificados a partir de estos cambios institucionales y el propio concepto de política internacional previsto por el Estado Plurinacional. Por último, la investigación se basa en bibliografía especializada, documentos oficiales y algunos levantamientos estadísticos para responder a los cuestionamientos planteados.

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Figura 1 – Estrutura de governo Raqaypampa...64 Figura 2 - Cerimônia ancestral na abertura da 42ª Assembleia Geral da Organização dos

Estados Americanos, Tiquipaya, Bolívia, 2012...67

Figura 3 - Cerimônia de posse de Evo Morales em 2006 nas ruínas ancestrais de

Tiwanaku...72

Figura 4 - Evo Morales discursa no 55º Período de Sessões da Comissão de Narcóticos

da ONU com uma folha de coca na mão...73

Figura 5 – Governos interrompidos/Ruptura de projetos governamentais na América do

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AIOC – Autonomia Indígena Originário Campesino ALCA – Área de Livre-Comércio das Américas

CONAMAQ - Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu CC- Cidadania Comunitária

CPE - Constituição Política do Estado

CSUTCB - Confederación Sindical única de Trabajadores Campesino IPSP – Instrumento Político para la Soberanía de los Pueblos

MAS – Movimiento al Socialismo

MNR – Movimiento Nacionalista Revolucionário ONU – Organização das Nações Unidas

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1 INTRODUÇÃO ... 12

2 CIDADANIA: ORIGEM E EVOLUÇÃO...16

2.1 LIBERALISMO, DEMOCRACIA E CIDADANIA...20

3 OUTRA MIRADA CIDADÃ: REFLEXÕES DESDE A EPISTEMOLOGIA LATINO-AMERICANA A PARTIR DO ESTADO PLURINACIONAL ... 36

3.1 REVIVÊNCIAS ÉTICO-EPISTÊMICAS: AS CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM DECOLONIAL PARA O HORIZONTE GLOBAL E SUL-AMERICANO. ... 36

3.2 O Novo Constitucionalismo andino e a matriz cidadã comunitária dentro dos estados plurinacionais...48

3.3 A cidadania dentro do novo-constitucionalismo andino: para além da modernidade?...57

3.4 Apontamentos sobre as novas coexistências democráticas no estado plurinacional e o papel da cc dentro de um horizonte institucional...65

4 A INTEGRAÇÃO REGIONAL COMO FERRAMENTA EMANCIPATÓRIA DOS POVOS DO SUL GLOBAL: POR UMA DIPLOMACIA DO VIVIR BIEN...74

4.1 A CONSTRUÇÃO (INTERNACIONALIZAÇÃO) DO VIVIR BIEN COMO POLÍTICA INTERNACIONAL DOS ESTADOS PLURINACIONAIS...76

4.2 O vivir bien/buen vivir como instrumento de política regional e internacional: a construção de um novo horizonte desde o sul...80

5 CONCLUSÃO...94

REFERÊNCIAS ... 100

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1 INTRODUÇÃO

O trabalho do qual se debruça este autor, em seu desenvolvimento, contou com uma (des)contrução teórica para a sua afirmação como pesquisa direcionada a entender, dentro da emergência do plurinacionalismo andino, o aspecto de uma matriz cidadã outra, assentada em perspectivas que valorizassem sujeitos historicamente à margem dos projetos políticos que foram se constituindo na região.

Diante disto, pesquisar o aspecto da cidadania a partir do novo constitucionalismo latino-americano no século XXI, como projetos que amalgamaram em suas novas dinâmicas constitucionais um Estado em constante processo de descolonização diferente daquela consolidada nos países da América Latina no século XIX, tornou-se uma das preocupações centrais da pesquisa. Descobrir como o viés comunitário e intercultural possibilitou falar em uma matriz cidadã diferenciada com os processos de mudanças políticas, culturais e epistêmicas surgidos pela própria ótica dos indivíduos que sofreram a colonização, também se apresenta como uma das reflexões a serem desenvolvidas.

A partir de então, procura-se entender e refletir como a cidadania se apresenta como um tema central para o pensamento político e o seu entrelaçamento com os diferentes projetos de Estado e sociedade a serem desenvolvidos, seja na concepção de Estado Liberal, ou na perspectiva do Estado Plurinacional. A cidadania tem se apresentado como elemento de suma importância para ambos os Estados, e no caso do Estado Plurinacional, toma uma centralidade deste projeto político com sua dimensão cidadã que homologa e respalda os novos elementos apresentados por esta constitucionalidade surgida das diferentes lutas de forças populares (indígenas campesinos originários) e igualmente encontra, na região andina, um respaldo regional com os novos empreendimentos da “Revolução Cidadã” no Equador e a “Revolução Bolivariana” na Venezuela.

Almeja-se descobrir, assim, os desafios e limites da concepção cidadã dentro do Estado Liberal e como os aportes do Estado Plurinacional, atrelado a filosofia andina do vivir bien (viver bem) e as perspectivas éticas, políticas e epistemológicas dos povos indígenas, solidificado nas constituições de alguns países latino-americanos colaboraram para a análise da evolução da cidadania com características

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que se reúnem em uma base diferenciada da instaurada pelo projeto de modernidade ocidental assentado no liberalismo.

Portanto, a hipótese adotada é que a partir da emergência do Estado Plurinacional na América Latina as percepções de cidadania foram transformadas, na medida em que possibilitou a ascensão de outros grupos sociais nestas sociedades e novas percepções acerca da institucionalidade democrática, e, além disso, o projeto de reconhecimento de uma sociedade comunitária e intercultural dentro deste novo Estado está assentado em bases que permitem afirmar uma divergência dos elementos que foram instaurados pelo Estado Liberal na região1.

O termo cidadania desde as suas concepções milenares tornou-se tema de discussão cotidiana, seja pela complexidade que carrega o seu entendimento ou pelas diferentes lutas que igualmente abarcam a sua concepção contemporânea.

O desenvolvimento das sociedades modernas e o surgimento de diferentes grupos sociais no seio destas organizações políticas trouxeram consigo a crescente percepção dos mais variados processos de desigualdades econômicas, sócio-políticas e culturais, na medida em que o sistema capitalista se consolidou tendo como premissa as assimetrias globais.

Neste sentido, a busca pela redução das disparidades sociais, associadas aos processos de determinação de uma vontade política ditada num contexto de representação via democracia, reuniu na variável cidadã determinantes que essencialmente possibilitaram a díade cidadania e democracia como fundamentais na evolução histórica do termo que aqui procura-se trabalhar.

O trabalho está divido em três capítulos, assim denominados: “Cidadania: origem e evolução”, “Outra mirada cidadã: reflexões desde a epistemologia latino-americana a partir do Estado Plurinacional” e por último “A integração regional como ferramenta emancipatória dos povos do Sul global: por uma diplomacia do Vivir Bien”.

No capítulo primeiro a discussão presente refere-se em entender como no passar dos séculos a cidadania tornou-se um conceito associado ao Estado liberal e

1 A percepção da divergência em relação aos elementos estatais liberais repousa no reconhecimento da construção de um projeto que nasce de forças populares, notadamente as populações indígenas campesinas originários, portanto, se considera de bases divergentes do instaurado pelo Estado Libe-ral.

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ao regime democrático. Destarte, procura-se explanar também, como o conceito se construiu dentro de uma tradição liberal, com autores como T.H Marshall. Entender o surgimento do conceito de cidadania e seu entrelaçamento com o Estado liberal e à democracia e neste sentido, torna-se necessário o resgate de sua origem clássica.

Ainda neste capítulo inicial, foi preciso caracterizar o Estado em sua vertente liberal e as concepções de direitos que vieram atrelados a esta organização política que valendo-se do constitucionalismo, legitimou as liberdades para à plena realização da sociedade de mercado que vinha surgindo a partir do século XVI. O processo de desenvolvimento da sociedade europeia e a crescente necessidade de que juridicamente esta forma de organização política (o Estado) fosse corporificada em leis e normas, levou à uma reformulação deste Estado que no decorrer dos anos ampliou a participação popular por meio do vínculo com a democracia.

No capítulo segundo se discute outro projeto de sociedade surgido no ambiente latino-americano. Procuramos analisar como a construção da cidadania na América Latina foi um processo assentado em uma matriz que não atendia aos anseios da maioria populacional, e perceber o surgimento de projetos que questionaram essa lógica (neo)liberal como única via organizacional, seja político, econômico ou socialmente. A formação dos Estados nacionais na América Latina desde o século XIX demonstrou que a relação desenvolvida com a sociedade foi deficitária. As disparidades sociais, econômicas, políticas e culturais encontraram lugar nos alarmantes índices de pobreza instalado sob a região por longos períodos. A matriz cidadã liberal, apesar de ter angariado uma gama de direitos a uma parcela populacional ao longo dos anos, deixou de assistir a outros indivíduos que continuaram marginalizados mesmo após a instauração de regimes democráticos, demonstrando a falta de diálogo com as diversidades étnicas, culturais e sociais presentes no território latino-americano.

Neste sentido, a falta de dinamização social e a crescente insatisfação com as políticas adotadas por sucessivos governos criaram um cenário de crise desse modelo e a emergência de um novo paradigma com ascensão de outros grupos sociais. A população indígena torna-se central no desenvolvimento do Estado Plurinacional e a partir desta ótica se procura verificar o surgimento de outra perspectiva cidadã na região, solidificado nas constituições de alguns países.

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A cidadania comunitária é uma das preocupações centrais deste capítulo, entendendo que diferentemente da concepção liberal centrada no indivíduo, as considerações da cidadania comunitária giram em torno de outra visão de mundo, preocupada em atender a interesses da comunidade e localmente situados, de forma a reconhecer as singularidades e as diferentes identidades de um território. A cultura também passa a ter um papel fundamental nestas novas considerações, sem intenção de homogeneizar. O paradigma inserido aqui é outro, distante em grande medida das acepções do liberalismo discutidas no primeiro capítulo. Equador, Bolivia, Venezuela (em menor escala) tornam-se países analisados dentro desta perpectiva. A Autonomia Indigena Originario Campesina de Raqaypampa na Bolivia é utilizado para demonstrar na práxis as assertivas desenvolvidas neste capítulo.

O terceiro e último capítulo reflete uma ampliação do nosso olhar em que se procura identificar como nos Estado Plurinacionais, os discursos, a constituição, os blocos de integração criados, refletiram esta concepção de cidadania inovadora, influenciando na postura internacional e nos processos de integração regional destes Estados.

Por fim, para responder aos questionamentos levantados, a pesquisa se vale de levantamento bibliográfico qualitativo de autores e autoras que possibilitem compreender o desenvolvimento da cidadania pelo prisma liberal no desenvolver do primeiro capítulo. O segundo capítulo recorre principalmente à autores que possibilitaram entender a construção da cidadania coletiva e intercultural que contribuíram para os projetos políticos na Bolívia e Equador, com intelectuais que pensaram esta realidade. O papel fundamental aqui também é destacar as contribuições do Movimento Indígena como ator central na teoria e na prática desta perspectiva cidadã. O terceiro capítulo abriga bibliografia que respondam a filosofia do Vivir Bien dentro da construção política internacional, utilizando-se, portanto, de discursos, documentos oficiais que qualifiquem a inserção desta perspectiva nos processos analisados.

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2 CIDADANIA: ORIGEM E EVOLUÇÃO

Trabalhar com o conceito de cidadania é uma tarefa que exige uma demasiada atenção para que não se entre numa esfera de reducionismo que acaba por desenvolver uma errônea ideia do termo, na medida em que o ser cidadão apresenta em cada momento histórico, diferentes percepções (JELIN, 1996).

Neste sentido, faz-se necessário delinear a historicidade do termo para que se possa compreender as variáveis do qual se propõe refletir no trabalho, uma vez que a origem clássica do termo cidadão remonta a Grécia Antiga.

Nesta acepção, se considera as contribuições de Aristóteles para explicar o termo e o tempo histórico o qual em um primeiro momento se trabalha aqui, em razão do autor desenvolver o que seria a cidadania para os indivíduos naquele contexto de comunidade política (posteriormente o Estado), ou seja, na democracia grega.

O ser cidadão naquele contexto dependia de diversos fatores, na medida em que a busca pelo bem comum era a máxima a que todos os cidadãos deveriam perseguir, por meio da participação nas instâncias decisórias daquela comunidade política que se vivia, de modo a intervir diretamente nos assuntos que se referiam ao comunitário, diferenciando-se da participação por representação surgida mais tarde com o Estado liberal.

O que era necessário então para ser considerado um cidadão pelo autor citado anteriormente? Primeiramente, para Aristóteles, o exercício da cidadania dependia de um fator essencial relacionado a comunidade política no qual se participava, sendo este, o tipo de governo que ali era estabelecido, ou seja, o tipo de governo existente naquela cidade-estado influenciava a participação cidadã. O autor considera seis formas de governo: monarquia, aristocracia, governo constitucional, tirania, oligarquia e democracia. As três últimas são consideradas formas degeneradas de governo por estarem pautadas por interesses pessoais e não o bem comum da pólis. Não nos deteremos exaustivamente a esta análise no trabalho, cita-se para uma contextualização.

Seguindo, a cidadania no modelo grego estava diretamente ligada à ideia do "homem como animal político" e que, sendo cidadão, deveria trabalhar por um bem coletivo em detrimento de assuntos individuais, e as demandas que a cidade exigia,

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deveriam ser atendidas para preservação de sua comunidade. O cidadão, portanto, trabalha por um ideal coletivo, tomando suas decisões diante das esferas públicas para que alcance a plena realização:

Não é a residência que constitui o cidadão: os estrangeiros e os escravos não são "cidadãos", mas sim "habitantes".

Tampouco é a simples qualidade de julgável ou o direito de citar em justiça. Para isso, basta estar em relações de negócios e ter ao mesmo tempo alguma coisa a resolver. Mesmo assim, há muitos lugares em que os estrangeiros não são admitidos nas audiências dos tribunais senão quando apresentam uma caução. Não participam, então, a não ser de um modo imperfeito, dos direitos da Cidade. É mais ou menos o mesmo que acontece com as crianças que ainda não têm idade para serem inscritas na função cívica e com os velhos que, pela idade, estão isentos de qualquer serviço. Não podemos dizer simplesmente que eles são cidadãos; não são senão supranumerários; uns são cidadãos em esperança por causa de sua imperfeição, outros são cidadãos rejeitados por causa de sua decrepitude. Terão o nome que se quiser: o nome não importa desde que sejamos compreendidos. Procuramos aqui o cidadão puro, sem restrições nem modificações.

[...] Portanto, o que constitui propriamente o cidadão, sua qualidade verdadeiramente característica, é o direito de voto nas Assembléias e de participação no exercício do poder público em sua pátria (ARISTÓTELES, 2010, p. 31).

Igualmente, César Augusto Ramos (2013, p.67) afirma que Aristóteles recomenda o caráter plural da cidade, sendo condição essencial a diversidade de capacidades dos cidadãos para que os fins da comunidade política possam realizar-se de maneira adequada, no qual o pertencimento comunitário é a disposição destes indivíduos livres e iguais. Os homens livres, portanto, eram aqueles considerados cidadãos:

Entretanto, pode-se dizer que a cidadania grega era bastante restrita, posto que dela estavam excluídos os escravos, as mulheres, os estrangeiros, os comerciantes e os artesãos. Em Atenas, estavam aptos a participar das decisões políticas da pólis - do Estado, da cidade, os homens livres. Somente estes eram iguais em direitos e praticavam esta igualdade nas deliberações da vida pública. Vale ressaltar que tal distinção era considerada como natural, posto que o próprio corpo dos escravos, artesãos e comerciantes era considerado como próprio para o trabalho, enquanto o dos homens livres era considerado inútil para a força física, mas apto para a vida política e para as artes (VILLELA, 2008, p.22).

Como ressalta Viviane Villela (2008) a distinção praticada no âmbito das cidade-estado grega eram consideradas naturais devido a seu momento histórico e o

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entendimento situado da concepção cidadã.

Nota-se que "o interessante da concepção da cidadania grega é que, além de classificar juridicamente quem era ou não cidadão, a cidadania se caracterizava como uma manifestação da habilidade intrínseca que poderia ser desenvolvida e coletivamente exercida" (BRITO, 2012, s/p), além de no âmbito democrático considerado, exigia uma responsabilidade em prol da segurança do coletivo.

Torna-se necessário sinalizar que existe uma clara oposição entre a cidadania grega e a democracia representativa moderna, na medida em que na Grécia Antiga a participação era direta e os próprios cidadãos eram aqueles que decidiam pelas questões públicas, e na democracia representativa moderna, a participação acontece de modo indireto pela eleição de representante por uma periodicidade determinada. O autor Jaques Ranciére afirma que “as sociedades tanto no presente quanto no passado, são organizadas pelo jogo das oligarquias. E não existe governo democrático propriamente dito. Os governos se exercem sempre da minoria sobre a maioria” (2014, p. 70) e completa afirmando que o poder do povo, ou seja, no entendimento da democracia moderna “é o que desvia o governo dele mesmo, desviando a sociedade dela mesma. Portanto, é igualmente o que separa o exercício do governo da representação da sociedade” (Ibidem).

Dito isto, convém apontar que "se na Antiguidade prevalecia a idéia de que o homem é um ser político, e que se encontra inserido em uma relação social onde o todo se sobrepõe às partes, na Modernidade o indivíduo se liberta do poder absoluto de uma lei divina ou natural, exterior a ele" (LIMA, JÚNIOR, BRZEZINSK, s/d, p. 4) e inaugura uma nova fase onde as bases do que se denominou Estado moderno, alicerçado na cidadania, assentava na razão do contrato social as bases desta comunidade política.

Esta nova fase na história inaugura a queda do regime absolutista europeu e evidencia o surgimento de uma emergente classe dirigente neste processo. A burguesia como classe política do novo regime consolida a Modernidade assentada em princípios como o individualismo e à propriedade privada, em grande medida influenciados pelos pensamentos de John Locke e seu liberalismo político que acreditavam ser necessários a criação de uma organização política mediadora dos conflitos entre os homens (o Estado).

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A partir do século XV/XVI surgia então na Europa o que se denominou de Estado Moderno como uma entidade reguladora das paixões do homem por meio do pacto social, seguindo as ideias de Thomas Hobbes em o Leviatã.

As mudanças na estrutura econômica e política passam a estar relacionadas com os princípios burgueses de liberdade, igualdade e propriedade como basilares de todos os processos históricos vindouros por meio do conjunto de normas regentes destes novos Estados que surgiam. As instâncias políticas, as legislações e a partição de poderes desenvolveram-se de modo a englobar em seu meio os direitos dos princípios regentes das revoluções burguesas iniciada com a Revolução Inglesa do século XVII e as liberdades individuais delineadas no Bill of Rights de 1689, limitando o poder do rei e instituindo a propriedade privada como premissa fundamental da sociedade. A cidadania agora, ligava-se diretamente com estes preceitos, diferentemente do que era estabelecido na cidadania da Grécia Antiga.

No decorrer do século XVII e XVIII, a cidadania em seu percurso histórico encontra nas primeiras declarações de direitos princípios do liberalismo como projeto político e o capitalismo como tecido econômico, podendo ser observado na Declaração da Virgínia de 1776 e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 na França.

A Declaração da Virgínia estabelece princípios que ainda hoje podem ser observados tanto em documentos internacionais como nacionais. Cabe citar alguns deles:

I Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes,

e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança.

II Que todo poder é inerente ao povo e, conseqüentemente, dele procede;

que os magistrados são seus mandatários e seus servidores e, em qualquer momento, perante ele responsáveis.

III Que o governo é instituído, ou deveria sê-lo, para proveito comum,

proteção e segurança do povo, nação ou comunidade; que de todas as formas e modos de governo esta é a melhor, a mais capaz de produzir maior felicidade e segurança, e a que está mais eficazmente assegurada contra o perigo de um mau governo; e que se um governo se mostra inadequado ou é contrário a tais princípios, a maioria da comunidade tem o direito indiscutível, inalienável e irrevogável de reformá-lo, alterá-lo ou aboli-lo da maneira considerada mais condizente com o bem público.

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emolumentos ou privilégios exclusivos ou especiais da comunidade, senão apenas relativamente a serviços públicos prestados; os quais, não podendo ser transmitidos, fazem com que tampouco sejam hereditários os cargos de magistrado, de legislador ou de juiz (CONVENÇÃO DE DIREITOS DO BOM POVO DE VIRGÍNIA, 1776).

Neste sentido é possível observar que essa primeira geração de direitos se estabelece por meio de liberdades individuais, ou seja, direitos que protegem os indivíduos das possíveis arbitrariedades cometidas pelo Estado, por isso denominados direitos negativos (BEDIN, 2003, p.125). Aqui estão incluídos a liberdade de expressão, a propriedade privada, a presunção de inocência num processo legal, liberdade religiosa entre outras.

A posse de bens passa a ser considerada uma variável fundamental para efetiva participação no novo jogo político que se desenvolvera com a sociedade moderna-burguesa-liberal, e no decorrer do século XIX "o liberalismo teve a possibilidade de se encontrar com a democracia em seu apogeu" (VILLELA, 2008, p. 25).

A ideia de liberdade e igualdade permitem estabelecer uma relação entre o liberalismo e a democracia e neste ponto de vista pode-se afirmar que "o liberalismo é simplesmente a teoria e a prática da defesa através do Estado Constitucional da liberdade política individual, da liberdade individual" (SARTORI, 1987, p. 463, tradução nossa)2.

Portanto, no próximo subitem procura-se analisar como o conceito de cidadania historicamente veio se assimilando ao de democracia, e posteriormente, imbricado numa matriz teórica de tradição liberal. Esta associação se faz para os devidos delineamentos posteriores trabalhados nos próximos capítulos da dissertação.

2.1 LIBERALISMO, DEMOCRACIA E CIDADANIA

Historicamente, o conceito que aqui se trabalha de cidadania esteve inserido dentro de certas concepções políticas e econômicas que acabaram por traduzir no termo, desejos de universalização de uma classe política a partir de um contexto

2 Do original: [...] el liberalismo es simplesmente la teoría y la prática de la defensa a través del Es-tado constitucional de la libertad política individual, de la libertad individual (SARTORI, p. 463, 1987).

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histórico, iniciado com as revoluções burguesas do século XVII e a determinação por uma maior participação nas esferas de decisões do poder.

Nesta perspectiva, os anseios pelo estabelecimento de direitos diante do Estado Moderno que surgia, tornavam-se uma condição para o desenvolvimento econômico e político da classe burguesa, na medida em que igualmente, procurava estabelecer as denominadas liberdades negativas perante o Estado, como a proteção à propriedade privada e à consolidação de direitos políticos perante esta entidade reguladora.

Cabe mencionar também que o surgimento e formação do Estado liberal, segundo Bobbio (2000) deve ser entendido como uma expansão das liberdades religiosas e econômicas, uma vez que a sociedade que passara a se desenvolver a partir do século XVII, foram sociedades que saíram de Estados confessionais para Estados que não mais estariam subjugados a um poder divino:

[...] é um fato que a história do Estado liberal coincide, de um lado, com o fim dos Estados confessionais e com a formação do Estado neutro ou agnóstico quanto às crenças religiosas de seus cidadãos, e, de outro lado, com o fim dos privilégios e dos vínculos feudais e com a exigência de livre disposição dos bens e a liberdade de troca, que assinala o nascimento e o desenvolvimento da sociedade mercantil burguesa (BOBBIO, 2000, p. 22).

Neste sentido, ainda segundo a leitura de Bobbio, o liberalismo entende o Estado como um mal necessário para alcançar os objetivos de desenvolvimento dos indivíduos, promovendo a liberdade individual como satisfação de seus interesses.

É interessante notar também que, diferentemente da Antiguidade, citada no início deste capítulo, agora, na modernidade, as sociedades estão organizadas perante um pacto promotor de interesses individuais e que no fim, possibilite o exercício de um Estado de direito.

A este respeito, nota-se que surge o Constitucionalismo para dar conta de toda essa complexidade, assegurando que o indivíduo a partir de então, seja detentor de direitos naturais e invioláveis perante o Estado, ou seja, a doutrina jusnaturalista acompanha os processos de consolidação das nações surgidas. Mais uma vez recorremos a Bobbio para aclarar esta indagação:

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O pressuposto filosófico do Estado liberal, entendido como Estado limitado em contraposição ao Estado absoluto, é a doutrina dos direitos do homem elaborada pela escola do direito natural (ou jusnaturalismo): doutrina segundo o qual o homem, todos os homens, indiscriminadamente, têm por natureza e, portanto, independentemente de sua própria vontade, e menos ainda da vontade de alguns poucos ou de apenas um, certos direitos fundamentais, como direito à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade – direitos esses que o Estado, ou mais concretamente aqueles que num determinado momento histórico detêm o poder legítimo de exercer a força para obter a obediência a seus comandos deve respeitar, e portanto não invadir, e ao mesmo tempo proteger contra toda possível invasão por parte dos outros (2000, p. 10).

Os limites do poder então estariam positivados por meio das garantias constitucionais que foram se afirmando dentro do Estado, fundamentalmente para promover uma igualdade de direitos para todos, ou seja, é a máxima do qual o autor supracitado nos fala, o estabelecimento da igualdade na liberdade para este Estado liberal. Isto leva a pensar na relação que se propôs a explicitar entre liberalismo e democracia, na medida em que, se em um primeiro momento parece-nos estranho, pensando historicamente, ao longo dos anos essa relação díade, foi se consolidando como inseparável. A seguir se explica o por que.

A democracia como fórmula política pensada para o exercício da soberania popular (BOBBIO, 2000) se encontra com o liberalismo justamente em sua preocupação no estabelecimento das limitações do poder dos governantes, uma vez que a participação pelo voto asseguraria os cidadãos uma precaução quanto a possíveis ingerências abusivas dos governos.

A respeito da democracia cabe tecer algumas considerações antes de dar prosseguimento ao trabalho. Se no século XXI é indispensável que a democracia é a melhor forma de se governar uma comunidade política3, historicamente não houve

consenso tanto no entendimento teórico quanto da prática social democrática ser a mais adequada forma de governo.

Definir o que é democracia, como a história demonstra, tem sido uma tarefa árdua e de grande complexidade visto que as percepções acerca do termo podem implicar em um esvaziamento e distanciamento de práticas que contribuiriam para

3 Essa percepção vem caindo segundo o Latinobarômetro, onde o apoio a democracia como melhor regime de governo era de 54% em 2015 passando para 53% em 2017. Para mais informações con-sultar: http://www.latinobarometro.org/latNewsShow.jsp.

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estabelecer uma coerência governamental.

A concepção clássica de democracia relaciona-se com a participação direta do demos (povo) na resolução dos problemas e demandas que as cidades-estados exigiam e das questões relativas a seu próprio desenvolvimento como povo. Em nada se parecia com a definição moderna de democracia, que necessariamente passa pela variável da representação via eleições.

Na antiguidade os próprios cidadãos decidiam aquilo que lhes melhor cabia naquele período. Era o poder do povo, entendido aqui como um grupo restrito de indivíduos reconhecidos como cidadãos. A este respeito Bobbio afirma que:

O que se considera que foi alterado na passagem da democracia dos antigos à democracia dos modernos, ao menos no julgamento dos que vêem como últil tal contraposição, não é o titular do poder político, que é sempre o "povo", entendido como o conjunto dos cidadãos a que cabe em última instância o direito de tomar as decisões coletivas, mas o modo (mais ou menos amplo) de exercer esse direito: nos mesmos anos em que, através das Declarações dos Direitos, nasce o Estado Constitucional moderno, os autores do

Federalista contrapõem a democracia direta dos antigos e das cidades

medievais à democracia representativa, que é o único governo popular possível num grande estado (2000, p.32).

Outro autor que consideraremos para as explicações e reflexões dos quais se quer considerar neste capítulo são algumas afirmativas de Robert Dahl sobre o que ele denomina de poliarquia, termo empregado para designar as democracias representativas contemporâneas e que o autor considera como melhor forma de governo.

O apreço de Dahl pela democracia liberal é corporificado "em pelo menos dez razões que justificam a superioridade do sistema democrático frente a qualquer outra alternativa" (PEREIRA, 2013, p. 25), no entanto, para os fins deste trabalho, consideraremos apenas duas destas razões, por questões metodológicas e temporais.

A primeira razão considerada refere-se ao fato da democracia evitar a violência de estado e à tirania, ou seja, no que se considera democracia, a alternância de poder torna-se fórmula essencial para evitar que um número muito reduzido de pessoas, ou somente uma pessoa, governe.

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O segundo ponto considerado por Dahl em relação a defesa pela democracia, aduz que os direitos essenciais do homem, dentro desta forma de governo, estariam resguardados, ou seja, lê-se aquela premissa de direitos fundamentais característica de um Estado democrático de direito (liberal):

A democracia garante a seus cidadãos uma quantidade de direitos fundamentais que os governos não democráticos não garantem e nem podem garantir. Aqui é oportuno dizer que, para Dahl, a democracia não é vista somente como um procedimento de governo, pois como os direitos são elementos necessários nas instituições políticas democráticas, a democracia também é inerentemente um sistema de direitos. Desse modo, a consagração dos direitos fundamentais funciona como que um alicerce para a construção de um processo de governo democrático (PEREIRA, 2013, p. 26).

Nesta perspectiva, Dahl salienta também para a fundamental importância de que os cidadãos dentro deste jogo democrático devem conseguir alcançar os direitos efetivados constitucionalmente, portanto, a mera efetivação de leis que assegurem os direitos de exercício da cidadania, não basta nesta teia política. Os cidadãos, sumamente, devem alcançar esta democracia de maneira a ter garantido tanto juridicamente, como a execução prática dos direitos, estes inalienáveis.

Deve-se atentar que para os autores citados anteriormente, a democracia, em sua forma participativa funde-se com a expressão máxima de eleição de um grupo com os atributos necessários para tomarem as decisões referentes as esferas públicas, ou seja, é dizer que ao cidadão comum é delegado um limite que este não deve adentrar por ser possuidor de características propensas à um pensamento autoritário, o que prejudicaria o andamento da democracia, e nas palavras de Dahl, a poliarquia poderia ter prejuízos causados pelas classes populares se esta assim tivesse uma participação estimulada (SILVA, 1999, p. 13-14).

John Rawls a respeito da construção de uma sociedade baseada em uma democracia liberal constitucional discorre sobre os fatores que devem ser basilares para que se alcance a forma mais justa de desenvolvimento social e para o autor, assegurar as liberdades individuais torna-se um ponto crucial e primário de toda construção que atravesse a democracia (liberal).

Rawls parte do “princípio da razoabilidade de doutrinas plurais”, no qual as diversidades das concepções individuais dos cidadãos podem conviver

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harmoniosamente por estes, a partir da razoabilidade e da racionalidade, que concebem uma convivência harmônica mesmo que as divergências possam se apresentar:

As pessoas razoáveis percebem que os limites da capacidade de juízo colocam restrições àquilo que pode razoavelmente ser justificado a outros e, por isso, subscrevem alguma forma de liberdade de consciência e a liberdade de pensamento. Não é razoável que empreguemos o poder político se dispusermos dele ou o compartilhemos com outros, para reprimir doutrinas abrangentes que não são desarrazoadas. Elas são razoáveis quando dispõem a propor princípios e critérios que possam constituir termos equitativos de cooperação e quando se dispõem voluntariamente a se submeter a eles (SANTOS BRAGA, s/d, p. 8).

Diante deste entendimento, aparece segundo o autor a questão da razão pública. A razão pública, com as suas devidas delimitações, atuaria no âmbito de um contexto político para juízes e funcionários do governo, por exemplo, (RAWLS, 200). O povo ou as classes populares, não teriam participação aqui.

Esta sociedade bem ordenada do qual Rawls fala é regida pelas garantias constitucionais como prioridade sob outros elementos onde os cidadãos agem segundo princípios de justiça endossados por todos os cidadãos livres e com sua individualidade garantida:

(...) podemos dizer que a sociedade bem-ordenada da justiça como equidade é um bem em dois sentidos. O primeiro é ser um bem para as pessoas individualmente, e por duas razões. Um delas é que o exercício das duas capacidades morais é percebido como um bem. Trata-se de uma consequência da psicologia moral utilizada pela justiça como equidade. E, que seu exercício pode ser um bem importante, e o será para muitas pessoas, é algo que fica claro em vista do papel centras dessas capacidades na concepção política de cidadãos enquanto pessoas. Vemos aos cidadãos, tendo em vista os propósitos da justiça política, como membros normais e plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida e, por isso, como indivíduos que têm as capacidades morais que lhes possibilitam assumir esse papel. Nesse contexto, podemos dizer que ter as duas capacidades morais que embasam a capacidade de participar de uma cooperação social equitativa faz parte da natureza essencial dos cidadãos (na concepção política).

Uma segunda razão para dizermos que a sociedade política é um bem para os cidadãos é que lhes garante o bem da justiça e das bases sociais de seu auto-respeito e do respeito mútuo. Assim sendo, ao assegurar iguais direitos e liberdades fundamentais, igualdade equitativa de oportunidades e assim por diante, a sociedade política garante os elementos essenciais do reconhecimento público das pessoas como cidadãos livres e iguais. Ao garantir essas coisas, a sociedade política satisfaz as necessidades fundamentais dos cidadãos (RAWLS, 2000, p. 251-252).

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A satisfação destas necessidades seria alcançada por meio das estruturas do Estado no qual a Constituição exerce papel como ordenador majoritário e os direitos inscritos nela igualmente garantidores dos direitos para uma justiça social (COUTO, 2012, p. 61-62). As constitucionalizações dos princípios estabelecidos em comum pelos indivíduos promoveriam a resolução dos conflitos visto que foram decididos por todos, onde o justo preceda o bem.

Desta forma, o autor aponta para uma democracia via representação como destino possível para alcance dos seus delineamentos, e a participação do povo seria de certa forma restrita trazendo assim a concepção de democracia liberal convencional, no qual se estabelece que:

(...) as decisões são sempre majoritárias e são ancoradas na racionalidade. Para esta perspectiva, o que é fundamental nas decisões, portanto, não é a participação direta do povo, mas o respeito desta dos direitos fundamentais de todos, isto é, dos direitos liberais básicos (COUTO, 2012, p. 66).

Giovanni Sartori ao discorrer sobre um sistema de controle e limitações de poderes, afirma categoricamente que a democracia representativa é vantajosa e o mais adequado governo dentro dos processos políticos sociais:

[...] la democracia indirecta, es decir, representativa, no es solamente uma atenuante de la democracia directa sino también, uma corrección. Uma primera vaentaja del gobierno representativo es que um proceso político entretejido de mediaciones permite escapar a las radicalizaciones elementales de los procesos directos. Y la segunda ventaja es que la participación no es más sine qua nuon, aun sin "la participación total" la democracia representativa subsiste siempe como um sistema de control y limitación del poder. Ello permite a la sociedad civil, entendida como sociedad pre-política, como esfera autónoma y autosuficiente, desarrollarse como tal. Em fin, el gobierno representativo libera com fines extra políticos, de actividad económica u outra, um enorme conjunto de energías que em la polis se ve absorbibo por la política (s/d, p. 123, grifos do autor).4

4 [...] a democracia indireta, isto é, democracia representativa, não é apenas um fator atenuante para a democracia direta, mas também uma correção. Uma primeira característica do governo representa-tivo é que um processo político entrelaçado com mediações permite escapar às radicalizações

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A partir deste entendimento, a representação se torna uma variável essencial tanto para o liberalismo quanto para a democracia que se consolidava à medida em que ao Estado era delegado a função de "manutenção da ordem pública interna" (BOBBIO, 2000) por meio de um governo popular de representantes eleitos para tal função. Esta é a forma de exercício da soberania popular dentro do que se entende por democracia liberal, ou seja, remete-se a uma democracia de representação onde quem decide são os governantes eleitos e não necessariamente o povo.

O entrelaçamento entre o Estado liberal em um primeiro momento, e o Estado democrático demonstram que no que se refere a perseguição de um ideal comum de fixação de liberdades para o indivíduo dentro da sociedade, um não teria sido possível sem o outro, na medida em que para a preservação de direitos civis e políticos, foi necessária uma evidente transformação do aspecto restritivo que se tinha do Estado liberal para um aspecto de representação popular como legitimadora da permanência do liberalismo dentro do jogo político.

A cidadania dentro de todo esse processo era encarada como o estabelecimento de direitos que passaram à estar relacionados com esta democracia liberal, e a um Estado que via em seu bojo político e econômico formas e leis que resguardavam ao indivíduo direitos para o seu pleno desenvolvimento dentro do se considerava um sistema político.

Para compreensão das considerações que se procura fazer acerca da cidadania e suas transformações diante de uma perspectiva histórica, recorre-se a T.H. Marshall para situar o que historicamente se denominou de cidadania envolvendo três elementos lineares segundo o autor: direitos civis, políticos e sociais, e, além disso, "a utilidade do esquema de Marshall reside, principalmente, em destacar no processo de democratização do estado liberal momentos em que um desses grupos de direitos tiveram sua predominância" (BARRETO, 1993, p. 33)".

elementares dos processos diretos. E a segunda vantagem é que a participação não é mais sine qua non, mesmo sem a "participação plena", a democracia representativa permanece sempre como um sistema de controle e limitação de poder. Isso permite que a sociedade civil, entendida como uma so-ciedade pré-política, como esfera autônoma e auto-suficiente, se desenvolva como tal. Em suma, o governo representativo libera para fins extrapolíticos, atividade econômica ou outra, um enorme con-junto de energias que na polis é absorvido pela política (tradução nossa).

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Os direitos civis, oriundos do século XVIII são direitos caracterizados como liberdades negativas, pois dão aos indivíduos direitos em relação a arbitrariedade que poderiam ser cometidos pelo Estado, ou seja, no âmbito da relação que se estabelecia nesse processo de nação, a limitação do poder estatal era uma premissa diante daquela sociedade. O Estado, como um "mal necessário", deveria garantir a propriedade privada para o pleno funcionamento da nova dinâmica político-econômico que se formava numa crescente economia de mercado. A nova ordem econômica necessitava de "igualdade de direitos e obrigações" (BARRETO, 1993, p. 34).

Os direitos políticos consolidados no século XIX tinham na representação política a sua referência institucional, pois neste período o Estado de direito criou um ordenamento jurídico como aparato para o funcionamento da economia de mercado pulsante, e concomitantemente, ocorreu a inclusão de novos atores sociais no status de cidadão. O direito a votar e ser eleito era então estabelecido.

Destarte, no século XX inaugura uma fase importante no que se refere à atuação do Estado nesta sociedade liberal, uma vez que o estado de bem-estar social, na tentativa de responder as crescentes demandas de setores não priorizados no jogo institucional posto até então, reconhece direitos sociais para minimizar as disparidades econômicas oriundas do contexto de livre mercado. Denomina-se também de direitos de segunda geração que englobam os direitos sociais, econômicos e culturais. As lutas sociais do operariado inglês foram fundamentais nesta nova dinâmica que exigiam uma intervenção estatal àqueles desfavorecidos no contexto social:

O direito de segunda geração, ao invés de se negar ao Estado uma atuação, exige-se dele que preste políticas públicas, tratando-se, portanto de direitos positivos, impondo ao Estado uma obrigação de fazer, correspondendo aos direitos à saúde, educação, trabalho, habitação, previdência social, assistência social, entre outros (JUNIOR, s/d, p. 4).

As três dimensões de elementos que compõe a cidadania para Marshall permite fazer uma alusão à própria concepção de matriz cidadã e democrática que foram se incorporando ao Estado liberal, a considerar por meio da constitucionalização de direitos, um processo intrínseco a sua formação. A dimensão da cidadania se consolidava como um projeto institucional que reconhecia nas gerações do direito (1ª, 2ª, 3ª) os pressupostos para um pleno exercício cidadão, por

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meio de liberdades que ao longo da história foram se concretizando na seara do Estado.

O desenvolvimento da sociedade capitalista no decorrer do século XX e XXI apresenta ao Estado desafios antes não considerados, como a crescente insatisfação da classe trabalhadora com a falta de dinamização social que ocorria oriunda das políticas econômicas e sociais até então adotadas, na medida em que o liberalismo se consolidou como uma esfera econômica que generalizava todos os indivíduos, independentemente se estivesse no topo ou na base da pirâmide social.

O século XX também representou para a humanidade um período de grandes instabilidades advindas das guerras mundiais sucedidas entre 1914-1918 e 1939-1945, provocando uma inflexão no sistema-mundo e nos direitos até então conquistados. A sociedade que a partir de então se desenhava permeava-se pela bipolaridade de um sistema econômico, político e social antagônico. A Guerra Fria, colocava as nações num patamar de crescentes incertezas. A vertente do socialismo passou a questionar o capitalismo-liberal como única via de organização política dentro do mundo, e tornava-se um ponto de desagrado das maiores potências econômicas da época.

A derrocada da União Soviética em 1989 e a prevalência de um modo de vida (o capitalismo) hegemônico a partir de então, destacava que a reformulação do capital deu conta de conquistar as entranhas dos países de todo o mundo, à exceção de Cuba. O capitalismo se consolidava então como sistema econômico mundial sem questionamentos, e o Estado nacional, igualmente, demonstrava mais uma vez suas contradições.

A década de 1990 representou o que se considera aqui de uma nova prospecção dos preceitos liberais e significou a sua implementação com afinco em diversos países, aliados ao fenômeno de uma globalização sem precedentes e uma interdependência econômica de igual valor. A respeito disso Octavio Ianni afirma:

As noções de interdependência, dependência e imperialismo também estão postas em causa, se admitimos que o estado-nação está em crise, enfrenta uma fase de declínio, busca reformular-se. As grandes e pequenas nações, centrais e periféricas, dominantes e subordinadas, ocidentais e orientais, ao sul e ao norte, todas se deparam com o dilema da reformulação das

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condições de soberania e hegemonia. É claro que há blocos, geopolíticas, imperialismos, dependências e interdependências nesse mesmo cenário. Há vínculos antigos e novos que atrelam nações umas às outras, não só em condições de igualdade mas principalmente de desigualdades. Também as organizações internacionais, compreendendo a ONU, FMI, BIRD, GATT e outras exercem as suas atividades priorizando interesses de nações com maior poder econômico, político, militar, cultural. Essa continua a ser uma dimensão importante do cenário mundial. Simultaneamente, no entanto, declinam e reformulam-se as condições de soberania e hegemonia, em todos os quadrantes. Mesmo porque já há centros de poder, em escala global, que sobrepassam soberanias e hegemonias. As empresas, corporações e conglomerados transnacionais, em suas redes e alianças, em seus planejamentos sofisticados, operando em escala regional, continental e global, dispõem de condições para impor-se aos diferentes regimes políticos, às diversas estruturas estatais, aos distintos projetos nacionais (1994, p. 152,153).

O Estado neste cenário se apresenta como um ente garantidor das cartilhas de privatização e com pouca interferência nos assuntos comerciais, dando lugar as empresas transnacionais e a uma reformulação do liberalismo para atender aos interesses de classes não populares, formando um monopólio de variáveis econômico-políticas.

O papel estatal neste novo sistema restringia-se a dar continuidade a um projeto de limitação de poder e de promoção de uma participação igualmente limitada da população, designando a esta crescentes processos de desigualdades.

Neste período, podemos considerar que o sistema internacional assistia à implementação de uma matriz (neo)liberal em seus países, derrocando em um sucateamento dos serviços do Estado (saúde, educação, previdência social) e uma falta de investimento em políticas sociais, em virtude de se assegurar maior lucro àqueles detentores do capital. O papel do FMI é essencial nesta conjuntura, por meio de sua cartilha de estruturação dos países influenciados pelos desejos estadunidense.

A conjuntura do qual procuramos contextualizar nos parágrafos acima é fruto da dimensão histórico-política e econômica que irá situar a crise do Estado nacional (liberal) a partir do que se considera as dimensões de poder limitado que se desenvolveram com o advento do neoliberalismo nas sociedades globalizadas a partir principalmente da década de 1990, e que ainda hoje se apresenta como um paradigma de difícil superação, visto que a sua consolidação vem se realizando a séculos, seja pelo fortalecimento de instituições que necessitam desse ente para sobreviver ou pelas próprias reformulações que tem passado no decorrer dos anos. A

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adaptação a cada momento histórico tem sido uma importante ferramenta para sobrevivência do que entendemos como Estado em sua vertente liberal, por meio de concessões a forças econômicas ou a seu funcionamento como uma burocracia que em determinados momentos propicia o estabelecimento de políticas mais ou menos direcionadas as forças populares.

Para um contexto localmente situado, a saber, a América Latina, se torna essencial perceber que os acontecimentos evidenciados acima desdobraram-se nas características políticas, sociais, econômicas e culturais da região, desenvolvidas nos processos de racionalização de seus Estados nacionais que tem no século XIX a sua formação, um período em que a grande maioria das colônias hispânicas e portuguesas tornaram-se independentes, ao menos formalmente, inscrevendo na história da região novos paradigmas para consolidação daqueles recém-formados Estados que necessitavam de um aparato institucional (leis, instituições) para dar continuidade ao projeto de sociedade liderado por uma elite governante.

O que prevaleceu naquele momento foi às concepções políticas, econômicas e sociais que no século XV/XVI os europeus utilizaram para concretizar seus Estados e dar seguimento a organização social do qual almejavam construir e fortalecer. Foram os preceitos do liberalismo advindo da Revolução Gloriosa inglesa de 1688 e do Bill of Rights de 1689 que direcionaram a formação dos Estados na América Latina. A independência foi um processo que se desenvolveu de “cima para baixo”, com a preponderância de uma oligarquia que estava alinhada a princípios que não correspondiam à realidade local:

Lo indígena no fue tomado en cuenta para la formación de esas nuevas repúblicas oligárquicas de blancos criollos que aspiraban más que nada a imitar a Europa, salvo para lanzar algunas alusiones retóricas a los incas, para usar a indígenas como carne de cañón en las guerras de Independencia y otras ulteriores y para reintroducir el tributo indígena como sostén básico del Estado, pese a que Bolívar lo había abolido. Cuando décadas después algunas tierras comunales se hicieron más apetecibles por la importancia comercial de la lana, la minería o su cercanía a la nueva red ferroviaria, las oligarquías locales no dudaron tampoco en apoderarse de ellas y transformarlas en haciendas. Por todo ello, desde la perspectiva indígena la Independencia nunca fue tal (ALBÓ, 2002, p. 109).5

5 Os indígenas não foram levados em conta para formação dessas novas republicas oligárquicas brancas crioulas que aspiravam mais que nada a imitar a Europa, exceto para lançar algumas alu-sões aos incas, para usar os indígenas como bucha de canhao nas guerras de independência e

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Neste sentido, a relação que se estabelecia entre Estado e sociedade eram predominantemente desiguais e de distanciamento, provocada por um processo independentista que não foi capaz de estabelecer um diálogo com as diversidades étnicas, culturais e sociais presentes na região. A cidadania, atrelada à própria formação do Estado-nação na região (CARVALHO, 2008), se estabelecia de forma universalizante e homogeneizadora, vinculada ao entendimento do liberalismo econômico, transportada a um eixo linear de direitos civis, políticos e sociais.

O que se estabelecia a partir de então foram Estados que tinham a centralidade nos direitos de liberdade, igualdade e propriedade privada como base estruturante dessa organização político-social que surgia promovendo a homogeneização de símbolos como tentativa de consolidar e formar valores comuns à população destes territórios. Consideraremos este ente como Estado Liberal latino-americano.

A partir de então o que se estabelecia como direito para as sociedades latino-americanas ainda em formação era a positivação de leis e obrigações oriundas da influência da Revolução Inglesa, a Revolução Americana e a Revolução Francesa como eixos norteadores de todos os processos relacionados a participação política, social e econômica dentro dos Estados que se formaram. Os indivíduos passaram então a serem reconhecidos diante da institucionalização de direitos que se relacionavam com a teorização de T.A. Marshall (1963), com os eixos liberdade, participação e igualdade para todos como premissas para o exercício cidadão nesses Estados.

Desta forma, a cidadania para a concepção liberal:

[...] es el conjunto de derechos y obligaciones que los habitantes de una nación poseen por ser miembros de ella; en este sentido, es una agrupación regulada por la autoridad, el Estado, que protege los intereses de los ciudadanos y vigila la aplicación de las normas. Se refiere a los derechos universales del individuo.

outras e para reintroduzir o tributo indígena como sustentação do Estado, mesmo que Bolívar o havia abolido. Quando décadas mais tarde algumas terras comunais se tornaram atraentes devido a impor-tância comercial da mineração ou de sua proximidade com a nova rede ferroviária, as oligarquias lo-cais não hesitaram em aproveitá-las e transformá-las em haciendas. Por tudo isso, da perspectiva in-dígena, a independência nunca aconteceu (tradução nossa).

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Sin embargo, esta idea formal de ciudadanía, detrás de su universalidad, oculta, enmascara las diferencias, las desigualdades surgidas de las posiciones sociales y económicas que los individuos ocupan (BOLOS, 2005, p.2).6

Para ser cidadão nos países no período pós-independência era necessário possuir ao menos uma das categorias de direitos civis, políticos ou sociais, ou as três, considerando suas peculiaridades.

Os direitos civis se relacionam diretamente com a liberdade individual, ou seja, “são os direitos fundamentais a vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. (...) são eles que garantem as relações civilizadas entre as pessoas e própria existência da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo” (CARVALHO, 2008, p. 9).

Os direitos políticos basicamente são os direitos ligados a participação do indivíduo nos assuntos da sociedade, ou seja, estão diretamente relacionados com o direito de elegibilidade dentro das esferas públicas governamentais. José Murilo de Carvalho afirma que “os direitos políticos têm como instituição principal os partidos e um parlamento livre e representativo. São eles que conferem legitimidade à organização política da sociedade. Sua essência é a ideia de autogoverno” (2008, p. 10-12).

Por fim, os direitos sociais, seguindo à ideia do autor citado anteriormente, referem-se à concepções de uma justiça social através da distribuição da riqueza coletiva almejando reduzir as disparidades oriundas do sistema capitalista, ou seja, através de uma administração da máquina pública às desigualdades socialmente existentes seriam reduzidas por essa riqueza distribuída coletivamente (CARVALHO, 2008).

Neste sentido é notável que nas sociedades que surgiam no século XIX/XX na

6 [...] É o conjunto de direitos e obrigações que os habitantes de uma nação possuem por serem membros dela; neste sentido, é uma agrupação regulada pela autoridade, o Estado, que protege os interesses dos cidadãos e vigia a aplicação das normas. Se refere aos direitos universais dos indiví-duos. No entanto, esta ideia formal de cidadania, por trás de sua universalidade, oculta, mascara as diferenças, as desigualdades surgidas das posições sociais e econômicas que os indivíduos ocupam (tradução nossa).

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