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Chefes, aldeias e suas histórias : memória e política no Alto Xingu

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTDUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DIOGO HENRIQUE CARDOSO

Chefes, Aldeias e suas Histórias:

Memória e Política no Alto Xingu

Campinas 2018

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DIOGO HENRIQUE CARDOSO

Chefes, Aldeias e suas Histórias:

Memória e Política no Alto Xingu

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Roberto Guerreiro Junior

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação, defendida pelo aluno Diogo Henrique Cardoso e orientada pelo Prof. Dr. Antonio Roberto Guerreiro Junior em 05/11/2018.

Campinas, SP 2018

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Cardoso, Diogo Henrique,

C179c CarChefes, aldeias e suas histórias : memória e política no Alto Xingu / Diogo Henrique Cardoso. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

CarOrientador: Antonio Roberto Guerreio Júnior.

CarDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Car1. Etnologia - Xingu, Rio (MT e PA). 2. Índios Kalapalo. 3. Línguas caribe. 4. História oral. I. Guerreiro Júnior, Antonio Roberto, 1984-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Chiefs, villages and their histories : memory and politics in the

Upper Xingu

Palavras-chave em inglês:

Ethnology - Xingu, Rio (MT e PA) Kalapalo Indians

Karib Languages Oral history

Área de concentração: Antropologia Social Titulação: Mestre em Antropologia Social Banca examinadora:

Antonio Roberto Guerreiro Júnior Aline Fonseca Iubel

Marina Vanzolini Figueiredo

Data de defesa: 05-11-2018

Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada aos cinco de novembro de 2018, considerou o aluno Diogo Henrique Cardoso aprovado.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Antonio Roberto Guerreiro Junior (PPGAS/Unicamp) Prof. Drª. Aline Fonseca Iubel (PGGAS/Unicamp)

Prof. Drª. Marina Vanzolini Figueiredo (PPGAS/USP)

A Ata da Defesa, com as respectivas assinaturas dos membros, encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Para Hagema Kalapalo, ―pai‖ (apa), e Daniel L. Cardoso, uhinhano (―meu irmão mais velho‖)

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Agradecimentos

Sem a confiança, o cuidado e a generosidade de minha família indígena, na qual incluo todos os moradores da aldeia Caramujo, este trabalho não poderia ter sido feito. Minha mãe, Kaua, meu tio e tia Airá e Kanhu, meus irmãos Napü e Samuel, minhas irmãs Cida, Ana Maria, Iemanjá, Ligia, meus primos, primas, sobrinhos, sobrinhas, cunhado(a): Lamati, Nahugigu, Kujauma, Aipatse, Breno, Akuku, Isaura, Jauaikuma, Tsumaku, Katisa, Jho... enfim, todos que, durante o tempo em que me receberam eu suas casas, me ofereceram muito mais que um incentivo para fazer essa pesquisa: a

viveram comigo, me ensinando e dando a viver muito mais do que ela através de seu dia

a dia na aldeia: obrigado! Eu tenho muita saudade de estar aí com vocês.

Em especial, agradeço a Hagema Kalapalo, apa (―pai‖), professor, parceiro de caminhada, quem me acompanhou desde o primeiro dia em que cheguei em Canarana, me acolheu em sua casa, me incentivando a escrever, a pensar, a ter coragem e força para construir uma vida melhor para todos nós: eu entrego este trabalho para você.

Também não poderia deixar de agradecer, em particular, a Paiatu: Hehu, obrigado pelas aulas de kalapalo, de pesca, pelas transcrições e traduções das narrativas que estão neste trabalho e por todo o companheirismo na aldeia. Agradeço também a toda a sua família, que mora em Kaluani, pelas inúmeras vezes em que me receberam em sua casa com tanto carinho e generosidade. Um fraterno abraço no Max, Luano, Peiecu, Bruce e Mathie, pela parceria, aulas (dadas e recebidas), pelas garupas na moto, pelas risadas e pela amizade.

Ao meu orientador Antonio Guerreiro, sou grato por toda dedicação e incentivo com o qual tem me guiado na pesquisa desde a graduação. Sempre acessível, humilde e horizontal, dentro e fora do ambiente das aulas e reuniões, me abriu incontáveis caminhos de pensamento. Em particular, agradeço pela confiança, paciência e esforço em me orientar no mestrado, me possibilitando conhecer o Xingu e ajudando a redigir, com diversas leituras, críticas, materiais e sugestões esse trabalho.

A minha mãe Mara, meu pai Manoel, e ao meu irmão Daniel: sem o suporte familiar de vocês, a segurança e o incentivo cotidiano que me dão, jamais teria conseguido realizar meus estudos, muito menos fazer mestrado numa área que pude escolher com garra e paixão em razão de seus cuidados e exemplo.

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A Lara, companheira, amiga, cuidadora, presente que me aterrizou tantas vezes nos momentos difíceis da escrita, acompanhando-me de perto com sua silenciosa tranquilidade, agradeço do fundo do meu coração por tudo que é e me fez ser. Sempre me dando força e alegria, me fazendo ver beleza nas pequenas coisas, me ajudou a permanecer em movimento... Se não fosse por ela, teria ficado atolado várias vezes no caminho.

As amigas e amigos do projeto SiRAT: Luiza Serber, Ian Packer, Fernanda Amaro, Betânia Lima, Veronica Monachini, entre outros, agradeço por todas as vezes em que pude compartilhar ideias desse trabalho com vocês e recebi comentários e ideias que tanto o enriqueceram. Em especial, agradeço a Gabriela Aguillar, pela terna amizade e por todas as conversas acolhedoras ao longo do processo da escrita.

A professora Suely Kofes, por todas as vezes em que, desde a graduação, se dispos a me ouvir sobre minhas ideias de pesquisa (que tanto mudaram desde lá). Depois, por ter aceitado participar do exame de qualificação deste trabalho: obrigado pelo olhar despertante e sutil com que leu a versão parcial dessa dissertação; sem as suas leituras boa parte dela (e talvez eu) estaria ainda num zanzar sem rumo.

Agradeço à professora Marina Vanzolini, pela leitura que fez da versão parcial desse trabalho em minha qualificação, realçando pontos chaves de meu diálogo com a bibliografia e para a estrutura do texto final, e por ter aceitado a participar da banca de minha defesa. Por esse mesmo motivo, agradeço às professoras Adriana Testa, Aline Iubel e ao professor Renato Stztutman, por se/me entusiasmarem a receber este texto final.

Aos meus amigos Marcelo Hanser Saraiva, Daniel Dinato, Vitor Queiroz e Pedro Spigolon Barbosa, pelas infintas vezes em que, conversando e se alegrando, nos demos conselhos e ideias que estão na base desse trabalho (e de outros). Obrigado, sobretudo, pela amizade, carinho e horas fora das horas, onde o meu e o nosso não se distinguem.

Agradeço, por fim, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelas bolsas de estudo que possibilitaram o desenvolvimento da pesquisa através do processo nº 2016/04777-8, e ao projeto Jovem Pesquisador ―Sistemas Regionais Ameríndios em Transformação: o Caso do Alto Xingu‖ (processo FAPESP nº 2013/26676-0), pelo auxílio na realização de minhas viagens de campo.

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[...] Dans des régions diverses de l‘expérience, je crois apercevoir des groupes différents de faits, dont chacun sans nous donner la connaissance désirée, nous montre une direction où la trouver. Or, c‘est quelque chose que d‘avoir une direction. Et, c‘est beaucoup que d‘en avoir plusieurs, car ces directions doivent converger sur un même point, et ce point est justement celui que nous cherchons. Bref, nous possédons dès à présent un certain nombre de lignes de faits, qui ne vont pas aussi loin qu‘il faudrait, mais que nous pouvons prolonger hypothétiquement. Je voudrais suivre avec vous quelques-unes d‘entre elles.

Henri Bergson, La conscience et la vie

Para alguém enlouquecer, ensinou o psicanalista Harold Searles, é preciso um longo exercício de abandono, desafinação e desajuste de dádivas.

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RESUMO

Essa dissertação visa descrever possíveis enlaces entre memória e política a partir do modo como pessoas e suas histórias estão circulando pelo território indígena do Alto Xingu. Seu ponto de partida etnográfico é uma pequena aldeia Kalapalo, onde vivem pessoas provenientes de diferentes coletivos da família linguística karib. A partir de um diálogo com a literatura sobre esses coletivos, da análise de narrativas orais relacionadas a eles e da pesquisa de campo, o estudo procura explicitar algumas particularidades dos discursos alto-xinguanos na construção e expressão de sua própria história. A descrição das experiências (indígenas e etnográficas) permite perceber, de um lado, como a produção e a circulação de pessoas e de discursos se complementam e, de outro, como histórias sobre aldeias e outros lugares são associadas a diferentes formas de memória (biográfica, mitológica, histórica etc.). Realça-se, com isso, a possibilidade desses relatos explicitarem modos indígenas específicos de traçar e pôr em evidência relações dinâmicas que unem (ou separam) pessoas e coletivos entre si, com outros e com o próprio território onde habitam.

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ABSTRACT

This dissertation aims to describe possible links between memory and politics, taking as its starting point the way people and their histories are circulating across the Upper Xingu indigenous territory. The ethnographic focus of the research is a small Kalapalo village where people from different collectivities of the karib language family live together. From the information available in the literature, the analysis of documented oral narratives related to them, and field work, this dissertation seeks to explain some particularities of the Xinguano discourse in the construction and expression of its own history. The description of (indigenous and ethnographic) experiences allows perceiving, on the one hand, how the production and circulation of people and discourses complement each other and, on the other hand, how histories about villages or other important places of the region are associated to different forms of memory (biographical, mythological, historical, etc.). It is also possible to highlight how these reports explain specific indigenous ways of conceiving the dynamic relationships that are linking or separating each of them with/from others and with the territory where they live.

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Lista de Figuras

Figura 1. Cena do interior da casa de Hagema (chefe da aldeia Apangakigi/Caramujo). ... 27

Figura 2. Cena do interior da casa de Hagema Kalapalo (anetü da aldeia Apangakigi/Caramujo) ... 44

Figura 3. Frame da gravação realizada no porto Kahindzu ... 46

Figura 4. Caminho entre Apangakigi e a aldeia Paraíso.. ... 51

Figura 5. Colocação dos mastros de uma futura casa em Kaluani. ... 52

Figura 6. Homens olhando o primeiro mastro de longe, a fim de aprumá-lo. ... 52

Figura 7. Airá, morador de Caramujo, serve-se do mingual trazido pelos moradores de Kaluani. ... 52

Figura 8. Imagem do interior de uma casa em construção em Kaluani. ... 55

Figura 9. A aldeia Caramujo em Junho de 2017.. ... 60

Figura 10. Esboço da aldeia Caramujo vista de cima (junho de 2017)... 61

Figura 11. Esboço da morfologia de Caramujo, vista de um ponto de vista genealógico. ... 62

Figura 12. Alguns dos lugares mencionados por Hagema e Kaua e os caminhos que os interligam ... 64

Figura 13. Esboços feitos pelo autor da abertura das primeiras casas e roças de Hagema. ... 65

Figura 14. Imagem de satélite da aldeia Apangakigi em uma época onde havia apenas duas casas ... 66

Figura 15. As roças de Érick (esquerda) e de Breno (direita) ... 72

Figura 16. Roça da família de Nahugigu, ao lado da casa de seu pai, Airá ... 73

Figura 17. Mulheres retornando da roça. ... 74

Figuras 18 A e B. Árvore de akaga no caminho para Akagagü e Início do caminho que interliga Apangakigi à aldeia Kaluani .. ... 78

Figura 19. Hagema se preparando para gravar. ... 82

Figura 20. Detalhe do cordão sendo preparado para ser usado como braçadeira. ... 82

Figura 21. Lugares da memória no caminho entre Caramujo e Kunugijahütü. ... 85

Figura 22. Sacola com alguns dos objetos que Hagema levou para a gravação em Kunugijahütü. ... 86

Figura 23. Frame da gravação feita em Caramujo, antes de sairmos rumo a Kunugijahütü. ... 87

Figura 24. Mapa contendo os caminhos e o nome dos lugares que ligam Caramujo às aldeias Barranco Queimado e Paraíso e ao porto Kahindzu. ... 92

Figura 25. Reunião do pequi em Kaluani ... 93

Figura 26. Estrada que liga o Território Indígena do Xingu à cidade de Gaúcha do Norte ... 118

Figura 27. Placa do Governo Federal (―Área de proteção ambiental e indígena‖) descascada e com tiros ... 118

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GUIA DA GRAFIA E DE PRONUNCIA DAS PALAVRAS EM KARIB

Ao longo da dissertação, os termos e expressões das línguas da família karib, bem como os de outras línguas que não a portuguesa, serão grafados em itálico, à exceção dos nomes próprios. Nomes de pessoas e de aldeias ou povos serão sempre iniciados com letra Maiúscula. Já os nomes das variantes linguísticas (frequentemente homônimos dos nomes étnicos) serão grafados em minúscula. Assim, por exemplo: ―muitos dos que vivem nas aldeias do povo Kalapalo falam a língua kalapalo, mas nessas aldeias também há falantes de kuikuro‖. Os guias de pronunciação do karib reproduzidos abaixo seguem a sistematização apresentada no trabalho de Guerreiro (2015a).

Consoantes:

/p/: oclusiva bilabial surda (como p em português)

/b/: oclusiva bilabial sonora (como b em português), sempre pré-nasalizada /d/: oclusiva alveolar sonora (como em data), sempre pré-nasalizada /t/: oclusiva alveolar surda (como t em português, não africada) /j/: oclusiva palatal sonora (semelhante a dj)

/k/: oclusiva velar surda (como c em casa) /g/: flap uvular

/s/: fricativa alveolar surda (como em saia) /h/: fricativa glotal sonora (como em inglês hat) /ts/: africada alveolar surda

/l/: lateral alveolar sonora (como l em português) /m/: nasal bilabial (como m em português) /n/: nasal alveolar (como n em português) /nh/: nasal palatal sonora (como em minha) /ng/: nasal velar sonora

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Bilabial Alveolar Palatal Velar Faringal Glotal Oclusiva p [mb] t [nd] j k Tepe/Flap g (flap uvular) Fricativa s h Africada ts [dz] Lateral l Nasal m n nh ng Aproximante w Vogais:

/e/: anterior média (como em português; /ẽ/ quando nasalizada) /i/: anterior alta (como em português; /ĩ/ quando nasalizada) /a/: central baixa (como em português)

/ /: central alta (/ / quando nasalizada)

/o/: posterior média arredondada (como em português; /õ/ quando nasalizada) /u/: posterior alta arredondada (/ũ/ quando nasalizada)

Anterior Central Posterior

Alta i ü u

Média e o

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Sumário

Introdução ... 15

Alto Xingu: sujeitos, objetivos e antecedentes da pesquisa ... 16

Memória e política no Alto Xingu ... 26

Narrativas indígenas: biografia e territorialidade ... 35

Potencialidade da perspectiva das aldeias menores ... 39

Organização do texto ... 43

Capítulo 1 | Concentrar ... 45

Capítulo 2 | Dispersar ... 79

Caminhar para documentar ... 81

Kunugijahütü: a Aldeia Velha ... 95

Chefia, feitiçaria e palavra ... 121

Conclusão ... 138

Referências bibliográficas ... 143

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Introdução

Esta dissertação fala sobre a mistura das linhas de vida e de histórias de algumas pessoas e aldeias no território indígena do Alto Xingu. Seu ponto de partida etnográfico é uma pequena aldeia Kalapalo, fundada em 2007, onde indígenas de diferentes lugares se reuniram, em especial, aqueles que se identificam com (pelo menos) um dos quatro povos do subsistema karib dessa região. São eles: os Kalapalo, os Kuikuro, os Matipu e os Nahukwá — nomes que, além de serem usados para identificar/diferenciar famílias e coletivos do ponto de vista de suas origens, servem também para designar as quatro variedades linguísticas da família karib presentes nessa região.

Em 2016, segundo o Instituto Socioambiental (ISA), dezesseis aldeias vinculadas a esses quatro povos se distribuíam às margens dos rios Mirassol, Culuene, Tanguro e Sete de Setembro — alguns dos principais formadores do rio Xingu, no norte do estado de Mato Grosso (Brasil). Já para o ano de 2018, o ISA identificou vinte e sete delas. Sabendo que a rápida multiplicação de aldeias é um marco da história recente dos povos karib do Alto Xingu (e também de outros povos dessa região, embora não com a mesma intensidade),1 este texto trilha possíveis caminhos entre o passado e o presente de algumas dessas comunidades, refletindo sobre os processos de produção e fragmentação delas e sobre os enlaces entre memória e política daí resultantes.

O estudo articula-se, basicamente, em torno da análise e comparação de narrativas orais documentadas (por mim e por outros pesquisadores) junto de pessoas que se identificam com alguns dos coletivos mencionados acima; de um diálogo com a literatura sobre a região; e da pesquisa de campo — realizada em duas curtas viagens à referida aldeia Kalapalo, conhecida como Apangakigi ou Caramujo. Assim, passo a passo, busca-se refletir sobre o estatuto de tais denominações étnicas e sobre as relações que unem (ou separam) as pessoas entre si e com os próprios lugares que habitam.

Almeja-se, a partir daí, entender quais eventos estão relacionados à mobilidade e à mistura de pessoas e histórias entre alguns coletivos do subsistema karib do Alto Xingu, apontando para as peculiaridades do discurso indígena na construção e expressão de sua própria história. Essa introdução, além de apresentar a organização do texto, visa explicar melhor esse recorte temático e seus pontos de partida teórico-metodológicos.

1 Os dados aqui mencionados podem ser conferidos no mapa elaborado pelo ISA e aqui reproduzido na p.

18. A partir dele, é possível ver também a quantidade exorbitante de aldeias Kalapalo, em específico, em comparação com os demais karib e quaisquer outros povos do Alto Xingu.

(16)

Alto Xingu: sujeitos, objetivos e antecedentes da pesquisa

As pessoas cujas histórias aparecem nessa dissertação são habitantes do ―Parque Indígena do Xingu‖; porém, muitas delas têm preferido pensá-lo como Território

Indígena do Xingu (doravante, TIX) — como farei também nessa dissertação —,

realçando que esta área (de aprox. 28.299 km²) abrange hoje um conjunto bastante heterogêneo de povos que habitam e protegem os territórios contíguos, política e geograficamente, de quatro Terras Indígenas (TIs): a TI do Xingu (central e à qual esteve mais diretamente associada a homologação do ―Parque‖), a TI Wawi (a oeste), a TI Batovi (a sudeste) e a TI Pequizal do Naruvôtub (a sudeste).2

Este estudo toma como base linhas de fatos que se desdobram desde o que, nessa grande paisagem, é conhecido como Alto Xingu: a região dos formadores do rio Xingu (na porção sudeste do TIX), na qual coletivos vinculados a dez etnias de três agrupamentos linguísticos diferentes, mais uma língua isolada, passaram a compartilhar — através de um longo histórico de casamentos, trocas e da visitação casual ou cerimonial entre aldeias — de uma série de aspectos práticos e cosmológicos no que se refere à produção e à percepção da vida nos locais onde habitam.

Conforme propõe o antropólogo indígena Mutua Mehinaku (2010), esse pluralismo de línguas e etnias permite que o Alto Xingu seja descrito como ―misturado‖ (tradução da palavra tetsualü, das línguas karib), isto é: feito por aldeias e pessoas que se relacionam ―como uma mistura de cores no colorido de alguma coisa‖ (ibid.: 1). Além dos já mencionados Kalapalo, Kuikuro, Matipu e Nahukwá (família karib), são expressão desse ―colorido‖ os Mehinaku, Wauja e Yawalapíti (da família arawak), os Kamayurá e Aweti (do tronco tupi) e os Trumai (de língua considerada isolada).

Tomando como ponto de partida a recém-fundada aldeia Apangakigi (Kalapalo) e cruzando o que dizem algumas narrativas orais sobre coletivos e pessoas ligadas ao subsistema karib alto-xinguano, o objetivo desse trabalho é pensar, então: 1) como tais relações de ―mistura‖ perpassam diferentes paisagens do Alto Xingu — processo através do qual as próprias pessoas, os coletivos e os lugares se fazem-e-refazem —; e,

2 A localização, composição social e ano de homologação de cada uma delas podem ser mais bem

observados através do mapa já citado e do quadro na p. 19. Além de a designação TIX ter a vantagem de pensar essas quatro Terras Indígenas em conjunto, algumas pessoas têm considerado o termo ―Parque‖ pejorativo, o que — pelo que pude saber através de conversas com meus interlocutores —, em parte decorre da ideia, implícita neste termo, de que este é um lugar de ―visitação‖ para não indígenas (algo bastante problematizado atualmente, pelo menos pelos habitantes do Alto Xingu).

(17)

do outro-mesmo-lado, 2) como as pessoas, ao intervirem na forma e visibilidade dessas relações com seus discursos, atuam nesse processo e o concebem à sua própria maneira.

Para continuar um pouco mais com a tradução de Mutua Mehinaku, a tarefa seria, portanto, a de matizar algumas ―cores‖ desse ―colorido‖ partindo-se de

tonalidades karib.3 Uma reflexão que, evidentemente, não pretende encontrar resultados homogêneos ou ―puros‖ por trás da diferença inerente ao contexto estudado. Antes, quer apenas descrever como determinados eventos, influindo de maneira direta ou indireta na socialidade regional, parecem quebrar com a circularidade do mesmo e fazer com que essa mistura vá, continuamente, se misturando. Um breve retrospecto da ocupação territorial da região ajudará desde já a esclarecer melhor essa abordagem.

Segundo a ―cronologia [alto] xinguana‖ elaborada por Michel Heckenberger (2001a), pesquisas arqueológicas na margem oeste do rio Culuene indicam que a matriz de abertura desse pluralismo pode ter sido de origem arawak, já que, por volta do ano 800, os povos que ali foram se fixando produziam objetos de cerâmica e adotavam um padrão de assentamento que se conecta tanto às tradições associadas aos arawak, quanto à cerâmica (de tipo saladoide-barrancoide) e ao formato das aldeias alto-xinguanas contemporâneas (aldeias circulares, com praça central dedicada a uso público e ritual e as casas erguidas no contorno). Os ancestrais dos karib, por sua vez, teriam vindo em seguida, por volta de 1400, via setor leste daquele mesmo rio.

Posteriormente (c. 1600-1750), os efeitos da expansão colonial rumo ao Brasil Central e à Amazônia Meridional, acompanhando os ciclos da borracha e do ouro — e, claro, a economia do roubo e da venda de pessoas que abastecia esses ciclos com escravos —, teria feito do Alto Xingu uma espécie de ―cul-de-sac‖ (Galvão, 1953): área que, pelas condições climáticas e hidrográficas dificultarem o acesso, até meados do século XIX serviu de refúgio para os que conseguiam escapar das entradas colonizadoras ou do ataque de outros grupos afugentados. Isso, possivelmente, teria contribuído para o aparecimento dos ancestrais das demais etnias.

3 Bruna Franchetto (2001) define o ―subsistema karib alto-xinguano‖ afirmando que, no interior do

sistema multiétnico e multilíngue do Alto Xingu, as identidades sociopolíticas dos povos da família karib são construídas, principalmente, com base no reconhecimento de diferenças rítmicas e prosódicas, mais do que de ordem lexical, entre as quatro línguas mencionadas (o kalapalo, o kuikuro, o matipu e o nahukwá). Desse ponto de vista, elas se deixariam apreender ainda em duas variantes principais: uma kalapalo/nahukwá, outra kuikuro/matipu. Essa ―bifurcação‖, ainda conforme a autora (op. cit.; 1986), teria ocorrido a partir de uma ―origem comum‖ desses coletivos. Nesse sentido, a ideia de uma tonalidade, aqui utilizada metaforicamente como ―cor‖, em um âmbito mais amplo e sonoro, ganha o sentido bastante concreto segundo o qual diferentes melodias de tonicidade, associações e dissociações entre picos de altura e de intensidade nos modos de falar etc., são utilizadas como mecanismos de diferenciação social.

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(19)

Olhando esse mesmo período a partir da memória oral indígena, uma imagem é frequentemente reencontrada: ao longo de uma série de guerras, raptos, migrações, rupturas e fugas, povos de nomes muito antigos e quase esquecidos foram trocando e casando uns com os outros, deixando de serem ―canibais‖ e de enfrentarem-se como inimigos, até tornarem-se de fato ―humanos‖, ou, em suas formas mais objetificadas,4 ―Kamayurá‖ (Menezes Bastos, 1992), ―Yawalapíti‖ (Viveiros de Castro, 1977), ―Aweti‖ (Coelho de Souza, 2001) etc.

Rafael de Menezes Bastos (1983, 1992) caracterizou esse processo como ―xinguanização‖, isto é: a transformação de um ―ethos‖ visto como belicoso no respeito a uma ―etiqueta de pax [paz]‖ que, com a intensificação do contato a partir da década de 1940, passou a reger as relações entre e dentro das aldeias do Alto Xingu de modo cada vez mais generalizado. A criação, em 1961, do (à época) Parque Nacional do Xingu,5 marcaria então o momento de cristalização desta ―etiqueta‖ como forma por excelência da socialidade regional, já que, a partir daí, ela seria oficialmente incentivada não só como modo de vida exemplar das ―tribos amigas do Alto Xingu‖ (na própria expressão dos Villas Boas, 1979: 20), mas também de um indigenismo estatal cujos resultados, ainda incipientes, dado o pioneirismo da demarcação do PNX, eram bastante idealizados (Galvão & Simões, 1966; Menezes, 2008).

No caso específico dos Kalapalo, Ellen Basso associou esse ethos à palavra karib

ifutisu (ihütisu, na grafia atual): um conceito que, segundo a autora (1973: 12),

4 Adoto, nessa dissertação, a definição de ―objetificação‖ dada por Strathern (2006: 267): ―Entendo por

objetificação a maneira pela qual as pessoas e as coisas são construídas como algo que tem valor, ou seja, são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação‖.

5 O Parque Nacional do Xingu representa a primeira circunscrição oficial criada no Brasil com vistas à

proteção ambiental e indígena (Decreto nº 50.455, de 1961). Foi assim denominado até 1978, quando passou a ser chamado de Parque Indígena do Xingu (Decreto n° 82.263, de 1978) — alteração que visava adequar o nome da reserva aos termos do Estatuto do Índio (instituído pela Lei 6.001, de 1973).

Quadro 1. As Terras Indígenas do TIX e suas características. Fonte: Instituto Socioambiental, 2018.

(a leste da TI do Xingu)

Composição social: povo Kĩsêdjê (jê)

Homologação: Decreto s/n - 09/09/1998

Terra Indígena PEQUIZAL DO NARUVÔTU

(a sudeste da TI do Xingu)

Composição social: povo Naruvôtu (karib)

Homologação: Decreto s.n - 02/05/2016

(central)

Composição social: complexo multiétnico e

multilíngue (cf. a seguir no texto)

Homologação: reservada em 1961;

oficialização da homologação Decreto s/n - 09/09/1998

Terra Indígena BATOVI

(a sudoeste da TI do Xingu)

Composição social: povo Wauja (aruak)

(20)

expressaria um imperativo de ausência de agressividade e de generosidade, também traduzido por seus interlocutores como ―vergonha‖ (Basso, 1989: 552). Ainda segundo a autora (Basso, 1973: 9-10), a avaliação das interações sociais segundo os critérios do

ihütisu permitiriam aos Kalapalo reconhecerem a si e aos outros alto-xinguanos como kuge (―gente‖), em oposição, de um lado, aos ngikogo (índios de outras regiões, vistos

como tükotinhü, ―ferozes‖)6 e, de outro, aos kagaiha (os não indígenas, designados em português, de modo genérico, por ―brancos‖).7

Apesar do significado dessas categorias poder variar conforme os contextos de fala,8 o fato dos povos do Alto Xingu compartilharem de uma série de modos de pensar, crescer e habitar o seu território, estabelecendo ao longo do tempo relações com base em um restrito ethos regional, é algo quase sempre mencionado na literatura sobre a região.9 Assim, desde os primeiros relatos etnográficos escritos por Karl von den Steinen (1940 [1887]) até aos mais recentes, o Alto Xingu já foi definido em seu conjunto como ―uma só cultura‖ (Agostinho da Silva, 1993), ―área cultural‖ (Galvão 1979 [1953]), ―sociedade‖ (Murphy e Quain, 1955; Becker, 1969; Basso, 1973; Villas Boas & Villas Boas, op. cit.), ―sistema regional‖ (Menget, 1977, 1993), ―comunidade moral‖ (Heckenberger, 2001a), entre outras imagens que destacam a coesão e homogeneidade desse complexo regional.

Ainda nas palavras de Mutua Mehinaku (op.cit.: 14), tais imagens deixaram ―a mistura alto-xinguana quase sempre esquecida atrás de uma apresentação de gente toda igual ou atrás de um discurso de ‗somos todos iguais‘, em diferentes escalas e perspectivas‖. Essa ressalva, penso, longe de deslegitimar que similitudes ou continuidades possam ser traçadas entre os coletivos da região, chama atenção para o fato de que as formas indígenas de nela se viver e habitar devem ser pensadas, apesar

6 Os povos da família linguística karib referem-se assim, especialmente (mas não só), aos Ikpeng

(também karib, mas do Médio Xingu), os quais, segundo eles (e também segundo os Mehinaku) atacavam suas aldeias antigamente, raptando mulheres e crianças e lhes saqueando (cf. Galvão & Simões, 1965). Por sua vez, os Kamayurá tendem a considerar como ―bravos‖ principalmente os Juruna (tupi); já os Trumai focalizam negativamente os Suyá (je). Assim, cada etnia do Alto Xingu parece aplicar tais ―modelos de distintividade‖ de acordo com o histórico de relações extrarregionais estabelecidas no passado (cf. Basso, 1973: 9), com destaque para uma oposição com os povos do Médio e Baixo Xingu.

7 Tradução que, por isso, será apropriada aqui e ali ao longo desse trabalho para falar dos não indígenas,

sejam eles brasileiros ou de outras nacionalidades, do ponto de vista de meus interlocutores.

8 Ver por exemplo o uso que delas se faz na narrativa que trago no capítulo 2

9 Com efeito, além do já mencionado padrão circular de assentamento, os coletivos dessa região seguem

escolhas alimentares comuns (sendo a base da dieta a mandioca, cultivada em roças mais ou menos permanentes, o peixe, como principal recurso de exploração aquática, e algumas carnes de caça), fazem referência a um mesmo repertório de narrativas míticas e de rituais (vários desses, inclusive, praticados com a presença de mais de uma aldeia/etnia), bem como organizam suas relações de parentesco seguindo a mesma estrutura terminológica.

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disso, como sendo da ordem do Múltiplo — o que, segundo a definição de Pierre Clastres (1999 [1977]: 84), significa realçar os aspectos dispersivos ou centrífugos das políticas ameríndias, em contraposição às figuras do Um ou do Estado, que ―engloba[m] todas as diferenças em vistas de as suprimir‖ (ibid.: 85).

Um exemplo já bastante citado de como, apesar de todo olvidamento, a mistura e o múltiplo podem ser encontrados no Alto Xingu é dado pelo modo como as pessoas dessa região costumam falar de suas identidades. Assim, não raro um ―Kalapalo‖ pode se considerar ao mesmo tempo ―um pouquinho Kuikuro‖ ou ―um pouquinho Matipu‖, sem que isso soe contraditório. Isso é possível porque, com frequência, as pessoas se reconhecem como descendentes de ancestrais nascidos em diferentes lugares, os quais elas consideram igualmente importantes para falar de suas origens e condição atual. Cito, quanto a isso, o testemunho do próprio antropólogo Mutua:

Meus avós foram casando com mulheres de outras aldeias, por isso tem mistura de povos, de culturas e de línguas. Eu sou o neto deles, por isso eu sou de etnias misturadas. A mãe do meu avô Utu-Hususu, Hugasa (Magia), era do povo Lahatua (Kuikuro); ela casou com Nahukwá. A esposa de Utu Hususu, minha avó, era filha de Mehinaku e Kalapalo. Eu sou a quarta geração em que diversas etnias se misturaram entre si e com os Mehinaku (Arawak). (Mehinaku, 2012: 53)

De uma perspectiva biográfica, portanto, a mistura é algo incontornável, já que saber de sua história é seguir (no sentido de retraçar na memória, mas também de dar continuidade com seus próprios passos, como falarei mais adiante) os caminhos de onde vieram seus pais, avós e aliados — caminhos que, como se pode ver acima, são ramificados e nos quais a diferença de quem neles se encontrou foi somada, e não suprimida (cada pessoa se tornando, então, o resultado multiplicante dessa soma ao levá-la para frente com sua própria história).

Comecei a me envolver com os debates acerca da mistura e da homogeneidade no Alto Xingu em minha graduação, quando realizei uma pesquisa de iniciação científica intitulada ―Redução populacional, mistura e diferenciação entre os Matipu e Nahukwá: transformações pós-contato‖.10 Minha principal atividade naquela pesquisa

10 Projeto FAPESP n. 2014/23016-2. Assim como a pesquisa que deu origem a esse trabalho, aquela fazia

parte do Projeto Jovem-Pesquisador ―Sistemas Regionais Ameríndios em Transformação: o caso do Alto Xingu‖ (FAPESP, n° 2013/26676-0), coordenado Prof. Dr. Antonio R. Guerreiro Junior.

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era interpretar a narrativa autobiográfica11 de um filho de chefe (anetü)12 Nahukwá, chamado Kuaku, um senhor de aproximadamente 80 anos que mora atualmente na aldeia chamada Aiha (dos Kalapalo).

Apesar da chefia no Alto Xingu ser, até certo ponto, hereditária,13 Kuaku diz ter ―substituído‖ (itüpati) seu pai apenas durante um curto tempo, na época em que os Nahukwá viviam junto com os Matipu em uma única aldeia chamada Magijape. Porém, ele logo se recusou a seguir nessa posição, sobretudo por receio de que fofocas e acusações de feitiçaria — que levariam, inclusive, a uma cisão daquele coletivo no início dos anos 198014 — recaíssem sobre ele e sua família.

Aquela união dos Matipu e Nahukwá (ocorrida por volta de 1954) tivera como um dos principais fatores a extrema redução populacional pela qual os coletivos do Alto Xingu passaram entre 1920-1960, em razão da incidência de fortes epidemias de sarampo e gripe. Nessa ocasião, algumas aldeias chegaram a ficar com apenas cinco ou dez habitantes.15 Nas palavras de Michael Heckenberger, as perdas populacionais ocasionaram no Alto Xingu ―padrões precisos de dissociação ou amalgamento de aldeias‖, com a proeminência de uniões entre coletivos linguisticamente relacionados (2001b: 96).

Junções também foram incentivadas pelos irmãos Villas Boas — uns dos principais idealizadores do Parque Nacional do Xingu16 —, para que as comunidades ficassem mais perto dos Postos de Saúde, os quais, por isso mesmo, começaram a ser

11 Mas, ao mesmo tempo, sobre a origem de sua aldeia natal. Essa intersecção entre biografia e história

coletiva receberá maior atenção no trabalho, pois é uma característica recorrente das narrativas alto xinguanas.

12 Denominação para os chefes de sexo masculino nas línguas karib. O uso da palavra ―chefe‖ também é

observado no português falado localmente para se referirem a essa categoria de pessoas, bem como a palavra ―cacique‖. A palavra itankgo é o equivalente feminino da palavra anetü, mas, ela também pode ser o plural de itaõ (que significa ―mulher‖, tanto no singular, quanto no plural). Assim, itankgo (―chefa‖) é também uma mulher plural (itaõ, ―mulher‖ + -ko, PL).

13 Cf. Guerreiro, 2015: cap. 2. 14

Dessa cisão nasceu a aldeia Ngah nga, identificada como ―Nahukwá‖, e Magijape passou a ser reconhecida como lugar dos ―Matipu‖. Porém, as associações étnicas dessas duas aldeias estão longe de serem um consenso e, muitas vezes, as pessoas as invertem ou se confundem com elas em seus discursos (voltarei a falar sobre isso no cap. 2).

15

Um quadro dessa situação, quase que década por década, pode ser observado somando-se os dados levantados por Petrullo, 1932; Oberg, 1953; Lima, 1955; Mota, 1955; Carneiro, 1957; Nutels, 1968; Baruzzi e Iunes, 1970; Agostinho, 1972; Gregor, 1977; Galvão e Simões, 1996; Heckenberger, 2001b. Para ter uma ideia do que significou essa perda, considere que a estimativa populacional do Alto Xingu para o ano de 1897 era de 4.000 pessoas (segundo Galvão, 1996), mas, segundo Pedro de Lima (op. cit.), entre 1947-1951 ela não ultrapassava 793 pessoas (ou seja, em aproximadamente 50 anos, os censos indicam a morte de cerca de 80% da população).

16 Trata-se de Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Boas, principais líderes da Expedição Roncador-Xingu.

A chegada dessa expedição na região data de 1946; antes dela, a Comissão Rondon já havia passado por lá em 1920.

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instalados em pontos estratégicos da região também nessa época. Isso servia, então, como pano de fundo para a análise da narrativa de Kuaku, e esta ajudava a lançar luz sobre fenômenos políticos e linguísticos imbricados nos modos como as mudanças territoriais e as transformações culturais ocorridas após 1940 foram — e ainda são — vivenciadas e colocadas em discurso pelos indígenas.

Os resultados a que cheguei com aquele estudo mostraram-me aspectos complexos da cosmologia e do regionalismo alto-xinguanos, os quais mereciam ser explorados mais a fundo. Uma das coisas que percebi, por exemplo, foi que se os temas da mistura e da diferenciação social eram, por assim dizer, epidemicamente visíveis após a intensificação das relações extrarregionais,17 por outro lado, as narrativas orais (de Kuaku e outras que, desde aquela época, comecei a vasculhar para comparação) indicavam que se misturar e se diferenciar fazia parte da socialidade no Alto Xingu desde muito antes (e para além) disso.

Assim, apesar de todo aquele cenário de patologias e perdas, na narrativa de Kuaku bem pouco — para não dizer completamente nada — aparece sobre epidemias, sarampo, gripe, ou mesmo sobre os Villas Boas. Por outro lado, muito se fala sobre as mudanças de aldeia feitas pelo narrador durante sua vida, sobre casos de enfeitiçamento, problemas com a chefia de determinados lugares, e até mesmo sobre canibalismo. Logo, se a redução populacional, as crises epidêmicas e o contato influenciaram nos processos de união e separação de aldeias no Alto Xingu naquela época — tal como literalizado por Heckenberger na citação acima —, tudo isso revelava que se pautar somente nessas ―causas‖ não esgotava a análise do que realmente foi este período para todos os que o vivenciaram.

Outras inquietações, nesse sentido, tendiam ainda a ficar inconclusas. Como, por exemplo, a partir simplesmente do eixo contato-epidemia-demografia, entender que um determinado coletivo tenha não apenas se unido com outro, mas com aquele outro em

17 Nesse trabalho, utilizo diversas vezes a expressão ―extrarregional‖, ―extra-local‖ e ―extra-indígena‖

para me referir às formações sociais que estão fora do domínio das TIs e do TIX, pois me pareceu melhor do que induzir polarizações do tipo ―nós‖ x ―eles‖ em um mundo onde indígenas e (agora sim) pessoas que se reconhecem como não indígenas transitam pelos mesmos lugares. Assim, por exemplo, as cidades, se forem levadas à sério todas as conexões históricas, geográficas e culturais que as formam, não são, de fato, parte de um ―mundo não indígena‖, mas sim, configurações que se constroem (quase que literalmente) à beira do ―mundo indígena‖, o invadindo, tragando ou expulsando de si – algo que o prefixo extra-, com sua qualidade de indicar abrangência e extrapolação conjuntural me parece evidenciar melhor. Sobre esse debate, ainda, ver VIVEIROS DE CASTRO, 2006 e CLASTRES, 1974.

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especial e não com um diferente?18 Ou então: como explicar que esses movimentos de junção e dispersão do socius indígena tenham continuado a ocorrer mesmo depois que a intensa mortalidade cedeu lugar ao aumento populacional no Alto Xingu (quadro que ilustra a situação da região no presente, como já foi dito, conferindo atualidade para o estudo)? Para responder a essas questões, as pistas fornecidas por narrativas como a de Kuaku demonstravam-se ainda mais importantes, para não dizer imprescindíveis.

Isso porque, na verdade, mais do que fornecer ―pistas‖ capazes de complementar a análise com novas informações, muitas vezes essas narrativas possibilitam o próprio rearranjo dos esquemas utilizados como base para se pensar os temas em questão, abrindo novas perspectivas sobre eles. No caso daquela pesquisa, isso significava reconhecer que, paralelamente a uma macropolítica que parecia envolver os coletivos alto-xinguanos (e, em especial, os Matipu e Nahukwá), por assim dizer, num ―fenômeno de multidão‖ (Deleuze e Guattari, 2010) — marcado, principalmente, pela repercussão extensiva do contato na forma de um impacto macrofísico das epidemias sobre a população de toda a região —, havia também uma micropolítica que os relacionava por suas singularidades, isto é, por aquilo que lhes reservava posições parciais, e não apenas genéricas, nesta história.

Nessa dimensão, mais do que a imagem de ―povos‖ que se dispunham como unidades a priori para se pensar os processos históricos (assim, os ―Matipu‖, os ―Nahukwá‖... e só depois o que acontecia ―entre‖ eles), ganhavam cor, cada uma a seu modo, as famílias e pessoas afetadas aqui e ali pelas transformações advindas;19 as tensões que por aí foram despertadas no seio delas e que, só então, repercutiam-se até o ponto necessário para se ver formar ou fragmentar uma aldeia; a diversidade de interpretações ou opiniões sobre um mesmo fato; enfim, acontecimentos que não são facilmente localizáveis à primeira vista. Porém, a intensidade no modo como se processaram desde escalas infinitesimais demonstra terem marcado a memória do narrador, produzindo nela sulcos, quer dizer, fendas subjetivas pelas quais, inclusive, corria o seu relato, preenchendo o passado com palavras, afetos e significados de um

18 E isso mesmo considerando a proeminência de uniões no interior de um mesmo agrupamento

linguístico, os quais, como já foi dito, no Alto Xingu quase sempre possuem mais de duas variantes. Isso demonstra que tais ―padrões‖ não são, no fim das contas, tão ―precisos‖ assim.

19

Seguindo as pistas de Valeria Macedo em seu estudo sobre a mistura entre os Guarani (cf. Macedo, 2009; 2017), essas famílias e pessoas poderiam ser chamadas de ―parcialidades‖. Elas não são ―partes‖ de um suposto ―todo‖, mas assim como há formas de socialidade expandida, produzindo uma socialidade regional, há formas de recortar essa socialidade que destacam, ainda que temporariamente, ―parcialidades‖.

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modo, ao mesmo tempo, peculiar e criativo que não apenas era impossível de ser apreendido de antemão, como problematizava o estatuto daquelas unidades.

De um lado, isso chamava a atenção para o valor cosmopolítico de tais narrativas, já que, ao serem contadas, elas realçam o fato de que ―nossas realidades estão abertas a diferentes intepretações que devem ser consideradas com cuidado‖ (Latour, 2004: 459). Por outro, implicava em levar a sério que essa micropolítica era também parte intrínseca dos fenômenos cuja descrição, num primeiro momento, parecia independer dos fatores por ela colocados em jogo. Isso, em outras palavras, significava liberar as formas de se falar da história de possíveis ―sobrecodificações‖ impostas por variantes ―maiores‖ (cf. Goldman, 2015), isto é, variantes majoritárias que — por uma questão numérica, mas também de poder — tendem a agir de maneira dominante sobre a interpretação, bloqueando outros sentidos ou caminhos possíveis para um desenvolvimento mais completo dela.

Romper, porém, de fato com essa ―sobrecodificação‖ exigia muito mais do que poderia ser feito nos limites da minha graduação. Nesse sentido, este texto poderia ser visto ainda como uma tentativa de dar continuidade ao exercício de descrever a história alto-xinguana a partir de escalas ou perspectivas ―menores‖. Quer dizer, tomando como ponto de partida acontecimentos, contextos e versões da realidade que, ao invés de conduzirem a pesquisa por generalizações derivadas de um escrutínio exclusivamente macropolítico dos fatos, levam o pesquisador a assumir antes uma ―direção molecular‖, através da qual ele ―embrenha-se nas singularidades, nas suas interações e nas suas ligações à distância ou de ordens diferentes‖ (Deleuze & Guattari, 2010: 395).

Seguindo as pistas de Vanzolini (2010), considero que este tipo de reflexão aproxima ainda mais essa pesquisa das preocupações atuais dos alto-xinguanos com quem dialogo, bem como daquilo que foi dito ser meu objetivo no começo desta introdução: afinal, adentrar nessas escalas ―menores‖ e na micropolítica das relações que perpassam os coletivos do Alto Xingu é realçar as agências indígenas e os vetores centrífugos da socialidade nessa região e, assim, ser capaz de descrevê-la de uma perspectiva misturada ou tetsualü.

Para dar conta, não obstante, de se colocar antropologicamente nas brenhas e emaranhados dessa microssociologia das relações, havia certas carências incontornáveis naquela iniciação científica que precisavam ser remediadas: ela não contava, por exemplo, com o apoio da pesquisa de campo (necessária para auxiliar-me a ganhar mais intimidade com a língua e os modos de vida dos sujeitos da pesquisa); as tensões

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exibidas em um só relato apontavam para a necessidade de comparar diferentes opiniões sobre os fatos (convidando à interpretação e à documentação de outras narrativas); sem contar que as questões por ela levantadas exigiam um aporte teórico e um estudo mais refinado da bibliografia.

Considero, nesse sentido, que minha pesquisa de mestrado (base dessa dissertação) começou e se desenvolveu de modo bastante atrelado com seus antecedentes, os quais, por isso, continuaram presentes nela (como se poderá ver, em especial, no capítulo 2, onde inclusive retomo alguns trechos da narrativa de Kuaku para pensá-la em comparação com outros relatos).

Por outro lado, penso que sem alguns desdobramentos e vivências ligadas especificamente a este estudo, não daria o mesmo valor para o que realizei na graduação. Para exemplificar isso de maneira mais concreta, decidi trazer já nesta introdução um relato de como travei meu primeiro encontro com o chefe da aldeia Apangakigi. Através dele, explico também em que sentido essa pesquisa procura pensar os problemas acima mencionados a partir dos enlaces entre memória e política resultantes dos modos como alguns coletivos e pessoas do subsistema karib se misturam (ou separam) entre si, com outros e com os próprios lugares onde vivem.

Memória e política no Alto Xingu

Em que sentido um estudo que faz uso de narrativas orais para observar e descrever as relações de mistura que fazem parte da vida e da história de algumas pessoas e coletivos do subsistema karib do Alto Xingu pode, de maneira mais geral, ter algo a dizer sobre memória e política? Por que estes temas abrangentes, servindo de subtítulo a essa dissertação?

Para começar a responder a essas perguntas, seria preciso dizer, antes de tudo, que atualmente livros e cadernos são objetos requisitados e manuseados cotidianamente nas aldeias indígenas do Alto Xingu — assim como celulares, máquinas fotográficas, rádios, entre outros instrumentos de registro e comunicação. Mesmo que tais ferramentas não estejam ao alcance de todos de modo generalizado (e onde, afinal, elas estão?), pode-se dizer que se encontram intimamente agenciadas aos fluxos de pessoas e coisas que interligam os diferentes lugares da paisagem regional alto-xinguana.

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Frente a esse cenário, portanto, onde atividades rituais e rotineiras da vida indígena passam a se refletir na ―pele‖ enrustida dos aparelhos advindos do ―povo da mercadoria‖ (para retomar algumas imagens cunhadas por Davi Kopenawa, 2010), creio que uma boa maneira de delimitar o lugar ocupado por esse trabalho na etnologia sul-americana seja posicionando-o no seio de uma antropologia da história e das políticas ameríndias, nas quais a recorrente e quase naturalizada ligação estabelecida entre memória e oralidade, paradigmática de boa parte dos estudos sobre as artes verbais indígenas, tenha que começar a ser problematizada.

Na verdade, é a própria e antiga linha divisória que parecia criar uma diferença — no nível da cultura — entre sociedades com e sem escrita, que sofre (e sofrerá cada vez mais) com a presença de pessoas que, pelo menos frente ao olhar do antropólogo em campo, demonstram-se hoje ávidas por aprenderem a se comunicar dentro de sistemas discursivos que lhe chegam ―de fora‖ ou, para melhor dizer, por verem esses sistemas tensionados a exprimir o que, por muito tempo, insistentemente tentou-se manter ―do lado de fora‖ deles.

Figura 1. Cena do interior da casa de Hagema (chefe da aldeia Apangakigi/Caramujo).

De frente para a porta de entrada, enquanto fuma seu teninhu (―cigarro‖), o chefe de Caramujo olha seu filho mais novo, Samuel. Este, sentado de frente para o rádio transmissor da aldeia, estuda um Manual de Enfermagem enquanto aguarda o chamado do ―pessoal da saúde‖ pedindo informações sobre o estado dos moradores de lá.

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Os primeiros passos de meu trabalho de campo foram marcados, justamente, por essa tensão, e os temas da memória e da política despertados por ela. No relato abaixo, explicito concretamente como isso se deu, aproveitando também para apresentar aquele que se tornou o principal interlocutor dessa pesquisa: um senhor de aproximadamente 60 anos, chamado Hagema Kalapalo. Foi ele quem, em 2007, abriu os primeiros terrenos da aldeia Apangakigi/Caramujo, sendo desde então reconhecido como o principal chefe de lá.

Além disso, a maior parte das narrativas que escutei em primeira mão, enquanto estava realizando meu trabalho de campo, foram contadas por ele. São, em sua grande maioria, histórias sobre lugares antigos das redondezas de Caramujo, aos quais Hagema fazia questão de me levar para contar e que eram considerados parte da história dos Kalapalo por praticamente todos com quem conversei. Foi, no entanto, na casa de meus pais biológicos, na cidade de São Carlos/SP, e não na dele, onde Hagema me contou uma história pela primeira vez.

Depois de muito tempo tentando, fracassadamente, estabelecer contatos com algum habitante da sua aldeia a fim de planejar minha ida para o campo, vim a saber, por uma série de acontecimentos tortuosos e inesperados nos quais a sorte e a coincidência muito corroboraram, que Hagema estava em minha cidade natal. Combinamos de nos encontrar durante uma manhã e, tomando um café, ele relatou-me passo a passo o seu percurso, desde que havia saído do TIX, até chegar a São Carlos e me encontrar.

O principal motivo de sua viagem era ter de ir a Brasília para comparecer a uma reunião convocada pela Funai com diversas ―lideranças‖ do Alto Xingu (isto é, chefes de aldeias ou aqueles por eles enviados). Pelo que entendi, porém, essa não foi uma reunião coletiva, mas sim realizada em dias esparsos, conforme os indígenas conseguiam angariar os meios necessários para chegar até lá. De Brasília, Hagema aproveitaria para ir à capital de São Paulo e desta para São Carlos, onde faria uma breve visita a um amigo antes de retornar.

A razão do chamado da Funai parecia ser uma só — ou melhor, quase. Em primeiro lugar, o então à época presidente deste órgão (o dentista Antonio Fernandes Toninho Costa) estava encarregado de repassar para essas ―lideranças‖ a ideia de um projeto cujo objetivo é preparar e levar indígenas do Alto Xingu para disputarem os Jogos Olímpicos de 2024. Como fiquei sabendo mais detalhadamente depois, ao ler

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uma reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo,20 esse projeto fora elaborado por Kanato Yawalapíti — um importante ―cacique‖ e campeão das lutas alto-xinguanas, chamadas ikindene21 —, em parceria com Ione de Carvalho, antropóloga e então

assessora especial do Ministério da Cultura.

Hagema me contou, sem se aprofundar muito, parte do que lhe falaram sobre isso naquela reunião. Porém, onde se deteve de fato foi no que ocorreu após a apresentação daquele projeto pró-olímpico. Disse-me que, tendo demonstrado com bastante contentamento o seu apoio àquela ideia, Antonio Costa lhe apresentou então algo que deduzi ser uma pauta suplementar. Tratava-se de fazer uma consulta, passada à Funai pelo ―pessoal do Congresso‖, na qual procuravam saber se os povos do Alto Xingu teriam interesse em ceder um pedaço de seu território ―para plantar milho e plantar soja‖. Em troca — explicou-me Hagema —, o resultado seria que: ―Daí, se plantar milho, soja, o pessoal do Xingu vai receber um pouquinho de dinheiro também, assim, como parceria, né‖.

Não sou capaz de dizer o quanto foi oficializado ou não isso que entendi ter sido uma proposta de arrendamento do TIX elaborada pelo ―pessoal do Congresso‖ e veiculada pela Funai. Tampouco tenho interesse em utilizar dessa conversa e dessa pesquisa para criar polêmicas superficiais, do tipo ―ouvi falar‖. Afinal, a tramitação de vários Projetos de Lei com tais objetivos naquele momento (e ainda hoje), expressamente divulgada em diversos canais oficiais do Governo brasileiro e da mídia, não deixam de endossar que os fatos para mim narrados tinham bastante veracidade e, muito provavelmente, já até algum embasamento jurídico-normativo.22

O interesse em mencionar esse caso, na verdade, é que o considero determinante para o modo como eu viria a ouvir outras histórias de Hagema durante meu trabalho de

20 Essa reportagem pode ser consultada online através do link:

http://www1.folha.uol.com.br/esporte/2017/07/1903540-projeto-no-xingu-quer-levar-indios-a-disputa-da-luta-olimpica-em-2024.shtml (último acesso em 07/09/18).

21 Esta é a grafia nas línguas karib. Popularmente, tais lutas ficaram conhecidas como huka-huka, porém,

este é um termo originado do contato e considerado pejorativo por muitos. As lutas ikindene fazem parte do Egitsü (ou Quarup), um dos principais rituais realizados em escala multiétnica e regional entre as aldeias do Alto Xingu com o objetivo de homenagear chefes e cantores importantes já falecidos (cf. GUERREIRO, 2015). Para participar, um lutador (ojotse) tem de passar por um rigoroso treinamento, que envolve dietas alimentares, se arranhar, uso de remédios tradicionais, reclusões etc.

22 Ver ―Quadro de PLs que tocam em questões de direito indígena‖, em anexo. Vale também conferir,

como complemento a todas essas propostas legislativas, o Relatório ―Violência contra os povos indígenas no Brasil — dados de 2017‖, publicado recentemente pelo Conselho Indigenista Missionário. Disponível em:

http://aba.abant.org.br/files/20181004_5bb620a2df3c1.pdf?fbclid=IwAR2GqU4JCvPXip8gTNcr1Zgsj7X rYfk4gjsdKcoo3mFUTg7QhPOVf3Wzs_8 (último acesso em 09/10/2018).

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campo. Isso porque, terminando de me contar esse caso, Hagema perguntou-me o que eu achava daquilo. Aqui, devo dizer que, sem deixar de lado minha postura enquanto antropólogo, fiz uma análise objetiva para ele (isto é, sem inocência) das possíveis consequências caso uma ―parceria‖ como aquela fosse aceita. Disse que, sem dúvida, alguns indígenas poderiam enriquecer, porém, também haveria perdas.

Para tornar concreto o que eu estava querendo dizer com ―perdas‖, fui buscar meu computador e mostrei-lhe um dos mapas sobre a alteração ambiental em torno do TIX nos últimos 20 anos (ISA, 2015).23 Complementarmente, através dos recursos oferecidos pelo aplicativo Google Earth, mostrei-lhe também a diferença de cores entre a área daquele território e aquela das regiões que a circundam e o que aquilo significava.

Sabendo, no entanto, que a noção de ―dano ambiental‖ e até a de ―meio ambiente‖ são percebidas de modo um tanto quanto vago pelos coletivos que não são, na verdade, os principais produtores disso frente ao que é preciso criar mecanismos de ―proteção‖ ou ―separação‖,24

tentei traduzir estas imagens dando-lhe outros exemplos de casos nacionais em que o arrendamento de Terras Indígenas tinha levado ao desmantelamento de aldeias e até mesmo à posterior perda do direito à terra.

Nada disso era novidade para Hagema, no entanto. Como um sinal de que estávamos nos entendendo, Hagema começou a me contar ele mesmo histórias com um teor parecido. Numa delas, falou de quando trabalhou, junto com indígenas de outras etnias, em vistorias na fronteira do TIX. Segundo ele, naquela época (c. 1980) eles encontraram vários invasores realizando serviços ilegais no interior das terras indígenas e houve ―muita briga para tirar os brancos de lá‖. Disse-me que aquilo, quer dizer, ―brigar‖, não era bom, e que sempre havia adotado uma postura pacífica nessas situações.

Em seguida, comentou a situação de algumas aldeias do Alto Xingu onde as pessoas já não faziam mais roças e, por conta disso, seus habitantes estavam tendo que

23 Este mapa está disponível em:

https://acervo.socioambiental.org/adv-search?content_type=mapas_e_cartas_topograficas&page=1 (Último acesso em 07/09/2018), com o título ―Avanço do desmatamento nas cabeceiras do Xingu – 2015‖:

24

Digo ―separação‖ como modo de fazer referência à base conceitual que orienta o pensamento dos ―povos da mercadoria‖ (Kopenawa, op.cit.) no tratamento que dão à floresta: ―Quando falam da floresta, os brancos muitas vezes usam uma outra palavra: meio ambiente. Essa palavra também não é uma das nossas e nós a desconhecíamos até pouco tempo atrás. Para nós, o que os brancos chamam assim é o que resta da terra e da floresta feridas por suas máquinas. É o que resta de tudo o que eles destruíram até agora. Não gosto dessa palavra meio. A terra não deve ser recortada pelo meio. Somos habitantes da floresta, e se a dividirmos assim, sabemos que morreremos com ela. Prefiro que os brancos falem de natureza ou de ecologia inteira. Se defendermos a floresta por inteiro, ela continuará viva. Se a retalharmos para proteger pedacinhos que não passam da sobra do que foi devastado, não vai dar em nada de bom‖ (Ibid.: 484).

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―comprar polvilho do branco‖,25

algo que lhe deixava muito triste. Foi só quando, nos meandros dessa sutil tristeza que embebia o seu relato, ele se cansou de falar que eu pude, então, passar para a apresentação de minha proposta de trabalho. Essa foi explicada da seguinte maneira: disse que queria, antes de tudo, aprender como eles viviam na aldeia e como eles contavam histórias uns para os outros. Queria, por isso, em primeiro lugar ―aprender a falar um pouquinho o kalapalo‖.

Também lhe contei que meu orientador, com o qual ele já havia trabalhado antes em atividades de pesquisa similares, tinha me deixado com uma câmera de filmar, um gravador de voz e um aparelho para fazer mapas (um GPS). Mostrei a ele esses equipamentos e ofereci-me, caso fosse do interesse dele, para que visitássemos alguns lugares que ele considerasse importante e aí fizéssemos uma documentação sobre a história de cada um deles — deixando claro que gostaria de utilizar esse material para escrever este trabalho e apresentá-lo, depois, na Unicamp.

Hagema, então, perguntou-me se essa ―documentação‖, da qual eu falava, daria ―assim... pra fazer documento?‖. Complementou a pergunta dizendo que já estava ―cansado de briga‖ e, como viria a escutar posteriormente de muitos outros interlocutores em campo, queria ―aprender a resolver as coisas do jeito do kagaiha, com papel e caneta‖. Respondi dizendo que não podia prometer, de imediato, que de nosso trabalho sairia um ―documento‖, mas que, sim, em alguns casos, a existência de registros sobre a ocupação da terra pelos povos indígenas era algo importante e que, se fosse do interesse deles, poderiam se mobilizar e produzir algo desse tipo posteriormente, já que a documentação ficaria na posse deles.

Então, antes mesmo de eu terminar, Hagema sobre-falava comigo: — ―Diogo, eu gosto assim. Eu vou contar tudo, tudo... história de lá onde começou, lá, de Kuluene, lugar dos irmãos Villas Boas, até... lá, Caramujo. Eu sei tudo, tudo, Diogo. Eu vou levar você lá também, você vai ver lá história, no lugar‖. Terminamos o papo entre conversas mais à toa (sobre a quantidade de redes que caberiam na minha casa, a necessidade de comprar mais anzóis para levar, a possibilidade de conseguir uma bola de futebol e sapatos para o pessoal da aldeia etc.). De lá, fomos almoçar e depois lhe dei uma carona até a casa daquele seu amigo. A partir do que, tornaria a revê-lo somente na cidade de Canarana/MT, no dia de nossa chegada conjunta e de onde partiríamos, por fim, deixando muita poeira e uma série de fazendas para traz, até a sua aldeia.

25

O principal item da base alimentar dos povos alto-xinguanos é a mandioca, utilizada na forma de polvilho ou do popularmente chamado ―beiju‖ (kine, em Kalapalo).

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O encontro de Hagema com a Funai e com o antropólogo produziu algo: o interesse em fazer de seu conhecimento sobre a história de alguns lugares do TIX um ―documento‖ — algo que lhe permitisse resolver as coisas ―do jeito kagaiha, com papel e caneta‖. Como disse a Hagema, essa pesquisa (embora tenha sido escrita valendo-se bastante desses dois materiais) infeliz e felizmente ainda não é esse ―documento‖ (strictu sensu): infeliz, porque a atual situação dos indígenas no Brasil demanda que mecanismos diretos de defesa de seus direitos se multipliquem imediatamente; feliz, porque permite que características da socialidade do Alto Xingu sejam descritas com maior profundidade do que caberia nesses aparatos, podendo servir-lhes, quem sabe, de mastro. Mas, então, no que afinal se torna essa pesquisa?

Ela é uma tentativa de pensar a memória e a política no Alto Xingu, atentando-se para o fato de que conhecimentos como os de Hagema, atentando-sem deixarem de atentando-ser visibilizados regionalmente em suas formas tradicionais, avançam hoje também rumo à soleira das formas de representação nacionais, reclamando para si posições de enunciação capazes de influir no mundo tanto quanto as utilizadas, por exemplo, pelos aparelhos do Estado. Ao falar de memória, portanto, a pesquisa visa observar como dinâmicas e tecnologias especificamente indígenas de lidar com o passado entretêm relações intensas com elementos do mundo contemporâneo, sendo ou não alteradas por eles — mas, sem dúvida, visando elas mesmas provocar alterações neste mundo.

Sob tal viés, este primeiro encontro afirmou ainda mais o potencial cosmopolítico dos relatos orais com os quais eu queria trabalhar. Afinal, como remarca Isabelle Stengers em um texto que, de modo indireto, parece não obstante falar exatamente sobre minha conversa com Hagema em São Carlos naquele dia, na proposição cosmopolítica o que importa é:

a proibição do esquecimento, ou pior, da humilhação. Notadamente, aquela [humilhação] que produz a ideia indigna de que uma compensação financeira deveria ser suficiente, essa tentativa obscena de dividir as vítimas, de isolar os relutantes se dirigindo antes àqueles que, por uma razão ou outra, aceitarão se curvar mais facilmente. Tudo terminará talvez com o dinheiro, mas não ―pelo‖ dinheiro, pois o dinheiro não fecha a conta. Aqueles que se reúnem

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devem saber que nada poderá apagar a dívida que liga sua eventual decisão às suas vítimas. (Stengers, 2018: 462)

Nesse sentido, a meu ver, quando Hagema me disse que queria ―resolver as coisas do jeito kagaiha‖, ele não estava simplesmente afirmando que queria aprender a lidar com determinados problemas da mesma maneira como os brancos fazem. Talvez ele quisesse isso também, mas aquilo que ele podia tornar visível ―com papel e caneta‖ é que me pareceu ser de fato importante: quer seja, histórias cuja expressão, independentemente de serem veiculadas oralmente ou por escrito, eram capazes de produzir um contra-esquecimento ou uma contra-humilhação, o que, por sua vez, seria uma forma de responder em outra moeda àquela ―tentativa obscena‖ de lhe fazerem ceder seu território por dinheiro. Uma resposta que segundo o ethos alto-xinguano causaria ―vergonha‖ se fosse buscada ―brigando‖.

A partir daí, concluí que deveria encarar essas narrativas como verdadeiros atos

enunciativos: expressão que utilizarei aqui e ali neste trabalho a fim de realçar os

aspectos pragmáticos da linguagem e que, apesar de não corresponder literalmente às noções de ―ato de fala‖ ou de ―performativo‖ de John Austin (1990), tem nelas uma forte inspiração. Segundo Austin (op.cit.: 24), ―performativos‖ são proferimentos (utterances) que não se deixam definir pelo fato de ―descreverem‖ ou ―relatarem‖ algo, nem sobre os quais se poderia dizer serem ―verdadeiros ou falsos‖, mas por que sua enunciação é, no todo ou em parte, a realização de uma ação.

Nesse ponto, ainda, Austin diz que eles apenas podem ser tratados como ―felizes‖ (eficazes) ou ―infelizes‖ (ineficazes ou ―nulos‖). Esse aspecto, em particular, é interessante, pois de uma perspectiva alto-xinguana, o ato de ―brigar‖, além de causar ―vergonha‖, é um dos principais responsáveis por provocar também tristeza: um afeto que, como o primeiro, é extremamente indesejável e até mesmo perigoso — já que, além de atrapalhar as relações entre os vivos, pode atrair itseke (―espíritos‖ causadores de doenças e outros infortúnios). Olhar para essas histórias como atos enunciativos, portanto, é pensá-las também como meios de realizar ações ―felizes‖, entendendo-se, nesse caso, que a felicidade não decorre apenas da ―eficácia‖ do discurso, mas da possibilidade mais direta de contra-efetuarem acontecimentos ―tristes‖.26

26 Cf. também a definição de Austin de atos ―abusivos‖ (um tipo de performativo ―infeliz‖), cujo paralelo,

dessa vez, com aquela ―tentativa obscena‖ mencionada na página anterior é tão interessante quanto (Austin, op. cit.: 30-31).

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