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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica

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A problemática da identificação nos estados limites: uma

"falta de ser"?

Leandro Rafael Ferreira dos Santos

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UFRJ

A problemática da identificação nos estados limites: uma

"falta de ser"?

Leandro Rafael Ferreira dos Santos

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Marta Rezende Cardoso

Rio de Janeiro

Fevereiro/2011

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A problemática da identificação nos estados limites: uma "falta de

ser"?

Orientadora: Marta Rezende Cardoso

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Aprovada por:

___________________________________ Profa. Dra. Marta Rezende Cardoso

___________________________________ Profa. Dra. Regina Herzog

___________________________________ Prof. Dr. Alexandre Abranches Jordão

Rio de Janeiro

Fevereiro/2011

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Santos, Leandro Rafael Ferreira dos

A problemática da identificação nos estados limites: uma “falta de ser”?

Leandro Rafael Ferreira dos Santos. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2011

122 f.; 29,7 cm

Orientadora: Marta Rezende Cardoso

Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2011.

Referências Bibliográficas: f. 118-122.

1. Identificação. 2. Estados limites. 3. Trauma. 4. Psicanálise. 5. Dissertação (Mestrado). I. Cardoso, Marta Rezende. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título

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Dedicatória

Aos meus pais, Pelo amor que guiará todo o meu caminho, sempre!

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Agradecimentos

Em primeiro lugar gostaria de agradecer à minha família por me oferecer o suporte necessário para que meu desejo de fazer o Mestrado pudesse ser realizado: à minha mãe pelo fervoroso investimento afetivo e pelo amor incontestável que dirige a mim; ao meu pai que, mesmo não estando mais aqui, será uma presença constante e eterna em tudo o que faço e realizo; ao meu irmão, pelo companheirismo com que por quase trinta anos sempre pude contar; à grande amiga Maria Nelma pela amizade e pelo carinho.

Ao meu grande amigo Rodrigo, verdadeiro porto seguro, sem o qual cada momento de felicidade e cada momento de tristeza não teriam nenhum sentido.

Aos meus amigos, todos, que puderam – cada um à sua maneira – me oferecer incentivo e momentos de divertimento e risos, imprescindíveis para esta conquista: Maria Regina, Marcelo, Bruno, Thomás, toda a “galera do vôlei”...

À Marta Rezende Cardoso por acreditar e apostar em mim, não só como pesquisador, mas, especialmente, como pessoa capaz de vencer tarefas árduas. Também agradeço a sua competente orientação e por me mostrar, ensinar a ver e contemplar a complexidade, a dificuldade e acima de tudo a beleza da Psicanálise.

Aos meus colegas do grupo de pesquisa – Raquel, Lívia, Camila, Patrícia, Gabriela, Macla, Ney – que tornaram este percurso de mestrado uma deliciosa viagem de trocas e companheirismo.

Ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ e aos professores deste programa pela riqueza oferecida, pelo espaço e pelas trocas ocorridas em cada encontro. Em especial à professora doutora Regina Herzog, pela forma leve e fascinante com que transmite a Psicanálise.

Ao professor doutor Alexandre Abranches Jordão, pelas sugestões. Ao CNPq pelo incentivo financeiro à minha pesquisa.

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Resumo

A problemática da identificação nos estados limites: uma "falta de

ser"?

Leandro Rafael Ferreira dos Santos

Orientadora: Marta Rezende Cardoso

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

O principal objetivo desta dissertação é investigar os mecanismos psíquicos envolvidos nos processos de identificação nos estados limites. Para tal, é destacada a relação entre o eu e o outro (interno e externo), com ênfase na dimensão traumática que estaria na base desta relação. Esta análise leva em conta, de maneira articulada, os aspectos narcísicos e edipianos implicados nessa problemática.

Nos estados limites, a relação com o outro é marcada por um estado de “servidão” do ego ao objeto, indicador da predominância de uma dimensão narcísica no percurso identificatório desses sujeitos. Pressupõe-se precariedade quanto à constituição das fronteiras egoicas, excessivamente porosas nesses casos. Estes aspectos são explorados através das noções de introjeção e de incorporação, as quais se entrelaçam profundamente com a de identificação. Visa-se, assim, elaborar a questão dos limites da interiorização psíquica, considerando-se a possível presença, no mundo interno, de uma alteridade interna radical e inassimilável.

Busca-se, por fim, sustentar a especial relevância do mecanismo de identificação projetiva nos estados limites. Este mecanismo parece prevalecer e melhor descrever a particularidade quantos aos modos de identificação nessas situações clínicas nas quais a busca de si no e pelo outro constitui elemento essencial.

Palavras-chaves:

Identificação – Estados limites – Trauma – Psicanálise –

Dissertação (Mestrado).

Rio de Janeiro

Fevereiro/2011

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Abstract

The identification problem in borderline states: a “lack of being’?

Leandro Rafael Ferreira dos Santos

Tutor: Marta Rezende Cardoso

Abstract of the Dissertation presented to the Post-graduation Programme of Psychoanalytic Theory, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as a part of the requisite for obtaining the Master's Degree in Psychoanalytic Theory.

The main objective of this dissertation is to investigate the psychological mechanisms involved in the identification processes in borderline states. Aiming at that, we give special attention to the relationship between self and other (internal and external), emphasizing the traumatic dimension that would be the basis for this relationship. This analysis takes into account, in an articulated way, the narcissistic and oedipal features involved in this problem.

In the borderline states the relationship to the other is marked by a state of “bondage” of the self to the object, an evidence of the prevalence of a narcissistic dimension in the identification route of these subjects. We assume the precariousness of the establishment of ego boundaries, too porous in such cases. These features are explored through the notions of introjection and incorporation, which are deeply intertwined with identification. Thus, we aim at working through the issue of the limits of psychical interiority, considering the possible presence, in the internal world, of a radical and inassimilable internal otherness.

We eventually try to support the special relevance of the mechanism of projective identification in borderline states. That mechanism seems to prevail and best to outline the peculiarity of the ways of identification in such clinical situations in which the search for self and other is another crucial element.

Keywords:

Identification – Borderline states – Trauma – Psychoanalysis – Dissertation (Master’s Grade).

Rio de Janeiro

February/2010

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“Eu não sou eu, Nem sou o outro Sou qualquer coisa de intermédio Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o outro”. Mário de Sá-Carneiro (O outro, 1914)

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Sumário

Introdução ... 12

Capítulo I – O eu e o outro nos estados limites ... 16

I.1 – Trauma e constituição das fronteiras egoicas ... 17

I.1.1 – O trauma e o excesso pulsional não simbolizável ... 18

I.1.2 – Defesas primárias: considerações gerais ... 22

I.1.3 – O apelo às defesas primárias nos estados limites ... 26

I.2 – Trauma e relação objetal: aspectos narcísicos e objetais nos estados limites .... 29

I.2.1– O campo da relação primária ... 29

I.2.2 – O campo da relação edipiana ... 32

I.2.3 – As angústias básicas diante do outro nos estados limites ... 36

I.3 – Identificação narcísica e estados limites ... 39

I.3.1 – Identificação narcísica e consolidação dos limites egoicos ... 40

I.3.2 – A “servidão” ao outro ... 48

Capítulo II – A questão da incorporação nos estados limites: perda e insistência do objeto ... 52

II.1 – Limites da identificação ... 52

I.1.1 – O modelo da melancolia como paradigma da incorporação ... 53

II.1.2 – A conceituação da introjeção em Sàndor Ferenczi ... 56

II.1.3 – A incorporação em Ferenczi: a noção de identificação com o agressor .... 60

II.2 – A singularidade da incorporação ... 64

II.2.1 – A “negativização” do objeto ... 64

II.2.2 – O complexo da “Mãe Morta” ... 67

II.2.3 – Aspectos pulsionais no processo de incorporação ... 71

II.3 – A noção do duplo e o problema da interiorização ... 75

II.3.1 – O “estranho” em Freud ... 76

II.3.2 – “Duplo” e relação de tipo narcísico com o objeto ... 83

Capítulo III – A singularidade dos modos de identificação nos estados limites: o recurso da identificação projetiva ... 87

III.1 – A noção da identificação projetiva: aspectos elementares... 88

III.1.1 – O encontro com o outro arcaico: o papel das angústias e das defesas primárias na identificação projetiva ... 89

III.1.2 – As faces da projeção: recurso defensivo e processo constituinte ... 94

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III.2 – A identificação projetiva: manutenção de uma situação narcísica ... 99 III.2.1 – O aspecto narcísico da identificação projetiva ... 100 III.2.2 – Identificação projetiva e estados limites: desamparo e passividade psíquica ... 101 III.3 – A identificação projetiva nos estados limites: o limite da identificação ... 104 III.3.1 – O objeto “imperdível” na identificação projetiva ... 105 III.3.2 – Os “sofrimentos identitário-narcísicos”: identificação projetiva como limite da identificação ... 108 Considerações finais ... 114 Referências bibliográficas ... 118

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O desejo de pesquisar o problema da identificação no campo dos estados limites se deveu, principalmente, a duas razões. A primeira é oriunda de um trabalho de pesquisa anterior, onde realizamos uma monografia de final de curso de Graduação em Psicologia acerca do tema do superego em Freud. Este estudo teve como um de seus desdobramentos uma questão deixada em aberto para pesquisa posterior: qual seria a singularidade dos processos identificatórios na formação das instâncias psíquicas, em especial do ego.

A segunda se refere às interrogações geradas no nosso percurso de Iniciação Científica – ainda no curso de Graduação em Psicologia – onde desenvolvemos um projeto de pesquisa cujo tema central foi o campo dos estados limites. Nessa ocasião, tivemos oportunidade de articular esta pesquisa teórica ao estágio de atendimento clínico de pacientes limites na Divisão de Psicologia Aplicada da UFRJ. Além disso, posteriormente, a demanda de atendimento clínico em nossa clinica particular se mostrou uma permanente fonte de inquietação acerca da metapsicologia e da clínica dos estados limites.

Além desses aspectos, relativos ao nosso percurso pessoal, a bibliografia contemporânea de psicanálise demonstra crescente incremento da demanda dos pacientes limites na clínica de modo geral. A questão da convocação do corpo e do ato tem sido o principal objeto de pesquisa dos autores que se dedicam a refletir sobre a clínica contemporânea. Observa-se crescimento considerável e esforço sistemático dos psicanalistas – especialmente a partir da década de 70 – em circunscrever e descrever tais patologias através da psicopatologia e da metapsicologia psicanalítica.

Longe de apresentar discussão uniforme, a reflexão sobre os estados limites traz para a psicanálise uma série de questionamentos. A própria definição da nosologia de tais situações clínicas é exemplo ilustrativo. Observamos duas principais correntes de investigação. Os psicanalistas que seguem orientação mais próxima do que se pode denominar “escola inglesa de psicanálise” intitulam borderline tais pacientes. Acreditam que os borderline se configuram como estrutura de fronteira entre a psicose e

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a neurose. Para a concepção inglesa os borderline se caracterizam por ser um quadro clínico definido e estruturado.

Os psicanalistas orientados por uma visão mais próxima da “escola francesa de psicanálise”, diferentemente disso, não concebem tais patologias como estrutura situada nas fronteiras da psicose e da neurose. Para estes autores trata-se, antes de tudo, de

estados, situações ou organizações limites que podem aparecer em diferentes quadros da psicopatologia. Neste sentido, a denominação “estados limites” vem designar tanto situações onde prevalecem defesas histéricas e obsessivas como outras onde prevalecem defesas paranoides. Vale pontuar desde já que nos encontramos mais próximos da perspectiva apontada pela “escola francesa de psicanálise”.

De modo geral podemos destacar a insistência significativa que a bibliografia dedicada ao estudo dos estados limites – e nesse sentido levamos em consideração os autores mais próximos da escola francesa – concede à relação eu/outro, tanto no registro interno/intrapsíquico quanto no registro externo/intersubjetivo. Considerando o papel-chave que a relação com o outro desempenha na metapsicologia dos estados limites, e visando aprofundar as interrogações suscitadas em nosso percurso anterior de pesquisa, apresentamos, então, a questão-problema desta dissertação de Mestrado: nosso objetivo central é refletir sobre o problema da identificação no campo dos estados limites.

O pano de fundo de toda a nossa discussão consiste no fundamental papel da relação que se estabelece entre o eu e o outro nessas situações clínicas. Destacaremos no primeiro capítulo o papel fundamental do trauma, como estando na base da singularidade da relação com a alteridade nos estados limites, dando ênfase à articulação entre elementos objetais e pulsionais. Acreditamos que somente uma perspectiva que leve em consideração tanto o ponto de vista das relações objetais, quanto o da dinâmica pulsional, pode oferecer o embasamento necessário para avançarmos no entendimento da relação eu/ outro nessas organizações psíquicas.

Ainda no capítulo I, refletiremos acerca da qualidade da relação com o outro, levando aí em consideração não somente o registro da relação de tipo primário e narcísico, mas também o registro edipiano. Ressaltaremos a importância da articulação entre os registros narcísico e edípico através da elaboração de nossa hipótese sobre a questão da singularidade da relação eu / outro nos estados limites.

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Destacaremos ainda a importância da identificação narcísica e da posição alienante e servil do ego diante do objeto, aspectos que trabalharemos como operadores fundamentais para o entendimento do processo de identificação prevalente nos estados limites. Através destas duas noções procuraremos iluminar a questão da construção dos limites de diferenciação entre o eu e o outro, entre o dentro e o fora, questões de grande interesse no estudo dos estados limites.

No segundo capítulo, desdobraremos o problema da elaboração dos limites e da constituição identificatória do ego por meio de uma reflexão acerca dos modos possíveis de interiorização psíquica. Exploraremos as noções de introjeção e incorporação partindo, além das reflexões de Freud, das ricas contribuições de Sàndor Ferenczi. Além desses autores, iremos nos debruçar sobre algumas contribuições de André Green, que buscou iluminar a metapsicologia dos estados limites, oferecendo-nos importantes considerações para o entendimento dessas organizações psíquicas. Dentre muitas de suas contribuições, destacaremos: o trabalho do negativo, a noção de “complexo da mãe morta” e o campo das funções objetalizante e desobjetalizante da pulsão.

Finalizando a discussão apresentada no capítulo II, recorreremos à noção de “estranho” em Freud, nela destacando a questão do duplo. Quanto a este ponto, o nosso objetivo é aprofundar a problemática da interiorização psíquica a partir do que desenvolve Freud nesse momento acerca da presença, no mundo interno, de uma alteridade interna radical e inassimilável.

No capítulo III, tentaremos mostrar a relevância do modelo da identificação projetiva como modelo identificatório que parece prevalecer e melhor descrever a singularidade da problemática da identificação nos estados limites. Para elaborar esta questão, analisaremos alguns tópicos da rica contribuição de Melanie Klein, justamente por ter sido esta autora quem propôs de forma pioneira a existência de uma identificação projetiva. Destacamos de antemão que nossa ida à teoria da Melanie Klein leva em consideração as diferenças existentes entre os paradigmas teóricos da escola inglesa – da qual esta autora é a maior representante – e a escola francesa de psicanálise – que orienta grande parte de nosso pensamento.

Ainda neste capítulo, buscaremos mostrar que a identificação projetiva é um dos recursos defensivos mais utilizados nos estados limites. Sublinharemos que a

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identificação projetiva nos fala antes de tudo de uma problemática dos investimentos pulsionais, articulados à questão dos limites de diferenciação entre o eu e o outro.

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Como pontuamos na introdução, temos como objetivo nesta dissertação refletir sobre a singularidade da constituição identificatória nos estados limites. Diante de tal objetivo, nos encontramos com a tarefa de investigar dois eixos na elaboração desse problema: um relacionado aos estados limites, outro aos processos identificatórios.

Pensamos que, antes de se configurar como campos paralelos de investigação, os processos identificatórios nos permitem compreender de maneira sistematizada a organização subjetiva dos estados limites. Ao mesmo tempo, consideramos que a metapsicologia dos estados limites ilumina o papel dos processos identificatórios na constituição dos investimentos narcísicos e egoicos. Julgamos que a qualidade do encontro do eu com o outro – tanto num âmbito interno quanto num âmbito externo – é a base fundamental e o ponto de entrecruzamento dos dois eixos norteadores de nossa pesquisa. Por conta disso, a relação entre o ego e o objeto será o pano de fundo de toda a nossa reflexão.

A literatura dedicada aos estados limites demarca com significativa insistência a peculiaridade da relação com a alteridade em tais organizações clínicas. Os investimentos narcísicos e objetais apresentam singularidade nessas situações e, por isso, os processos identificatórios – por serem altamente dependentes desses investimentos – também terão aspecto igualmente singular. A esse respeito uma importante contribuição nos é oferecida por Cardoso (2010a), ao afirmar que nos estados limites estamos diante de situações em que a relação objetal é atravessada por elementos “irrepresentáveis”.

Para levar em consideração o importante papel dos elementos irrepresentáveis na relação com o outro, é preciso destacar um campo específico de investigação: o trauma. Os estados limites evidenciam uma situação em que o encontro com a alteridade é fortemente articulada com o traumático. Nestas situações encontramos uma posição de passividade egoica diante de exigência pulsional que não é passível de simbolização. Além do aspecto de passividade, encontramos – paradoxalmente – a convocação de

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respostas que se caracterizam, antes de tudo, por um caráter de atividade, como, por exemplo, a convocação do corpo e do ato.

Iniciaremos nossa discussão examinando o papel do excesso traumático na delimitação dos investimentos dos limites narcísicos, egoicos e objetais, sublinhando sua influência na constituição dos limites do eu e do outro. Com isso pretendemos dar o primeiro passo na questão da qualidade da relação entre o ego e a alteridade nos estados limites.

I.1 – Trauma e constituição das fronteiras egoicas

A articulação entre os investimentos dos limites narcísicos e a relação com a alteridade é o carro-chefe das investigações realizadas por muitos autores que se dedicaram a pesquisar os estados limites. Esta via marca a importância de se levar em consideração a questão do excesso pulsional e da fragilidade egoica como os principais operadores de toda a base de organização psíquica dos estados limites. O campo do traumático e do irrepresentável, aliado à forte dependência que se estabelece entre o ego e seus objetos, configuram-se como uma das principais vias de pesquisa destas situações clínicas.

Nos estados limites encontramos, como marca principal, excessiva porosidade nas zonas de diferenciação entre o eu e o outro. Cardoso (2010b; 2010c) pontua que tal porosidade impõe ao ego, como medida defensiva, a necessidade de convocação permanente do objeto, implicando um estreitamento patológico da zona de fronteira. Tal estreitamento, por sua vez, favorece a exposição do sujeito às angústias mais elementares. Villa e Cardoso (2004) pontuam que nos estados limites o encontro com o objeto é mediado pela prevalência de angústias de fusão/engolfamento e de separação/perda, em contraposição à angústia de castração prevalente nas neuroses.

O incremento destas angústias favorece a convocação de defesas arcaicas que comprometem os investimentos pulsionais da instância egoica. À primeira vista estas defesas não parecem levar em consideração os processos de representação e simbolização: estão situadas num registro onde há procura ativa do vivido da cena psíquica nos objetos exteriores, marcando um estado de permanente abertura do espaço psíquico ao que está fora. Abordar os estados limites sob esta ótica significa supor que a sua problemática básica engaja dimensão identificatória.

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Ao considerar os estados limites como “sofrimentos identitário-narcísicos”, René Roussillon (1999, p. 9) nos oferece significativa contribuição: propõe que se considerem os estados limites como patologias caracterizadas por um déficit no plano dos investimentos narcísicos, que nos remetem, em última instância, a uma dificuldade na constituição das fronteiras e dos limites de diferenciação do ser. Trata-se de situações onde prevalece uma falta de ser, em prejuízo de uma falta no ser.

Ao nos perguntarmos sobre os elementos que se encontram na base da porosidade patológica dos limites, da exposição às angústias básicas e primitivas, da convocação das defesas ativas de convocação do corpo e do ato e especialmente da problemática da falta de ser, esbarramos na questão do excesso pulsional. O problema do excesso deve ser sempre contextualizado com a dificuldade do ego em fazer operar sua capacidade de representação e vinculação da energia que o afeta. Esta questão traz como elemento central de discussão dos estados limites o papel do trauma. Por conta disso, voltaremos brevemente nossa atenção à concepção psicanalítica do trauma, com o intuito de nos munirmos de ferramentas metapsicológicas que nos permitam avançar na reflexão da relação com a alteridade nos estados limites.

I.1.1 – O trauma e o excesso pulsional não simbolizável

Como sabemos, o trauma é abordado por Freud em dois momentos específicos de sua teoria: inicialmente, através da teoria da sedução traumática (que se configurava como elemento central da primeira teoria das neuroses); e num segundo momento, em 1920, quando se estrutura a nova teoria das pulsões. O conflito pulsional proposto inicialmente por Freud entre as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação encontra um desdobramento com a virada de 1920, na ideia de um conflito entre as pulsões de vida e a pulsão de morte.

Uchitel (2001) e Lejarraga (1996) oferecem importantes contribuições que nos ajudam a compreender de maneira sintética a complexidade da travessia do traumático dentro do pensamento de Freud. Pretendemos, com este percurso, extrair das duas teorias do trauma elementos que nos ajudem a iluminar a relação com o outro nos estados limites.

No primeiro momento das pesquisas freudianas acerca da gênese da histeria o trauma era considerado o principal fator etiológico dessa psiconeurose. Neste contexto,

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a concepção do trauma leva em consideração a necessidade da existência de dois tempos para a instalação de uma situação traumática. No primeiro tempo, que é o infantil, o sujeito vive de maneira passiva e submissa uma experiência de violência sexual. Nesta situação o sujeito ainda não tem uma compreensão cognitiva e afetiva do assédio que sofreu, e encontra-se incapaz de oferecer um sentido a tal evento. Somente em um segundo momento, a partir da puberdade, uma segunda experiência tornará possível ressignificar o primeiro evento, dando a ele a condição de trauma. Se a primeira cena oferece a força traumática, é somente com a segunda que a condição traumatizante se instala (LEJARRAGA, 1996, op. cit.)

Lejarraga (Ibid.) faz a ressalva de que apesar da importância atribuída por Freud, em sua primeira teoria do traumático, à realidade factual de um evento, não é estritamente a um acontecimento em si que devemos associar sua etiologia. Como Breuer e Freud (1893-1895/1976) pontuam, os histéricos “sofrem de reminiscências”, e não de experiências. É a reativação da lembrança do acontecimento – e não o fato em si – que se configura como núcleo central da instalação do traumático.

Outro fator importante a ser destacado é que o elemento traumático não consegue descarregar sua cota de afeto nem por via motora, nem por via associativo-simbólica. É por conta de o sujeito não conseguir elaborar uma passagem de descarga do afeto, que a lembrança da experiência do abuso sexual adquire a importância de trauma. A impossibilidade de descarga afetiva se constitui como o outro polo da causa etiológica da sintomatologia da neurose que sobrevém. Assim, podemos afirmar que a primeira teoria do trauma, além de levar em consideração o aspecto do a posteriori, também deve tomar como fundamental a dificuldade do aparelho psíquico quanto a descarregar e se livrar de uma cota de afetos perturbadores da ordem psíquica (UCHITEL, 2001, op. cit.)

Como sabemos, a teoria da sedução traumática é deixada de lado por Freud em prejuízo de outra forma de conceber a etiologia das neuroses. Em carta a Fliess datada de 21 de setembro de 1897, Freud declara que não acredita mais na sua histerica tal como era explicada pela teoria da sedução traumática. A dificuldade de sustentar a suposição de que deveria haver um número muito elevado de pais perversos que abusariam de seus filhos; a adesão à hipótese de que para o inconsciente não existiria signo de realidade; e principalmente, o abandono da importância do fator factual do

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trauma em prejuízo da fantasia, foram os principais motivos que levaram Freud a abandonar sua primeira teoria das neuroses.

As descobertas referidas à sexualidade infantil e ao complexo de Édipo foram os principais produtos do abandono da teoria da sedução traumática. Muitas contribuições foram elaboradas a partir dessa reviravolta, permitindo que Freud construísse toda a metapsicologia da primeira tópica e a primeira teoria do conflito pulsional. A construção do aparelho psíquico proposto no capítulo VII de A interpretação de sonhos (FREUD, 1900/1976) e o conflito entre as pulsões de autoconservação e as pulsões sexuais são partes da nova abordagem teórica da gênese das neuroses, que quase não oferece espaço para se pensar o lugar do traumático.

Porém, depois de longo período afastado da problemática do trauma, Freud retorna ao traumático no artigo “Além do princípio do prazer” (Id., 1920/1976). Nele encontramos uma síntese das principais justificativas da virada ocorrida no pensamento freudiano no início da década de 20 do século XX. A virada dos anos 20 tornou possível e justificável o retorno do trauma na teoria, especialmente porque por meio dele Freud conseguirá tornar inteligível a “estranha” insistência de alguns fenômenos, especialmente o da repetição compulsiva de experiências que não podem oferecer prazer a nenhuma instância.

Os sonhos das neuroses traumáticas e das neuroses de guerra, as brincadeiras infantis, a reação terapêutica negativa, o fenômeno das neuroses de “destino”, dentre outros exemplos, permitiram a Freud vislumbrar o caráter imperativo e categórico da compulsão à repetição. Esta modalidade de repetição impôs ao pensamento psicanalítico um problema teórico fundamental que precisou ser levado em consideração de maneira mais sistemática a partir de então: a questão das intensidades não redutíveis à representação.

O modelo da vesícula viva é ilustrativo no que diz respeito à nova concepção do trauma. Neste exemplo Freud nos fala de uma vesícula que apresenta duas superfícies de contato: uma que faz fronteira com o mundo externo, e outra com o mundo interno. Para que possa ingressar no interior da vesícula, é preciso que o afluxo de energia oriundo do exterior passe antes por uma camada calcinada de proteção. Tal camada funcionaria como uma espécie de filtro, e teria como função proteger a vesícula do ingresso excessivo de energia. Considerando que a vesícula funciona como uma

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metáfora do aparelho psíquico, podemos afirmar que quando uma cota de energia é introduzida no aparelho sem a mediação de uma devida proteção, instala-se o trauma. O que está em jogo no traumatismo é a efração por um excesso de energia que inunda o aparelho psíquico, e sobre o qual não se consegue exercer um trabalho de proteção, domínio e contenção. A energia permanece como “energia livre”.

Lejarraga (1996, op. cit.) nos mostra que se existe uma proteção – que pode ser rompida nas situações traumáticas – contra os estímulos oriundos de fora, o aparelho não pode contar com uma defesa contra a estimulação endógena/pulsional. Quando por algum motivo a tensão interna é consideravelmente aumentada, instala-se uma situação semelhante à inundação energética oriunda de fora. A energia causadora da tensão interna que o psiquismo não consiga dominar e vincular, permanece também em regime de “energia livre”. Assim, a fonte possível de instalação do trauma pode também ter origem endógena.

Portanto, a partir de 1920, o traumático se configura como uma força (interna ou externa) que excede a capacidade psíquica de proteção, domínio e representação. Diante da inundação energética, da impossibilidade de contenção, o psiquismo é obrigado a lançar mão de mecanismos de proteção que se situam aquém do recalque. É preciso que antes do ingresso no registro do prazer, a quantidade de energia pulsional seja submetida a um metabolismo egoico que consiga ligar e dominar o excesso. Se não há o domínio e a energia permanece “desligada”, restará como destino ao elemento traumático seguir um percurso que ignora as defesas prevalentes do princípio de prazer (FREUD, 1920/1976, op. cit.)

Segundo Freud (Ibid.) a compulsão à repetição é a resposta possível diante da inundação pulsional da qual o ego é vítima. Este modo de defesa marca uma espécie de congelamento na situação traumática em que a representação, a inserção ao princípio de prazer e a utilização do recalque como medida defensiva ficaram comprometidas. Desta forma, o problema que o traumático e a compulsão à repetição colocam em destaque é a incapacidade do modelo representacional/recalcador quanto a dar conta dos fenômenos e situações clínicas onde o conflito inerente ao principio de prazer cede lugar ao predomínio do traumático e da moção pulsional não vinculada.

Green (1999) nos mostra que é por conta disso que Freud a partir de 1920 irá se dedicar a refletir sobre um número de situações que não estariam sendo governadas

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prioritariamente pelo princípio de prazer. Cita como exemplo a preocupação de Freud em compreender as neuroses traumáticas, onde estaria em jogo uma organização subjetiva submetida ao domínio da compulsão à repetição. Além deste exemplo, Green cita ainda a perversão – com destaque ao fetichismo – onde encontramos a predominância de um tipo de defesa distinto do recalque. Nas neuroses traumáticas e nas perversões não é a realização do desejo inconsciente e recalcado que parece prevalecer, mas sim a questão da dificuldade do ego quanto a estabelecer um domínio das intensidades não vinculadas e ameaçadoras.

O interesse que Freud dirigiu para estes quadros clínicos se justifica pelo fato de que tais situações envolvem, em sua base, uma intensidade que não se permite simbolizar. A segunda teoria do trauma – com a hipótese acerca da pulsão de morte – coloca em evidência a necessidade de se levar em consideração a possibilidade da existência pulsional em regime de não ligação. Não se trata mais de ter como única referência o paradigma do eixo prazer/desprazer. Trata-se, em última instância, de levar em conta a força destrutiva, imperativa e categórica que invade o aparelho psíquico. A partir desta perspectiva o trauma passa a ser considerado como situado aquém do princípio de prazer, e vinculado estreitamente com a noção de pulsão de morte.

Conforme nos mostra Green (1999, op. cit.), a partir deste momento a representação não pode ser mais tomada como algo dado desde o início. É preciso um trabalho psíquico que a anteceda, para que ela possa se instalar e o princípio de prazer começar a reger o funcionamento psíquico. O traumático vai se colocar como o principal componente de entrave ao trabalho psíquico de dominação e construção de vínculos simbólicos e ingresso no registro prazer/desprazer, justamente por supor uma incapacidade do ego para dar conta de ligar a energia pulsional excessiva que o afeta.

A literatura destinada ao campo da psicopatologia dos estados limites aponta que a base traumática e a compulsão à repetição aparecem de maneira expressiva nestas organizações psíquicas. Encontramos aí significativo apelo a defesas que tentam dar conta do incremento do pulsional não vinculado.

I.1.2 – Defesas primárias: considerações gerais

Conforme nos mostra Freud no artigo “Inibições, Sintomas e Ansiedade” (1926 [1925]/1976), as defesas de caráter mais arcaico relacionam-se a questões quantitativas,

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e não a questões representativas e simbólicas. Não se trata – como no recalque – de dar conta de um conflito entre representações incompatíveis, mas sim de acionar uma defesa que dê conta ou do rompimento do escudo de proteção do aparelho (por impulso externo), ou da impossibilidade de contenção da força excessiva da pulsão.

A reversão do impulso pulsional em seu oposto e o rebatimento do impulso sobre si mesmo foram descritos por Freud (1915/1976) como defesas que tendem a ser ativadas e convocadas pelo ego antes que o recalque esteja em condições de operar. Podemos afirmar que se situam em etapa anterior à instalação do princípio de prazer. A reversão ao oposto fala de uma operação em que o ego, ao se ver incapaz de “empurrar” para o inconsciente o estímulo pulsional que o afeta, elabora um trabalho psíquico de inversão do estímulo. Ao descrever esta modalidade de defesa Freud nos dá como principal exemplo a inversão da passividade egoica diante da pulsão, em atividade motora. O exemplo do fort da (Id., 1920/1976) é o paradigma desta operação. Mesmo utilizando o recurso simbólico do carretel, a brincadeira infantil do fort da coloca em evidência a inversão de uma situação de desamparo ante a ausência da figura materna: a criança sai de sua posição passiva de desamparo e, na tentativa de dar conta desta, inverte os papéis e assume a posição ativa: “sou eu quem te abandona” – fort – e “sou eu quem te recupera” – da.

O rebatimento do impulso sobre si é outro mecanismo defensivo retratado por Freud no artigo “Os instintos e suas vicissitudes” (1915/1976). O rebatimento do sadismo sobre si mesmo, que configuraria o masoquismo, o exemplo da inversão do impulso de olhar o outro no de ser olhado pelo outro (voyeurismo e exibicionismo) e ainda as importantes contribuições do artigo “Uma criança é espancada” (Id., 1919a/1976) nos permitem visualizar a ação de uma operação defensiva que faz retornar sobre o ego aquilo que anteriormente era direcionado ao objeto. É interessante perceber que em ambas as modalidades defensivas, descritas em 1915, a questão da dificuldade de sustentar o conflito da ambivalência é flagrante. A possibilidade de conjugação da posição passiva com a ativa, e da posição objetal com a egoica, é bastante limitada. Ou se está em uma corrente, ou se está na outra.

A compulsão à repetição é outra modalidade defensiva que Freud (1919b/1976; 1920/1976) nos apresenta como anterior ao momento da instalação do recalque. Conforme já pontuamos, é levando em consideração a repetição involuntária do mesmo

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que toda a construção teórica da pulsão de morte é elaborada. A compulsão à repetição tem como principal característica a imperativa e insistente repetição do mesmo que se articula de maneira direta com aquilo que não conseguiu ingressar no domínio da representação. O que ficou à margem do trabalho de elaboração simbólica realizado pelo ego tem como destino se apresentar a ele como uma realidade “estranha”, radical e surpreendente (no sentido de ser sempre uma surpresa para o ego).

Conforme indicam Macedo e Werlang (2007), o que está em jogo na compulsão à repetição é a submissão do sujeito a um excesso que o aparelho psíquico mostra-se incapaz de dominar e metabolizar. A vivência traumática imprime-se como marca a ferro e fogo, impondo a repetição cega à revelia do desejo do sujeito.

Além disso, a clivagem do ego é outra modalidade de defesa arcaica descrita por Freud que merece ser alvo de nossas investigações. Apesar de aparecer sensivelmente vinculada ao problema da perversão – em especial do fetichismo –, Freud não deixou de considerar a importância deste mecanismo em outras afecções psíquicas, e até mesmo refletiu o seu papel na vida saudável de cada sujeito. No artigo “Fetichismo” (1927/1976), Freud sublinha o papel da rejeição/negação no processo de clivagem. No fetichismo encontramos uma situação onde a negação de uma parte da realidade tem como consequência a instalação de duas correntes subjetivas paralelas e contraditórias. Ao mesmo tempo em que uma corrente teme e recua diante da experiência, aceitando-a, a outra a ignora e se posiciona como se aquela jamais pudesse ter existido.

Quando aborda a cisão/clivagem pelo fetichismo, Freud (Ibid.) a relaciona com o intenso impacto que a ameaça de castração causa ao sujeito. A clivagem operada pela perversão aponta um triunfo sobre a ameaça de castração e, paralelamente, uma enérgica proteção contra ela.

A clivagem apresenta como principal consequência uma divisão no ego. Tal divisão se aplica a uma situação em que o ego se defronta com a necessidade de construir uma defesa diante de uma percepção extrema de ameaça narcísica. Apesar de aparecer vinculada ao complexo de castração, o caráter “extremo” de ameaça narcísica – que impõe ao sujeito a necessidade de clivar uma parte de seu ego – permite a Freud estabelecer relação entre a clivagem ocorrida no fetichismo e os processos que operam na interrupção da memória na amnésia traumática. Um fragmento da realidade é

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rejeitado pelo ego instaurando uma situação onde uma corrente da vida psíquica não reconhece um evento, e a outra se dá plena conta da existência de tal evento.

No artigo “Divisão do ego no processo de defesa” (FREUD, 1940 [1938]/1976) encontramos a reafirmação da relação existente entre o ato de rejeição e a noção de que este ato resulta numa divisão da unidade egoica. Mas diferentemente de estar relacionado somente com a perversão, neste artigo encontramos clara menção da abertura da clivagem à situação em que o ego se encontra com uma situação traumática. Freud nos diz que diante do trauma o ego deve decidir reconhecer o perigo real, ceder-lhe passagem e renunciar à satisfação pulsional, ou rejeitar a realidade e convencer-se de que não há razão para temê-la, de maneira a poder conservar a satisfação pulsional. Na cisão o ego não toma nenhum desses cursos, ou melhor, toma ambos simultaneamente. Responde ao conflito por duas reações contrárias, ambas válidas, eficazes e inconsistentes.

A cisão abre no ego uma fenda que nunca se cura, só aumenta, à medida que o tempo e as experiências subjetivas vão se somando. O acionamento das duas reações contrárias persiste como ponto central de uma divisão do ego que fica como modo privilegiado de relação com os objetos. A função sintética do ego, embora tenha importância tão extraordinária, está sujeita a condições particulares e exposta a grande número de distúrbios. A cisão é um dos distúrbios possíveis diante do trauma, e guarda ao mesmo tempo uma peculiaridade: protege o sujeito, de certa forma, de cair numa descompensação psicótica.

As defesas primárias pressupõem sempre uma regressão que pressupõe uma defusão pulsional. Os componentes eróticos e agressivos que deveriam permanecer mesclados se tornam, em certa medida, mais autônomos. A regressão, pela separação que ocasiona, torna os impulsos mais intoleráveis ao ego pelo impedimento imposto no sentido de utilizar defesas mais elaboradas, como o recalque, e de recorrer ao contrapeso do impulso contrário. Nas defesas primárias a ambivalência não é harmonizada.

Todas as modalidades de defesa ilustradas acima são utilizadas pelos estados limites de maneira ampla e até caricatural. Ao mesmo tempo em que localizamos uma dificuldade do ego para estabelecer um domínio do pulsional, encontramos a convocação de trabalho psíquico elementar que permite ao ego responder à quantidade

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de energia que o afeta. A porosidade dos limites psíquicos favorece, especialmente, a utilização de respostas primárias. Direcionaremos nossa atenção para a análise das modalidades de defesas utilizadas pelos estados limites, com o intuito de avançarmos em nossa compreensão da qualidade da relação com o outro – base dos processos identificatórios – nestas organizações psíquicas.

I.1.3 – O apelo às defesas primárias nos estados limites

Conforme nos mostram diversos autores, como Roussillon (1999, op. cit.), Chabert (1999a), Figueiredo (2008), Postigo (2010) e Cardoso (2010a, op. cit.; 2010b, op. cit.), as defesas primárias que ilustramos acima são amplamente convocadas nos estados limites. A transformação do impulso em seu oposto, o rebatimento sobre si mesmo, a compulsão à repetição e a cisão/clivagem são operações que subsidiam amplamente as defesas convocadas pelo ego diante de situação traumática.

As diferentes modalidades de adicção; os transtornos alimentares, como a bulimia e a anorexia; o recurso da convocação do ato nas passagens ao ato e do corpo nas doenças psicossomáticas, aliado à intensa dificuldade em manejar a ambivalência afetiva, são características que ilustram o funcionamento defensivo prevalente nos estados limites.

No que diz respeito à ampla utilização da cisão/clivagem do ego pelos estados limites, Roussillon (1999, op. cit.) e Figueiredo (2008, op. cit.) pontuam que a cisão representa, de modo geral, a imposição de uma fissura na atividade psíquica que, de certo modo, comandará todas as demais defesas utilizadas pelo ego. Ambos endossam a posição de Freud no que diz respeito à utilização deste modo defensivo como mecanismo que o ego aciona para dar conta daquilo que se encontra no psiquismo como excesso traumático.

Porém, Roussillon (1999, op. cit.) nos apresenta um matiz fundamental no que se refere à noção de cisão proposta por Freud. Como já pontuamos, a concepção freudiana da clivagem traz como principal paradigma a perversão, em especial o quadro do fetichismo. Para os autores – como nós – que defendem a singularidade da organização e dos mecanismos defensivos dos estados limites, é necessário que se demarquem os matizes e as diferenças existentes entre os processos defensivos dos

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estados limites e os das demais situações que também são expostas ao traumático e também apresentam déficit no narcisismo, e a utilização da clivagem.

A cisão que opera nos estados limites não atua de maneira semelhante à da perversão/fetichismo. Não se trata de uma divisão do ego como propõe Freud, mas sim de uma divisão ao ego. Esta sutil diferença precisa ser acentuada, pois é por sua emergência que poderemos chegar à singularidade que diferencia os estados limites das demais situações em que os investimentos narcísicos se encontram prejudicados pela insistência do traumático.

Como bem ilustra Roussillon (1999, op. cit.), diante do traumático desestruturante os estados limites respondem com a construção de uma saída paradoxal: para sobreviver psiquicamente à força desestruturante da pulsão o ego se retira da experiência traumática primária. Ele assegura sua vida psíquica separando uma parte de si mesmo. Se na concepção freudiana a clivagem visa a colocar o elemento traumático para fora do ego, nos estados limites a cisão apresenta situação paradoxal onde ao mesmo tempo uma vivência foi experienciada pelo ego, está dentro dele, e não é constituída como experiência, uma espécie de propriedade egoica.

Ou seja, por um lado a experiência foi vivida e deixou marcas no psiquismo; por outro, ela não foi devidamente apropriada como tal pelo ego. Trata-se de uma situação em que a experiência, apesar de se configurar como interna, “não pode ser colocada em presença do ego” (Id., ibid., p. 20),. É neste sentido que utilizamos a expressão de uma divisão interna ao ego, que fica cindido, com uma parte em que consegue impor seu trabalho de ligação, e outra onde o caráter de excesso disruptivo não se dispõe a acolher o trabalho de vinculação egoica.

Figueiredo (2008, op. cit.) endossa a singularidade da correlação existente entre as cisões e as experiências traumáticas nos estados limites. Mostra-nos que em tais configurações clínicas a cisão do ego atua como defesa primitiva radical contra os riscos impostos à integridade narcísica do indivíduo. Trata-se de crescente separação entre correntes intraegoicas de desenvolvimento psíquico, na tentativa de evitar a constituição de conflito psíquico entre os impulsos ambivalentes.

O elemento clivado permanece na tópica egoica como acontecimento sem autoria legitimada, como episódio sem sujeito da experiência. A realidade do acontecimento traumático se mostra, apesar de clivada, não totalmente ignorada pelo

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ego: permanece em regime de “enclave psíquico”, sem receber a devida autorização para se transformar em experiência autêntica e subjetiva, e sem conseguir ingressar em um campo subjetivo relativamente unificado e ramificado. Na cisão convocada nos estados limites o episódio traumático passa a existir em uma área separada, paralela, incomunicável, embora interna ao sistema egoico (FIGUEIREDO, 2008, op. cit.).

Quanto mais aspectos da experiência são clivados, mais pesa a força da região paralela cindida ao ego: os elementos são conservados, se acumulam e retornam à consciência com perseverança “demoníaca”. O isolamento ao ego imposto pela clivagem será o lugar de acolhimento, dentro da tópica, das marcas do objeto primário excessivo e traumático. Os elementos oriundos da invasão traumática vão encontrar como destino esta região não comunicável dentro do ego. Por isso, permanecem no psiquismo como alteridade estranha, insistente e não assimilada. A insistência da alteridade gera tensão interna que exige reação ativa contra o poder que o objeto exerce sobre o sujeito, e que traga a ilusão de algum domínio sobre a situação traumática. A dimensão da reversão ao oposto nos ajuda a compreender de maneira profunda este aspecto nos estados limites.

O intenso recurso da convocação do corpo e do ato permitiu a Mayer (2001) denominar os estados limites como “patologias do ato”. O ato limite – antes de se configurar como encenação histérica – representa uma espécie de curto-circuito psíquico, onde visualizamos a ligação estreita entre impulso e ação. Não há espaço para que um trabalho psíquico se interponha a esses dois elementos. A defesa do recalque (em que podemos visualizar complexo trabalho psíquico e egoico) não desempenha papel tão central como a clivagem ao ego.

A passagem ao ato apresenta uma descarga motora e consiste numa ação extrema que pressupõe uma ruptura egoica. Regendo essas ações, encontramos uma força que aspira ao desligamento, à destruição da relação com o objeto, à extinção do desejo e da própria unidade egoica. Ela revela a submissão do ego aos imperativos pulsionais oriundos da parte clivada, de cujo domínio e de cuja ação alienante o ego não consegue escapar.

O exemplo da adicção é ilustrativo, pois encontramos aí uma situação em que o ego se encontra passivamente submetido a intensa excitação pulsional (estimulada pelo objeto interno não assimilado) e, ao mesmo tempo, uma busca ativa insistente e

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compulsória de um único objeto ao qual o ego adere sem conseguir se remeter a outros objetos. A tensão intrapsíquica subjacente às adicções encontra saída preferencial nas condutas agidas, em comportamentos de consumo exagerado de substâncias em detrimento de soluções “psíquicas” (BRUSSET, 2004).

Ao tratar o quadro das adicções como modalidade de patologia limite, Postigo (2010) pontua que a dificuldade de esboçar uma via simbólica de escoamento se dá por falha na constituição dos investimentos narcísicos. A presença de elementos clivados resulta no déficit nos investimentos narcísicos, afetando de maneira central a consolidação do ego e a manutenção de suas competências. Por precisar investir uma quota muito grande de energia para manter a fissura egoica, os limites do ego ficam pobres de investimento, instalando-se porosidade excessiva e patológica dos limites, o que implicará uma relação peculiar com o objeto.

I.2 – Trauma e relação objetal: aspectos narcísicos e objetais nos estados

limites

I.2.1– O campo da relação primária

Como pontuamos acima, o traumático marca profundamente a organização subjetiva dos estados limites. A questão do excesso pulsional aliada à dificuldade de contenção e domínio do ego perpassa de maneira singular o campo da relação com o outro nessas organizações. Quanto à relação com o objeto primário, encontramos em Mayer (2001, op. cit.) importante contribuição. Este autor pontua que a fragilidade da função materna – por sua falta ou presença excessiva – funciona como elemento central na instalação, no psiquismo, de um núcleo traumático oriundo da relação com o objeto primário, que exercerá forte influência em toda relação objetal ulterior.

Mayer (2001, op. cit.) nos propõe a noção de “mães intrusivas”, visando elucidar o encontro primário com o outro quando atravessado pelo traumático. Com esta noção, o autor pretende tornar inteligível o efeito das falhas do objeto primário na organização subjetiva e na contenção pulsional do psiquismo infantil. A “intrusão” materna fala de um tipo de relação em que se destaca abuso de poder do objeto-mãe em relação ao bebê, em que as linhas de demarcação, proteção e separação entre o eu e o outro ficam

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comprometidas: o excesso do outro invade o sujeito, sem o devido auxílio da camada de proteção contra os estímulos.

Quando se oferece de maneira excessiva, traumática e intrusiva, a mãe apresenta dificuldade para oferecer suporte ao reconhecimento da singularidade e da autonomia de seu filho. Ela investe psiquicamente seu filho como se ele fosse um prolongamento dela mesma. As fronteiras de diferenciação não são, portanto, asseguradas. A prevalência da relação excessiva e traumática traz fortes consequências no plano intrapsíquico. Freud (1914/1976) nos mostra que para que ocorra a consolidação dos limites interno-narcísicos é necessário que as barreiras de delimitação permaneçam investidas e sustentadas pelo objeto primário.

Nos estados limites essa delimitação das fronteiras e barreiras egoicas não ocorre de maneira satisfatória. Ao não exercer suas funções primordiais, o objeto primário/mãe dificulta o processo de constituição dos limites do psiquismo. A falta de uma figura materna consistente e não intrusiva impede que as tensões internas oriundas das necessidades vitais e afetivas da criança encontrem um caminho de satisfação.

Os traumas remetidos às carências e excessos advindos da relação com o objeto primário favorecem a instalação de situações marcadas pela estagnação e mesmo pela inércia do ego, onde há verdadeira sideração das capacidades egoicas. O excesso materno é traduzido internamente como uma situação em que o ego cai vítima do excesso pulsional. A alteridade apresenta-se tão dolorosa, ameaçadora e invasiva que o ego não encontra outros caminhos para se contrapor senão retraindo-se e submetendo-se passivamente (MAYER, 2001, op. cit.).

Figueiredo (2008, op. cit.) afirma que o traumatismo nas situações limites confronta o ego a uma problemática que ao mesmo tempo se apresenta como narcisista e esquizóide. Narcisista, no sentido de que os investimentos pulsionais narcísicos do ego são profundamente atacados pelo trauma; e esquizóide porque a cisão egoica é amplamente convocada sob tais circunstâncias, impedindo um trabalho de conflitualização da ambivalência e mediação da tensão pulsional. Como consequência, o ego se vê transbordado pelo excesso pulsional antes de completar a operação que delimita e unifica seus investimentos e suas fronteiras. Sem conseguir erigir um investimento narcísico eficiente, não é possível colocar em operação aquilo que o capacitaria a se defender da exigência pulsional interna excessiva. Sem poder contar

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com as bases narcísicas necessárias para a ação defensiva do recalque, a invasão é registrada como ameaça de aniquilação, tornando-se a fonte de onde partem angústias avassaladoras.

Por conta deste aspecto, convocamos e endossamos a posição de Roussillon, que trata os estados limites como “sofrimento identitário-narcísico” (1999, op. cit., p.09) Identitário, porque as fronteiras de separação entre o eu e o outro se encontram excessivamente porosas e precariamente investidas, dificultando, sobretudo, a consolidação da diferença e a experiência de si; e narcísico porque é a quota dos investimentos responsáveis pela ação específica da constituição do narcisismo e do ego que se encontra comprometida diante da exposição ao traumático.

Diante de uma unidade egoica mal estabelecida a problemática da perda do objeto se torna central. Chabert (1999a) nos mostra que a dialética do investimento do eu e do objeto não é, entretanto, suscetível de se inscrever senão na abertura de um campo intermediário, entre o dentro e o fora, entre sujeito e objeto. A capacidade de elaborar uma zona de diferenciação fica comprometida nos estados limites, incapacitando o sujeito em sua tarefa constituinte de destruir fantasisticamente o objeto e oferecer-lhe existência virtual que resista à destruição fantasística.

Como pretenderemos demonstrar ao longo de toda a nossa exposição, nos funcionamentos limites o reconhecimento da falta do objeto não poderá se elaborar de maneira consistente. A falta do objeto fica vinculada de maneira categórica ao seu desaparecimento no espaço psíquico. E tal desaparecimento – dada a vicissitude da zona de diferenciação – é suscetível de acarretar a perda de si mesmo. Há extrema dificuldade de acesso à continuidade de si e do outro, e manutenção da ambivalência nos funcionamentos limites. Não há segurança de que o objeto e o próprio sujeito sobrevivam aos ataques pulsionais.

Chabert (Ibid.) defende que a interiorização de uma representação falha nos estados limites. Não há efetivo reconhecimento das percepções e representações internas daquilo que se experiencia do lado de fora. O sujeito fica preso à recusa de abdicar do objeto, e agarrado às marcas efetivas da sua presença. Trata-se de situação de dependência alienante patológica. A problemática da perda do objeto pode encontrar, na utilização da realidade externa, estratégias defensivas desesperadas e custosas. A

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realidade externa é buscada e utilizada para mascarar, ou antes, para suprir o vazio interior.

Encontramos nos estados limites uma busca insistente e ineficaz na demarcação entre dentro e fora. A cena psíquica é situada do lado de fora, e há necessidade urgente de recorrer ao ato para se sentir existindo. Esta busca é indispensável para prevenir a ameaça de destruição interna, utilizando a realidade externa para compensar o vazio de seu espaço interno. Todo o tempo esses sujeitos vão tentar encontrar sua cena psíquica no exterior, para através do objeto poder verificar sua existência.

O registro da separação e abandono é onipresente nos estados limites. Conforme sinaliza André (2001), há prevalência de experiência em que a ausência do objeto “cruelmente” não aparece. O comprometimento das funções egoicas quanto a estabelecer os limites de diferenciação e a perda do objeto infiltrará de maneira precisa a consolidação e a experiência da triangulação edípica. Se o ego não consegue exercer sua tarefa de contenção e dominação do pulsional, a travessia do Édipo apresentará dimensão singular que precisa ser levada em consideração. Voltaremos nossa atenção a este aspecto com o intuito de avançar nossa compreensão da relação com o outro nos estados limites.

I.2.2 – O campo da relação edipiana

O complexo de Édipo em sua configuração completa permite dar conta da questão da ambivalência afetiva e da dimensão bissexual universal na relação que se estabelece com o outro por meio do acionamento do recalque. Por conta disso Laplanche e Pontalis (1987/2004) pontuam que o complexo de Édipo tem papel fundamental na constituição dos limites intrapsíquicos, em especial, os do superego/ideal do ego com relação ao ego. Somente com o trabalho psíquico do recalque as delimitações entre as instâncias poderão se erigir de maneira satisfatória.

Conforme nos mostra Chabert (1999b), a triangulação edípica permite a passagem da posição arcaica ao reconhecimento dos limites entre o eu e o outro. Significa aceitar a perda do objeto parental, acessar a frustração, defrontar-se com o mundo da alteridade e renunciar aos desejos primitivos. A passagem do registro narcísico para o registro edípico implica que o sujeito consiga recalcar de maneira enérgica as relações incestuosas com o objeto.

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A introdução da referência paterna como um terceiro na relação mãe-bebê tem fundamental importância, pois é por essa inserção que se instala o processo de diferenciação em relação ao outro. A entrada do pai possibilita a ressignificação da relação indiscriminada inicial, apontando o lugar da criança na estrutura familiar, assim como nomeando e indicando que ela não é o único objeto do desejo materno. Ao se dar conta de que os objetos parentais direcionam seu desejo um para o outro, a criança toma conhecimento da interdição do incesto. Por conta disso, precisa realizar um trabalho psíquico de recalcamento e abandono das figuras parentais, abrindo a possibilidade para que outros objetos sejam escolhidos e investidos (GASPAR, 2010).

Nos funcionamentos limites a transição do acesso do registro primário ao registro edípico se apresenta de maneira precária. Isto quer dizer que o recalcamento e o acolhimento fantasístico do objeto encontraram entraves significativos em seu caminho. Como sinaliza Chabert (1999a), nos estados limites – devido ao incremento de elementos irrepresentáveis e traumáticos – não há segurança de que os limites internos e externos do ego permaneçam estáveis diante das investidas pulsionais. Assim, o reconhecimento e a validação da experiência da perda e da falta do objeto parental/edípico, que se dá através do recalcamento, não poderão se elaborar de maneira consistente.

Uma vez que o objeto não conseguiu ascender a uma existência figurativa/recalcada no inconsciente, sua ausência fica atrelada ao seu desaparecimento. Como o processo de vinculação representativa é problemático nos estados limites, a perda do outro não garante e não permite que se mantenha a existência interna do objeto. Como as fronteiras de diferenciação são excessivamente porosas, o desaparecimento e perda do objeto é suscetível de acarretar o concomitante desaparecimento e perda de si mesmo, deixando o sujeito em posição de desamparo.

Pensamos que se os processos de separação, representação, interiorização e recalcamento se encontram fragilizados nos estados limites, a travessia do complexo de Édipo apresentará singularidade nestas organizações clínicas. Essa travessia supõe a possibilidade de interiorização e reconhecimento do interdito, com a consequente operação de recalcamento, que garante a instalação da separação do eu com relação ao outro nos diversos registros (o primário, o registro do dentro e do fora, o da diferença sexual e o geracional). A singularidade da travessia do Édipo nos estados limites se

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situa na problemática interiorização dos interditos e dos limites que, de certo modo, vem a infiltrar o reconhecimento das diferenças.

O movimento de interiorização e aceitação do interdito é vacilante. O complexo de Édipo fica atravessado pelas falhas no recalcamento das fantasias incestuosas e parricidas, devido ao estabelecimento precário dos diques psíquicos de interdição no plano interno. Os impulsos incestuosos e mortíferos permanecem bastante presentes e invasivos, necessitando de contrainvestimentos maciços para agir contra a excitação e a angústia que engendram (CHABERT, 1999b) O contrainvestimento dos impulsos incestuosos convoca a necessidade de apelo à realidade externa através do corpo e do ato, uma vez que os limites internos de contenção não se encontram sólidos e investidos.

O ego permanece em posição de passividade pulsional ameaçadora, incapaz de admitir a posição de passividade, de “terceiridade”, de não presente diante do outro. A possibilidade de ocupar posição de passividade aciona de maneira excessiva as angústias básicas de abandono e invasão, em contraposição à angústia de castração presente na vivência edípica dita “normal” (CHABERT, 1999b, op. cit.).

A travessia edípica nos estados limites fica marcada pela relação de dependência ao objeto primário. A ligação afetiva com a mãe e com o pai desconsidera a ligação afetiva existente entre os dois. Os investimentos pulsionais ficam prioritariamente ligados a somente uma das figuras parentais, não deixando abertura para que se instale o lugar de “terceiro excluído” da cena parental. Desta forma, uma efetiva diferenciação das figuras parentais como objetos totais não é satisfatoriamente alcançada. Não há integração total nem dos objetos nem dos impulsos que os investem. Esta disposição incrementa o poder desestruturante da ambivalência que se torna muito problemática na elaboração da perda do objeto primário e na consolidação das fantasias edípicas (FARIAS, 2009).

Portando, diante do excesso pulsional a dificuldade do sujeito para se colocar “de fora” da cena parental, descolado destas figuras, se torna questão fundamental. A questão da inserção do terceiro e do reconhecimento da alteridade propriamente dita fica problematizada. Como a instância egoica encontra-se fragilizada no que concerne à mediação e ao domínio do pulsional, uma ambivalência pouco conciliável infiltra e atravessa a triangulação edípica.

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O acesso à genitalidade é que vai garantir ao ego um meio de elaborar a ambivalência pulsional. As fantasias edípicas inconscientes vão permitir ao sujeito a redistribuição dos afetos em função da diferença dos sexos, das gerações e da posição do sujeito diante do objeto. A travessia do Édipo satisfatória permite a simbolização e elaboração das fantasias pré-genitais da cena primitiva. Além disso, oferece uma cena estruturante à ambivalência de amor e ódio.

Acreditamos que as contribuições oferecidas pela genitalidade têm caráter precário nos estados limites. As figuras parentais tendem a ser investidas apenas como bom ou mau objeto, um como o duplo inverso do outro, não permitindo elaboração sustentável da ambivalência afetiva. A conflitualização de amor e ódio é precária. Os movimentos pulsionais podem apresentar valência agressiva e erótica maciça, e as possibilidades de contenção, muitas vezes, se revelam descontínuas.

O ego se encontra pouco sólido e pouco investido pulsionalmente e, por isso, não consegue tolerar de maneira satisfatória a angústia. A relação do eu com o outro fica marcada por fixação, por hiperdependência aos objetos externos que são superinvestidos como paliativo das falhas advindas da relação com os objetos internos em sua função de conter e vincular a energia psíquica. O efeito disso na configuração do complexo de Édipo será a dificuldade do ego para abdicar de sua adesão excessiva a uma das figuras parentais. As fantasias incestuosas podem ressurgir sob a forma de repetição compulsiva, em que ora são fonte de busca ativa e voraz de ligação do ego com o objeto, ora são veementemente negadas e abolidas, por ser a aproximação incestuosa demais (CHABERT, 1999b, op. cit.).

Desta forma podemos afirmar que o funcionamento limite não exclui de modo algum a sexualidade edípica. O Édipo é vivenciado pelo atravessamento das fantasias incestuosas insuficientemente recalcadas e pela clivagem entre o bom e o mau, que significa dificuldade na continuidade e manutenção da ambivalência. As imagos parentais ficam diferenciadas segundo suas qualidades positivas ou negativas, não havendo suficiente lugar para conflitualização dos pares opostos. Os desejos são sentidos como forças más, e então fontes de retorção drástica, traduzida, por exemplo, pela ampliação da desqualificação e do menosprezo de si. Os impulsos de ódio correm o risco de destruir o objeto, de deixá-lo de fora ou ainda de suscitar seu abandono, ao

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