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O setting como estrutura dinâmica e instrumento técnico da psicanálise: breve ensaio de reflexão teórica

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Academic year: 2021

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O setting como estrutura dinâmica e instrumento técnico da psicanálise: breve ensaio de reflexão teórica

Farate, Carlos O tratamento psicológico das neuroses, marco histórico da psicologia terapêutica e ponto de partida do método psicanalítico, instituiu uma mudança radical no modo de pensar e dar resposta ao sujeito em sofrimento mental.

De facto, ao invés da instrumentação somática do doente moral, Breuer e Freud (1893, 1895) propuseram a centralidade da escuta do sujeito em sofrimento seja pelo recurso ao método catártico de ab-reação (em Breuer), seja pela técnica sugestiva de concentração e/ou pressão na fronte do paciente (em Freud). Estas técnicas pré-psicanalíticas evoluíram para a cura pela palavra em associação livre, a “regra fundamental da psicanálise” (Freud, 1969 [1912], p. 150), como forma de aceder à rememoração das experiências traumáticas infantis, de índole sexual e reprimidas no inconsciente, (por défice de ab-reação afetiva) que estão na origem dos sintomas. Mais precisamente, nesta primeira formulação da “cura-tipo”, o médico/analista “em atenção uniformemente suspensa” (Freud, 1969 [1913], p.125) ajuda o paciente a libertar-se dos complexos patológicos inconscientes, de índole traumática e reprimidos pela amnésia infantil, que se escondem/ revelam num “claro-escuro” de sintomas psíquicos, queixas somato-funcionais e inibições sexuais e agressivas, interpretados como derivados pré-conscientes destes complexos patológicos.

Ora, a natureza do método psicanalítico, que assenta, nos seus primórdios, no modelo médico e investigador imprimido pelo seu fundador (assimetria da relação analista-doente e estrita abstinência pulsional do primeiro) conduz a uma instrumentação do setting coerente com a dupla finalidade de tornar acessível à interpretação o trauma psíquico inconsciente (enredado no impasse genético da regressão-fixação) e de permitir o afloramento da neurose de transferência, produto intermediário do tratamento ao qual é reconhecida uma dupla função: resistência à livre associação verbal; e instrumento de revelação de conteúdos infantis (não memorizáveis) projetados na pessoa do psicanalista.

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Nesta época primeira da psicanálise os “adereços” mais importantes do “cenário terapêutico” são: o dispositivo espacial “divã-e-sofá” (Quinodoz, 2008 [2004]); a “regra fundamental”; a “regra para o médico”; o tempo de duração das sessões; a frequência recomendável (que oscila entre os 5/6 sessões por semana e as 3 sessões (Freud, 1969 [1913]); e as regras quanto ao pagamento das sessões (faltas e atrasos incluídos). A evolução deste “cenário terapêutico” originário, no qual o analista toma o lugar simbólico quer de representante psíquico do sistema pré-consciente/consciente (Pcs-Cs) capaz de o ajudar o paciente a libertar-se dos complexos patológicos recalcados no inconsciente (Ics), sob o primado da 1.ª tópica, quer de Ideal do ego/superego regulador e benevolente, na vigência da 2.ª tópica (circa 1923), torna-se inevitável após o reconhecimento da importância da contratransferência (Freud, (1969 [1910]), já que a tomada de consciência da partilha intersubjetiva entre

analista e analisando, associada à importância do impacto da

contratransferência, vem pôr em causa o dispositivo pensado por Freud e assente na identificação paterna do médico-analista (e.g., Roussillon, 2001 [1991], Quinodoz, 2008 [2004], Donnet (2009 [2005]).

A transformação mais marcante do setting/ cenário terapêutico resulta, contudo, do aprofundamento da regressão técnica, em função do alargamento do espetro terapêutico da psicanálise às crianças e aos doentes com Self fragmentário e funcionamento mental primitivo e é operada, sobretudo, por Klein (1936, 1946) e Winnicott (1951, 1956), embora com diversa fundamentação teórica. Assim, para Klein, a mudança do paradigma anterior da relação médico-doente para o modelo da relação diádica analista-analisando é decalcada da relação objetal precoce mãe-bebé, e institui o setting analítico como cenário uterino da mãe-analista, ou do interior do corpo do bebé-analisando, ocupado pelos processos de desdobramento primitivo da mente infantil. Pelo seu lado, Winnicott considera que o que está em causa é a criação da “área intermediária” do encontro entre “o subjetivo e o que é percebido objetivamente” (1951, p. 171) na relação fantasmática originária da “mãe suficientemente boa”/meio estruturante com o bebé (este último na condição paradoxal de criação e criador do meio que o gera), o que resulta na interpretação do setting/ cenário terapêutico como “objeto transicional”, ou

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“primeira possessão “não-eu”” (idem, p. 173) do Self infantil do analisando, em que o analista cumpre, à imagem da mãe da relação originária, a função de holding environment suposto assegurar os meios para a expressão do verdadeiro Self do paciente.

Se conceitualizarmos agora o setting/ cenário terapêutico como metáfora relacional (isto é, como fantasia objetal inconsciente que estrutura o espaço-tempo do encontro entre paciente e analista, a colocação simbólica dos papéis atribuídos a cada um e a atitude predominante do analista quanto ao modo de interpretar o material que o analisando traz à sessão) poderemos teorizar 3 metáforas na relação do par analítico: a metáfora paterna (a partir de Freud), a metáfora materna intrasubjetiva (a partir de Klein) e a metáfora intersubjectiva/diádica (a partir de Winnicott).

Todavia, a possibilidade de teorizar o setting/ cenário terapêutico como estrutura dinâmica só se torna viável pela mudança de perspetiva imposta pela centralidade do binómio contratransferência-transferência e pela dinâmica da relação bipessoal analista-analisando, com deslocamento da dialética da situação e do processo para o terreno fenomenológico-estruturalista do campo bipessoal (Baranger, 1961-1962; 1964, Bleger. 1967, Ferro, 1999; Donnet, 2001, 2005). Assim, Bleger, em artigo de 1967, elabora a diferenciação fenomenológica da situação analítica em 2 componentes: uma constante “muda” (“não-processo”) que institui a relação terapêutica e lhe serve de moldura espácio-temporal; um processo de mudança psíquica responsável pela dinâmica transferencial-contratransferencial. A originalidade do texto de Bleger (1967, p. 516) reenvia tanto à caracterização da moldura da relação analítica, como à importância atribuída à “análise sistemática da moldura no momento certo” para a “de-simbiotização da relação analista-paciente. Pelo seu lado, W. e M. Baranger (2008 [1961-1962]) revolucionaram a prática psicanalítica com o conceito de campo bipessoal. Com efeito, a partir da derivação da “teoria do campo” da física para a psicanálise, mediada pela adaptação prévia à psicologia estrutural de Kurt Lewin, à psicologia da Gestalt e ao pensamento de Merleau-Ponty sobre a fenomenologia da perceção humana, os Baranger conceitualizaram um campo bipessoal dinâmico configurado pelo contrato terapêutico de base, pela perceção da função do

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psicanalista no tempo/espaço da sessão e pela fantasia inconsciente do par analítico, que estrutura o campo e é objeto de interpretação por parte do psicanalista nos “pontos de urgência” de cada sessão.

Com base nesta teorização revolucionária, Donnet e Ferro também avançaram propostas enriquecedoras para a compreensão dinâmica do espaço de encontro do par analítico. Assim, Donnet define uma “situação analisante” instituída pela atividade de co-pensamento e pelo jogo simbólico numa área psíquica partilhada (“sítio/ situação analítica”) que une e separa as mentes de analista e analisando, de acordo com o “vértex” dinâmico da relação transferencial/contratransferencial entre ambos. Pelo seu lado, Ferro (1999, 2009) propõe a extensão do campo bipessoal à interpretação criativa dos conteúdos proto-oníricos e oníricos partilhados entre paciente e analista, transformados pela capacidade de rêverie e a função α do analista e co-construídos em diálogo psíquico entre ambos.

Munidos destes contributos teóricos torna-se possível estabelecer um campo psíquico em comum a analista e analisando, tomados como elementos de um par, o par analítico, que partilha um espaço psíquico em “duplo limite” (Green, 1982), externo [ego/alter (ego)] e interno (Cs-Pcs/Ics), que se constrói ↔ transforma ↔ reconstrói em cada sessão na área de partilha comum a analista e paciente, isto é, no encontro intersubjetivo das subjetividades de sujeito (outro) e outro (sujeito). (Fig. I). Com base nesta hipótese é possível formular a metapsicologia de um “aparelho psíquico em comum” a paciente e analista, cuja tópica é definida por 3 instâncias: objetiva/interpessoal, derivada da metáfora relacional paterna, diádica/intersubjectiva, derivada da metáfora relacional intersubjectiva, e monádica/ intrasubjetiva, derivada da metáfora relacional materna intrasubjetiva. (Fig. II). Refira-se que as variações e ajustamentos de intensidade no jogo dos instintos e contra-instintos e dos investimentos e contra-investimentos entre instâncias seja intra-sessão, seja inter-sessão, seja, ainda, entre duas sessões não seguidas, são traduzidas pela perspetiva económica, isto é, pela direção e intensidade da corrente libidinal entre os polos narcísico e objetal da conjunção (variável) das mentes de analista e analisando, tal como esta pode ser analisada pela colocação momentânea do eixo “proximidade ↔ distanciação” no interior do aparelho

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psíquico em comum (Fig. III para a figuração linear do modelo). Finalmente a perspetiva genética resulta do modo como os movimentos regressivos da componente psíquica do paciente são, ou não são, contidos e elaborados pela componente psíquica do analista, sendo o equilíbrio dinâmico entre a atividade reguladora e contrarreguladora de ambas as componentes do aparelho psíquico em comum que define a sua maturidade psíquica (Fig. III).

Resumo:

É bem conhecida a importância nuclear do setting nas controvérsias teóricas sobre a diferenciação técnica entre psicanálise, psicoterapia psicanalítica e terapia psicodinâmica que têm percorrido o campo psicanalítico. Apesar da sua centralidade neste debate, o setting continua a ser um conceito difusamente delimitado e rebatido para critérios externos, formais, ao invés de ser abordado de um ponto de vista estrutural, o que tem dificultado o esclarecimento clínico e epistemológico mais preciso sobre as condições de instituição da prática terapêutica da psicanálise. Este texto teórico tem por objetivo fundamentar a hipótese segundo a qual o setting, tomado como “cenário terapêutico” do tratamento psicanalítico, constitui uma variável terapêutica estrutural e configura um “aparelho psíquico em comum” a analista e analisando, com características próprias e não redutíveis ao psiquismo de cada um, e estruturado por uma metapsicologia que lhe é própria. Palavras-chave: setting, tratamento psicanalítico, cenário terapêutico dinâmico, aparelho psíquico em comum

Referências bibliográficas

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Breuer, J. Freud, S. (1969). Estudos sobre a histeria. Sigmund Freud. Obras Completas (Vol. II). Rio de Janeiro: Imago Editora (Trabalho original em alemão publicado em 1893-1895).

Donnet, J.-L. (2001). From the fundamental rule to the analyzing situation. The International Journal of Psychoanalysis, 82, 129-140.

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