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Leitura, essa felicidade clandestina RESUMO

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Academic year: 2021

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Leitura, essa felicidade clandestina

Izaura da Silva Cabral1

Flávia Brocchetto Ramos2

RESUMO

O trabalho analisa a noção de leitura apresentada no conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector. Tomamos como referenciais teóricos as noções de representação e apropriação propostas por Chartier (1996), Choles (s/d), Zilberman (2001), Bojunga (1998) e Manguel (1997). Primeiro analisaremos o conto, depois relacionaremos a experiência de leitura da personagem principal com a teoria.A leitura, neste conto, assume um sentido erotizado, faz uma passagem para o âmbito prazeroso realizada pelo imaginário, porém não envolve apenas o cérebro, local da fantasia e do intelecto, mas o corpo e a libido. Dessa forma, a leitura vista como erótica, ligada ao prazer, pode ser considerada um delito, uma clandestinidade, capaz de instabilizar um sistema pré-concebido de manipulação das massas. Pois ela pode levar os indivíduos a alterarem sua visão do mundo, a ampliarem seus horizontes de expectativa, sonhando em transformar as coisas prontas.

Palavras-chave

O trabalho busca analisar a leitura como tema no conto “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector. A opção pelo conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector, justifica-se por justifica-ser uma parcela importante da produção literária da autora e por sua característica, enquanto gênero, que deixa registradas maneiras de análise e uma certa visão dos fatos, especialmente, nesse caso, sobre as relações com o livro. Assumindo a leitura como prática cultural, tomamos como referenciais teóricos as noções de representação, apropriação e prática cultural propostas por Roger Chartier (1996), Choles (s/d), Zilberman (2001), Bojunga (1998) e Manguel (1997). A relevância deste trabalho está em buscar na obra de uma escritora autora de contos, elementos para ampliar as noções de leitura, tema constante em sua obra.

A introdução do conto apresenta as duas protagonistas da narrativa, salientando os aspectos negativos de uma, que serão bem mais evidentes que os da outra: “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme...” 3. Mas, apesar de todos esses defeitos, ela era agraciada com algo que a tornava 1 Aluna do Mestrado em Letras em Letras - leitura e cognição, artigo apresentado à disciplina de História da

Leitura, ministrada pela Prof. Dr. Flávia Brocchetto Ramos.

2Professora do Mestrado em Letras da UNISC.

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privilegiada: “possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria” 4. E isto a tornava superior a todas suas amigas. A outra que apesar de ser

como as demais meninas: “bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres” 5, não tem acesso

aos livros. Por isso, ela, que é a narradora em 1ª pessoa, relata a sua experiência de amá-los e não poder desfrutá-los.

A filha do dono da livraria não aproveitava os livros e, segundo a narradora, nem as outras meninas, uma vez que ela, até mesmo nos aniversários, não tinha a gentileza de dar um livro de presente: “em vez de pelo menos um livrinho barato”6. Nesse ponto chegava a ser

irônica, pois seu presente favorito para as outras eram cartões postais da loja do pai, como para mostrar-lhes que o mundo dos livros, para elas, era inacessível, sempre ficariam distantes dele, enquanto ela detinha o poder de possuí-los. Segundo Zilberman “o único temor que a literatura pode inspirar é o de que seus usuários sejam levados a alterar sua visão de mundo, sonhem com as possibilidades de transformar a sociedade e não se conformem ao já existente”7. Por isso, melhor é impedir, que aqueles, que não possuem acesso aos livros,

continuem sendo manipulados, a serviço de uma parcela da sociedade que lê, ou possui maior acesso aos livros, uma vez que esses são capazes de provocar transformações, mudando as opiniões, e refletindo um mundo novo, cheio de novas perspectivas.

Em relação a esse comportamento da menina, a narradora era indignada: “ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas”.8 Por entender que

possuir livros significava ter poder sobre os que não tinham, a filha do dono da livraria, resolveu que às outras não daria esse gostinho de querer mudar esta situação. Pois é preciso entender que para essas meninas leitoras o seu adentramento na ambiente dos livros seria uma opção pela liberdade “a ponto de entendê-lo enquanto relação amorosa”.9

Essa menina era mesmo cruel e com a narradora “exerceu com calma ferocidade o seu sadismo”10, tanto que a pobre nem percebia, tal era a sua ânsia de ler: “continuava a

implorar-lhe emprestado os livros que ela não lia”11. Até que chegou o “Magno dia” em que começou a

exercer sobre a outra uma tortura chinesa, a informou que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que para esta “era um livro grosso, [...], era um livro para se ficar

4 Ibidem, p. 9. 5 Ibidem, p. 9. 6 Ibidem, p. 9.

7 ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: Senac, 2001, p. 55. 8 LISPECTOR, Clarice, p. 9.

9 ZILBERMAN, Regina, p. 55. 10 LISPECTOR, Clarice, p. 9. 11 LISPECTOR, Clarice, p. 9.

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vivendo, comendo-o, dormindo-o”.12Para Manguel, assim como para a nossa narradora, os

livros lhe davam “um lar permanente”, e um lar que ele “podia habitar exatamente como queria, a qualquer momento.”13 Porém, para ela, o livro estava longe de suas posses. Então,

foi logo pedindo emprestado o tal, a outra pediu que passasse por sua casa no dia seguinte e ela o emprestaria.

Para a narradora, o livro é o objeto do seu desejo e para este não há limites: “Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam”.14 Ao chegar o tão esperado dia seguinte,

foi à casa da outra “literalmente correndo”.

A filha do dono da livraria morava numa “casa”, enquanto a outra num “sobrado”. Isso indica que o fato de possuir livros é uma condição social, mas isso não quer dizer que essa posse vai estar aliada ao fator leitura. Quem mora num “sobrado” não tem acesso aos livros, mas ama a leitura, já quem vive em uma “casa” possui um acesso irrestrito aos livros e não lê. Esse aspecto revela que a condição econômica do leitor, muitas vezes, o impede de ter maior acesso a leituras. Quanto a isso Chartier nos diz que “as modalidades de apropriação dos materiais culturais são sem dúvida, tão ou mais distintos do que a inegável distribuição social desses próprios materiais”.15

A dona do livro, quando a narradora chegou até sua casa e pediu-o, disse que o havia emprestado à outra menina, que ela voltasse no dia seguinte. Ficou boquiaberta, mas seu desejo era tal que, a esperança invadiu novamente seu ser e ela andou pelas ruas pulando, sonhando: “guiava-me a promessa do livro”.16 Porém, o plano da filha do dono da livraria

seria “diabólico”. No dia seguinte, outra desculpa, o livro ainda não havia sido devolvido. E assim se seguiram os dias. O terror por não ter o livro para ler e a outra se divertindo em alimentar uma esperança era uma cena digna de pena: “eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer”.17

12 LISPECTOR, Clarice, p. 10.

13 MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das

Letras, 1997, p. 10.

14 LISPECTOR, Clarice, p. 10.

15 CHARTIER, R. (org). Práticas da leitura. Tradução Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade,

1996, p. 78-79.

16 LISPECTOR, Clarice, p. 10. 17 Ibidem, p. 11.

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A sua relação com o livro é tal, que todo esse sofrimento começou a afetar o seu físico: “eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados”.18 Tudo isso porque o ato da leitura para ela era uma necessidade, padecia com o

não-ler, tinha uma fome que precisava ser saciada, pela chance que a outra poderia lhe dar, ao emprestar-lhe o livro tão esperado, pois como nos diz Chartier, “o ato da leitura, [...] supõe uma relação íntima entre o leitor e um livro”.19

Chegou finalmente o dia da redenção da narradora, quando todos seus males seriam sarados. A mulher do dono da livraria descobriu que sua filha estava enganando a outra menina: “mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!” 20 E essa descoberta

não era a pior, mas sim a descoberta, horrorizada, da filha que tinha. A narradora seria agora agraciada pelo tão almejado objeto do desejo: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser”.21 Esse “por quanto tempo quiser” significava muito mais do que dar-lhe o livro, ela

teria posse sobre o seu objeto do desejo. Toda a sua espera, sua insistência, finalmente era recompensada. Manguel relata, assim como ela, a sua experiência de precisar possuir um livro: “umas poucas vezes roubei um livro tentador, levei-o para casa, enfiado no bolso do casaco, porque eu não tinha apenas de lê-lo: tinha de tê-lo, chamá-lo de meu”.22

Para a narradora foi impossível descrever-nos o que sucedeu assim que recebeu o livro na mão, pois: “leitura é reverência e respeito pelo livro porque ele é raro, porque está carregado de sacralidade mesmo quando é profano”.23 Também Manguel confessa que suas

“leituras adolescentes não comportavam tamanha veneração nem rituais tão minuciosos, mas possuíam uma certa solenidade e uma importância secretas que não irei negar agora”.24 Ela só

lembrava que “o segurava firme com as duas mãos, comprimindo contra o peito.”25

Imaginamos que agiu assim por temer que algo ou alguém a separasse dele. Esqueceu até mesmo quanto tempo levou até chegar à casa. Porém, isso não importava, o que valia a pena era sentir que o livro estava com ela: “meu peito estava quente, meu coração pensativo”.26

Isso indica um sentido diferente para a leitura.

18 Ibidem, p. 11. 19 CHARTIER, R., p. 90. 20 LISPECTOR, Clarice, p. 11. 21 Ibidem, p. 15. 22 MANGUEL, Alberto, p. 28. 23 CHARTIER, R., p. 86. 24 MANGUEL, Alberto, p. 28. 25 LISPECTOR, Clarice, p. 12. 26 Ibidem, p. 12.

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Esse novo sentido ocorre de tal forma que, como nos diz Manguel, era como se “as coisas não consistiam mais apenas no que os meus olhos podiam ver, meus ouvidos podiam ouvir, minha língua podia saborear, meu nariz podia cheirar e meus dedos podiam sentir, mas no que o meu corpo todo podia decifrar, traduzir, dar voz a, ler.”27

Assim acontece a erotização da leitura que, para Zilberman, “decorre da circunstância de ser interpretada como uma passagem para o âmbito prazeroso, realizado, nesse caso, pelo imaginário”.28 Esse prazer que envolve a leitura é descrito pela autora quando ela fala que “o

prazer que provoca envolve não apenas o cérebro, lugar da fantasia e do intelecto, mas igualmente o corpo e a libido”29.. Assim se explica essa necessidade de possuir o livro e

guardá-lo junto ao corpo.

Para o leitor do conto, a menina que tanto queria o livro ao conseguir possuí-lo, devorá-lo-ia em pouco tempo. Mas então o leitor se surpreende, pois isso não aconteceu. Ela chegou em casa e não começou a ler: “fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter”.30 Algum tempo depois, leu algumas partes, que considerou maravilhosas, fechou-o

novamente, indo fazer outras coisas, fingia que não sabia onde guardava o livro, achava-o, lia novamente. Sobre essa impertinência do leitor, Choles nos diz que “fazendo a apologia da impertinência do leitor está negligenciando muitos aspectos”, também ele cita Barthes que distinguia já três tipos de leitura “aquela que apraz em deter-se em certas palavras, e a que vai correndo até o fim e ‘não consegue esperar’, a que cultiva o desejo de escrever”.31

Podemos dizer que a nossa personagem-leitora pode ser visualizada nesse primeiro tipo de leitura, uma vez que ela se detém em algumas partes do livro, pára a leitura, faz outras atividades, para depois voltar a ler, prolongando assim o seu prazer. Bojunga fala dessa inquietação que pega aqueles que estão assim caídos de amor por um livro: “aquela coisa aflita de estar sempre procurando um jeito de ficar sozinha com ele; só a gente e o livro”.32

Manguel fala que muitas vezes “tentava chegar ao fim do livro que estava lendo e, ao mesmo tempo, retardar o fim o mais possível, voltando algumas páginas, procurando um trecho de que gostara, verificando detalhes que achava terem me encapado”.33

27 MANGUEL, Alberto, p. 18-19. 28 ZILBERMAN, Regina, p. 55. 29 Ibidem, p. 43.

30 LISPECTOR, Clarice, p. 12.

31 CHOLES, R. Protocolos de Leitura. Tradução Ligia Guterres. Lisboa: Edições 70, [s/d], p. 272. 32 BOJUNGA, Lygia. Livro: Um encontro com Lygia Bojunga. 4 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1998, p. 15. 33 MANGUEL, Alberto, p. 24.

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A narradora “criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade”.34 A felicidade em ter acesso aos livros, à leitura, que para ela era clandestina, pois

não possuía livros e nem condições financeiras que possibilitassem um maior contato com eles. Esta “felicidade clandestina” significa que ela está muito feliz por realizar algo para ela ilegal, pois segundo Zilberman, “à leitura intensiva se atribui grave delito: ela transtorna e transforma seu leitor”.35 O fato de possuir um livro “, era, muitas vezes, na sociedade antiga,

um privilégio dos mais favorecidos economicamente e continua sendo até hoje. Assim, podemos afirmar que a personagem narradora quebrou os paradigmas dessa diferença social, e por isso, cometeu grave delito, com sua insistência e amor aos livros. Conseguiu ter acesso ao seu objeto desejado, ela é como uma bolha que sobe do fundo da água, como nos diz Choles:” leitura é uma incógnita de onde emerge de um lado teatralizada e dominante, a única experiência letrada, e do outro, raros e parcelados, à maneira de bolhas que sobem do fundo d’água, os índices de uma poética comum”.36

Ao realizar algo proibido, a narradora sabe que deveria ter orgulho, pois conseguiu alcançar seu objetivo, e pudor, pois poderia perder o que conseguiu, além disso, estava vivendo no ar. Agora ela “não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu ‘amante’”.37 Bojunga também trata a sua relação com os livros como se fossem amores

“assim, toda apaixonada, eu não queria largar o Roskolnikov: de dia, de noite, em casa, na escola, no ônibus, eu tinha sempre que estar abrindo o Crime e Castigo pra me encontrar com ele”.38

Para as instituições responsáveis por um controle social, a literatura vista como erótica, ligada ao prazer, pode ser considerada um delito, uma clandestinidade, perigosa, capaz de instabilizar um sistema pré-concebido de manipulação das massas. Pois ela pode levar os indivíduos a alterarem sua visão do mundo, a ampliarem seus horizontes, sonhando em transformar as coisas prontas, não se conformando com o que lhes é imposto.

34 LISPECTOR, Clarice, p. 21. 35 ZILBERMAN, Regina, p.12. 36 CHOLES, R. p. 268.

37 ZILBERMAN, Regina, p. 12. 38 BOJUNGA, Lygia, p. 15.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOJUNGA, Lygia. Livro: Um encontro com Lygia Bojunga. 4 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1998. CHARTIER, R. (org). Práticas da leitura. Tradução Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

CHOLES, R. Protocolos de Leitura. Tradução Ligia Guterres. Lisboa: Edições 70, [s/d]. LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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