Marina e O Pássaro
de MaxReinert
Peça escrita com apoio do edital Iberescena de ajuda Aos processos de criação dramatúrgica e coreográfica,
[Esta peça se propõe a discutir critérios de gênero, de forma lúdica, para crianças. Todos os estereótipos de gênero expostos nela devem ser encarados no sentido de buscar uma forma de estabelecer parâmetros que podem – e devem – ser descontruídos. É importante que a fluidez entre esses aspectos tão reforçados pela “normalidade” seja estimulada e apareçam como uma alternativa possível]
[A cena é composta por um palco livre. Aberto e com bastante espaço. Cada personagem possui um nicho – espaço delimitado por caixas móveis – que possui características, cores e objetos íntimos que demarcam claramente sua personalidade. Esses espaços devem ir se modificando na mesma medida em que os personagens encontram elementos e sentimentos novos no desenvolvimento da história. Tudo, nesta peça, deve ter a possibilidade de mover-se, embora, num primeiro momento, isso possa parecer impossível]
Personagens:
Sr. Papai – homem gentil e simpático, vestido com roupas formais, em tons de azul
Sra. Mamãe – mulher gentil e simpática, vestida com roupas formais, em tons de rosa
Marina / Mário – uma criança extremamente gentil e positiva
Dr. Médico – um homem intrigado
Marina e O Pássaro
de MaxReinert
(Enquanto o público entra no teatro, o Sr. Papai caminha no palco, indo de um lado ao outro, claramente impaciente. Volta e meia olha no relógio. Assim que
o público está acomodado a luz da sala apaga-se e a impaciência dele aumenta)
(O Sr. Papai vai até a boca de cena e indica que vai falar algo. Hesita. Olha para o fundo do palco. Olha para a plateia e volta a caminhar, cada vez mais
agitado e impaciente)
(Uma enfermeira aparece no fundo do palco)
Enfermeira: Nasceu Sr. Papai: Nasceu? Enfermeira: Nasceu!
Sr. Papai: Menino ou Menina? Enfermeira: É uma menina
Sr. Papai (um pouco decepcionado): Menina? Enfermeira: É uma menina!
Sr. Papai: It´s a Girl!!!
(Uma explosão de felicidade. Tudo em cena começa a se mover. Aparecem balões cor de rosa. Faixas com a inscrição “ É uma menina!” em várias línguas
são espalhadas pelo palco. Ursos de pelúcia cor de rosa. Vestidos. Roupas femininas invadem o espaço dançando. É uma grande festa)
(Sra. Mamãe é trazida para dentro da cena em sua caixa. Uma caixa muito delicada e com muitos detalhes sensíveis. Traz um bebê no colo. Enquanto a
caixa faz evoluções no palco, o bebê vai crescendo. O ideal é que se tenha, no mínimo, umas três evoluções do bebê, até que na última aparição, apareça
Marina)
Marina (para o público): Oi! Meu nome é Marina...
Quer dizer, pelo menos, por enquanto
Mas eu acho que vocês já sabem disso, né? A peça tem o meu nome!!!
Não é legal?
Alguém fazer uma peça com o nome da gente? Só que, às vezes, dá vergonha, sabe
Porque todo mundo fica falando depois Fica contando sua história pra todo mundo As pessoas fazem essas coisas, às vezes Minha mãe disse que se chama “fofoca” Ela disse
Sr. Mamãe: Não fica assim, Marina
As pessoas não fazem por mal
É que, às vezes, quando elas não entendem alguma coisa elas precisam falar
Seu pai fica bravo
ele acha que as pessoas fazem por mal Eu acho que eles falam
Eles inventam histórias
porque eles querem entender Não é verdade?
Às vezes, a gente inventa uma história Para tentar entender
Marina (pensando): Entender!
(para o público) Eu acho que eu era meio pequena para entender
Bom, pelo menos, algumas coisas
(Marina vai até o centro do palco e encontra a sua caixa. A caixa está vazia)
Marina: Minha história começou assim
(Sua caixa fica toda cor de rosa)
Marina: Minha história começou assim:
No dia em que eu nasci
Sr. Papai: Essa parte todo mundo já viu
Passa logo pra parte que interessa
Marina: É que eu sempre tenho dificuldade pra começar Sr. Papai: Sempre é difícil começar
Pula pra parte em que aparece o pássaro
Marina: Já?
Sr. Papai: É onde as coisas vão começar a mudar Marina: Tá bom!
Eu estava no meu quarto Brincando com minhas coisas
(Vários objetos aparecem em sua caixa. A cor rosa ainda predomina. Marina brinca com um urso de pelúcia. Ela o joga para cima e, quando ele cai, ela o
abraça. Repete essa ação algumas vezes)
(Marina começa a tossir. Tosse repetidas vezes até que encontra uma pluma/pena de pássaro. Assusta-se. Marina olha para a pluma e olha em redor
para ver se há algo diferente. Pega a pluma e prende numa das paredes de sua caixa)
(Novamente Marina começa a tossir. Assusta-se e colocando a mão na boca, retira uma pluma de lá. Olha para o público assustadíssima. Sai gritando pelos
pais)
(Enquanto as caixas da família ficam viradas com a face escondida do público, entra o Dr. Médico com sua caixa muito limpa, asséptica e cheia de
instrumentos estranhos. Um mundo indecifrável)
Sra. Mamãe (entrando): Sim, senhora! Marina: Mas, mamãe...
Eu nem estou mais sentindo vontade de tossir
Sra. Mamãe: Agora! Mas e se o acesso de tosse voltar?
Marina: Mas a senhora sabe que eu não gosto de ir ao médico Sra. Mamãe: Ninguém gosta, minha filha
Mas, quando é necessário, a gente vai
Marina: Então vamos fazer o seguinte
Se eu ficar 01 minutos sem tossir, a gente não precisa ir
Sra. Mamãe: Mas... Marina: Olha, olha!
(Marina fica parada e começa a contar nos dedos o tempo. Passados uns sete segundos, ela solta um espirro magnífico. Junto com o espirro saem várias
plumas que se espalham pelo ar)
Sra. Mamãe: Está vendo?
Vamos falar com o Doutor já!
(Marina desanima-se. O médico fala animadíssimo)
Dr. Médico (analisando placas de raio X): Incrível! Incrível! Incrível! Sra. Mamãe: É grave, Doutor?
Dr. Médico: É incrível! Sra. Mamãe: Incrível? Dr. Médico: Inacreditável! Sra. Mamãe: Inacreditável? Dr. Médico: Incrível!
(Marina afasta-se dos dois e fala com o público)
Marina: Se para eles tudo era incrível,
Imaginem para mim!
Eles ficaram horas e horas falando De mim
E sabe o que era pior?
Falavam como se eu não estivesse ali Era “sua filha” pra lá, “minha filha” pra cá “Vamos fazer mais exames!”
“Vamos fazer mais exames!” “Vamos fazer mais exames!”
E eu já estava morrendo de fome e querendo ir pra casa E o resultado?
Dr. Médico (analisando placas de raio X): Sua filha tem um passarinho
(Confusão total. Sra. Mamãe desmaia. Dr. Médico começa a abaná-la com as placas de raio X. Marina vai até sua mãe e começa a sopra-la. Dr. Médico pega
um copo de água e joga na Sr. Mamãe)
Sra. Mamãe (acordando): Ai...ai... tive um sonho estranho
Sonhei que o Doutor havia me dito que Marina tinha um passarinho Não é engraçado?
(Marina espirra novamente e, novamente, saem um monte de plumas de dentro dela. Dr. Médico busca um aparelho de raio X, e começa a fazer um exame em
Marina. Aos poucos vamos vendo o corpo dela pela parte de dentro. Vemos então que Marina tem um pássaro que vive confortavelmente dentro dela. Em alguns momentos ele se move e busca reacomodar-se, aninhando-se em uma
posição diferente. Nesse momento, ele bate as asas e solta algumas plumas que vão subindo pelo corpo de Marina, até que ela espirre e coloque as plumas
(A Sra. Mamãe, que assistia assustada o que acontecia, desmaia novamente. Dr. Médico volta a abaná-la com as placas de raio X. Marina vai até sua mãe,
acorda-a e ambas saem caminhando juntas)
***************************************
(Marina e Sra. Mamãe chegam em casa. Cada uma vai para sua caixa. Marina percebe que sua caixa está cheia de plumas que começam a cobrir todas as suas coisas. Ela tenta espalhar as plumas, mas são muitas. Ela pega então seu
urso e limpa-o. Abraça-o)
(Marina sai de sua caixa e vai até a caixa da Sr. Mamãe. Percebe que ela está chorando. Sr. Papai entra, trazendo sua caixa. Marina o vê chegando e corre até ele. Abraça-o. Sr. Papai percebe que há algo errado e abaixa-se para falar
com Marina.)
(O sr. Papai leva Marina até a caixa dela. Marina senta-se na beirada da caixa e fica observando o Sr. Papai ir até a caixa da Sr. Mamãe)
(Sr. Mamãe abraça Sr. Papai. Eles conversam algo e olham para Marina. Marina disfarça. Sr. Papai e Sra. Mamãe fecham suas caixas e ficam dentro.
Nem o público, nem Marina conseguem vê-lo)
(Marina entra em sua caixa e deita-se, dando as costas para o público)
(Passagem de tempo. Anoitece. O palco se enche de luz da noite. As caixas dos pais apagam-se. A caixa de Marina pisca, como se fosse apagar.
Lentamente vai mudando de cor e fica azul)
(Marina acorda. Olha para os lados e está tudo em silêncio. Sua caixa está agora predominantemente azul. Marina pega o urso e o joga para cima, quando
ele cai, ela o abraça. Repete essa ação algumas vezes)
(Marina levanta-se e vai até o espelho. Prepara-se para trocar de roupa, quando vai tirar a calça, percebe que tem alguma coisa diferente. Puxa a parte
da frente da calça e olha pra dentro. Assusta-se. Coloca as mãos na boca e grita)
(Luz nas caixas dos pais acendem. Ambos aparecem e correm até Marina. Olham para ela, assustados. Marina puxa a parte da frente da calça e eles
olham. Lentamente colocam a mão da boca)
Sr. Papai (gritando): It´s a boy!!!!!! Sra. Mamãe (gritando): É um menino!!!!
(Uma explosão de felicidade. Tudo em cena começa a se mover. Aparecem balões azuis. Faixas com a inscrição “ É um menino!” em várias línguas são
espalhadas pelo palco. Bolas de futebol. Carrinhos. Roupas masculinas invadem o espaço dançando. Uma grande festa)
Marina (para o público): Não sei direito contar pra vocês como foi que isso
aconteceu
Só sei que de uma hora pra outra, tudo mudou
Sr. Papai (para o público): Certas coisas a gente não sabe direito como
acontecem
Sra. Mamãe: E nem é necessário explicar... Sr. Papai: Acontecem!
Sra. Mamãe: Então a gente segue em frente!
(Marina vai até sua caixa e percebe que as coisas estão todas mudadas. Todos os seus objetos foram trocados por coisas de menino)
Marina: Mãe!
Sra. Mamãe: Que foi, minha filha?
(Sr. Papai olha para Sra. Mamãe e a repreende)
Marina: Mãããe!
Sra. Mamãe: Que foi, meu filho?
Marina: A senhora viu a minha caixinha de jóias que estava aqui? Sra. Mamãe: Não vi
Marina: Aquela caixinha
Pequenininha
com um coração em cima
Sra. Mamãe: Não vi
Marina: E a minha saia verde? Sra. Mamãe: Não vi, minha filha
(Sr. Papai olha para Sra. Mamãe e a repreende)
Sra. Mamãe: Não vi, meu filho Marina: Mãããe!
Sr. Papai (gritando): Marina!
(Sra. Mamãe olha para Sr. Papai espantada)
Sr. Papai: Quero dizer... Mário
Pare de ficar procurando essas coisas antigas Você é um menino
Tem coisas de menino As coisas são como são
Marina: Mas....
Sr. Papai: Sem mas ou meio mas Marina: É que....
Sr. Papai (decisivo): Chega, Marina!
Quero dizer....Mário Vá para o seu quarto
AGORA!
(Marina olha para Sr. Papai espantada novamente. Faz menção de falar alguma coisa para o público. Recua. Vai para sua caixa e apaga a luz)
Sr. Papai (para o público): Não era a intenção falar daquele jeito
Mas os pais também não vêm com manual de instrução Às vezes, não sabem como lidar direito com as situações
(Toca a campainha. Sr. Papai e Sra. Mamãe se olham espantados. Marina coloca a cabeça para fora da caixa)
(Toca a campainha novamente. Sr. Papai e Sra. Mamãe juntam-se e comentam que não estão esperando ninguém. Marina esconde-se)
(Ouve-se batidas na porta. Continua o clima de suspense)
(Ouve-se uma voz de fora)
Titia: Adivinhem quem veio visitar!!!
Marina (colocando a cabeça para fora da caixa): Titia!!!
(Marina levanta-se e corre até a porta)
Marina (antes de puxar a caixa da Titia para dentro da cena): Sabe aquele tipo
(Marina puxa a caixa da Titia para dentro da cena e aparece Titia vestida de super heroína. Marina segue girando a caixa e cada vez que Titia aparece para
o público, está “encarnando” um personagem diferente)
Marina (para o público): Aquela pessoa que sempre tem algo para falar e ajuda
você a pensar?
(Titia aparece como “O Pensador”)
Marina (para o público): Que te ajuda a descobrir como lidar com as coisas?
(Titia aparece como “Sherlock Holmes”)
Marina (para o público): Que é linda como uma estrela de cinema?
(Titia aparece como “Marilyn Monroe”)
Marina (para o público): E que, ainda por cima, você ama de montão?
(Titia aparece como ela mesma. Sua caixa é a mais incrível de todas. É cheia de objetos e imagens de todos os lugares do mundo. Milhões de cartões postais. Centenas de memórias. Sua roupa não tem uma cor predominante, é
uma mistura de vários elementos de tempos e culturas distintas. Titia é uma pessoa multicultural)
Marina: Titia!!!!
(Titia e Marina abraçam-se. Deve ficar claro que Marina considera a Titia como um porto seguro)
Titia: Olá, criança!
Que felicidade encontrar você novamente Estava morrendo de saudades
Deixa eu olhar pra você!
(Marina se dá conta de que a Titia vai perceber sua mudança e fica constrangida. Sr. Papai e Sra. Mamãe olham a cena durante todo o tempo.
Cresce o suspense para saber qual será sua reação)
Titia: Você está tão....
(Marina fecha os olhos, aguardando a revelação)
Titia: Tão.... tão....
(Marina espia, tentando adivinhar qual será a reação)
Titia: Ai...como é mesmo a palavra?
(Titia dá voltas em torno de Marina, analisando-a)
Marina (para o público): Sabe quando o tempo parece que para?
(Todas as outras pessoa congelam, menos Marina)
Marina (para o público): Ultimamente isso tem acontecido muito comigo
Acho que é porque eu tenho pensado demais Agora, por exemplo
Enquanto minha tia fica me olhando
Eu fico tentando imaginar o que está passando na cabeça dela O que será que ela está pensando de mim
Como será que ela queria que eu fosse?
Titia: Grande!
Sr. Papai / Sra. Mamãe / Marina: Grande? Titia: Sim!
Grande
Era exatamente essa palavra que eu estava buscando
Sra. Mamãe: E você não percebeu nenhuma outra diferença? Titia: Deixe-me ver...
(Volta a olhar para Marina)
Titia: Deixe-me ver...
Ahhhh.... Já sei!
Marina: Qual?
Titia: Ganhou umas quatro sardas no rosto
(Marina respira aliviada)
Titia: A cor do olho está cada dia mais clara
Continua com cinco dedos nos pés E nas mãos!
O cabelo já esteve mais comprido E também mais curto
(Marina sorri e corre para abraça-la)
Titia: O sorriso continua lindo!
E o abraço continua apertado
É a minha criança de sempre....só que maior!
(Sr. Papai e Sra. Mamãe sorriem)
(Sr. Papai e Sra. Mamãe se olham)
Titia: Que tal um café da manhã?
Viajei a noite toda e estou morrendo de fome!
(Todos vão até suas caixas e começam a movê-las. A caixa de Marina fica no centro. Titia, Sr Papai e Sra. Mamãe trazem suas caixas para perto e montam
um grande cenário composto pelas quatro caixas. Uma mesa de café da manhã é posta e todos se sentam em volta para comer. Enquanto conversam
animadamente, diversos elementos vão passando de uma caixa para as outras. Lentamente as caixas vão deixando de ter uma cor predominante e vão
se mesclando com diversas cores)
(Sr. Papai sai e volta com o urso de pelúcia de Marina que havia desaparecido. Marina abraça o Sr. Papai. Ele volta para a conversa na mesa de café. Marina
afasta-se e olha a sua família conversando. Depois, volta-se para o público)
Marina (para o público, com o urso nas mãos): Oi! Meu nome é Mário...
Quer dizer, pelo menos, por enquanto
Mas eu acho que vocês já sabem disso, né?
Eu decidi fazer essa peça para contar a minha história Afinal
Não é todo mundo que nasce menina e depois vira menino A minha mãe diz que a gente inventa histórias
porque precisa entender alguma coisa O meu pai diz que a gente inventa histórias porque tem coisas interessantes para contar
Eu acho que na verdade
são as histórias que inventam a gente
Às vezes, a gente se atrapalha um pouco com elas
Mas, no final, se a gente misturar as nossas histórias todas A gente percebe que não somos tão diferentes assim!
(Marina retorna para a mesa de café da manhã)
(Cada um deles pega sua caixa e começam a girar em torno da mesa. Cada vez mais rápido até que formem uma grande ciranda)
(Do teto caem plumas de pássaro)