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MÚSICA E IMAGINAÇÃO EM LIÇÕES SOBRE A CONSCIÊNCIA IMANENTE DO TEMPO DE HUSSERL

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Academic year: 2021

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MÚSICA E IMAGINAÇÃO EM “LIÇÕES SOBRE A CONSCIÊNCIA

IMANENTE DO TEMPO” DE HUSSERL

José Luiz Furtado josefurtado1956@hotmail.com Professor Associado do Departamento de Filosofia da UFOP

Resumo: A fenomenologia de Husserl apresenta uma nova concepção da percepção sensível revelando o papel constituiente da subjetividade compreendida em sentido transcendental. Em as "Lições sobre a consciência imanente do tempo" o filósofo toma a música exemplarmente para referendar sua análise da sensibilidade. Nosso trabalho versa sobre a reflexão do fundador da fenomenologia sobre a música, ou melhor, sobre a musicalidade da música.

Palavras-chave: Husserl. Fenomenologia. Música.

Tradicionalmente a imaginação foi considerada uma faculdade intermediária entre a percepção, de natureza empírica, e a universalidade dos conceitos, como ideia, por exemplo, em Kant. Husserl ocupar-se-á da imaginação em sentido estético, ou seja, referida a objetos – obras de arte e sinais de toda sorte - cuja função consiste em representar, ou, em linguagem fenomenológica, presentificar outras realidades que não estão contidas neles próprios. Mas a análise fenomenológica da imaginação não escapará do primado ontológico da percepção estabelecido por Husserl como um dos corolários principais da fenomenologia. “A razão é intuição que se propõe reduzir todo entendimento à intuição”, afirma Husserl.1 Mas a forma mais plena e originária de intuição é a percepção sensível, de modo que a imaginação estará condenada a ocupar um lugar secundário na hierarquia dos modos de consciência, como já ocorria na tradição filosófica anterior, seja nas correntes empiristas ou racionalistas.

Primeiramente imaginação será definida por Husserl a partir dos conceitos de “presentificação” e “neutralização”.

Através da imaginação a consciência intencional presentifica, ou torna “quase” presente, um objeto, a imagem retirando-lhe, no entanto, o caráter tético da existência por ele possuído em sua percepção sensível. De fato a percepção nos dá o objeto em “carne e osso”. Desta forma a imaginação depende da percepção e lhe é inferior pois só a percepção constitui uma doação propriamente falando originária, enquanto a imaginação é derivada da primeira. Não podemos imaginar oque quer que seja senão a partir do mundo da percepção.

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Pois bem nas Ideias I, principalmente no § 111, Husserl, tomando como exemplo a gravura de Dürer intitulada “O cavaleiro, a morte e o diabo”, e mediante uma análise que nos faz recordar a de Heidegger, em “A origem da obra de arte”2, afirma que, primeiramente, a gravura se apresenta como uma coisa

mundana qualquer. Ou seja, como objeto material existente aí diante de mim no mundo, que eu posso tocar ou mudar de lugar, por exemplo.3 Para que possamos

percebê-la propriamente como uma obra de arte é necessário neutralizar o caráter tético da sua existência, ou seja, a fé perceptiva que acompanha toda percepção sensível de um objeto. Como Kant já havia assinalado na “Crítica do juízo”, a percepção estética é desinteressada na medida em que se desliga da posição de existência do objeto dirigindo-se somente à sua pura forma sensível. A percepção de um trigal tanto pode suscitar a imaginação do lucro que trará ao seu proprietário, quanto o prazer de contemplar sua forma amarelada brilhando sob o sol se submeto a percepção a uma neutralização. Na medida, pois em que a existência do objeto percebido é neutralizada surge no meu campo visual agora, uma irrealidade que constitui precisamente a obra como tal. Enquanto percebo a obra, não mais vejo o quadro, do mesmo modo como quem vê os olhos do outro nada percebe do seu olhar. Ela não perde, entretanto – o que constitui a meu ver uma das maiores dificuldades da compreensão dos fenômenos estéticos - seu caráter sensível. A irrealidade da obra não significa absolutamente que ela seja de natureza conceitual ou ideal, que no fundo constitui a concepção de Hegel da arte como “ideia sensível”. A neutralização apenas significa que a obra não indica - e nós não podemos dizê-lo - onde se situa o que ela representa. O paradoxo consubstancial ao elemento estético reside no fato dele nos dar a ver e entender mais do que nos seria dado ver e entender através das linhas, cores e superfícies, por exemplo, de que é feita uma pintura. Paradoxo descrito por Merleau-Ponty, a propósito de um quadro: “vejo segundo ou com ele mais do que ele próprio”.4

Assim podemos dizer da audição de uma sinfonia que ela emana ou emerge dos sons que ouvimos, e que eles operaram a presentificação de uma irrealidade.5

Nem podemos dizer que a melodia seja um ser, pois nesse caso deveríamos reduzi-la aos sons dos instrumentos, nem que ela seja um não ser. Em sua pura aparência neutralizada ela se apresenta como uma irrealidade. Na obra de arte, escreve Hegel, segundo a terminologia que lhe é própria, “o espírito não busca nem a materialidade concreta ... nem os conceitos universais puramente ideais”.

2 A origem da obra de arte. Porto: Edições 70, 1998.

3 Idées Directrices pour une phénomélogie; introduction générale a la phénoménologie pure.

Tradução, introdução e notas por Paul Ricouer. Paris: Gallimard, 1950

4 A linguagem indireta e as vozes do silêncio. São Paulo: Abril, 189, p. 188.

5 Platão já havia apontado para este fenômeno. A obra de arte, por exemplo uma estátua, é e não é

o que ela representa ou dá ver. Podemos perfeitamente compreender que se trata de uma estátua de Apolo, mas ao mesmo tempo sabemos que não se trata de Apolo em carne e osso. A estátua representa o que o ser Apolo não é.

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A obra de arte é um fenômeno que não presentifica o que efetivamente ela dá a ver. A sua significação não surge dos elementos materiais de que é feita mas da forma sensível que os reúne em um todo, ou seja, da disposição espacial e temporal que o artista logra consumar através deles. “Uma melodia não é uma simples soma ou junção sequencial de notas, nem um filme uma soma de imagens”6.

Contrapondo-se surpreendentemente a essa intuição fundamental Husserl, como demonstrou Maria Saraiva7, aplica de modo ambíguo, a noção de

presentificação por analogia, à atitude artística, principalmente no § 111 das Ideias I intitulado “modificação de neutralidade e imaginação”. No texto citado o quadro será considerado um objeto imagem a servir de mediação entre a consciência e o objeto representado e julgado a partir de uma relação de semelhança que em tudo recorda a mimesis platônica. Sigamos o texto que se refere à gravura já citada de Dürer. “Temos uma consciência perceptiva na qual nos aparece em traços negros as figuras incolores do Diabo, da Morte de Cavaleiro. Não é para eles enquanto objeto que nos dirigimos na contemplação estética; somos enviados para as realidades retratadas, mais precisamente desenhadas, à saber, o cavaleiro em carne e osso etc”.8

No trecho citado, através do conceito de presentificação9 por analogia

Husserl “canoniza o ideal de imitação que animou a arte realista”. Segundo Saraiva10 “o primado da percepção pesa ainda demasiadamente” sobre Husserl e

“segundo esta perspectiva “o artista não se afasta do real senão para imitá-lo e o espectador não contempla senão para regressar ao real“.

Se, seguindo o fenômeno das presentificação a análise da obra de arte nos conduz diretamente a reavivar o falso conceito de arte como figuração do real, as análises que partem do fenômeno correlato da neutralização nos conduzem por uma via mais próxima à essência da arte e mais distante da percepção sensível.11

6Maria Del Carmen López. El arte como racionalidad liberadora, Madrid, Ediciones UNED, 2000,

p. 53.

7 A concepção da obra de arte em Husserl. Coimbra: Centro de estudos fenomenológicos, 1965. A

redação deste artigo deve mais do que eu poderia avaliar aqui a este texto da Maria Saraiva.

8 Ideias I, op. Cit. p. 18.

9 Veja-se a seguinte passagem das Ideias I: “Nos atos de intuição imediata obtemos a intuição da

própria coisa ... não tomamos consciência de nenhuma coisa em relação à qual o que é percebido serviria de signo ou imagem-retrato”. Dizemos assim que a percepção nos dá o objeto em carne e osso enquanto a lembrança ou a imaginação “presentificam” o que elas visam. “A percepção de uma coisa não presentifica o que não se encontra presente, como se a percepção fosse uma lembrança ou imaginação; ela apresenta, ela apreende a coisa mesma em sua presença corporal”. (parágrafo 43, p. 140).

10 Op. cit. p. 15.

11 O conceito de neutralização ou neutralidade aplicado à imagem não deixa de ser problemático

como Daniel Giovannangeli já havia assinalado (La passion de l`origine, Paris, Galilée, 1995), porque difere de neutralização da posição de existência na “epoke”. A redução depende de um ato intencional que pode ser aplicado a qualquer consciência ou fenômeno. No caso da imagem estética a neutralização diz respeito imediatamente ao conteúdo noemático, por sua irrealidade.

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Evidentemente toda fruição estética começa com a percepção sensível de um objeto físico: o mármore da estátua, os sons de uma melodia, a tela sobre a qual se pintou um quadro. Mas a percepção sensível, uma vez neutralizada, permaneceria ainda uma percepção normal? A gravura de cobre, objeto primeiro de uma “percepção normal cujo correlato é a coisa “placa gravada”12 permaneceria

a mesma?

Dando a palavra Husserl: “a consciência que permite desenhar e mediatiza esta operação, a consciência o retrato é um exemplo desta modificação por neutralização da percepção. Este objeto retratado, que desenha outra coisa, não se oferece nem como ser nem como não ser, nem sob nenhuma outra modalidade posicional; ou, acima de tudo, a consciência o toma como ente, mas como um quase-ente segundo a modificação de neutralização do ser”.13 Assim o quadro

coisa, a tela e todos os elementos constituintes do “substrato material da obra”14,

ou a gravura em cobre desparece simplesmente com a neutralização através da qual surge a obra como um quadro cuja superfície se abre como uma “janela”.

Antes de prosseguir, digamos ainda uma palavra esclarecedora sobre a neutralização e o caráter dóxico da percepção sensível e do juízo. Os atos de percepção e de juízo não sofrem qualquer tipo de modificação quando são neutralizados. A neutralização atinge apenas os objetos intencionais dos respectivos atos de consciência. Na percepção normal a coisa percebida solicita imediatamente nossa adesão à sua existência. Esta crença dóxica toma parte essencial em nossa vida cotidiana e não cessa de ser escandaloso ver os professores de filosofia negarem a existência real do mundo (como se ela precisasse de prova) e, fora da sala de aula, fugirem afobadamente, ao atravessar a rua, da frente dos automóveis, não lhes ocorrendo, nem por um centésimo de segundo, duvidar da existência real do veículo ameaçador. Mesmo porque a sala de aula de filosofia nos permite arroubos de inteligência e imaginação que a vida cotidiana limita. No entanto na neutralização o conteúdo - por exemplo de uma proposição categórica - me é indiferente. Isto é inclusive necessário se pretendo examinar sua forma sintática ou lógica. Do mesmo modo, no tocante à percepção normal, se a neutralizo continuo visando qualquer coisa – pois toda consciência é consciência de – e qualquer coisa efetivamente presente, pois o objeto da percepção é uma presença. Mas esta presença perde em meu campo visual seu caráter de presença de uma coisa real. Ela é apenas uma coisa visível e vista sob talou qual aspecto. O sentido noemático permanece o mesmo mas perde a força de realidade que acompanha normalmente as percepções na vida cotidiana.

Podemos então pensá-la como uma espécie de irrregionalização – objetividade noemática extrínseca tanto ao mundo como à consciência - ou “coincidência imediata com o mundo em seu aparecer” (p. 38).

12 Op. cit. p. 373. 13 Ibidem.

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Assim ao abandonarmos, pela neutralização, a atitude perceptiva normal, a pura aparência, as notas de uma canção, libertas da sua função de significar uma realidade ou de indicar uma existência – como o barulho de uma motocicleta – cessarão de ser percebidas propriamente como o que são realmente, ou seja sons emitidos por determinados instrumentos. Elas funcionarão como índices de outras realidades. Esse é, no entanto, um primeiro passo, uma primeira neutralização. O quadro já não é mais uma coisa existente diante de mim, mas o análogo de outra coisa. Sei que o retrato não é a própria pessoa retratada, que ela não está ali na imagem que, no entanto a presentifica. A pessoa não está ali: ela está espelhada em sua imagem, em representação. Por este motivo os primeiros selvagens a entrarem em contato com a fotografia, temeram que ela lhes roubassem a alma ou rosto, quando não a vida. Subsiste, pois ainda a relação da percepção com sua exterioridade, a saber, o mundo da existência, pois sei que o retrato não é (juízo de existência) o que ele representa. Mas ele não representa que é uma representação.15

Daí a necessidade de uma segunda neutralização ou se si quer, redução. Através dela me reporto não mais ao que a representação presentifica mas o que nela e por ela própria é percebido. O importante não é mais o que a figura desenhada ou pintada na superfície da tela retrata, mas sua simples aparência, digamos assim, imanente. As figuras de Durer não mais me conduzem a pensar um diabo ou um cavaleiro reais, e a obra de arte, neste caso perdida como

15 Assim , para citar um exemplo, o representado, em Merleau-Ponty, é "en soi non rapporté à ce

qui seul lui donne sens: la distance, l'écarte, la trasncendance, la chair".(Le visible et l'invisible. Op. cit., p. 306). O notável do problema da representação em geral é que o representado pode, em sua presentificação como signo, ser também representante do que ele significa. "Dans la représentation symbolique par signe ... nous avons l'intuition ... d'une chose (o representante,JLF)

avec la conscience qu'elle dépeint ou indique par signe une outre chose"(Husserl, Idées, op. cit., § 43, p. 79). Todo o problema da psicanálise e da constituição do sujeito foi comumente assentado sobre essa estrutura representativa e por sua realização privilegiada na linguagem. De fato, como escreve Foucault, a representação é "em sua essência própria ... ao mesmo tempo indicação e aparecer; relação a um objeto e manifestação de si"(Les Mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966, p. 79). Como tal a representação é simplesmente o fenômeno, uma vez que toda presença sensível implica o aparecimento de um objeto e os elementos sensíveis que constituem sua aparência. "O representante, escreve Jean Wahl, essas linhas, essas cores, é inteiramente transparente, não tem outro conteúdo senão o representado (essa face); e entretanto ele tem alguma coisa que só pertence a ele, que, bem que não seja um conteúdo, especifica-o como representante de um outro: nele deve-se manifestar seu poder representativo"(Estruturalismo e filosofia, op. cit., p. 56-57). Evidencia-se aqui a confusão na qual a problemática se instala sempre que se quer elucidar a representação a partir do contéudo transcendente da aparência que ela exibe, pois o que não é "conteúdo" da representação e que se manifesta no representante da representação como seu próprio poder representativo é justamente seu aparecer como tal. Linhas, cores, etc., não podem representar um rosto ou qualquer coisa que seja, senão se são eles mesmos, aparência. É inútil situar na estrutura do signo e no seu poder de representar "a relação que o liga ao que ele significa"(Foucault, op. cit., p. 78), ou seja, no fato de, em geral, o representante representar que ele representa o representado, a estrutura ontológica suscetível de exibir a essência da representação. O que é representado pela representação é sempre qualquer coisa de ôntico.

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realidade mundana não mais apela à imaginação presentificante, nos convidando a explorar as dimensões de uma nova espécie de percepção, ou seja, a percepção propriamente falando, estética de uma irrealidade.

Pois bem Husserl irá, nas Ideias II preparar o campo para uma melhor compreensão do que vem a ser a essência do objeto estético, isto é, da obra de arte. Nas Ideias I a tela oferece-se à nossa percepção dentro de uma moldura, suspensa numa parede16 enquanto nas Ideias II o quadro aparece circundado por

um mundo natural, pertencendo ao conjunto dos “objetos espiritualizados” opostos aos objetos materiais estudados pelas ciências naturais. Os objetos espirituais, ao contrário dos naturais, devem ser compreendidos e não explicados. Ou seja, devemos compreende-los em seu ser para nós, compreender sua significação que, segundo uma intuição extremamente fecunda de Husserl, se encontra integralmente incorporada em suporte corporal. A linguagem e fala, por exemplo, não meramente meios materiais de que o pensamento se serviria para expressar-se, exteriorizando-se. Se assim fosse, dirá Merleau-Ponty17 poderíamos,

apreender de um lado, puros pensamentos independentes e claros para si mesmos e, de outro as palavras necessárias para sua expressão. Mas na verdade isto é impossível. Estar de posse de meus pensamentos é já, imediatamente, tê-los articulados como linguagem e todos sabemos como é difícil falar sem pensar em nada, ou seja, nas palavras que, no entanto, deveríamos empregar de forma absolutamente aleatória. Por isso ouvimos o sentido das palavras que nos são pronunciadas e não a sonoridade da voz que as articula. Através da leitura habito imediatamente o sentido do texto porque minha compreensão não está orientada primariamente para a materialidade das letras e signos do papel. O mesmo é válido para a experiência do outro. Sartre dizia que quando gostamos de alguém não vemos comumente a cor dos seus olhos, mas a expressão do olhar. Através da percepção do corpo do outro vivemos compreensivamente a significação de uma existência, apreendemos a doçura de um caráter ou a fortaleza de uma personalidade. Mas embora o corpo do outro seja também uma corporeidade espiritualizada, na medida em que se trata de substrato expressivo de uma existência Husserl afirma que não podemos transpor por analogia, este esquema para a obra de arte. A face risonha do outro é a própria concretização da alegria, a felicidade encarnada aqui e agora. O corpo do outro é uma existência que não pode ser de nenhuma forma “neutralizada” pela percepção.

Aprofundando a análise dos objetos espirituais Husserl chama a atenção para o fato de o sentido espiritual pertencer a uma esfera puramente ideal sem qualquer relação com a existência, embora em alguns casos essa relação possa existir em maior ou menor medida. Nas Ideias II escreve: “Em muitos casos temos uma natureza real, um ser dotado de existência como base do sentido 16 Cf. SARAIVA, M. op cit. p. 21.

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espiritual, em muitos outros temos uma irrealidade física (“ein physisch Unwirkliches”), desprovida de existência”.18 Entre os primeiros estão os objetos

de uso e suas significações valorativas para nós, ao segundo grupo – o das “irrealidades físicas” - pertencem as obras de arte em geral. Enquanto a significação de uma colher, por exemplo, pode ser lida diretamente em sua forma material – a sua serventia – a percepção sensível normal pode servir aí como forma da apreensão do seu ser sem necessidade de nenhuma neutralização. Mas no caso da obra de arte o que permite sua apreensão espiritual é “uma irrealidade física”. O quadro coisa física, o suporte material da obra de arte como tal é irrealizado pela percepção estética suporte físico irrealizado: o corpo sensível da imagem não é a imagem desenhada no quadro suspenso na parede, mas o objeto transcendente que através – das cores e linhas no caso de um quadro, dos sons no caso da música - e para além dela o olhar constitui.19

Irrealizada ao perder seu estatuto de obra do mundo, por seu turno as manchas coloridas do quadro são irrealizadas também, ao transformarem-se no corpo irreal da obra de arte. O quadro suspenso na parede, uma vez irrealizado pela neutralização faz surgir a obra de arte. O quadro obra de arte não tem um corpo sensível real, mas em vez dele, um suporte físico irrealizado. Este suporte irreal não é evidentemente a moldura ou mesmo a tela. São as manchas coloridas de tinta, os traços da gravura, o ritmo da dança, a harmonia musical da sinfonia. Desta forma, não só a obra perde seu estatuto de coisa mundana mas também seus elementos. As palavras de um poema expressam uma imagem poética. A pedra no caminho nada me informa sobre a natureza dos caminhos ou dos obstáculos que neles podem surgir e as manchas coloridas da tela cessam de serem percebidas como tais.

Em “Lógica formal e transcendental” Husserl retoma o problema e propõe-se considerar em conjunto, de um modo extremamente fecundo, a linguagem e as obras de arte. Primeiramente Husserl chama a atenção para a o processo de constituição das significações como unidades ideais. Assim como a mesma coisa pode ser percebida ou visada através de inesgotáveis perspectivas diferentes, também uma significação pode ser expressa a partir de uma diversidade de atos de fala. Há sempre mais ou menos do que queríamos dizer em tudo que dizemos; 18 Husserliana IV, p. 239. Citado por SARAIVA, p. 34. Sobre a idealidade da linguagem afirma

Husserl que ela possui “a objetividade das objetividades do mundo que denominamos espiritual ou mundo da cultura e não a objetividade da simples natureza psíquica. ... assim distinguimos igualmente a própria gravura das suas milhares de reproduções; e a gravura, a própria imagem gravada, nós vemos a partir de cada reprodução e ela é dada em cada reprodução do mesmo modo como um ser ideal idêntico” (Logique formelle et transcendentale. Paris: PUF, 1965).

19 A dificuldade extrema da compreensão desse fenômeno absolutamente essencial reside na

impossibilidade de perceber puramente o desenho ou a pintura sem perceber ao mesmo tempo (no caso de uma pintura figurativa em perspectiva, por exemplo) a sua profundidade imaginária. A percepção, neste caso, não pode ser “neutralizada”. Vemos, por assim dizer, através das pinturas e com elas.

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e se não podemos separar os pensamentos das formulações que os exprimem, muito menos podemos fazê-los coincidir completamente. A idealidade das expressões linguísticas não se refere pois apenas às significações que elas visam, atingindo a linguagem no seu próprio corpo, tornando-a, afirma Husserl, uma “corporeidade espiritual”.20 “A própria palavra, a própria proposição gramatical, é

uma unidade ideal que não se multiplica nas suas milhares de reproduções”. Dá-se então, na palavra, a encarnação de um Dá-sentido espiritual em um substrato material, como a harmonia de uma música em suas notas. Ao falarmos nossos pensamentos se “com-fundem” com as palavras insuflando-lhes a alma do sentido e da significação. A propósito da música diz Husserl que “apesar de ser composta de sons a sonata é uma unidade ideal”. Mas o notável é que, frisamos uma vez mais, Husserl estende essa idealidade aos próprios sons através dos quais a música se expressa. “Seus sons, afirma, não são de forma alguma os sons que estuda a física, ou mesmo os sons da percepção sensível auditiva, os sons enquanto coisas sensíveis. Estes não existem realmente a não ser na sua reprodução efetiva e na sua percepção”.21 De fato a mesma nota do real, o som

como coisa sensível, emitida diversas vezes durante a sinfonia será diversamente percebida conforme as notas que a precedem e sucedem. Assim uma coisa são os sons em geral como coisas mundanas, outra os sons de um instrumento que interpreta uma melodia, uma coisa o domínio da existência física na ponta de nossas percepções normais, outra a fluição estética dirigida aos objetos espiritualizados que compõe as obras de arte. 22

Em resumo o elemento significativo que primitivamente era pensado ou podia sê-lo à parte do seu suporte físico ou material será posteriormente 20 “... Enquanto expressões preenchidas por um sentido, como unidades concretas, as formações de

linguagem contem ao mesmo tempo um corpo constituído pela linguagem e um sentido expressado, mas isto concerne também às formações de linguagem desde o ponto de vista da sua própria corporeidade que é por assim dizer uma corporeidade espiritual”. (Idem, p. 19. Grifado por Husserl)

21 Logique, op. Cit. p. 18.

22 O caráter constituinte da percepção fica claro, talvez melhor do que a propósito de qualquer

outro exemplo, no caso da percepção musical. De fato, as notas de uma canção são sucessivas, de modo que não seria possível perceber uma melodia se de alguma forma as notas anteriores e futuras não fossem conjuntamente apreendidas com as notas atuais. De modo nenhum a percepção melódica poderia ser “explicada”, por isso como efeito provocado em nós pelos sons da melodia uma vez que nem as notas passadas, nem as futuras são sons, ou seja, fenômenos físicos. Elas constituem duas formas de não ser ou irrealidades: o que ainda não é e o que já não é mais. Fica claro então o papel ativo, ou seja a espontaneidade da consciência em sentido constituinte. Como afirma IVONNE PICARD: “a melodia se desfaz à medida que se faz, não se apresenta nunca com evidência cega, sua unidade não pode ser total, sendo sempre indicada e nunca possuída”. (El tiempo em Husserl y em Heidegger. Buenos Aires: Editorial Nova, 1959, p. 35). A audição das notas e sons tocados pela orquestra é a experiência da melodia que no entanto, funciona como uma espécie de horizonte regulador da própria experiência atual que só assim é uma percepção estética. “A melodia em sua totalidade, afirma Husserl, se presentifica enquanto ressoa, enquanto ressoam os sons que a integram, quer dizer, enquanto são pensados em um só nexo apreensivo. E só terá passado depois de terminado o último som”. (Fenomenología de la conciencia Del tiempo inmanente. Buenos Aires: Nova, 1959, p. 86).

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totalmente encarnado na base física, de maneira a transformar esta na sua própria materialidade, em “corporeidade espiritual”. Desaparece assim da consideração estética husserliana a noção de presentificação e juntamente com ela a falsa Ideia da obra arte como imitação platônica. Isto permitirá a concepção da autonomia do universo estético, tornando-se a obra doravante portadora de um sentido imanente, de uma espiritualidade encarnada que transfigura seu suporte material de tal modo a eliminar, pelo menos nesse campo das análises fenomenológicas, o primado da percepção.

BIBLIOGRAFIA

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LÓPEZ, Maria Del Carmen. El arte como racionalidad liberadora, Madrid, Ediciones UNED, 2000.

SARAIVA, M. A concepção da obra de arte em Husserl. Coimbra: Centro de estudos fenomenológicos, 1965.

Referências

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