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Considerações finais

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Academic year: 2021

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Considerações finais

Mas as teorias somente são feitas para morrer na guerra do tempo: são unidades mais ou menos fortes que é preciso engajar no justo momento no combate e, quaisquer que sejam seus méritos ou suas insuficiências, somente podem ser seguramente empregadas as que estão aí, em momento útil. Assim como as teorias devem ser substituídas, porque suas vitórias decisivas, mais ainda que suas derrotas parciais, produzem seu desgaste, do mesmo modo nenhuma época viva partiu de uma teoria: havia de início um jogo, um conflito, uma viagem.

Guy Debord, In girum imus nocte et

consumimur igni

A interpretação do pensamento de Debord aqui exposta recoloca, a respeito do próprio Debord, a interpretação que este propusera para a experiência da arte moderna e das vanguardas do início do século 20, a saber, que seu centro se constitui numa reflexão social sobre a linguagem. Se, segundo interpreta Debord, todas as vanguardas e a arte moderna se constituíram essencialmente na assunção consciente e crítica da destruição das linguagens tradicionais, tornadas falsas no interior de uma experiência social caracterizada pela destruição acrítica e alienada das anteriores experiências comunicativas, é necessário assumir, como chave de interpretação da própria reflexão de Debord, a persistência e a continuidade desviada desta temática. Debord a recoloca em jogo nas condições reificadas de

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expropriação de toda linguagem comunicativa e de todos os valores comunicáveis do capitalismo contemporâneo. Em outras palavras, busquei nestas páginas trabalho explicitar o que, ao lado de Agamben, Kaufmann e Virno, considero o centro da reflexão de Debord, que é, como já salientado nas considerações introdutórias, uma retomada da crítica da economia política que desenvolve suas categorias no âmbito da experiência social da linguagem. Neste desenvolvimento, opera-se uma juntura entre a crítica teórica das formas-valor e a reflexão sobre a linguagem não apenas na denúncia de que à expropriação da atividade autônoma acompanha uma expropriação das potencialidades comunicativas da sociedade, mas também – e é esta a especificidade do presente livro – na elaboração de uma perspectiva comunista na qual a superação das relações fetichistas e a construção de uma nova comunicação são inseparáveis.

Neste horizonte, a categoria metafísica da linguagem comum, que orienta toda a reflexão de Debord sobre a linguagem social, assume um outro significado na concepção debordiana da dialética. Refiro-me justamente à categoria de totalidade. Deve-se observar que esta categoria aparece em seus textos, antes de tudo, na compreensão crítica de que o conjunto das alienações do capitalismo contemporâneo conforma uma totalidade fundada na determinação da forma-mercadoria sobre a inteira vida social, as atividades e as relações entre os indivíduos. A este fenômeno totalizante e totalitário, os situacionistas chamaram de “economização da vida”. É o domínio da economia, entendida no sentido estrito de economia de

mercado, que submete as relações humanas à lógica autônoma

da tranformação do dinheiro-capital em mais-dinheiro. As relações produzidas e estabelecidas pelos homens ganham vida própria e, assim, passam a dominá-los. Com base nesta hierarquia primeira do valor econômico sobre as atividades humanas e a utilidade das coisas se ergue a hierarquia da economia sobre os homens e suas vidas, e dos especialistas e

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dirigentes da produção mercantil sobre o conjunto da sociedade. Esta hierarquia se demonstra também no Estado e num sistema

completo de hierarquias, alienações e expropriações da vida

que está pre sente em todo o cotidiano e nas instituições separadas que, desde fora, planejam e controlam a cotidianidade. Sabemos o quanto é problemático, hoje, falar em totalidade. Em geral, este é um conceito que, em determinadas vozes, faz lembrar – para o bem ou para o mal – o velho ideal filosófico de sistema, de saber absoluto. Mas não é disso que se trata para Debord e os situacionistas. Primeiro, porque a teoria não é, para eles, um conhecimento positivo, e não se trata, assim, de constituir um conhecimento do todo, um sistema de saber. A teoria, para Debord, é tão finita e passageira quanto o são as gerações dos homens; produzida no tempo, diz respeito às lutas do tempo e, neste sentido, cumpre uma função estratégica. Assim, longe de um saber total, ele propõe uma crítica total às condições de existência da sociedade dominada pela mercadoria. Somente como crítica de totalidade a negação da atual forma histórica da sociedade pode ser de fato crítica e negativa, protegendo-se da recuperação própria a qualquer crítica “no varejo”. E tal crítica só podia ser total na medida em que, nesta sociedade,

uma determinação se fez total: as relações de compra-e-venda,

submetendo a si todas as dimensões da vida. Trata-se, portanto, da crítica da má totalidade. Nesta crítica, Debord não lamenta o fato de que a economia tenha dominado tudo, propondo contra isso limitar a economia, mas denuncia a economia como

necessariamente totalitária e, contra ela, propõe sua dissolução,

que é ao mesmo tempo a dissolução do Estado e de todo o sistema único de alienações e hierarquias.1

1 . A compreensão de que a posição teórica construída por Marx não se constitui em disciplinas científicas modernas (economia política, ciência do direito, filosofia etc.), mas em crítica (da economia política, do direito, da filosofia etc.), é mais um elemento que liga a reflexão de Debord às de Karl Korsch (especificamente, em Marxismo e filosofia) e de Lukács (em História e

consciência de classe). Para estes autores, como para Debord, não sendo

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Para além de uma categoria crítica, a totalidade aparece também em seus textos como um telos metafísico inseparável da “nova” linguagem comum e da comunidade histórica. Se a totalidade lhe aparece como “a experiência real, o oxigênio da crítica impiedosa do existente”,2 ela também é o que falta à experiência reificada da linguagem: “Somente a linguagem que perdeu toda referência imediata à totalidade pode fundar a informação”.3 Neste aspecto, a totalidade se apresenta como o que falta ao mundo das separações, do isolamento mútuo dos indívíduos e da radical ausência de comunicação efetiva entre os homens no capitalismo mais desenvolvido.

Neste aspecto, Debord se mantém muito próximo dos termos apresentados por Hegel em Differenz des Fichteschen

und Schellingschen Systems der Philosophie (1801). Neste texto

juvenil, Hegel denuncia a “harmonia dilacerada” (zerrissene

Harmonie) e a “cisão” (Entzweiung ) no interior da cultura

(Bildung), na qual “a manifestação do absoluto se isolou do absoluto e se fixou como algo autônomo”.4 Este mundo cindido é, ele mesmo, um “todo” (Ganzes) da multiplicidade de suas limitações. Para Hegel, porém, este todo não é a totalidade, mas apenas uma relação não-viva entre as partes; por isto, a cisão do mundo não é superada no todo, mas nele se encontra expressa e reposta como mundo cindido. Neste todo, a totalidade se encontra “perdida nas partes”. Ao mesmo tempo, a “aspiração da vida” (Bestreben des Lebens), presa nas partes deste todo, se agita sob e contra ele, “para sair dali em busca da liberdade”. Assumindo a forma da Razão – o que, para Hegel, significa

da realidade, mas justamente uma crítica do existente, é isto o que capacita a esta mesma teoria crítica poder falar/saber sobre a realidade reificada. Um saber, contudo, que se sabe provisório, pois produzido como momento de uma práxis temporalmente delimitada.

2 . “L’avant-garde de la présence”, loc. cit., p. 17. 3 . Idem, p. 31.

4 . Hegel, Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der

Philosophie [1801]. Werke in 20 Bänden, B. II. Frankfurt am Main: Suhrkamp

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superar o ponto de vista classificatório, calculador e enrijecedor do Entendimento – a vida aniquila o todo das limitações e se reencontra como totalidade, assim fazendo desaparecer a cisão. Esta superação da cisão é, para Hegel, a tarefa da filosofia. Preocupado em ir além da oposição própria à filosofia moderna entre a “subjetividade absoluta” e a “objetividade absoluta”, o filósofo alemão expressa, nesta concepção, o cuidado de preservar, como necessidade e fator da própria vida, a existência de inevitáveis cisões. A vida, diz ele, se autoconfigura contrapondo-se perpetuamente (e a “aspiração da vida”, neste sentido, não se constitui numa potência positiva, mas dialética, pois autocontraditória). Destarte, a razão se opõe não à cisão

tout court, mas à “fixidez absoluta da cisão”, esta fixidez sendo

aquela em que “o poder de unificação desaparece da vida dos homens e os opostos perdem sua viva relação e interação e adquirem autonomia”.5

Esta frase, citada no § 180 de A sociedade do espetáculo, é desviada por Debord na análise da cultura moderna e na averiguação de uma vocação que lhe seria ínsita de busca da “unidade perdida” (unité perdue), busca na qual justamente “a cultura como esfera separada é, ela própria, obrigada a negar-se”. Não é o caso aqui de voltar a discutir a teoria debordiana da superação da moderna cultura separada, mas a localização, em seu contexto original, dessa frase hegeliana citada em A

sociedade do espetáculo ajuda a compreender o segundo sentido

que a categoria da totalidade assume em Debord. Como categoria metafísica prospectiva, que se confunde com a da linguagem comum, a totalidade é a comunidade histórica a vir, na qual a “cisão necessária” (Hegel) não é suprimida, mas posta em relação viva. Longe de uma superação que identifique completamente uma e outra, a oposição entre a subjetividade e a objetividade perde, na totalidade, sua fixidez e, nos termos de Debord, inicia sua existência “histórica”, como relação viva e interação jamais inteiramente consolidada.

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Por fim, no centro desta perspectiva – e fundando-a – está uma outra categoria hegeliana: justamente a da negatividade. Mantendo como fundamento de sua reflexão a crítica teórica e prática da economia política e, portanto, a consideração sobre as condições sociais e históricas da experiência da linguagem, Debord concebe o projeto de uma nova comunicação como inscrito na negatividade presente na experiência da arte moderna e, contemporaneamente, nas lutas sociais que ocorrem sob (e contra) as condições do capitalismo espetacular. Deste modo, sua crítica social se constitui numa imanência negativa às próprias condições históricas da reificação. Em outras palavras, em seu pensamento, a luta prática e a crítica teórica à reificação só podem ter como base a própria reificação. O conceito de alienação em Debord, mormente no que diz respeito à forma que ela assume como expropriação da potência comunicativa da linguagem, se reencontra tanto com a concepção de autonegação, já suposta em Marx, quanto com a importância da prática crítico-negativa, tomada por Debord como pressuposto da comunicação direta.

A concepção de que a arte moderna assumiu consciente e criticamente a destruição da linguagem, destruição esta que, no entanto, é determinada antes de tudo pelo desenvolvimento – ele mesmo, essencialmente destrutivo – das forças produtivas modernas, assinala já uma atenção para a negatividade como potência construtiva, justamente porque a perspectiva de uma nova linguagem comum não é simplesmente concluída do processo “objetivo” do desenvolvimento capitalista, mas antes elaborada como sentido histórico da assunção crítica da destruição da antiga linguagem pela arte moderna. Esta assunção teria desempenhado, segundo Debord, uma posição negativa em face da sociabilidade burguesa e da pseudocomunicação que l h e é e s s e n c i a l m e n t e c o n s t i t u t i v a . N a p e r s p e c t i v a d a comunicação, Debord concebe sempre o “destrutivo” da modernidade sob o modo dialético do negativo; concebendo-o, pois, como negativo, o “destrut ivo” é, também para ele, inseparável do “criativo” ou “construtivo”.

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No Prefácio à Fenomenologia do Espírito, escrito ao qual Debord faz diversas referências em seus textos, Hegel afirma – aparentemente numa polêmica contra Spinoza e Schelling – que se deve acreditar no “poder do negativo” (Macht des Negativen). Assumindo este horizonte como central à sua reflexão, Debord desvia, para um significado dialético-negativo, as considerações essencialmente positivas de Nietzsche sobre a comunicação. “Não basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos uns aos outros”, diz Nietzsche; “é preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, ter a experiência em comum com o outro”.6 Desviada p a r a u m a b a s e d i a l é t i c a , n ã o é o u t r a a c o n c e p ç ã o d e Debord sobre a comunicação: “a comunicação não existe jamais em outro lugar que não seja na ação comum. E os mais surpreendentes exageros da incompreensão estão, assim, ligados ao excesso de não-intervenção”.7 Aqui, a “ação comum” é compreendida justamente como diálogo prático, crítica prática, negação. Para ele, unicamente a negatividade ínsita à práxis revolucionária – baseada no “destrutivo” das condições modernas de existência e alimentada pela experiência da poesia moderna – constitui a ação comum e, logo, a comunicação das quais pode advir a comunidade realmente histórica.

N ã o p o d e n d o r e c o r r e r a o p a s s a d o , t a m p o u c o à interioridade subjetiva, Debord ampara sua perspectiva comunista de uma nova comunidade apenas e exclusivamente nas contradições da própria existência presente e na práxis negativa em face delas. Como para o jovem Marx, a negatividade significa, para ele, a única possibilidade de uma reflexão puramente histórica, não metafísica (no sentido tradicional de metafísica) da experiência social dos homens, pois constituída

6 . F. Nietzsche, Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro [1886]. Tr. br. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, § 268, p. 182.

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na própria existência social fabricada, produzida pela atividade humana, ainda que (ou: precisamente porque) sob a forma da autonegação. Negando o mundo que os nega, os sujeitos da crítica prática se negam a si mesmos, isto é, negam as formas alienadas em e sob as quais estão constituídos e reinventam a si e ao mundo. É justamente deste modo que Debord concebe o significado histórico dos Conselhos Operários húngaros (1956), as greves com ocupações de fábrica em Maio de 68, na França, e as Assembléias Autônomas nas grandes fábricas italianas e portuguesas, durante os anos 70: como experiências negativas de invenção da “história universal”, baseada na crítica prática e no diálogo anti-hierárquico.

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