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Palavras-chave: sementes de maconha; Ministério Público Federal; risco.

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Sementes de maconha e o risco: uma análise das práticas dos

procuradores do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro acerca

do tratamento jurídico em relação às drogas.

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Laura Talho Ribeiro (PPGSD/UFF –Niterói) 2

Luana Almeida Martins (PPGSD/UFF –Niterói) 3

Resumo: A partir dos anos de prática de estágio forense em gabinetes do Ministério

Público Federal do estado do Rio de Janeiro, pudemos perceber como eram distintos os tratamentos jurídicos conferidos a condutas semelhantes. Diferentes posicionamentos orientavam cada um dos procuradores daquele órgão e uma conduta específica chama atenção pela pluralidade de discursos que a orientavam: a importação de sementes de maconha. Dessa forma, pretendemos descrever as práticas dos gabinetes do MPF que se relacionam com essa conduta, buscando, assim, contribuir para uma reflexão da maneira pela qual o direito se produz a partir de distintas percepções do risco a ser combatido pelo sistema penal.

Palavras-chave: sementes de maconha; Ministério Público Federal; risco.

INTRODUÇÃO

O trabalho que aqui se estrutura surgiu a partir da reunião de nossas experiências durante o período em que fomos estagiárias de Varas Criminais no Ministério Público Federal do estado do Rio de Janeiro. Apesar de termos trabalhado na mesma época, no mesmo órgão, e com procuradores que eram colegas muito próximos no trabalho, apenas nos conhecemos no programa de mestrado a que somos vinculadas.

1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2016, João Pessoa/PB

2 Mestranda em Segurança Pública e Administração Institucional de Conflitos no Programa de

Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense – UFF. E-mail: lauratalho@gmail.com

3 Mestranda em Segurança Pública e Administração Institucional de Conflitos no Programa de

Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense – UFF. E-mail: luanamartins@hotmail.com.br

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Após longas conversas sobre nossas experiências no MPF, as reflexões aqui expostas foram feitas. Portanto, esse trabalho surgiu diante da troca de nossas vivências em gabinetes da Procuradoria da República, e de nossas percepções sobre as distintas práticas de atuação de cada procurador no que diz respeito à conduta de importação de sementes de maconha para o Brasil.

O Ministério Público é órgão da justiça que assumiu papéis importantes com a introdução da Constituição Federal de 1988, além de uma série de garantias e princípios que possibilitam sua atuação de forma a zelar pelo interesse da sociedade. Dentre eles, é importante destacar a efetiva independência funcional e a independência jurídica (MAZZILLI, 1996).

Na prática, isso possibilita que membros do Ministério Público tomem posicionamentos divergentes em sua atuação quanto à avaliação do mesmo fato, existindo uma idiossincrasia na atuação da instituição e uma gestão particularizada do trabalho, uma vez que não existe subordinação funcional entre os membros da instituição, apesar de existir no Ministério Público hierarquia administrativa em relação à chefia única (Procurador Geral de Justiça). (GERALDO; BARÇANTE, 2014, p. 11)

Dentro de suas competências legais, está a titularidade da ação penal pública, ou seja, iniciar, por meio de uma denúncia, um processo criminal na Justiça. Em consonância com o gozo da independência funcional, cada Procurador da República, enquanto pensamos aqui no Ministério Público Federal, tem liberdade para iniciar ou não a ação penal, conforme considere assim necessário.

Dessa forma, para alguns destes membros do MPF, a semente de maconha – enquanto droga –, ao ser importada, deve ser denunciada como tráfico internacional4, podendo ser esse ato penalizado, inclusive, com pena de prisão. Para outros, essa mesma conduta, deve ser denunciada como crime de contrabando, diante da concepção de que se a semente de maconha é considerada uma mercadoria proibida, a sua importação estaria vedada pelo artigo 344-A do Código Penal5.

Para além dessas duas percepções, há ainda outros que entendem que a importação não deva ser criminalizada, já que o material não possuiria por si só as condições e qualidades químicas necessárias para, mediante transformação ou adição,

4 Conforme o artigo 33, da lei nº 11.343/06 (Lei de drogas).

5 O artigo 334-A diz “Importar ou exportar mercadoria proibida. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco)

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produzir o entorpecente proibido. Assim, ela serviria apenas aos atos preparatórios, o que indica que não haveria, portanto, prática de crime nessa conduta, devendo ser arquivados os casos que nela se enquadram, diante da irrelevância desse ato para o sistema penal.

Ainda há um último posicionamento que pode ser aqui elencado: a compreensão de que esses casos de importação de sementes devam ser denunciados com base na redação do artigo 28, § 1º, da lei 11.343/066, ou seja, pelo crime de uso e não pelo tráfico. Esse entendimento se baseia na quantidade de sementes apreendidas, que se importada em pequena quantidade, estaria demonstrada, enquanto matéria-prima, sua destinação a consumo próprio, e não ao tráfico de entorpecentes.

Esse panorama das normas jurídicas utilizadas pelos procuradores tem como objetivo demonstrar as diferentes práticas que ressaltam o aspecto plural da atuação do Ministério Público Federal no tratamento de uma mesma conduta, e chamam atenção pela maneira que elas atualizam diferentes discursos acerca da política criminal vigente. Assim, buscamos aqui, por meio da descrição das práticas cotidianas dos gabinetes em que trabalhamos, refletir sobre a percepção que cada ator, nesse caso evidenciado pela figura do procurador, tem do risco a ser combatido.

O distanciamento do estágio realizado nos possibilitou as reflexões que serão abordadas nesse trabalho. Nossa trajetória acadêmica fez com que observássemos as práticas jurídicas, anteriormente exercidas por nós, como campo e objetos de pesquisa. Portanto, buscamos aqui descrever as práticas de atuação dos gabinetes em que realizamos estágio, dando ênfase à maneira pela qual os processos ganhavam mais ou menos atenção pelos procuradores com os quais tivemos contato. Ao abordarmos o tratamento conferido ao ato de importar sementes de maconha, procuramos evidenciar de que forma a percepção do risco a ser combatido pela Justiça Penal, a partir da perspectiva destes atores, influencia nas práticas organizacionais de um gabinete.

6 Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo

pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

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RELATOS DE UM GABINETE

Os gabinetes do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, em regra, são compostos por um procurador da república, dois estagiários, um analista processual, um assessor jurídico e um técnico administrativo. Os procuradores ocupam uma sala individual, de tamanho semelhante àquela ocupada pelos demais, com exceção dos analistas processuais, que dividem salas com outros analistas. As duas salas são separadas por divisórias típicas de escritórios, e comunicadas por uma porta, que garante a intimidade de reuniões que os procuradores realizam com outros procuradores, advogados, membros da imprensa, ou de seus próprios ofícios. De uma forma geral, todos os ocupantes de um gabinete realizam funções semelhantes, com exceção do técnico administrativo, que exerce atividades distintas: operar o sistema de entradas e saídas de processos, organizar os processos a serem assinados, dentre outras questões burocráticas.

Enquanto estagiárias, analisávamos processos, inquéritos policiais, e peças de informação7, e, então, redigíamos peças jurídicas para que fossem assinadas pelo procurador. Trabalhávamos de acordo com o posicionamento que o procurador tivesse acerca dos fatos, com alguma autonomia de julgamento de cada situação. Para os casos mais simples, em regra, já havia um modelo de peça a ser seguido, devendo haver somente certa adequação a algumas peculiaridades. Era comum que discutíssemos entre nós (estagiários e assessor) os tratamentos possíveis a serem conferidos a cada processo ou inquérito, já que muitos diziam respeito a situações que eram frequentes e que um de nós já poderia ter redigido uma peça semelhante. Assim, por mais que a redação fosse individual, era constante a troca de informações entre nós. O próprio procurador, por muitas vezes, discutia conosco fatos mais complexos para melhor estruturar a peça.

Como estagiamos em varas criminais, as peças mais comuns eram arquivamentos ou denúncias. Os inquéritos policiais8 eram os mais frequentes, até porque, em regra, eram mais simples do que as ações penais, sendo a maioria casos de

7 Nome dado ao procedimento instaurado a partir de notícias de possíveis cometimentos de crimes

indicadas pela população no próprio Ministério Público.

8 A maior parte dos inquéritos tratava da possível prática do crime de estelionato previdenciário, pelo

saque indevido de benefícios da previdência; do crime de contrabando, pela importação de peças de máquinas de caça-níqueis; do crime de uso de documento falso, ou falsificação de documento, sendo a maior parte deles de passaportes; ou do crime de roubo, nos casos em que as vítimas eram empresas da União, como a ECT (Correios), ou a Caixa Econômica Federal. Por ser uma vara federal, só havia casos de crimes federais. Para uma análise quantitativa dos casos envolvendo tráfico de drogas, vide BOITEUX, 2009.

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arquivamento por insuficiência de provas tanto de autoria, quanto de materialidade. Os processos mais complexos9, ou investigações policiais mais importantes, ficavam a cargo do procurador, do assessor ou do analista, nestes casos, sempre com supervisão do procurador.

Dentro do gabinete, havia uma estante em que os processos, os inquéritos policiais e as peças de informação a serem feitas ficavam. Quando finalizávamos um, pegávamos outro para fazer e o que havia sido finalizado era deixado na sala do procurador para que ele corrigisse e assinasse, posteriormente. Sabemos que há procuradores que são mais ou menos rigorosos com essas correções, alguns só verificam a peça de forma superficial, outros de maneira detida. As ações penais eram sempre trabalhadas com maior urgência, portanto, eram prioridade pelos prazos estabelecidos pela justiça. Os inquéritos seriam as investigações policiais que já estariam finalizadas, mas por vezes pedíamos diligências a serem feitas para a busca de maiores informações. As peças de informação eram pedidos de investigação feitos por qualquer cidadão, ou investigações que vinham da Justiça Estadual.

AS SEMENTES DE MACONHA

Em um dos gabinetes em que trabalhamos, os casos de importação de semente de maconha eram tratados como casos simples, resolvidos pelos estagiários de Direito com facilidade. Em regra, a semente era interceptada na alfândega pela Receita Federal e apreendida, iniciando um inquérito policial para que fosse investigada a importação. Como se pode imaginar, poucos eram os casos em que a autoria da importação era descoberta, já que era comum que os nomes e endereços informados aos Correios fossem falsos. Entretanto, essa não era a principal razão de arquivamento desses casos para um dos procuradores com quem trabalhamos.

Ele acreditava que esses casos eram irrelevantes ao sistema penal, e que não fazia sentido a demanda de grandes esforços para punir um indivíduo que somente havia importado sementes, que sequer seriam plantadas, tendo em vista a sua apreensão.

9 Como crimes financeiros ou tributários, que envolvem legislação complexa, e conhecimentos mais

específicos sobre sistemas financeiros, ou ainda casos de esquemas de corrupção ou lavagem de dinheiro, em que agentes de destaque pudessem estar envolvidos.

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Denunciar casos como estes era o que ele chamava de “tocar merda”, já que se levaria adiante uma situação irrelevante ao direito penal.10

Essa expressão acionada por ele era utilizada também em outros casos em que acreditava não haver sentido na continuidade da investigação policial, menos ainda na instauração de um processo penal. Um exemplo desses casos era o de estelionato previdenciário, em que se iniciava um inquérito policial para investigar um saque bancário indevido, de baixa quantia para os cofres públicos, feito por meio de um cartão magnético em que ele acreditava que os esforços para se descobrir a autoria não compensavam o dano causado. Dessa maneira, este procurador compreendia também as importações de semente de maconha, porque além de serem casos que dificilmente a autoria era sabida, afirmava que o desgaste em se mover todo o aparato judiciário para investigar importações de semente de maconha, não traria retornos efetivos ao Estado.

Outros procuradores com os quais convivemos possuíam diferentes percepções sobre esses casos. Em um dia de trabalho, um deles contou sobre uma situação em que narrou como absurda: o fato de que uma juíza federal teria sido vista “subindo o morro para comprar cocaína”. A sua narrativa enfatizava o fato dele considerar essa atitude reprovável por se tratar de uma juíza que lida com o direito penal, e que porventura terá de sentenciar processos em que réus tenham sido presos por tráfico de drogas.

Sem que se possa entrar no mérito a respeito de posições mais conservadoras ou mais progressistas para estes procuradores quanto à questão da política de drogas, o que vai se colocar adiante são opções de política criminal pensadas e assumidas por estes atores.

O pequeno trecho destacado acima, sobre a referida magistrada, demonstra o distanciamento e a objetividade que este segundo procurador busca tratar os casos com que lida. Claramente para ele, segundo uma de nós pode observar ao ser sua estagiária, a lei e a jurisprudência são as principais fontes para se ditar o Direito. Diferentemente do outro procurador, sua resposta acerca da necessidade da percussão penal a respeito deste crime, encontrava-se no fato de haver previsão e entendimento jurisprudencial para esta questão, pois para ele, o retorno ou não de efetividade estatal, encontrava-se na problemática de não se dar o devido entendimento a esta conduta, que seria um risco social muito grande, visto que a política criminal já o tinha determinado.

10 Os padrões de arquivamento se moldavam com a seguinte redação: “o dispêndio do aparato penal em investigações como esta, que tem por objeto delito que não causou ofensa significativa ao bem jurídico tutelado pela Lei Penal, pode acarretar prejuízo a outras persecuções de maior relevância aos reclames da sociedade”.

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Sua reposta era objetiva: se é sabida a autoria, há crime. Se esta não é sabida, por questões já expostas como as de nome e endereço falsos, há que se arquivar o inquérito policial por ausência de autoria. Mas nem por isto suas posições estavam sempre de acordo com entendimentos majoritários; muitas vezes éramos surpreendidos com apreciações não tão unânimes na prática penal. Assim, é relevante destacar que, no caso da importação da semente de maconha, como sua posição era inédita para muitos de nós que entrávamos para sermos estagiários neste gabinete, acostumados com o dualismo entre tráfico versus atipicidade que permeava a discussão nas Universidades, quando fazíamos a peça segundo alguma destas duas posições e deixávamos para sua correção, erámos sempre chamados em sua sala particular para a explicação e a posterior correção da mesma.

Assim, os casos de importação de semente de maconha deveriam ser tratados como crime de contrabando11, tendo em vista que uma mercadoria proibida no país teria sido importada. Além disso, essa tese encontra amparo na Lei 10.711, que regula a importação de sementes e mudas. Nela se percebe que a importação de mudas e sementes não é simplesmente permitida, tendo em vista que depende de autorização e de um procedimento específico, além disso, particulares não podem importar, somente aqueles que são cadastrados no sistema.

OS DISCURSOS PENAIS E O RISCO

Retomamos, neste ponto, um texto de Maurício Fiore que tem por objetivo problematizar as percepções do saber médico em relação ao que seria o risco associado ao consumo de drogas. A questão central gira em torno do fato de que os saberes “são regimes de verdade, e os saberes médicos se edificaram sob o terreno movediço das verdades a respeito da vida e da morte, do normal e, principalmente, do patológico”. (2008, p. 142). Dessa maneira, ele busca entender o que os saberes médicos problematizam, e o que seria normal ou patológico nesse sentido e afirma em sua conclusão:

Essa é a tarefa que esse artigo se propõe em seu trecho final: discutir como a utilização do conceito de risco no caso do consumo de “drogas” está necessariamente relacionada a determinações específicas que são, na maior parte das vezes, pouco levadas em conta no debate.

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8 Assim, está aberto um campo potencial de debate capaz de suportar tanto falas que desenhem uma espécie de “rankeamento” de riscos entre diversas substâncias (cocaína encadeia mais risco de dependência do que maconha, por exemplo) quanto a contraposição de riscos envolvidos em diferentes comportamentos, como aqueles que foram apontados na passagem cotidiana no início desse artigo: o anti-tabagista mobilizando dados que comprovam as conseqüências negativas do consumo de cigarro, ao que me contraponho apontando os riscos de uma alimentação rica em gordura e açúcares (FIORE, 2008, p. 150)

A essas ponderações acrescentamos a discussão acerca dos saberes jurídicos. Compreendendo-o enquanto um campo de disputa de saberes, em que também são constituídos “rankeamentos” não somente de risco entre substâncias distintas, mas entre condutas, que neste caso, dizem respeito também a uma substância específica: a semente de maconha e o que ela representa enquanto potencialidade de droga.

Além disso, acreditamos que é interessante pensar que na situação descrita nesse trabalho, há atores que são impositores de regras e classificam condutas como desviantes ou não, e que mesmo partindo de um mesmo órgão, são diferentes percepções sobre o desvio. Citamos, nesse sentido, Becker quando ele diz que “se um dado ato é desviante ou não, depende em parte da natureza do ato (isto é, se ele viola ou não alguma regra) e em parte do que outras pessoas fazem acerca dele”. (2008, p. 26)

Nesse sentido, esses “rankeamentos” são avaliados pelos atores jurídicos, enquanto operadores do direito, que baseiam suas posições em justificativas que estão além daquilo que propõe a norma, mas também de acordo com sua significação social. Podemos citar um trecho da decisão de uma desembargadora que concordou com a rejeição da denúncia, em 1º grau, por falta de justa causa da ação penal, caracterizada pela irrelevância penal da conduta delitiva, qual seja, a importação de semente de maconha, determinando seu arquivamento: “Com efeito, a lei penal não deve ser invocada para atuar em hipóteses desprovidas de significação social, ou quando a lesão ao bem jurídico for irrelevante.” (TRF 3, RECURSO EM SENTITO ESTRITO Nº 0007841-20.2014.4.03.6181/SP, Des. Cecilia Mello, Publicado em 29.04.2015)

Para chegarmos a estas conclusões a respeito da irrelevância da persecução criminal, muitas divergências são encontradas de acordo com o que move as escolhas penais: a política criminal. Esta política se modifica de tempos em tempos, mas também é parte importante e atuante cotidianamente dentro das esferas institucionais do Direito, e claro, dentro dos gabinetes das Procuradorias.

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O crime, como colocou Becker, é aquilo que foi posto na norma penal enquanto desviante, mudando de acordo com que se modifica a norma penal, e logicamente, a política criminal. Nesta mesma linha dita Malaguti Batista, que o crime deve ser entendido como um constructo social, um dispositivo (2011, p. 21).

Ela ainda diz que a política criminal está historicamente subordinada à demanda por ordem, que é exigida pela sociedade capitalista, completando: “Nilo Batista trabalha a política criminal como o conjunto de princípios e recomendações para a reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação” (2011, p. 23). Assim, estes órgãos acabam por, ao implementar a política, também a reconfiguram de acordo com entendimentos particulares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essas pequenas descrições de práticas cotidianas do trabalho de procuradores do Ministério Público Federal, denotam a pluralidade discursiva dentro de um mesmo órgão, e, sobretudo, as diferentes percepções acerca do que é considerado como risco para a segurança pública e para o direito penal. Enquanto alguns acreditam ser crime de contrabando a importação de sementes da maconha, outros acreditam que levar isso adiante é “tocar merda”; além das outras posições já mencionadas na introdução deste trabalho.

Como já explicitado, o Ministério Público é órgão com independência funcional e jurídica garantida constitucionalmente, e seus atores devem atuar conforme, apenas, as normas jurídicas e sua própria consciência (GERALDO; BARÇANTE, 2014, p. 11), não havendo qualquer irregularidade nos entendimentos divergentes, pelo contrário, é esta abertura que garantiria o efetivo atendimento dos encargos que lhe são reservados legalmente.

Procuramos revelar aqui, por meio de descrições do que pudemos observar enquanto estagiárias de direito, que são diversos os constrangimentos que influenciam a tomada de decisões dos procuradores. Ressaltamos neste trabalho, a percepção de risco como norteador de práticas jurídicas, além da própria concepção que cada procurador tem acerca do seu ofício, o que pode ser compreendido como “sua consciência”. Para além disso, poderíamos mencionar outros constrangimentos que não chamaríamos de “consciência” e que exercem influência nas práticas cotidianas dos gabinetes: os prazos,

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a cumulação de ofício12, a fiscalização da Corregedoria, dentre outros. Entretanto, acreditamos que esses fatores não influenciavam na decisão de arquivar ou denunciar as importações de semente de maconha, mas sim outras práticas cotidianas, como o tempo levado à redação de uma peça jurídica, o rigor na correção das peças jurídicas feitas pelos estagiários ou assessores, ou, ainda, o tempo que o procurador passava em seu gabinete trabalhando.

Desta forma, acreditamos que neste pequeno trabalho algumas considerações relevantes podem ser apontadas para o estudo das práticas jurídicas na medida em que demonstra que os operadores desse sistema articulam leis e fatos às redações de suas peças de forma que estes sejam adequados às suas percepções acerca do risco a ser combatido. Não é o texto legal, tão somente, que orienta as práticas jurídicas; ao contrário, as distintas percepções sobre o risco e sobre a política criminal, que acabam por instruir os procuradores em suas condutas, sendo as leis somente um dos constrangimentos com os quais eles vão lidar (GERALDO; BARÇANTE, 2014, p. 11).

Além disso, e por fim, pensamos que estas descrições auxiliam a análise dos discursos proibicionistas vigentes em relação ao uso de substâncias tidas como drogas13, demonstrando a sua pluralidade. Por mais que essa não seja uma determinação legislativa ou administrativa, que altere o rol de substâncias permitidas ou proibidas, é importante perceber como o Poder Judiciário é demandado para se posicionar em relação à importação de semente de maconha, que pode ser entendida em um contexto mais amplo dos discursos proibicionistas. Apesar da existência de leis que ditem as regras que são comuns para todos, há uma grande maleabilidade dessas normas, produzindo diferentes discursos, conforme buscamos descrever.

12 Quando o Procurador recebe os processos que seriam distribuídos a outro, em virtude das férias ou de

licenças diversas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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