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Filosofia

em Debate

questões de ética,

educação e política

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Filosofia

em Debate

questões de ética,

educação e política

João Paulo Simões Vilas Bôas Leon Farhi Neto

Oneide Perius (orgs.)

Nefiponline Florianópolis

(6)

Núcleo de Ética e Filosofia Política Coordenador: Aylton Barbieri Durão

Vice-coordenador: Delamar J. Volpato Dutra

Campus Universitário – Trindade – Florianópolis Caixa Postal 476

Departamento de Filosofia – UFSC CEP: 88040-900

http://www.nefipo.ufsc.br/

Projeto gráfico: Daniel Schiochett Capa: Leon Farhi Neto

Foto: Alessandro Pinzani Diagramação: Daniel Schiochett

Licença de uso Creative Commons:

(7)

S

UMÁRIO

Apresentação ... 7 Nietzsche e a polêmica em torno da “grande política”:

uma questão política ou uma questão hermenêutica?

João Paulo Simões Vilas Bôas ... 9

A ação comunicativa e as variantes da educação na territorialização do poder

José Manoel Miranda de Oliveira e

Karylleila dos Santos Andrade ... 41 Jus Naturale e Lex Naturalis. O Homem e a

Legitimidade do Poder em Hobbes e Locke

José Soares das Chagas ... 61

Sobre mímesis, poética e ética em Aristóteles e Paul Ricoeur

Juliana Santana e

Marina Palmieri ... 81

A equivocidade essencial da democracia

Leon Farhi Neto... 99

Considerações sobre o Principio Responsabilidade de Hans Jonas

Luciano Gomes Brazil ... 125

Sobre o projeto de uma dialética do esclarecimento

Oneide Perius ... 149

O Comunitarismo na educação popular e suas contribuições para o fortalecimento da democracia participativa

Paulo Sérgio Gomes Soares... 173

A Constituição do Estado brasileiro na tensão entre o domínio e a direção de classe: a educação como arena ético-política

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(9)

A

PRESENTAÇÃO

A presente coletânea reúne os textos que foram apresentados e discutidos nos encontros Filosofia em debate: questões de ética, educação e política, organizados pelos professores Leon Fahri Neto e Oneide Perius, do colegiado do curso de licenciatura em Filosofia da UFT, os quais tiveram lugar nesta mesma universidade de novembro de 2014 a abril de 2015.

O principal objetivo que norteou a organização deste evento foi o de criar um espaço que oportunizasse não somente a divulgação das pesquisas já desenvolvidas por cada um dos docentes deste colegiado, mas também ― e principalmente ― a discussão coletiva de trabalhos em diversos estágios de desenvolvimento numa atmosfera de troca de ideias saudável e produtiva que contou com a participação de docentes e discentes.

Além disso, a ampla abertura propiciada pelos temas norteadores dos encontros ― ética, educação e política ― não apenas reflete a diversidade das áreas de interesse dos pesquisadores, como também permitiu que as discussões se transformassem num profícuo exercício de interdisciplinari-dade

Nossa ênfase na diferenciação entre a mera divulgação científica e a discussão coletiva das pesquisas se relaciona ao fato de que, ao invés de simplesmente estruturar um congresso para dar publicidade a resultados já prontos e acabados de pesquisas muitas vezes produzidas isoladamente, os organizadores dos encontros Filosofia em debate se preocuparam em conceber o encontro num formato que possibilitasse justamente a mútua contribuição entre especialistas,

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reforçando vínculos e fomentando a integração entre os docentes.

Numa época onde o crescente estímulo à competição quantitativa por produtividade acaba por estimular a criação de um perigoso e indesejável ambiente de compartimentalização das pesquisas acadêmicas e de acirrada rivalidade entre pesquisadores isolados, a iniciativa do colegiado de filosofia da UFT caminhou no sentido de mostrar, na prática, que uma outra postura ante o processo de produção e de divulgação do conhecimento é possível. Esperamos que este espírito de compartilhamento de ideias e de união de esforços, manifestado nesta primeira publicação conjunta do colegiado, possa continuar a render bons frutos nos anos vindouros.

Nosso agradecimento especial à equipe do Núcleo de Estudos de Filosofia Política ― NEFIPO, pelo importante apoio institucional, sem o qual esta publicação não teria sido possível.

(11)

N

IETZSCHE E A POLÊMICA EM TORNO

DA

GRANDE POLÍTICA

”:

UMA QUESTÃO POLÍTICA OU UMA

QUESTÃO HERMENÊUTICA

?

João Paulo Simões Vilas Bôas 1

I

A despeito das diversas polêmicas e do não pequeno número de incertezas que envolvem a figura de Friedrich Nietzsche — entre as quais se destaca o mistério até hoje não esclarecido acerca da real natureza da insanidade que lhe roubou os últimos onze anos de vida lúcida2 e incluem também

1 Doutorando em filosofia pela Unicamp sob orientação de Oswaldo Giacoia

Junior. Pesquisa as relações entre o pensamento de Nietzsche e o fundamentalismo.

2 O diagnóstico original da doença mental de Nietzsche ― “paralisia geral

progressiva” causada por sífilis em estado terciário ― realizado em conformidade com o paradigma médico do final do século XIX, foi e continua sendo rejeitado por inúmeros estudos embasados tanto em informações biográficas como na literatura médica. Um dos principais argumentos contra a hipótese de que a loucura de Nietzsche teria sido causada pela sífilis é o de que o tempo médio de sobrevida de um paciente nesta condição é de 3 a 5 anos, o que torna esta teoria incompatível com os 11 anos em que Nietzsche viveu na loucura. Em lugar da sífilis, a discussão passou a se concentrar em torno de algumas modalidades de doenças degenerativas do sistema nervoso, como a demência frontotemporal, o câncer no cérebro, ou ainda uma síndrome de origem genética conhecida

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a nefasta associação entre suas ideias e o nacional-socialismo — é possível afirmar, sem sombra de dúvidas, que o filósofo de Assim falou Zaratustra figura entre os pensadores mais influentes de nossa era, motivo este que torna seus escritos cada vez mais indispensáveis para a compreensão e avaliação do atual quadro político, social, técnico-científico, religioso e cultural da humanidade.

Nesse contexto, gostaríamos de chamar a atenção para o conjunto de reflexões abarcado pela expressão “grande política”, o qual vem suscitando crescente interesse por parte de pesquisadores e estudiosos das mais diversas áreas, haja vista o expressivo número de trabalhos sobre este tema que vêm sendo recentemente produzidos dentro e fora do Brasil.

O principal móbil por trás da maior parte dos recentes trabalhos que tratam da grande política está diretamente ligado à acirrada polêmica acerca de qual seria a posição política defendida por Nietzsche, polêmica essa que remonta às primeiras repercussões dos seus textos no início do século XX, quando suas ideias foram associadas ao nazismo.

Um dos acontecimentos que certamente denegriu de maneira mais marcante a imagem deste Nietzsche foi a apropriação que ideólogos do nacional-socialismo, em especial Alfred Bäumler,3 realizaram dos seus escritos no início do século XX. Tal manipulação grotesca trouxe como consequência a repugnante vinculação, ainda recorrente em alguns círculos intelectuais, mesmo nos dias atuais, entre as ideias de Nietzsche e o nazismo,4 a qual só se tornou possível devido às falsificações, deformações e recortes realizados por

como CADASIL, (Cf. HEMELSOET, D. et al. The Neurological illness of Friedrich Nietzsche. In: Acta neurologica belgica 108. 2008, p. 9-16). Além de não serem incompatíveis com a sobrevivência do filósofo alemão após o colapso mental de janeiro de 1889, as hipóteses que remetem a causa da sua insanidade a uma doença genética encontram respaldo na misteriosa morte prematura do pai de Nietzsche com 35 anos, a qual foi diagnosticada na época como “amolecimento do cérebro”. Todavia, o tema permanece controverso ainda hoje.

3 Cf. MONTINARI, Mazzino. Interpretações nazistas. In: Cadernos Nietzsche

7, São Paulo: Discurso, 1999, p. 55-77.

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Elisabeth Förster-Nietzsche, irmã do filósofo, e Heinrich Köselitz na obra extremamente problemática A Vontade de Poder ― nada além de um mosaico deliberadamente planejado por Elisabeth com o fito de fabricar a imagem de um Nietzsche sistemático e harmonizado com o Zeitgeist ufanista e racista do Império Alemão da época.5

A esse respeito, gostaríamos de deixar assente que este texto não se propõe a retomar tal questão, visto estarmos inteiramente de acordo com o ponto de vista expresso por Mazzino Montinari em seu artigo Interpretações nazistas, de que é “impossível falar seriamente, desde que se permaneça no terreno sólido da história, de uma real assimilação de Nietzsche, como ele realmente foi e pensou, por parte do nacional-socialismo”.6 Naquele texto, o autor italiano demonstra que esta aproximação só ocorreu graças aos recortes arbitrários e toscas reconstruções levadas a cabo por pseudointelectuais que nada mais eram do que burocratas às ordens do partido nazista.

Contudo, ao lado daqueles que, ignorando os fatos, ainda hoje insistem em apontar ideias protofascistas nos textos do

5 Christian Niemeyer, no verbete sobre A Vontade de Poder do Léxico de

Nietzsche, apresenta vários exemplos de como a irmã de Nietzsche procurou articular os recortes textuais desta “obra postiça” (p. 592) com trechos de cartas falsificadas para “inverter por completo” (p. 594) as intenções do irmão, apresentando sua filosofia de um modo sistemático e que não difamasse “de modo demasiadamente aberto a religião, a Igreja e o império” (p. 593). “As citações da Vontade de Poder apresentadas antecipadamente (1904) por Elisabeth também obedeciam de antemão à intenção teórico-política aqui marcada: Elisabeth queria demonstrar (...) que os livros de Nietzsche, ‘apesar da forma aforismática [...], são expressão de uma coerente visão total de mundo.’ (...) Partindo desse objetivo, Elisabeth suprimiu na sequência pensamentos de Nietzsche que eram diametralmente opostos à intenção dela, e isso em detrimento do fato de que ele havia originalmente planejado inseri-los em A Vontade de Poder, a saber, já no prólogo dessa obra.” (p. 594). A leitura do verbete também mostra como este livro estimulou decisivamente “a nazificação generalizada de Nietzsche após 1933” (p. 597). Cf. NIEMEYER, Christian. WM: A Vontade de Poder In: NIEMEYER, Christian. (Org.) Léxico de Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2014. p. 591-597.

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pensador alemão,7 o século XX também assistiu ao surgimento de diversas leituras a respeito da política em Nietzsche, tão numerosas quanto divergentes entre si. Alguns intérpretes, como Adorno, ressaltaram o potencial emancipador da crítica à moral levada a cabo pelo filósofo, aproximando-o de uma vertente de esquerda,8 já outros entenderam a política nietzscheana em estreita associação com o anarquismo individualista de Max Stirner.9 Não faltaram inclusive interpretações que caminharam na direção oposta, buscando justamente negar qualquer intenção propriamente política nos textos de Nietzsche, como é o caso do principal tradutor das obras de Nietzsche nos EUA, Walter Kaufmann, que argumenta que o motivo condutor fundamental do trabalho de

7 Mesmo depois de décadas do desmascaramento definitivo d’A Vontade de

Poder, vez ou outra ainda surgem trabalhos que insistem em associar diretamente as ideias de Nietzsche com o nazismo, como, por exemplo, LIVERI, Giuseppe Turco. Nietzsche e Spinoza. Ricostruzione

filosofico-storica di un „incontro“ impossibile. Roma: Armando

Editore, 2003.

8 A esse respeito, chamamos a atenção para a reconhecida influência de

Nietzsche nas reflexões de Theodor Adorno. Cf. ADORNO, Theodor.

Mínima moralia. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988.

9 As discussões sobre a relação entre Nietzsche e Max Stirner iniciaram-se

ainda durante os anos de invalidez mental do filósofo (Cf. HARTMANN, Eduard von. Nietzsches ‘neue Moral’. In: Ethische Studien. Leipzig, 1898. p. 34-69; p. 61. apud RAHDEN, Wolfert von. Eduard von Hartmann ‚und’ Nietzsche. Zur Strategie der verzögerten Konterkritik Hartmanns an Nietzsche. In:

Nietzsche-Studien. Berlim: Walter de Gruyter, 1984, p. 481-502. (Vol. 13).

Aqui, p. 484.) e se estendem ao longo do século XX (Cf. DELEUZE, Gilles.

Nietzsche e a Filosofia. Trad. Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes

Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 74-75). A seguinte observação de Robert C. Holub ajuda a esclarecer o motivo da popularidade de Nietzsche entre os anarquistas: “O motivo pelo qual a conexão anarquista com Nietzsche recebeu menção mais proeminente foi simplesmente porque havia várias conexões temáticas entre Nietzsche e a tradição anarquista, especialmente a tradição alemã associada com Max Stirner. Ainda durante a vida de Nietzsche houve especulação que ele havia sido influenciado pelo autor de O Único e sua propriedade”. HOLUB, Robert C. Nietzsche: Socialist, Anarchist, Feminist. In: TATLOCK, Lynne; ERLIN, Matt. German Culture

in nineteenth-century America: reception, adaptation, transformation.

Nova Iorque: Camden House, 2005. p. 139. Obs.: Exceto quando o tradutor for mencionado, todas as traduções de obras em inglês e em alemão são de minha própria autoria.

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Nietzsche seria “o tema do indivíduo antipolítico que procura o autoaperfeiçoamento à distância do mundo moderno”.10

A conclusão da publicação, em 1980, da primeira versão da edição crítica dos textos de Nietsche — trabalho iniciado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari na década de 60 e que se encontra em curso até os dias de hoje — lançou novas luzes sobre as abordagens políticas da obra do filósofo de Naumburg na medida em que não apenas comprovou de uma vez por todas que A Vontade de Poder se tratava de fato de uma falsificação sem qualquer credibilidade filosófica, como também revelou que os últimos fragmentos redigidos por Nietzsche tratam do tema da grande política.

Tal expressão ocorre apenas 20 vezes ao longo de toda a obra do filósofo, e, em cerca de metade delas, foi empregada para indicar uma reflexão que se estrutura como uma resposta às práticas políticas vigentes na época do filósofo, em especial na Alemanha recém-unificada. Apesar do número de ocorrências desta expressão ser relativamente pequeno, a investigação sobre o seu sentido alcançou grande importância depois da descoberta de que os fragmentos redigidos no período imediatamente anterior à ocorrência do colapso mental do pensador, na virada do ano de 1888 para 1889, tratam justamente da grande política. Isto fez com que ela passasse a ser considerada como a culminação de suas reflexões sobre a política, e desde então o número de trabalhos sobre este tema só tem crescido.

Todavia, não foi somente a investigação sobre o significado da expressão grande política que alcançou destaque nas pesquisas da atualidade. A despeito de ter sido reivindicado no passado, ora pela extrema direita, ora pela esquerda ou em defesa de um anarquismo individualista radical, é certo que

10 KAUFMANN, Walter. Nietzsche. Philosopher, Psychologist, and

Antichrist. Nova Jersey: Princeton University Press, 1974, p. 418 apud

ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche contra Rousseau. A study of

Nietzsche’s moral and political thought. Cambridge: Cambridge

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Nietzsche se consolidou como uma das principais, senão obrigatórias, referências para as reflexões políticas do presente. As três últimas décadas foram particularmente fecundas no que diz respeito ao surgimento de novas abordagens de Nietzsche a partir de um viés predominantemente político, sendo que suas ideias se tornaram objeto de estudo mesmo naqueles âmbitos cujas preocupações destoam abertamente dos objetivos e interesses do pensador, onde sua presença aparentemente pareceria absolutamente improvável, como por exemplo, Nietzsche sendo tomado em suporte do feminismo,11 da democracia pós-moderna ou “democracia radical”12 ou então em defesa dos interesses das minorias historicamente oprimidas.13

Neste amplo panorama de trabalhos interpretativos sobre o pensamento político de Nietzsche,14 destaca-se uma vertente de leitura surgida predominantemente entre intérpretes de língua inglesa que entende a grande política como a defesa de uma política aristocrática radical de cunho maquiavelista e escravagista e que tem entre seus mais conhecidos defensores Keith Ansell-Pearson, Don Dombowsky e Fredrick Appel.15

11 Cf. ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político:

uma introdução. Trad. Mauro Gama, Cláudia Martinelli. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1997, especialmente o capítulo intitulado Nietzsche e o feminismo p. 194-213 e também OTTMANN, Henning. Philosophie und Politik bei

Nietszche. Berlim: Walter de Gruyter, 1999, p. 454-461.

12 Cf. OTTMANN, Henning. Op. cit. p. 419-469. O anexo Nietzsches politische

Philosophie in der philosophischen und politischen Diskussion der Gegenwart, incluído na segunda edição deste livro, traz uma série de resenhas críticas das principais obras que representam cada uma destas novas “vertentes” interpretativas da política em Nietzsche.

13 Cf. OTTMANN, Henning. Op. cit. p. 462-466.

14 Cf. SIEMENS, Herman. Nietzsche’s Political Philosophy. A review of recent

literature, in: Nietzsche-Studien. Berlim: Walter de Gruyter, 2001, p. 509-526, (Vol 30).

15 APPEL, Fredrick. Nietzsche contra Democracy. Ithaca: Cornell

University Press, 1999. ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche contra

Rousseau. ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução e DOMBOWSKY, Don. Nietzsche’s Machiavellian Politics. Palgrave Macmillan, 2004. Embora afirmemos que

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De maneira sintética, a argumentação de Ansell-Pearson sobre a aristocracia escravocrata de Nietzsche afirma que, no que diz respeito à política, o pensador apoiaria abertamente o emprego da violência e a prática da escravidão por parte de uma aristocracia de homens superiores, os quais teriam a tarefa de assumir o controle de todas as forças produtivas e civilizatórias com o objetivo de criar as condições adequadas ao surgimento e cultivo de uma casta de indivíduos elevados, a qual, uma vez no poder, seria capaz de dar novos rumos à humanidade, promovendo o desenvolvimento de uma cultura superior.

Nesse sentido, o comentador inglês julga haver uma profunda cisão entre aquilo que ele denomina de “dimensão filosófica” e de “dimensão política” do pensamento de Nietzsche. A primeira delas se referiria tanto ao modo como o filósofo enuncia suas principais doutrinas — o além-do-homem, o eterno retorno e a vontade de poder — em Assim falou Zaratustra, como também às “intuições históricas de sua investigação do problema da civilização”,16 as quais incluem suas reflexões sobre o problema do niilismo europeu. Já a “dimensão política” de suas ideias compreenderia “a visão política que ele desenvolve em resposta à problemática histórica particular do niilismo”,17 isto é, a tentativa de dar às mencionadas doutrinas uma forma prática, o que foi levado a cabo em escritos posteriores.

Conquanto em Assim falou Zaratustra grande ênfase seria dada à postura de não-violência e de superação do ressentimento na afirmação do presente, Ansell-Pearson afirma que o conjunto de reflexões sobre o tema da grande política redigido a partir de Além de Bem e Mal denotaria uma posição contrária. Nesses textos de maturidade, além da presença da já mencionada apologia da violência, a afirmação do presente

tais autores advoguem uma interpretação aristocrática da política de Nietzsche, nossa assertiva deve ser tomada em um sentido amplo e geral. Justiça seja feita ao se destacar que eles não concordam inteiramente com todas as teses um do outro e que existem particularidades específicas inerentes aos trabalhos de cada um deles.

16 ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche contra Rousseau. p. 223. 17 Idem.

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acabaria ofuscada por uma proposta de sacrifício do presente em favor de uma promessa de bem futuro ― o já mencionado predomínio da casta de indivíduos elevados ―, o que não deixa de lembrar a bem-aventurança prometida pela moral cristã, tão criticada pelo pensador alemão enquanto ideologia desvalorizadora da vida.

A dimensão do destaque alcançado por esta corrente de leitura aristocrático-maquiavélica de Nietzsche pode ser avaliada pelo espaço notável que conseguiu conquistar em publicações internacionais de nível elevado.18 Particularmente no âmbito da pesquisa de Nietzsche feita no Brasil, vale observar que a publicação, em 1997, da tradução de Nietzsche como pensador político: uma introdução, de Ansell-Pearson, foi o primeiro trabalho de maior envergadura traduzido em língua portuguesa que ofereceu uma abordagem propriamente política das reflexões do filósofo alemão, sendo este um dos motivos que pautaram nossa escolha de Ansell-Pearson como interlocutor principal.

Como é possível perceber, a importância recentemente concedida à dimensão política do pensamento de Nietzsche só é superada pela diversidade e igual incompatibilidade entre as diferentes leituras acerca do que poderiam vir a ser suas ideias políticas. Mas, afinal de contas, de que tratam as passagens sobre a grande política?

II

O primeiro aspecto para o qual gostaríamos de chamar a atenção em relação às ocorrências textuais da grande política é que, ao contrário do que afirmou Ansell-Pearson,19 esta

18 Tome-se como exemplo as discussões publicadas em 2001 e 2002 no

periódico Nietzsche Studien entre Alan Schrift e Don Dombowsky e, também, deste último com Thomas H. Brobjer.

19 Em Nietzsche contra Rousseau, p. 192-193, Ansell-Pearson dá a entender de

maneira errônea que todas as reflexões nietzscheanas sobre a grande política realizadas a partir de Além de Bem e Mal se refeririam à mencionada “solução política” do filósofo para o problema da decadência dos valores do Ocidente.

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expressão não aparece nos escritos do filósofo alemão apenas depois de Assim falou Zaratustra nem tampouco foi empregada por Nietzsche em seus textos de maturidade com um único sentido. Pelo contrário, aparecendo pela primeira vez ainda em Humano, demasiado humano,20 esta temática se faz presente em vários escritos do pensador, cuja composição abarca um período que se estende de 1878 até o fim da sua vida lúcida, em janeiro de 1889.21 Em aproximadamente metade das vezes em que esta expressão aparece22 nos textos nietzscheanos, ela foi empregada no sentido de uma crítica irônica às práticas políticas vigentes na Europa do final do século XIX, em particular no recente Império Alemão, as quais, segundo o filósofo, exemplificam um modelo de política autoritária de “sangue e ferro”23 que tem como principais características o

20 HHI, 481. Todas citações das obras de Nietzsche foram referidas conforme

a lista de abreviaturas ao final do texto.

21 As passagens da obra publicada de Nietzsche onde esta expressão aparece

são: HHI, 481; A, 189; ABM, 208; ABM, 241; ABM, 254; GM, I, 8; CI, Moral como antinatureza, 3; CI, o que falta aos alemães, 3; CI, o que falta aos alemães, 4; EH, porque sou um destino, 1. Além delas, há também os seguintes fragmentos póstumos: FP 4[247] (verão de 1880); FP 32[18] (inverno de 1884/1885); FP 34[188] (abril/junho 1885); FP 35[45] (maio/julho 1885); FP 35[47] (maio/julho 1885); FP 9[121] (outono de 1887); FP 12[2] (início de 1888); FP 19[1] (setembro de 1888); FP 25[1] (dezembro de 1888/início de janeiro de 1889) e FP 25[6] (dezembro de 1888/início de janeiro de 1889).

22 Dentre as 20 ocorrências textuais desta expressão, a maioria (que inclui 6

aforismos publicados e 4 textos póstumos, escritos ao longo de um período que vai de 1878 até as suas anotações finais) se refere à crítica dirigida contra o conjunto de práticas políticas de cunho nacionalista, autoritário e militarista. Outras 3 ocorrências do espólio (datadas de 1884, 1885 e 1888) são provavelmente esquemas preparatórios de capítulos ou de textos que nunca chegaram a ser escritos. Por fim, restam 7 ocorrências (4 aforismos publicados e 3 fragmentos póstumos), redigidas entre 1886 e janeiro de 1889, nas quais esta expressão, seguramente, não foi empregada para criticar a Realpolitik do então Império Alemão e que constituem o foco das controvérsias interpretativas.

23 ABM, 254. A sentença “sangue e ferro” tornou-se conhecida como

expressão-ícone da Realpolitik após ter sido mencionada pelo então primeiro ministro Otto Von Bismarck num discurso proferido à comissão de orçamento do parlamento prussiano em 30 de setembro de 1862. No mencionado discurso, Bismarck rejeitou as exigências do parlamento por

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militarismo, o nacionalismo e o achatamento das diferenças internas em prol da busca pela supremacia sobre outras nações. Tal modelo de política é veementemente criticado por Nietzsche que, longe de entendê-la como grande, afirma, ao contrário, que ela é justamente a responsável pelo estreitamento e apequenamento do gosto e do espírito do povo alemão,24 ― daí nos referirmos ao primeiro sentido da grande política como um sentido irônico ― o que pode ser observado na seguinte passagem do Crepúsculo dos Ídolos, onde o filósofo defende a tese de que o fortalecimento do Estado corresponderia a um igual estrangulamento da cultura:

Faça-se uma estimativa: não é apenas palpável que a cultura alemã decai, também não falta razão suficiente para isso. Ninguém, afinal, pode despender mais do que tem — isso vale para indivíduos, isso vale para povos. Se se exaure no poder, na grande política, na economia, no comércio mundial, no parlamentarismo, nos interesses militares — se se entrega para esse lado o quantum de entendimento, seriedade, vontade, de auto-superação que se é, então ele faltará no outro lado. A cultura e o Estado — que não se engane sobre isso, — são antagonistas: “Estado cultural” é meramente uma ideia moderna. Um vive do outro, um prospera às custas do outro. Todas as grandes épocas da cultura são épocas politicamente decadentes: o que é grande no sentido da cultura foi apolítico, mesmo antipolítico. (...) Na história da cultura européia, o advento do “Reich” significa, antes de tudo, uma coisa: uma mudança do centro de gravidade. Já se sabe em toda parte: no principal — e isto continua sendo a cultura — os alemães já não entram mais em consideração. (...)25

reformas liberais na política prussiana e argumentou a favor de um aumento no orçamento militar, afirmando que “não é por meio de discursos e resoluções majoritárias que as grandes questões de um tempo são decididas ― este foi o grande erro de 1848 e 1849 ― mas sim por meio de ferro e sangue”. O texto original do discurso, do qual foi extraído o trecho citado, encontra-se livremente disponível para consulta online no endereço eletrônico German History in Documents and Images http://germanhistorydocs.ghi-dc.org/sub_document.cfm?docu

ment_id=250&language=german. Acessado em 20/04/2015.

24 ABM, 241. Cf. também GC, 377. 25 CI, O que falta aos alemães, 4.

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Esta grande política nacionalista e militarista revela-se, na verdade, como uma “pequena política”26 justamente porque impede o desenvolvimento das potencialidades culturais de um povo, que, como o próprio filósofo deixou claro, é “o principal”. Na medida em que um Estado se propõe a absorver e direcionar todos os recursos à sua disposição com vistas a assegurar para si “uma voz decisiva entre os Estados mais poderosos”,27 sua população automaticamente passa a ser considerada como matéria-prima a ser empregada e ― como a história do século XX mostrou de modo a não deixar dúvidas, até mesmo sacrificada — de maneira cuidadosamente planejada e calculada com vistas a maximizar a efetivação da utopia da “Alemanha, Alemanha acima de tudo”.28

Esta pequena política se estrutura sobre duas características principais, a saber: em primeiro lugar o cultivo de um fervor nacionalista hostil, ou então o apelo a algum chauvinismo racial ou religioso29 (ou a qualquer outra forma de separação arbitrária entre seres humanos que se possa conceber), que tem por objetivo estabelecer e consolidar uma diferenciação entre “nós” e os “outros”, cujo exemplo claro Nietzsche pôde testemunhar no crescimento do nacionalismo na Europa do fim do século XIX, referido por ele como a “doença e insensatez mais contrária à cultura que existe (...) essa névrose nationale [neurose nacional], da qual a Europa está

26 ABM, 208, GC, 377. 27 HHI, 481.

28 Primeira estrofe da Deutschlandlied ― Canção da Alemanha ― composta em

1848 e que, após a unificação de 1871, tornou-se uma das músicas patrióticas mais comuns no Império Alemão. Nietzsche menciona esse verso diversas vezes sempre em tom de crítica ao nacionalismo germânico. Cf. GC, 357, GM 3, 26, EH, O Caso Wagner, 2 e também os seguintes textos póstumos: FP 25[248] (primavera de 1884), FP 25[251] (primavera de 1884), FP 1[195] (inverno de 1885 – primavera de 1886) e FP 2[10] (inverno de 1885 – inverno de 1886).

29 Cf., por exemplo, ABM, 241; ABM, 254; CI, o que falta aos alemães, 3 e FP

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doente”30 e que tem por consequência direta a “proliferação de pequenos Estados na Europa, da pequena política”.31

À exaltação dos nacionalismos imperialistas — que faz com que as nações européias, em especial a Alemanha, se ocupem de supervalorizar o nacional e apontar as armas para o estrangeiro — soma-se também uma segunda característica: o cultivo de uma ideologia gregária, que afirma que a existência humana só realizaria plenamente seu sentido a partir do momento em que conseguisse integrar-se num todo maior32 o que, no contexto da Alemanha, seria simbolizado pela grandeza e glória do Reich — e que, com isso, oferece suporte aos processos de massificação indispensáveis à efetivação deste tipo de política.

Tal é o desprezo do filósofo alemão por esta pequena política, a qual “torna monótono o espírito alemão na medida em que o torna enfatuado”,33 por essa “mentirosa auto-admiração racial e indecência que atualmente se ostenta na Alemanha como signo da mentalidade alemã”,34 que é justamente por oposição a ela que Nietzsche emprega a expressão grande política em seu segundo sentido, com vistas a indicar — desta vez sem ironia — qual seria de fato a sua grande política:

(...) antes o contrário seria do meu agrado — quero dizer, um crescimento tal do caráter ameaçador da Rússia, que a Europa teria de resolver tornar-se igualmente ameaçadora, a saber, adquirindo uma vontade única por meio de uma nova casta dominante sobre a Europa, uma demorada e terrível vontade própria que pudesse se colocar alvos por milênios afora: — para que finalmente chegasse a termo a longa comédia de sua divisão em pequenos Estados, e, do mesmo modo, sua multiplicidade de ambições dinásticas e democráticas. O tempo para a pequena política acabou: já o próximo século

30 EH, O Caso Wagner, 2. 31 Idem.

32 Cf. A, 189 e FP 19[1] (setembro de 1888). 33 GC, 377.

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trará a luta pelo domínio da Terra — a compulsão para a grande política”.35

Ora, se o segundo sentido atribuído à grande política foi primeiramente mencionado por Nietzsche através de uma contraposição à política chauvinista e autoritária do Império Alemão recém-unificado, é natural que surja a pergunta se isto então não significaria que o pensador apoiaria práticas políticas não autoritárias, como o liberalismo, ou ainda, se ele não seria um apologista de doutrinas libertárias, o que, se confirmado, acabaria por validar aquelas leituras que o aproximam do anarquismo.

Contudo, ao lançarmos os olhos sobre suas críticas igualmente mordazes dirigidas contra a democracia, o anarquismo e o socialismo, torna-se possível perceber que esta suspeita não procede, pois nenhuma dentre estas políticas não autoritárias encontra acolhida nas suas reflexões. Nietzsche vê as pretensões de uma sociedade igualitária (democracia) ou de uma sociedade sem conflitos (socialismo) como diferentes formas da mesma utopia gregária de “universal felicidade do rebanho em pasto verde, com segurança, ausência de perigo, satisfação e facilidade para todos”.36

(...) com ajuda de uma religião que satisfez e adulou os mais sublimes anseios do animal de rebanho, chegou-se ao ponto em que encontramos até mesmo nas instituições políticas e sociais uma expressão cada vez mais visível dessa moral: o movimento democrático constitui a herança do movimento cristão. Mas que seu ritmo ainda é vagaroso e sonolento demais para os mais impacientes, para os doentes e viciados no mencionado instinto [o instinto de rebanho - JPSVB], disso falam os uivos cada vez mais furiosos, o ranger de dentes cada vez mais escancarado dos cães anarquistas que agora rondam pelos becos da cultura européia: aparentemente em oposição aos democratas e ideólogos da revolução pacificamente trabalhadores, ainda mais aos apatetados filosofastros e adoradores da irmandade, que se denominam socialistas e querem a “sociedade livre”, mas na verdade unânimes com

35 ABM. 208. 36 ABM, 44.

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todos eles na fundamental e instintiva hostilidade contra qualquer outra forma de sociedade que não o rebanho autônomo (até chegar à própria negação do conceito de ‘senhor’ e ‘servo’ — ni dieu ni maître [nem deus nem senhor] manda uma fórmula socialista —); unânimes na resistência obstinada contra qualquer pretensão especial, qualquer direito especial e privilégio (isto quer dizer, em última instância, contra todo direito: pois quando todos são iguais, então ninguém precisa mais de ‘direitos’ —); unânimes na desconfiança contra a justiça que pune (como se ela fosse uma violação do mais fraco, uma injustiça com a consequência necessária de toda sociedade anterior —); mas do mesmo modo unânimes na religião da compaixão, na simpatia, com tudo quanto seja sentido, vivido, sofrido (abaixo até o animal, acima até ‘Deus’: — a extravagância de uma “compaixão para com Deus” é apropriada a uma época democrática —); todos juntos unânimes no grito e na impaciência da compaixão, no ódio mortal contra o sofrimento em geral, na incapacidade quase feminina de poder permanecer espectador diante dele, de poder deixar sofrer; unânimes no involuntário obscurecimento e amolecimento, sob cujo fascínio a Europa parece ameaçada por um novo budismo; unânimes na crença na moral da compaixão coletiva, como se ela fosse a moral em si, como o ápice, o cume alcançado pelos homens, a única esperança do futuro, o meio de consolo do presente, o grande resgate das culpas de outrora: — todos juntos unânimes na crença na comunidade como a salvadora, logo, no rebanho, em ‘si’...37

Se nem a política militarista do Reich, nem as políticas de orientação democrática, socialista, liberal ou anarquista parecem encontrar guarida nos textos de Nietsche, então qual poderia ser o regime político encerrado na sua proposta da grande política?

Antes de tentarmos responder a uma pergunta deste tipo, é necessário chamar a atenção para o fato de que a própria formulação de tal pergunta já pressupõe que o discurso da grande política se constituiria numa proposta política, no sentido como tradicionalmente se entende esta expressão, ou seja: uma proposta que teria a intenção de apresentar os

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princípios de um modelo organizacional de gestão estatal ou de um determinado agrupamento social.

Ora, não são poucas as passagens nas quais Nietzsche demonstra abertamente seu repúdio às soluções políticas de qualquer espécie, com destaque para o discurso Do novo Ídolo, onde o filósofo, por meio da personagem Zaratustra, descreve o Estado como “o mais frio de todos os monstros”,38 concluindo que “Lá onde cessa o Estado, somente ali começa o homem que não é superficial (...) o além-do-homem”39 e também para a seguinte passagem da terceira Consideração extemporânea:

Toda filosofia que acredita ter removido ou até mesmo solucionado, através de um acontecimento político, o problema da existência é uma filosofia de brinquedo e uma pseudofilosofia. (...). Como poderia uma invenção política bastar para fazer dos homens, de uma vez por todas, satisfeitos habitantes da Terra?40

Em se tratando especificamente do contexto da sua produção intelectual tardia, acreditamos ser possível afirmar que tal posicionamento do filósofo alemão deve-se fundamentalmente à sua compreensão de que a política, em suas variadas formas, seria uma instância derivada e subordinada à ética. Ao lado da pequena política de massas, de cunho militarista e nacionalista praticada por Bismarck na Alemanha de sua época, também as outras modalidades teóricas e práticas da política do seu tempo, como a democracia, o anarquismo e o socialismo nada mais seriam do que resultados da transposição de valores morais cristãos para o âmbito da sociedade laica.

No entender do pensador alemão, a filiação unânime das políticas contemporâneas à ideia de igualdade entre os homens e a consequente reivindicação de direitos iguais para todos — a qual tem sua origem na máxima cristã da “igualdade das almas

38 Za, Do novo Ídolo. 39 Idem.

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ante Deus”41 — só contribui para mediocrizar os seres humanos, pois nivela a todos indistintamente sob o mesmo critério e suprime a riqueza da pluralidade de diferenças, reduzindo a existência humana a uma vida cerceada dentro dos limites de uma busca anódina pelo conforto, segurança e estabilidade no interior de uma sociedade gregária na qual a força para comandar é substituída pela virtude em obedecer e se adaptar, criando uma passividade indolente diante de toda espécie de conflito, o que faz dos homens verdadeiros animais mansos e controláveis, no sentido gregário da expressão.

Estando a política, em suas variadas modalidades, ainda profundamente enraizada na moralidade cristã, não parece fazer sentido afirmar que Nietzsche tentaria efetivar seus projetos filosóficos de maturidade ― a transvaloração de todos os valores, a superação do niilismo, o cultivo do além-do-homem, etc. ― com uma proposta política.

Contudo, nem a implacável crítica do filósofo às práticas políticas do seu tempo nem sua visível descrença diante da política parecem ser motivos suficientes para que Ansell-Pearson deixe de considerar que a solução nietzscheana se situaria numa dimensão política. Como é possível entender isso?

III

O argumento central que sustenta a tese de Pearson — e também de outros autores que igualmente entendem Nietzsche como apologista de uma aristocracia em moldes escravocratas e maquiavélicos — é que, a despeito do repúdio do filósofo alemão à democracia, ao socialismo, ao anarquismo e ao regime monárquico do Império Alemão, ele não deixou registrada nenhuma crítica direcionada especificamente aos regimes de governo aristocráticos. Pelo contrário, o que se observa ao longo de toda a obra nietzscheana, em especial os escritos de maturidade, são asserções positivas sobre a aristocracia e sobre

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uma classe de homens nobres e destacados que estaria por vir, com destaque para as passagens d’O Anticristo nas quais o filósofo se refere de maneira elogiosa à obra Leis de Manu42 e ao modelo de sociedade indiana hierarquizada e dividida em castas.

Tomando por base as mencionadas passagens e também levando em consideração o tom claramente não universal, antidemocrático e elitista dos escritos do filósofo alemão, tais comentadores julgam-se justificados em considerar que as diretrizes das Leis de Manu representariam para Nietzsche o ideal para uma sociedade forte, capaz de efetivar o “domínio sobre a Terra como meio para a produção de um tipo elevado”.43

Tal consideração traz como consequência que as mencionadas críticas nietzscheanas à política não se direcionariam contra toda e qualquer tentativa de resolver o problema da crise dos valores do Ocidente apelando para recursos e técnicas de natureza político-administrativa, mas, unicamente, contra aquelas formas de governo que teriam por base valores cristãos. Por conseguinte, passagens como a da terceira Consideração Extemporânea citada anteriormente — que à primeira vista se referem à política como um todo — deveriam, no entender de Ansell-Pearson, ter sua abrangência relativizada.

Todavia, uma análise minuciosa do contexto formado pelas anotações que remontam à época da recepção nietzscheana do pensamento hindu e também dos textos preparatórios para o que mais tarde viria a se constituir como o livro O Anticristo acaba por revelar que a tese de que a sociedade de castas indiana poderia ser considerada como uma espécie de ideal político para o filósofo alemão não apenas

42 As referências de Nietzsche a este código de leis que contém os princípios

ordenadores da sociedade de castas indiana estão presentes em AC, 56-58 e, com menor destaque, também em CI, Os melhoradores da humanidade, 3 e 4.

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carece de respaldo textual como também suscita enormes dificuldades teóricas.

Diante do manifesto desprezo de Nietzsche contra a classe sacerdotal, como acreditar que ele poderia ser favorável a um regime político no qual ela ocupa precisamente a posição mais elevada? E ainda, em vista das diversas passagens nas quais o filósofo de Naumburg se expressa de maneira inegável no sentido de repudiar, de maneira veemente, toda tentativa de buscar um fundamento ou de remeter o sentido da existência a algo que esteja para além dela,44 como explicar que a sociedade de castas indiana, que se apóia justamente sobre uma “mentira sagrada”,45 poderia ser tomada como seu ideal político?

A resposta oferecida por Ansell-Pearson a estas dificuldades — quando ele simplesmente conclui que a formulação da grande política seria um indicativo de que o pensador alemão teria sucumbido ao ressentimento e ao espírito de vingança no período posterior a Assim falou

44 Restringindo-nos apenas ao contexto d’O Anticristo, destacamos o aforismo

15 desta obra: “No cristianismo, nem a moral nem a religião tocam com qualquer ponto da realidade. Nada além de causas imaginárias (“Deus”, “alma”, “eu”, “espírito”, “o livre-arbítrio” — ou também “o arbítrio não-livre”); nada além de efeitos imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “castigo”, “perdão dos pecados”). Uma relação entre seres imaginários (“Deus”, “espíritos”, “almas”); uma ciência natural imaginária (antropocêntrica; completa ausência do conceito de causas naturais), uma psicologia imaginária (nada além de autoequívocos, interpretações de sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis — dos estados do nervus sympathicus, por exemplo — com ajuda da linguagem de sinais da idiossincrasia moral-religiosa — “arrependimento”, “remorso”, “tentação do Demônio”, “a proximidade de Deus”); uma teleologia imaginária (“o reino de Deus”, “o Juízo Final”, “a vida eterna”). — Esse mundo de pura ficção diferencia-se do mundo dos sonhos, para sua grande desvantagem, pelo fato de esse último refletir a realidade, enquanto aquele falseia, desvaloriza e nega a realidade. (...) — todo mundo fictício tem sua raiz no ódio contra o natural (— a realidade! —), ele é a expressão de um profundo mal-estar com o real... Mas com isso tudo é esclarecido. Quem tem motivos para furtar-se mendazmente à realidade? Quem com ela sofre. Mas sofrer com a realidade quer dizer ser uma realidade malograda... A sobrecarga de sentimentos de desprazer sobre os sentimentos de prazer é a causa de toda moral e religião fictícias: mas uma tal sobrecarga dá a fórmula para décadence...” AC, 15.

45 AC, 57. Nietzsche também registra esta expressão no FP 15[45] (Primavera

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Zaratustra46 — nos parece situar-se muito mais no âmbito de um psicologismo do que num argumento propriamente dito.

Ao expressar tal conclusão, o autor inglês deixa subentendido que, para o Nietzsche maduro, mais importante seria dar vazão ao seu próprio ressentimento — consequência da sua condição mental doentia — na forma do anúncio da grande política, ainda que isto, na medida em que se contraporia frontalmente a algumas ideias fundamentais que ele desenvolveu e advogou ao longo de toda sua vida intelectual, viesse a colocar por terra todo o seu esforço em rejeitar qualquer tipo de redenção consoladora para o problema da crise moral do Ocidente.

A nosso ver, o mero recurso a uma conclusão psicologizante47 deste tipo é absolutamente insuficiente para dar conta, de maneira adequada e satisfatória, dos problemas suscitados pela interpretação do autor inglês, pois este tipo de argumento se apoia num pressuposto dificilmente corroborável, a saber: a supervalorização da suposta condição psicopatológica do filósofo em detrimento do compromisso com seu trabalho reflexivo, desenvolvido à custa de muito esforço durante a maior parte de sua vida, esforço este do qual o §6 do capítulo “Por que sou tão sábio”, de Ecce homo, é um claro exemplo:

(...) Quem conhece a seriedade com a qual minha filosofia assumiu a luta contra os sentimentos de vingança e de rancor, até ao interior da doutrina do “livre-arbítrio” — a luta com o

46 Cf. ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche contra Rousseau. p. 161 e p.

192-193.

47 Em vista do grande esforço de Nietzsche em demolir a crença na separação

entre autor e obra, seria no mínimo ingênuo acreditar que a mencionada conclusão de Ansell-Pearson se referiria apenas à obra filosófica e não ao seu autor. Tome-se como exemplo o seguinte trecho de ABM, 6: “Gradualmente foi se revelando a mim o que toda grande filosofia foi até o momento, a saber: a autoconfissão de seu autor e uma espécie de mémoires [memórias] indesejadas e inobservadas. Da mesma forma, as intenções morais (ou imorais) de toda filosofia constituíam o próprio gérmen vital a partir do qual a planta inteira sempre cresceu. De fato, para esclarecer como propriamente surgiram as mais remotas asserções metafísicas de um filósofo, é bom (e sábio) se perguntar antes de tudo: a que moral quer isto (quer ele ―) chegar?”

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cristianismo é apenas um caso particular dela — compreenderá por que apresento justamente aqui meu comportamento pessoal, minha segurança instintiva na prática. Nas épocas de décadence eu os proibi a mim como prejudiciais; tão logo a vida era novamente rica e orgulhosa o bastante para eles, eu os proibi como inferiores a mim.(...)48

Nesse sentido, entendemos que o recurso ao psicologismo como solução deus ex machina rápida e definitiva para toda e qualquer dificuldade suscitada por uma determinada interpretação do pensamento de Nietzsche mostra-se antes como um desvio diante do problema do que como seu enfrentamento propriamente dito, pois retira toda a responsabilidade do comentador pelas dificuldades advindas de sua leitura e lança-a, sem maiores justificativas, sobre os ombros do próprio filósofo.

É curioso notar que, em vista do fato de Nietzsche haver encerrado sua vida intelectual de maneira abrupta devido a um colapso mental, cuja causa e circunstâncias até hoje

permanecem incertas, o recurso ao fator

psicológico/patológico para explicar ou justificar eventuais contradições ou excentricidades no seu pensamento foi e lamentavelmente ainda é empregado por alguns comentadores como uma espécie de último recurso que tem em vista soterrar qualquer problema mais desafiador ou então oferecer uma resposta rápida para alguma dificuldade indesejada. A esse respeito, fazemos nossas as linhas de um artigo de Werner Stegmaier que analisa justamente um dos aforismos mais explosivos quanto ao estilo e mais desmedidos quanto às pretensões, — o §1 do capítulo “Por que sou um destino”, de Ecce homo —, o qual também é uma das passagens mais frequentemente tachadas de “megalomaníaca” ou “delirante” de Nietzsche:

As pessoas tomam-se a si próprias como critério para demarcar o que em Nietzsche pode valer como aceitável, presunçoso e megalomaníaco, e colocam sua loucura no

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momento onde elas não mais o compreendem, não mais o suportam — isso pode começar já n’O Nascimento da Tragédia e vai se aproximando cada vez mais, em Assim falou Zaratustra, em Para a Genealogia da Moral, no Crepúsculo dos Ídolos e em Ecce homo e O Anticristo. Mas o próprio Nietzsche mediu “a fortaleza de um espírito [...] pelo quanto de ‘verdade’ ele ainda suportasse, ou, mais claramente, pelo grau em que ele necessitasse vê-la diluída, edulcorada, encoberta, amolecida, falseada” (Além de Bem e Mal, §39) — e igualmente a sua “verdade”.49

Faz-se necessário ressaltar, entretanto, que ao criticarmos a fragilidade da leitura de Pearson em apresentar uma resposta satisfatória para as contradições entre o que ele afirma ser o pensamento político de Nietzsche e algumas ideias básicas defendidas pelo pensador alemão, isto não significa, de maneira alguma, que estaríamos pressupondo que as ideias deste filósofo estariam (ou deveriam ser) isentas de quaisquer contradições, paradoxos ou problemas. Tampouco trata-se de alguma tentativa de salvar a imagem do autor de Assim falou Zaratustra ou defender a coerência interna de um suposto sistema de pensamento nietzscheano contra as críticas que lhe foram lançadas, visto que tal empreendimento, além de atoleimado, seria completamente inútil, pois as ideias filosóficas de quem quer que seja não se enquadram na categoria das coisas que precisam de alguma forma ser defendidas por algum advogado para que possam continuar mantendo sua validade.

O florescimento de um determinado conjunto de reflexões filosóficas e sua posterior influência e repercussão nos mais diversos âmbitos de uma cultura e de uma sociedade ou, pelo contrário, a perda da relevância, o abandono e o posterior obscurecimento de um sistema de ideias não são ocorrências que dependam da quantidade de elogios ou de críticas que a eles sejam dirigidos. Prova disso é o fato de que

49 STEGMAIER, Werner. Nietzsche como destino da filosofia e da humanidade?

Interpretação contextual do §1 do capítulo “Por que sou um destino”, de Ecce homo. In:

Trans/Form/Ação. Marília: Universidade Estadual Paulista, Depto de

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uma parcela significativa dos pensadores mais importantes da tradição filosófica encontraram pouco ou nenhum eco para suas reflexões enquanto estavam vivos e o valor de seus escritos só veio a ser reconhecido postumamente. Da mesma forma, não foram poucos aqueles que, tendo obtido grande projeção e destaque intelectual durante a vida, caíram no mais completo esquecimento tão logo faleceram.

IV

Diante da importância ressaltada diversas vezes por Nietzsche acerca do modo como ele esperava que seus escritos fossem lidos50, e ainda, tendo em vista o fato de que suas reflexões sobre a política, talvez mais do que qualquer outra temática, estiveram (e ainda estão) profundamente envolvidas em polêmicas e disputas acirradas ao longo da história da repercussão do seu pensamento, suscitando leituras as mais diversas e muitas vezes incompatíveis entre si, julgamos que um fator adicional que depõe contra o tipo de interpretação sustentada por Ansell-Pearson é a ausência de um posicionamento claro no que diz respeito a uma metodologia de trabalho que dê conta de tratar com as particularidades do estilo e das intenções do pensador alemão ao escrever, bem como das consequências que isso acarreta no modo como se deve proceder no trato com seus textos, visto que uma discussão sobre critérios de leitura é absolutamente indispensável em se tratando da grande política.

As particularidades que caracterizam os textos de Nietzsche saltam aos olhos de qualquer leitor que se depare com seu estilo irônico, polêmico e deliberadamente desprovido de ordenação nos moldes dos textos argumentativos tradicionais. Por meio de uma linguagem aforística explosiva, o filósofo alemão torna manifesta sua inequívoca rejeição por

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toda forma de sistematicidade,51 oferecendo a seus leitores um texto carente tanto de conclusões claras como também de uma terminologia unívoca.

Ao falarmos da ausência de uma terminologia unívoca em Nietzsche, queremos dizer que uma mesma palavra ou expressão assume diferentes significados conforme o contexto em que está inserida, sendo que, algumas vezes, estes sentidos diferentes atribuídos a um mesmo termo sequer são compatíveis entre si. Isto é válido, inclusive, para as ideias que são tradicionalmente consideradas como os conceitos principais de seu pensamento, como o além-do-homem, a vontade de poder, o eterno retorno, o niilismo, a grande política, etc.52

É impossível tratar da multivocidade de sentidos dos conceitos em Nietzsche sem se referir à palavra alemã Spielraum — que traduzimos por margem de manobra —, empregada pelo filósofo para indicar uma condição de mobilidade semântica na qual uma mesma palavra pode, sob determinadas condições, ser compreendida de maneiras diferentes, o que torna impossível sua fixação num sentido definitivo. Dentre as passagens nas quais o filósofo a empregou, destacamos o aforismo 27 de Além de Bem e Mal, onde ele declarou que sua intenção era “fazer de tudo para ser mal compreendido”,53 deixando propositalmente uma margem de manobra para mal-entendidos em seus escritos.

Se, por um lado, é notória a dificuldade em se interpretar os escritos propositalmente labirínticos e desafiadores de

51 Cf., por exemplo, o aforismo 26 do capítulo “Máximas e flechas”, do

Crepúsculo dos Ídolos: “Eu desconfio de todos os sistemáticos e desvio deles. A vontade de sistema é uma falta de probidade”.

52 Nossa afirmação pode ser confirmada não apenas pela duplicidade de

sentido da expressão grande política, mas também quando se consideram as conhecidas disputas interpretativas sobre o que viria a ser o sentido do eterno retorno ou ainda os diferentes significados assumidos pelo termo niilismo. Cf. MARTON, Scarlett. O eterno retorno do mesmo. Tese cosmológica ou imperativo ético?. In: TÜRCKE, Christoph (org.). Nietzsche, uma provocação. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1994, p. 11-32.

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Nietzsche, frutos de um estilo peculiar e bastante sedutor de escrita que mistura relatos autobiográficos, prosa, poesia, música e reflexão filosófica, e se é igualmente certo que ele escreveu de maneira proposital a suscitar mal-entendidos em seus leitores com o fito de evitar que seus textos acabassem caindo nas mãos de “algum zé qualquer”,54 por outro lado faz-se mister chamar a atenção para o fato de que isso não significa que não possam existir critérios para orientar uma apreciação filologicamente comprometida de suas obras.

Aqui é preciso não perder de vista que o filosofar em Nietzsche se deu por meio de experimentos.55 Com isso, da mesma forma como ele argumenta no aforismo 12 da segunda dissertação de Para a Genealogia da Moral a respeito das transformações sofridas pelas instituições, doutrinas, religiões, etc., entendemos que as transformações de sentido operadas em algumas ideias centrais de seu pensamento — aí também incluída a grande política — correspondem a movimentos de reinterpretação, reavaliação e transformação realizados pelo pensador com suas próprias ideias. Conduzir o pensamento e escrever por meio de tais saltos, mudanças, deixando o sentido de suas principais ideias sujeito às variações de margens de manobra — constituindo assim uma “filosofia experimental”56 —, foi a forma encontrada por ele para não permitir que suas

54 GC, 381. Contribuição para a questão da compreensibilidade: se alguém escreve, ele

não quer somente ser compreendido, mas, do mesmo modo, também não ser compreendido. Se “algum zé qualquer” (irgend jemand) considera um livro incompreensível, isso não é, de modo algum, uma objeção contra o livro: talvez exatamente isso fizesse parte da intenção do autor, ― ele não queria ser compreendido por “algum zé qualquer”. Todo espírito e gosto mais destacado, quando quer se comunicar, escolhe para si também seus ouvintes; ao escolhê-los, ele simultaneamente traça suas barreiras contra “os outros”. Todas as leis mais refinadas de um estilo têm aí sua origem: elas mantêm longe, elas criam distância, elas proíbem “a entrada”, a compreensão, como foi dito, — enquanto abrem os ouvidos àqueles que nos são aparentados pelo ouvido (...)

55 Cf. FP 7 [261] (primavera/verão de 1883), FP 16[32] (primavera/verão de

1888), FP 24[1] (outubro/novembro de 1888) e também GC, 110.

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ideias se cristalizassem em um sistema unívoco de verdades fixas e permanecessem fluidas.

(...) não há princípio mais importante para todo tipo de história do que este (...); que algo existente, que de algum modo atingiu uma posição, é sempre interpretado a partir de novos pontos de vista, novamente monopolizado, transformado e redirecionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é superior; (...) que todo acontecer no mundo orgânico é um subjugar, assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é um novo interpretar, um reajustar, por meio do qual o “sentido” e o “objetivo” anteriores precisam ser necessariamente obscurecidos ou completamente suprimidos. (...) todos os objetivos, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e gravou sobre ele o sentido de uma função; e toda a história de uma “coisa”, um órgão, um uso, pode, desse modo, ser uma contínua cadeia de signos de interpretações sempre novas e de reajustes, cujas causas não precisam estar relacionadas entre si, antes se sucedem e se substituem sob condições meramente casuais. Consequentemente, “desenvolvimento” de uma coisa, de um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a um fim, menos ainda um progressus lógico e rápido, alcançado com o menor dispêndio de força e de custos — mas sim a sucessão de processos de subjugação que nela ocorrem, mais ou menos profundos, mais ou menos independentes uns dos outros, considerados juntamente com as resistências a cada vez acionadas em sentido contrário, com as metamorfoses da forma tentadas com o objetivo de defesa e reação, e também os resultados de ações contrárias bem-sucedidas. A forma é fluida, mas o “sentido” o é ainda mais...57

Um exemplo claro de como se deram tais releituras e reinterpretações são os prólogos acrescentados por Nietzsche em 1886 à Gaia Ciência, aos dois volumes de Humano, demasiado humano e Aurora, além da “tentativa de autocrítica”, acrescentada neste mesmo ano ao Nascimento da Tragédia, e também os capítulos de Ecce homo nos quais ele comenta cada um dos seus escritos publicados até então.

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Diante da importância deste panorama de instabilidade semântica no interior da economia argumentativa nietzscheana, caberia aqui perguntar se, uma vez que o pensador alemão deixa claro que toda finalidade, utilidade e função não seriam nada mais que o resultado de uma apropriação, de uma atividade deliberada de sujeição e de transformação; e ainda, uma vez que ele próprio estruturou e expôs suas principais teses de modo a selecionar seu público de leitores, oferecendo a seus amigos — isto é, a todos aqueles que “não têm necessidade de artigos de fé extremos. Aqueles que não apenas admitem, mas amam uma boa parcela de acaso, absurdo”58 — “uma ampla margem de manobra para mal-entendidos”,59 então não seria possível afirmar que a própria tarefa de compreensão da sua obra filosófica já não seria desde sempre também uma apropriação, uma sujeição, um assenhoreamento, no qual o leitor e intérprete precisará lidar com as diferentes margens de manobra legadas pelo filósofo, movendo-se no interior delas, preenchendo-as, enfim, concedendo-lhes sentido a partir de seus próprios interesses e vivências pessoais?

Julgamos ter motivos mais que suficientes para concluir que a resposta seria afirmativa. Mas o que se poderia então concluir disso? Que toda e qualquer tese sobre Nietzsche, na medida em que corresponderia a uma ação deliberada da parte do leitor em trabalhar com as diferentes possibilidades de significado abarcadas pela fluidez dos seus conceitos, iluminando-as, valorando-as e concedendo-lhes sentido a partir de suas próprias vivências, seria válida?

Não e absolutamente não! Ao defendermos que toda leitura e tentativa de compreender o discurso de Nietzsche já implica necessariamente numa atividade da parte do leitor em trabalhar com os espaços semânticos abertos e indefinidos — as margens de manobra — deixadas propositalmente pelo filósofo, não queremos de forma alguma dizer que apenas isso bastaria. De forma alguma defendemos que, em se tratando de Nietzsche, “vale tudo”.

58 FP 5[71] (10 de junho de 1887).

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Conquanto uma interpretação que tome o sentido de termos como “política”, “aristocracia/nobreza” ou “escravo” sem levar em conta a fluidez de sentido e as margens de manobra para mal-entendidos nos parece estar irremediavelmente fadada ao fracasso, isto de modo algum quer dizer que um intérprete que tenha a pretensão de esclarecer as reflexões nietzscheanas esteja justificado ao interpretar seus conceitos de modo absolutamente livre e descompromissado. Pelo contrário, nestes casos é imprescindível uma investigação do contexto de preocupações e problemas a partir dos quais estas reflexões emergiram.

De vez que o esforço do filósofo teve por finalidade fazer com que seus conceitos se apresentassem ao leitor de maneira fluida no interior de um espaço semântico indeterminado — o que impossibilita que eles possam ter seu sentido fixado de modo unívoco e definitivo —, então a única determinação a que se pode aspirar acerca do sentido dos termos em Nietzsche é aquela que trata dos limites das margens de manobra, ou seja, da fronteira que delimita o espaço interior indeterminado da margem de manobra separando-o do âmbito semântico no qual toda tentativa de se discutir as ideias de Nietzsche fracassa por carecer de base textual.

Desse modo, pensando ainda em termos de margens de manobra, se, de um lado, não é possível apontar uma leitura verdadeira dos textos de Nietzsche — pois, como foi visto, o modo como o filósofo enuncia suas principais teses impede uma determinação absoluta do que se encontra do lado de dentro deste espaço de mobilidade semântica —, por outro, é possível apontar leituras falsas, pois o contexto no qual suas teses foram elaboradas determina um limite fora do qual já não é mais possível remeter uma ideia a Nietzsche, sob pena de se ferir a própria “honestidade intelectual”.60

À luz destas considerações metodológicas, nossa resposta ao aparente impasse envolvendo o segundo sentido da

60 Cf. CI, Incursões de um extemporâneo, 16; EH, O Caso Wagner, 2; AC, 12;

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grande política — como entender que a grande política não se constitua numa proposta política se ela é justamente apresentada como algo que se contrapõe à pequena política e, portanto, encontra-se em estreita relação com uma determinada forma de política? —, aponta para um questionamento acerca do sentido desta contraposição nietzscheana. Em outras palavras, não seria possível detectar um fator comum compartilhado por todas as políticas que são alvejadas pela crítica de Nietzsche, ao qual justamente o filósofo procura se reportar quando opõe sua grande política à pequena política, à democracia, ao socialismo, ao anarquismo, etc.?

Se a grande política não parece se enquadrar nem num anarquismo individualista ao extremo, nem numa reflexão sobre a autossuperação humana alheia à política, nem tampouco na apologia de uma aristocracia escravocrata ― se, portanto, é possível afirmar que o emprego por Nietzsche do termo política se deveu mais a uma intenção de gerar mal-entendidos e de afugentar algum leitor “zé-qualquer” do que ao propósito de lançar as bases para um sistema de organização social ― então a chave para a compreensão do sentido desta expressão parece exigir uma investigação do pano de fundo moral a partir do qual se estruturam as críticas de Nietzsche às instituições e à política ocidentais, no interior do qual o diagnóstico do problema filosófico do niilismo ocupa uma posição privilegiada.

Ora, como foi mencionado, tanto a moral cristã como as políticas dela derivadas61 se caracterizariam pela

homogeneidade de objetivos no que tange à efetivação de um processo de apequenamento, limitação e mediocrização do humano em escala planetária. Nesse contexto, entendemos que o tom estridente e polêmico com o qual Nietzsche apresenta sua grande política corresponde ao duplo caráter desta

61 “Todas as nossas teorias e constituições de Estado, sem absolutamente

excetuar o “Reich” alemão, são decorrências, consequências necessárias da decadência; o efeito inconsciente da décadence for tornado senhor até dos ideais de ciências particulares”. CI, Incursões de um extemporâneo, 37.

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Quando se faz o tingimento por estes métodos, o corante não pode ser substantivo (ter afinidade) para com a fibra, pois se for corre-se o risco da concentração do