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LOVECRAFT E O SUBLIME 1

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Academic year: 2021

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LOVECRAFT E O SUBLIME

1 João Pedro Bellas (UFF)

RESUMO

Nos estudos recentes sobre o pensamento e a ficção de H. P. Lovecraft um tema frequente diz respeito à influência que as teses do filósofo irlandês Edmund Burke acerca do sublime teriam exercido sobre o autor de Providence. Mesmo que não tenhamos nenhuma evidência de que Lovecraft tenha lido a obra de Burke, as ideias propostas no ensaio Supernatural Horror in Literature são bastante semelhantes à teoria do sublime formulada pelo filósofo em seu tratado A Philosophical Enquiry into the

Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful.

O objetivo deste trabalho, portanto, é explicitar as semelhanças entre as teses de ambos os autores, bem como mostrar como, além de endossar a teoria burkeana do sublime, Lovecraft a assimila em sua produção ficcional, fazendo dela um guia de composição.

                                                                                                                         

1 Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos para a obtenção do grau de bacharel em Filosofia,

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...1

PARTE I: HORROR CÓSMICO E O SUBLIME 1. O horror cósmico de Lovecraft...6

2. Burke e o sublime...11

3. O sublime e o medo cósmico...23

PARTE II: O SUBLIME E AS DIRETRIZES DA FICÇÃO LOVECRAFTIANA 1. O sublime em funcionamento na obra de H. P. Lovecraft...26

2. O cenário sublime de Dagon...28

3. O desconhecido em O horror de Dunwich...33

CONSIDERAÇÕES FINAIS...40

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INTRODUÇÃO

Nos estudos recentes sobre Howard Phillips Lovecraft a questão do sublime tem surgido como um tema recorrente. Tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista ficcional, a obra do escritor de Providence tem se mostrado um campo fértil para discussões acerca dessa categoria estética. Uma teoria, no entanto é privilegiada. A teoria do sublime de Edmund Burke, exposta na obra Uma investigação filosófica sobre

a origem de nossas ideias do sublime e do belo, tem-se apresentado como a mais

adequada para uma aproximação com o pensamento de Lovecraft, e isso se deve principalmente ao importante papel desempenhado pelo sentimento de terror no funcionamento do sublime.2

Ao longo de toda sua obra, seja ficcional ou sua reflexão crítica sobre a literatura, Lovecraft não oferece nenhum indício que nos permita afirmar que o autor tenha tido algum contato com a obra de Burke. No entanto, a hipótese de trabalho de um estudo que propõe uma aproximação entre a produção lovecraftiana e as teses burkeanas acerca do sublime – que, portanto, é a hipótese de trabalho desta monografia – é a de que, ao formular sua concepção do chamado “horror cósmico”, Lovecraft apresenta teses bastante afinadas com a teoria do sublime apresentada por Burke em sua

Investigação.

A formulação lovecraftiana da noção de horror cósmico se dá em um contexto bastante específico. Lovecraft, a exemplo de outros autores que também refletiram sobre o gênero de horror, se insere em uma tradição que pensa a criação literária sob uma perspectiva que privilegia os aspectos de recepção da obra. Ou seja, trata-se de um método de análise que deixa em segundo plano os aspectos formais da obra, para pensá-la em função dos efeitos que epensá-la é capaz de suscitar no leitor. Portanto, autores dessa tradição crítica, como, por exemplo, Stephen King e Edgar Allan Poe – apesar de que Poe nunca tenha refletido especificamente sobre o horror –, pensam que a obra deve ser julgada segundo apenas a produção de um determinado efeito, que no caso específico da ficção de horror é o medo. No entanto, esse tipo de reflexão aponta os objetivos da criação literária, mas não os justifica esteticamente (cf. FRANÇA, 2010, p. 73). Ao                                                                                                                          

2 A maneira como isso se dá será abordada e esclarecida no segundo item da primeira parte desta monografia.

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contrário dos outros autores dessa tradição, Lovecraft demonstra uma preocupação em buscar essa justificativa para a narrativa de horror, e o caminho para essa justificativa passa pela postulação da noção de horror cósmico.

Lovecraft oferece as bases para sua concepção de horror cósmico no ensaio, já tornado célebre pela tradição dos estudos sobre o horror, O horror sobrenatural em

literatura. O texto, uma das mais extensas reflexões sobre o horror na literatura, é

marcado por um tom combativo. Como ficará claro ao longo da minha exposição, Lovecraft, ao redigir seu ensaio, tinha completa noção de que o horror é um gênero literário que nunca gozou de pleno prestígio aos olhos da maioria. O autor, portanto, estava ciente de que se tratava de um gênero que ainda necessitava de uma justificativa e de uma “legitimação estética”, por assim dizer.

O escritor de Providence acha um meio para a legitimação da produção do medo pela literatura ao afirmar que esta é a emoção mais antiga e poderosa da humanidade e sua manifestação mais antiga e poderosa é o medo do desconhecido. Com isso, Lovecraft apresenta as bases de seu horror cósmico – que vou procurar esclarecer na primeira parte deste estudo – e fundamenta a produção do medo pela literatura segundo uma predisposição biológica inerente ao ser humano.3

As ideias apresentadas em O horror sobrenatural em literatura, no entanto, não parecem ser totalmente originais. Elas, ao contrário, parecem apresentar diversas semelhanças com as noções expostas por Edmund Burke em sua Investigação. Meu objetivo nesta monografia, portanto, é precisamente demonstrar que as teses do filósofo irlandês constituem as premissas da argumentação lovecraftiana. Desse modo, meu objetivo principal é apresentar, a partir de uma exposição minuciosa das ideias dos dois autores, as diversas relações que podem ser estabelecidas entre os pensamentos dos dois autores, mostrando de que modo se dá a influência – mesmo que implícita – das teses de Burke sobre a reflexão de Lovecraft. Disso, contudo, surge um objetivo secundário. Se, como pretendo deixar claro ao longo de minha exposição, há uma relação entre o que é apresentado por Lovecraft e a teoria do sublime de Burke, então não é absurdo afirmar que também a produção ficcional do primeiro foi influenciada pelo segundo. Por esse                                                                                                                          

3 Todos os passos da argumentação lovecraftiana serão explicados no primeiro item da primeira parte desta monografia.

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motivo, também pretendo buscar em textos ficcionais de Lovecraft possíveis relações com o que Burke apresenta em seu tratado.

Tendo em mente os dois objetivos desta monografia – isto é, demonstrar as relações existentes entre os pensamentos de Burke e Lovecraft para, num segundo momento, buscar na própria ficção lovecraftiana “vestígios” da teoria do sublime burkeana –, meu texto está dividido em duas grandes partes, a saber: (I) “Horror cósmico e o sublime” e (II) “O sublime e as diretrizes da ficção lovecraftiana”.

A primeira parte da monografia é dedicada exclusivamente à influência do pensamento de Burke sobre a reflexão crítica de Lovecraft acerca do horror. Esta parte de meu estudo está dividida em três itens: 1) “O horror cósmico de Lovecraft”; 2) “Burke e o sublime”; e 3) “O sublime e o medo cósmico”.

No item 1, procurarei apresentar minuciosamente a argumentação de Lovecraft em O horror sobrenatural em literatura. Sendo assim, no primeiro item pretendo mostrar todo o caminho percorrido por Lovecraft em direção à legitimação da narrativa sobrenatural de horror. Por isso, pretendo esclarecer o tom combativo do autor no ensaio, mostrando quais são, em sua visão, os críticos da autenticidade da ficção de horror e como Lovecraft defende o gênero dos diversos ataques que lhe são desferidos. A apresentação dessa defesa lovecraftiana do horror na literatura é necessária porque ela constitui um passo importante da formulação do chamado horror cósmico, cuja elucidação é o principal foco do item 1.

Já no segundo item, meu objetivo é apresentar detalhadamente a teoria do sublime formulada por Burke na Investigação. Minha exposição, portanto, passa por três pontos principais: (i) contextualizar a publicação do tratado de Burke, já que a mesma se dá em um período de transição do Neoclassicismo para o Romantismo, sendo a Investigação um dos textos fundamentais dessa transição justamente pela consideração burkeana acerca das categorias estéticas do belo e do sublime; (ii) apresentar a maneira peculiar como o filósofo compreende as ideias de prazer e de dor, uma vez que a distinção apresentada por Burke é um aspecto determinante para sua doutrina do sublime e do belo, e talvez o que haja de mais original em todo o tratado; e,

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por fim, (iii) explicar a teoria burkeana do sublime propriamente, mostrando o papel desempenhado pela emoção do terror para tal doutrina.

Tendo cumprido o proposto para os dois primeiros itens, no item 3 pretendo conjugar as doutrinas lovecraftiana e burkeana, para mostrar as diversas relações que podem ser traçadas entre o pensamento dos dois autores.

Já a segunda parte do meu estudo é direcionada para a ficção de Lovecraft. Nela o foco é a compreensão de como o sublime opera na prosa lovecraftiana. Para isso, selecionei duas obras, a saber, Dagon e O horror de Dunwich, para analisar e identificar as passagens que corroboram a hipótese de trabalho desta monografia. Essa segunda parte está dividida também em três itens: 1) “O sublime em funcionamento na obra de H. P. Lovecraft”; 2) “O cenário sublime de Dagon”; e 3) “O desconhecido em O horror

de Dunwich”.

O primeiro item da segunda parte é o responsável por fazer a ponte entre ela e a parte I da monografia. Nele procuro esclarecer a transposição que faço da análise dos ecos das teses de Burke na reflexão crítica de Lovecraft para a análise das manifestações do sublime na ficção lovecraftiana. Na realidade, trata-se de um dos pontos mais simples deste estudo, na medida em que visa apenas a esclarecer a conexão entre as duas grandes partes do texto.

Nos dois itens seguintes proponho uma leitura de obras ficcionais de Lovecraft à luz da teoria do sublime de Burke. A primeira análise, do conto Dagon, é focada no cenário em que se passa a narrativa. A partir da leitura de passagens selecionadas, pretendo mostrar que o cenário criado por Lovecraft conjuga diversas ideias elencadas por Burke como fontes do sublime.4 Já a leitura de O horror de Dunwich será focada estritamente na questão do desconhecido (elemento fundamental do horror cósmico) e da sugestão que, como pretendo esclarecer ao longo do meu estudo, é, segundo Burke, muito mais eficiente para a produção do sublime do que uma descrição detalhada dos objetos.

                                                                                                                         

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Portanto, com esta monografia pretendo esclarecer um aspecto bastante relevante para os estudos sobre a obra de Lovecraft, que é a relação que ela possui com os estudos sobre o sublime. Dessa forma, se os objetivos forem devidamente cumpridos, espero elucidar também uma chave de leitura para a obra lovecraftiana, que reúne muitas características pertencentes ao campo do sublime na filosofia da arte, o que deve fornecer motivos suficientes para a aceitação da ficção de Lovecraft como legítima manifestação artística.

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Parte I

HORROR CÓSMICO E O SUBLIME 1. O horror cósmico de Lovecraft

O ensaio O horror sobrenatural em literatura, de Howard Phillips Lovecraft, apresenta uma das mais extensas análises acerca do gênero do horror na literatura. O texto começou a ser elaborado em 1924, quando Lovecraft, àquela época ainda no início de sua carreira ficcional, recebe um pedido de W. Paul Cook – um amigo com quem mantinha correspondência – para redigir uma história da ficção sobrenatural que seria publicada em uma revista que Cook pretendia editar. O ensaio foi finalizado três anos depois e publicado no primeiro e único volume do periódico The Recluse. O texto então sofreu diversas revisões e sua versão definitiva só foi publicada dois anos após a morte do autor, em 1939.

A reflexão lovecraftiana, portanto, se desenvolve como uma história do horror na literatura, e conforme traça essa história o autor formula sua própria estética da ficção de horror. As bases para essa estética do horror já são apresentadas na célebre passagem que dá início ao ensaio:

A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte tipo de medo é o medo do desconhecido. Estes fatos poucos psicólogos irão contestar, e sua verdade admitida deve estabelecer para todos os tempos a genuinidade e dignidade da literatura fantástica de horror como forma literária (LOVECRAFT, 1973, p.12).5

Neste trecho, ao afirmar que o medo é a emoção mais intensa e antiga do homem, Lovecraft já deixa claro que irá fundar sua reflexão sobre bases de ordem psicológica e fisiológica. No entanto, uma questão se apresenta quando abordamos o ensaio. Por que motivo Lovecraft, em um texto cujo objetivo é traçar uma história da narrativa de horror, se vê impelido a apresentar uma estética do gênero? Essas primeiras linhas do ensaio atestam o fato de que o autor, como aponta Júlio França, estava “ciente                                                                                                                          

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da necessidade de justificar um gênero que estava – e ainda está – longe de desfrutar de uma aceitação unânime como legítima forma literária” (FRANÇA, 2010, p. 74). Por esse motivo, a primeira parte do ensaio é marcada por um tom combativo.

Almejando uma legitimação para a produção do medo pela literatura, Lovecraft identifica os adversários que visam a depreciar e deslegitimar a literatura do medo enquanto fenômeno estético. De acordo com o autor, duas são as correntes que se opõem à ficção de horror: o “materialismo” de um lado e o “idealismo” de outro. Enquanto os materialistas se pautam nas emoções corriqueiras e nos eventos externos para desqualificar o aspecto fantástico desse tipo de narrativa, os idealistas desprezam a motivação estética do horror – isto é, a produção do medo – em favor de um “didaticismo” literário que “eleve o leitor” (LOVECRAFT, 1973, p.12). Contudo, Lovecraft afirma que, apesar de nunca ter sido um gênero literário plenamente aceito, o horror, por estar ligado a uma emoção primitiva e fundamental do ser humano, não apenas sempre existiu como vinha se aprimorando:

Mas a despeito de toda sua oposição [dos materialistas e idealistas] o conto fantástico6 sobreviveu, se desenvolveu, e alcançou níveis notáveis de perfeição, fundado como é em um profundo e elementar princípio cujo apelo, se não sempre universal, deve ser incisivo e permanente nas mentes de requerida sensibilidade (Ibidem).

Lovecraft, entretanto, reconhece que, muito embora o medo seja uma emoção primitiva e quase sempre presente na mente humana, a ficção de horror demanda “um certo grau de imaginação e uma capacidade de distanciamento da vida cotidiana”, fato este que explica a razão pela qual “o apelo pelo macabro espectral é geralmente restrito” (Ibidem). Em outras palavras, o sucesso da narrativa de horror na produção dos efeitos desejados está estritamente ligado à predisposição exigida da parte do leitor. É por esse motivo, acredita Lovecraft, que as histórias de cunho mais realista sempre irão prevalecer no gosto da maioria.

Ainda que a eficácia do horror seja dependente da capacidade imaginativa do leitor, e mesmo reconhecendo que são poucos os que possuem tal capacidade, Lovecraft é categórico ao afirmar que até mesmo as mentes mais racionais possuem, ainda que em                                                                                                                          

6 No original, weird. Vale ressaltar que Lovecraft, ao utilizar o termo, tem em mente um tipo bastante específico de literatura sobrenatural. Dada a especificidade das teses lovecraftianas, o termo “fantástico” não é adequado, pois possui uma grande carga conceitual. (cf. FRANÇA, 2010, p. 79, nota 8).

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menor grau, a predisposição requerida pela ficção de horror. Isso porque – e esta é a base fundamental da estética lovecraftiana do horror – todos nós temos, segundo o autor, uma herança biológica e psicológica que pode ser avivada pela narrativa macabra:

Mas a sensibilidade está sempre conosco, e às vezes um curioso rasgo de fantasia invade um canto obscuro da cabeça mais dura; [...] Aqui está envolvido um padrão ou tradição psicológica tão real e tão profundamente enraizado na experiência mental quanto qualquer outro padrão ou tradição da humanidade; [...] uma grande parte de nossa

herança biológica mais profunda para perder sua contundência [...]

(Ibidem, p. 13. Grifo meu).

Lovecraft sustenta que essa “herança biológica” é o que proporciona o apelo do horror. O antepassado primitivo do homem tinha em seus instintos e emoções “sua resposta ao ambiente no qual se encontrava” (Ibidem). Desse modo, todos os fenômenos cujas causas ele conhecia definiam sentimentos que tinham como base ideias de prazer ou de dor, enquanto que aos acontecimentos que escapavam à sua compreensão – dentre eles o próprio universo – eram dadas interpretações maravilhosas, estando sempre presentes, nesse caso, sentimentos de medo e de terror. Por essa razão, o universo, sendo desconhecido – e, por isso, imprevisível –, se tornou para nossos antepassados uma fonte terrível tanto de benção quanto das mais horríveis calamidades.

Outro fator importante de nossa herança é o sonho, que, de acordo com Lovecraft, forneceu mais um impulso na direção da criação da noção de um mundo “irreal ou espiritual” (Ibidem). Isso, aliado às condições de vida de nossos ancestrais, constituiu a base necessária para, como observa Júlio França, “fomentar a sensação de haver um outro plano, sobrenatural, e teriam tornado o ser humano hereditariamente suscetível a todo tipo de superstições” (FRANÇA, 2010, p. 76).

Lovecraft admite que durante todo o curso da história a “zona do desconhecido” (LOVECRAFT, 1973, p. 14) foi restringida, devido, sobretudo, aos avanços da ciência moderna.7 No entanto o escritor de Providence afirma que ainda há um “reservatório infinito de mistério” (Ibidem), e mesmo os eventos que a ciência consegue explicar são

                                                                                                                         

7 Vale ressaltar que Lovecraft estava a par de todos os avanços científicos de sua época. O autor inclusive se utiliza de diversas descobertas científicas para compor elementos para suas narrativas. Um bom exemplo é a referência ao “nono planeta” em Um sussurro nas trevas, em uma época em que Plutão acabara de ser descoberto pela astronomia. Cf. BRAGA, 2012, p. 10.

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capazes de evocar nossos instintos mais primitivos, pois a mente humana está fisiologicamente ligada a tais crenças ancestrais.8

Tendo argumentado em favor das bases primitivas do medo, Lovecraft afirma que, em função desse caráter ancestral, o homem se lembraria de maneira mais vívida da dor e da ameaça de morte do que do prazer. Essa premissa – burkeana, como pretendo demonstrar mais adiante – aliada ao fato de que os aspectos positivos do desconhecido foram, segundo o autor, incorporados pelos rituais religiosos explica o motivo pelo qual seus aspectos macabros recaíram sobre o folclore popular. Isso também seria explicado pela tendência humana de associar incerteza ao perigo, o que torna o desconhecido algo perigoso. Como afirma Júlio França, “incerteza e perigo seriam os catalisadores das narrativas sobrenaturais populares. O desconhecido representaria uma fonte constante de possibilidades perigosas e malévolas” (FRANÇA, 2010, p. 78). Para Lovecraft, portanto, o fascínio pela ficção de horror e a efetividade do gênero se devem a essa predominância na mente humana das ideias de dor e do risco de morte, o que colabora para a perpetuação da literatura do medo. Como afirma o autor:

Quando a este sentimento de medo e maldade é superadicionado o fascínio de espanto e curiosidade, nasce um corpo composto de emoção intensa e provocação imaginativa cuja vitalidade deve por necessidade durar tanto quanto a própria raça humana (LOVECRAFT, 1973, p.14).

É preciso observar, porém, que Lovecraft privilegia um tipo específico de ficção de horror, a “literatura de medo cósmico”, que apesar de apresentar similaridades externas com a literatura do simples medo físico, possui traços psicológicos bem distintos (Ibidem, p. 15). O sentimento de horror cósmico pode ser definido como aquele “medo e temor que sentimos quando confrontados por fenômenos além de nossa compreensão, cujo escopo se estende para além do campo restrito dos assuntos humanos e se vangloria da significância cósmica” (RALICKAS, 2007, p. 364). O autor entende a ficção que gira em torno do desconhecido como esteticamente superior – e por isso mais legítimo – e capaz de suscitar no leitor o medo cósmico em seu sentido puro. Por esse motivo, o escritor de Providence afirma que “o critério final de autenticidade [da ficção de horror] não é o desenrolar de um enredo, mas a criação de uma determinada                                                                                                                          

8 Vale dizer que a reflexão lovecraftiana acerca do aspecto primitivo do medo é bastante semelhante à análise de Freud sobre o medo na estética. Para essa questão, cf. FRANÇA, 2010 pp.76-78.

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sensação” (Ibidem, p.16).9 Nesse ponto, Lovecraft deixa explícita a sua posição de que o foco de uma análise estética deve recair sobre a recepção da obra, como observa Júlio França:

Os aspectos do processo literário relacionados aos propósitos do autor e aos traços formais da narrativa são colocados em segundo plano, diante do que Lovecraft considera ser o teste definitivo da narrativa de horror cósmico: saber se ela provoca ou não, no leitor, uma sensação profunda de pavor diante do contato com aquilo que é desconhecido (FRANÇA, 2010, p. 8).

Lovecraft, portanto, fundamenta o chamado “horror cósmico” com base em uma herança biológica do ser humano. No entanto, as principais premissas das teses do autor – tais como o caráter primitivo do medo e a predominância da ideia de dor na mente – não são completamente originais em seu pensamento. A reflexão lovecraftiana parece assemelhar-se à teoria do sublime exposta dois séculos antes por Edmund Burke na obra

Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. No

entanto, ao longo de todo o ensaio, Lovecraft não faz nenhuma menção às teses burkeanas, o que torna difícil falar em uma influência de Burke sobre o criador de Cthulhu, já que não sabemos nem sequer se o último leu a obra do primeiro. Portanto, uma apresentação minuciosa das teses burkeanas se faz necessária para que possamos afirmar com certeza que elas constituem uma referência teórica importante – ainda que implícita – para as reflexões de Lovecraft.

                                                                                                                         

9 Lovecraft chega a afirmar que muitas vezes apenas fragmentos de uma obra são capazes de criar uma atmosfera propícia à produção do medo cósmico, e que isso pode acontecer independentemente da intenção do autor.

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2. Burke e o sublime

O primeiro tratado sobre o sublime que chegou até nós é o Peri Hypsous, de Longino.10 Antes um texto de retórica do que propriamente de estética, o Peri Hypsous aborda um dos estilos da retórica clássica. O estilo sublime no discurso de um orador é o elemento capaz de despertar no espectador uma sensação ao mesmo tempo de êxtase e de impotência, possibilitando assim que o público seja arrebatado. O tratado ganhou maior popularidade depois que Boileau, em 1674, publicou sua tradução francesa da obra, a primeira para o vernáculo. A importância de Boileau para a história do sublime, entretanto, não se resume à sua tradução do Peri Hypsous. O pensador publicou junto à tradução um pequeno prefácio, onde distingue o estilo sublime de um conteúdo sublime, que já pode ser entendido como a própria categoria estética. Boileau entende que esse conteúdo se configura como o maravilhoso, responsável por elevar, arrebatar e transportar [enlève, ravit, transporte] o espectador. O prefácio de Boileau tornou possível uma análise do sublime fora do âmbito da retórica e influenciou boa parte das abordagens do tema na primeira metade do século XVIII. Contudo, como observa Samuel Monk, todas essas abordagens remetem de algum modo ao Peri Hypsous:

Mas embora seu método [o método dos pensadores da primeira metade do século XVIII] seja diferente daquele de Longino, quase todas as suas ideias podem ser traçadas ao Peri Hypsous. O espanto que o sublime desperta, a expansão e elevação da alma quando posta frente a frente com a grandeza de pensamento ou grandeza de cenário, a analogia entre o efeito da vastidão na natureza e do Sublime na arte, foram todas sugeridas por Longino (MONK, 1960, p. 85).11

Como também é apontado por Monk (Ibidem), a principal contribuição desses autores foi indicar o melhor método de análise e mostrar quais eram as ideias fundamentais do

Peri Hypsous. No entanto, os autores desse período ainda não atentavam para alguns

obstáculos. O maior deles era a confusão e a ambiguidade envolvidas nas discussões sobre o sublime e o belo. É exatamente nesse contexto, e com o intuito de corrigir essa

                                                                                                                         

10 Hoje se sabe que Longino não escreveu de fato o Peri Hypsous. A autoria do tratado, no entanto, ainda é tema de debate entre os especialistas. Para essa discussão, cf. MONK, 1960, p. 10.

11 Neste texto, as traduções da obra The Sublime: a StudyofCriticalTheories in XVIII-CenturyEngland, de Samuel Monk, são de minha autoria.

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ambiguidade12, que Burke publica, em 1757, sua obra Uma investigação filosófica

sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo.

A Investigação é um dos mais importantes tratados do campo da estética produzidos no século XVIII. Sua importância consiste sobretudo na proposta de Burke de um método de análise que direciona seu foco para os aspectos de recepção da obra de arte, isto é, trata-se de uma investigação que confere maior ênfase não a características intrínsecas à própria obra, mas às emoções que ela suscita no sujeito. Desse modo, o autor rompe completamente com a tradição do Neoclassicismo, pois seu interesse, como afirma Monk, é “descobrir como os objetos nos afetam, em vez de discutir, nas bases das ideias preconcebidas inerentes ao sistema neoclássico, como eles deveriam nos afetar” (Ibidem, p. 92).

Burke entende que uma análise focada nos efeitos de recepção é a chave para a superação da ambiguidade que permeava as análises estéticas do período.13 Esse ponto de vista, por sua vez, ocasiona uma leitura psicológica – e, como veremos mais adiante, até mesmo fisiológica – do sublime, pois a experiência estética é mais dependente do sujeito do que de qualidades próprias do objeto contemplado.14

Se, portanto, o ponto principal da estética burkeana é a emoção, sua teoria do sublime também está fundada nessa premissa. E a emoção que serve de fundamento para o sublime é o terror.15 Tal asserção, no entanto, está fundada em um aspecto mais fundamental da teoria de Burke, a saber, “a antítese entre dor e prazer, o primeiro sendo a fundação do sublime, e o outro o do belo” (Ibidem, p. 91). O autor parece intrigado com o fato de que, quando se trata de um juízo estético, o prazer pode ser derivado até mesmo da ideia de dor (Ibidem). E ao trazer a dor para o âmbito da discussão acerca do sublime, Burke “abre o caminho para a inclusão de ideias e imagens na arte que até                                                                                                                          

12 O prefácio à primeira edição da Investigação (1757) chama atenção para essa ambiguidade ao observar que “frequentemente se confundiam as ideias do sublime e do belo e que ambas eram aplicadas indiscriminadamente a coisas muito diferentes e algumas vezes de naturezas inteiramente opostas”. 13 Também no prefácio à primeira edição, Burke ressalta que o único modo de ultrapassar esses raciocínios imprecisos seria “partir de um exame atento do âmago de nossas paixões, de uma pesquisa cuidadosa sobre as propriedades das coisas capazes, segundo nos mostra a experiência, de afetar o corpo e, portanto, de incitar nossas paixões.”

14 Cf. WEISKEL, 1976, p. 86; MONK, 1960, p.86: “Ele [Burke] sustenta [...] que a sublimidade de algum modo depende de qualidades que residem no objeto, mas sua análise abre ampla margem para uma investigação psicológica, e até fisiológica, da origem da experiência estética.”

15 Por “terror” Burke concebe nada mais que o “medo da injúria, da dor, e finalmente da morte” (WEISKEL, 1973, p. 92).

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então eram consideradas como repousando propriamente fora da esfera do prazer estético” (Ibidem).

Burke sustenta que as ideias capazes de provocar uma forte impressão na mente humana sempre envolvem sensações de dor ou de prazer e podem ser reduzidas a dois gêneros: o das ideias que dizem respeito à sociedade e e o das que dizem respeito à

autopreservação. Por isso, antes de apresentar a teoria do sublime do filósofo, é

necessário compreender a maneira como ele concebe as noções de dor e de prazer.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que Burke se posiciona contra a noção – segundo o próprio autor, comumente aceita na época – de que as sensações de dor e de prazer são mutuamente dependentes, e de que uma só existe por meio da diminuição da outra. O filósofo afirma que a mente não se encontra em um estado nem de prazer e nem de dor, mas em um estado de indiferença, e que há prazeres e dores de natureza inteiramente positiva:

De minha parte, estou antes inclinado a crer que o efeito mais elementar e natural da dor e do prazer tem um caráter positivo, e que eles não devem necessariamente sua existência a uma dependência mútua (BURKE, 1993, p. 42).16

No entanto, afirmar que há prazeres e dores positivos não significa que Burke recuse a noção de prazer negativo. Desse modo, o autor prossegue com sua argumentação e distingue o prazer positivo daquele tipo de prazer oriundo da cessação da dor.

A sensação que surge a partir da diminuição da dor não é, segundo Burke, suficientemente semelhante ao prazer simples e positivo para que seja considerada de mesma natureza. Ainda que seus efeitos sejam positivos, ela é bem diversa do prazer positivo, que é simples e sem qualquer relação com a dor17. Sendo assim, essa sensação, muito embora seja positiva, é uma espécie de privação, pois sua existência é relativa e sempre está relacionada à dor:

                                                                                                                         

16   Neste estudo, utilizarei nas citações a tradução de Enid Abreu Dobráaszky de Uma investigação

filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo.

17 O mesmo vale para a sensação que resulta da cessação do prazer. A diferença é que nesse caso Burke distingue três graus de afecção: se o prazer simplesmente cessa, a mente retorna ao estado de indiferença; se o prazer é interrompido abruptamente, acarreta uma sensação de decepção; e se o objeto está totalmente perdido, de modo que não pode ser usufruído novamente, gera a paixão denominada pesar. Das três paixões, o pesar é a mais intensa, mas ainda assim não é suficientemente semelhante à dor positiva (cf. BURKE, 1993, p. 46).

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Indiscutivelmente, todo tipo de satisfação ou prazer [...] possui uma natureza positiva, no que diz respeito à mente18 daquele que o sente. A sensação é, sem sombra de dúvida, positiva, mas a causa pode ser, e neste caso certamente o é, uma espécie de privação. Aconselha-nos, pois, o bom senso que se deva distinguir mediante algum outro nome duas coisas de naturezas tão diversas, como um prazer simples e sem nenhuma relação com outro sentimento, daquele cuja existência é sempre relativa e estreitamente vinculada à dor (Ibidem, p. 45. Modificada).

A esse prazer “impuro” – isto é, dependente de uma dor anterior – Burke dá o nome de deleite [delight] (Ibidem). Prazer, dor e indiferença seriam, portanto, três estados independentes da mente, sem qualquer relação intrínseca entre si.

Como afirmado acima, Burke reduz as ideias que causam uma forte impressão na mente a dois gêneros: as que concernem à sociedade, e as que concernem à autopreservação. A cada um desses gêneros se relaciona um tipo de prazer. A sociedade está relacionada ao prazer positivo, e a autopreservação ao deleite. Isso porque as ideias de autopreservação sempre envolvem de alguma forma a dor. Se, por um lado, como afirma Burke, a ideia de beleza está relacionada a uma característica social positiva (Ibidem, pp. 50-51), que gera amor e prazer, o sublime está relacionado à autopreservação e, consequentemente, ao deleite.

Burke explica que tudo que é capaz de suscitar na mente as ideias de dor e de perigo, ou que opera de modo análogo ao terror, constitui uma fonte do sublime – que, de acordo com o autor, é a emoção mais intensa que a mente é capaz de sentir. Burke entende que as ideias ligadas ao instinto humano de autopreservação são predominantes na mente porque, para que se possa realizar qualquer ação, é necessário estar em condições plenas de saúde. Por esse motivo, qualquer coisa que ameace nossas vidas afeta a mente de modo intenso.

No entanto, Burke observa que quando essas ideias constituem uma ameaça direta elas não proporcionam nenhum deleite, mas são apenas terríveis. Sendo assim, para que a                                                                                                                          

18 No original, mind. Optei pela tradução por “mente” em vez de manter a tradução por “espírito” por dois motivos: em primeiro lugar, por se tratar de um correspondente direto para o termo em inglês, e em segundo lugar, devido à grande carga conceitual que o termo “espírito” carrega ao longo da história da filosofia. Além disso, pode-se somar o fato de que o termo spirit era um termo usado nas discussões filosóficas no período em que Burke publicou sua Investigação. Por isso, se o próprio autor optou por

mind em vez de spirit, não se trata apenas de uma decisão arbitrária de um termo pelo outro, mas sim que

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mente possa usufruir de qualquer prazer advindo das ideias derivadas do terror, é necessária certa distância:

Quando o perigo ou a dor se apresentam como uma ameaça decididamente iminente, não podem proporcionar nenhum deleite e são meramente terríveis; mas quando são menos prováveis e de certo modo atenuadas, podem ser – e são – deliciosas19, como nossa experiência diária nos mostra (BURKE, 1993, p. 48).

Portanto, as sensações dolorosas proporcionam, quando suas causas não nos são apresentadas diretamente, um intenso deleite, que, como apontado anteriormente, não se confunde com o prazer positivo, puro e simples, pois suas causas sempre envolvem um sentimento de dor ou de perigo.

Porém, afirmar que as sensações que derivam do terror, e que envolvem dor ou perigo, provocam um intenso deleite e constituem uma fonte do sublime não esclarece de que modo é possível ter uma experiência “aterrorizante” sem estar exposto de maneira direta às suas causas, para que, assim, se possa obter algum deleite. Burke explica que isso se dá devido às paixões relacionadas à necessidade humana da vida em sociedade. O filósofo aponta três paixões principais: a simpatia20, a imitação e a ambição, sendo a simpatia a mais fundamental dessas paixões, pois é através dela que se passa ao domínio das outras. Essa paixão permite que se obtenha prazer dos diversos tipos de arte, até mesmo dos que envolvem ideias terríveis como a dor ou a morte:

Pois a simpatia deve ser considerada uma espécie de substituição, mediante a qual colocamo-nos no lugar de outrem e somos afetados, sob muitos aspectos, da mesma maneira que eles; de modo que essa paixão pode ou partilhar da natureza daquelas relacionadas à autopreservação e, derivando-se da dor, ser uma fonte do sublime, ou pode aliar-se às ideias de prazer [...] É principalmente por esse princípio que a poesia, a pintura e as outras artes relacionadas a sentimentos comunicam suas paixões de um coração a outro e muitas vezes são capazes de enxertar um deleite no desgosto, na infelicidade e na própria morte (Ibidem, pp. 52-53).

Sendo assim, Burke entende que a atração pelo terrível é um comportamento instintivo do ser humano. O filósofo, a partir de alguns exemplos, mostra que nossa simpatia é                                                                                                                          

19Delightful, no original.

20 Vale ressaltar que, apesar da minha opção por manter a tradução por “simpatia”, o que Burke tem em mente quando utiliza a palavra sympathy não é a sensação agradável que uma pessoa desperta na outra, mas sim algo próximo à “compaixão”.

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mais atraída pela desgraça do que pelo sucesso dos outros. Este fato, aliado à concepção de que as sensações de dor e de perigo são predominantes na mente, faz com que o deleite seja mais intenso do que o prazer simples e puro.

A antítese entre dor e prazer, base da formulação do sistema de Burke, atesta a importância do terror para a sua teoria do sublime.21 Essa antítese também permite explicar o fato que, como dito acima, intrigava Burke, a saber, a possibilidade de derivar prazer da ideia de dor. Portanto, formulando suas teses com base nessa premissa, o autor encontrou os meios adequados para dar conta de objetos artísticos que antes repousavam fora do âmbito do prazer estético.

Tendo então estabelecido a sua teoria estética na primeira parte da Investigação, Burke, na segunda parte da obra, se ocupa exclusivamente das ideias capazes de provocar o sentimento do sublime, todas, segundo o autor, derivadas de alguma forma do terror, confirmando que este é o princípio fundamental desta categoria estética.22

Em primeiro lugar, antes de passar à consideração das ideias responsáveis por proporcionar um sentimento do sublime, Burke se ocupa de seus efeitos na mente humana. O autor esclarece que o sublime afeta a mente em quatro graus: três inferiores, a saber, admiração, reverência e respeito; e o efeito mais forte, o assombro.23 Quando em um estado de assombro, a mente tem todos os seus movimentos suspensos por um grau elevado de horror. Burke explica que, quando está nesse estado, “a mente sente-se tão plena de seu objeto que não pode admitir nenhum outro nem, consequentemente, raciocinar sobre aquele objeto que é alvo de sua atenção” (Ibidem, p.65. Modificada). Esta é precisamente a origem do sentimento do sublime, que antecipa qualquer possibilidade de raciocínio e “nos arrebata com uma força irresistível” (Ibidem).

Tendo esclarecido o modo como o sublime afeta a mente, Burke passa então a analisar as ideias que são capazes de suscitar o sentimento de horror, constituindo, assim, uma                                                                                                                          

21 Vale esclarecer que o sublime “não é o próprio sentimento de terror; ele é uma resposta ao terror” (WEISKEL, 1973, p. 87). O terror é um dos principais agentes no efeito que acompanha o sublime, pois este efeito consiste em um arrebatamento que acaba por acarretar uma sensação de impotência, e o medo é justamente a emoção que torna o homem incapaz de agir e de raciocinar.

22 O primeiro argumento de Burke para atestar a “afinidade” entre as ideias de terror e do sublime é de ordem linguística. Na segunda seção da segunda parte, o filósofo mostra como, em diversas línguas, as mesmas palavras são usadas para designar tanto admiração quanto assombro e terror (cf. BURKE, 1993, p. 66).

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fonte do sublime. Ideias como o poder, a infinitude e a vastidão (todas, segundo Burke, derivadas do terror) provocam na mente a paixão do assombro, proporcionando, portanto, um intenso deleite. Entretanto, não me ocuparei em fazer uma exposição exaustiva de todas as ideias consideradas por Burke. Irei destacar apenas as ideias que possuem uma relação com os textos que serão analisados na segunda parte deste trabalho. Desse modo, irei me concentrar nas ideias de obscuridade, de poder, de privação, de vastidão, de infinitude e de sucessão e uniformidade, sendo estas duas últimas relacionadas à infinitude.

Primeiramente, gostaria de destacar a ideia de obscuridade – até mesmo por sua semelhança com a noção lovecraftiana de desconhecido, abordada na seção anterior. A obscuridade não apenas é capaz de tomar a mente de maneira vívida, como também parece ser condição de todas as ideias terríveis:

Para tornar algo extremamente terrível, a obscuridade parece ser, em geral, necessária. Quando temos conhecimento de toda a extensão de um perigo, quando conseguimos que nossos olhos a ele se acostumem, boa parte da apreensão desaparece. Qualquer pessoa poderá perceber isso, se refletir o quão intensamente a noite contribui para o nosso temor em todos os casos de perigo e o quanto as crenças em fantasmas e duendes, dos quais ninguém pode formar ideias precisas, afetam os espíritos que dão crédito aos contos populares sobre tais espécies de seres (Ibidem, pp. 66-67).

Portanto, a ideia de obscuridade se refere não apenas à ausência de luz, mas também aos objetos dos quais não podemos formar ideias claras, ou mesmo àqueles que são completamente ininteligíveis. Por esse motivo, Burke julga que a obscuridade é uma condição indispensável para o medo e o terror, pois o sublime exige um grau de incerteza – e esta é uma premissa também do horror cósmico lovecraftiano –, de modo que o mesmo possa causar uma forte impressão na mente.24 Fica clara, pois, a razão que

leva Burke a julgar que a incerteza contribui muito mais para os efeitos das artes representativas do que uma descrição detalhada do objeto:

Desde o início, somos preparados com a máxima solenidade para a visão, somos primeiramente aterrorizados, antes mesmo que saibamos a causa obscura de nossa emoção; mas, quando essa causa grandiosa se mostra, o que é ela? Não é, envolta nas sombras de sua própria                                                                                                                          

24Monk observa que o repúdio pela claridade é muito importante devido ao fato de que, para Burke, o sublime é o domínio mais elevado da arte, pois a remove do patamar inferior que lhe era conferido pelo Neoclassicismo, um patamar de subordinação à ordem da natureza (cf. MONK, 1960, p. 94).

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escuridão incompreensível, mais apavorante, mais impressionante, mais terrível do que a descrição mais vívida, do que a pintura mais exata poderiam talvez representar? (Ibidem, p. 70).

Burke inclusive afirma que quando a pintura tenta representar de maneira clara aquelas ideias magníficas e obscuras apresentadas por poetas como Milton quase sempre seu produto beira o ridículo (Ibidem, p. 71). Na sequência de sua exposição, Burke passa a considerar a ideia de poder.25

Assim como qualquer ideia que constitui uma fonte do sublime, também o poder é derivado, segundo Burke, do terror. O autor, na verdade, considera que, além de sugerir a ideia de perigo, qualquer objeto sublime parece ser alguma modificação do poder (Ibidem). No entanto, como observa Thomas Weiskel, o poder “nada mais é que a sugestão indireta do perigo” (WEISKEL, 1973, p. 92. Grifo do autor). Burke toma como pressuposto o fato de que a dor é sempre infligida por um poder maior, pois “nunca nos submetemos voluntariamente a ela” (BURKE, 1993, p. 72). É justamente por esse motivo que o autor acredita que o poder também deriva do terror, pois o sublime surge a partir da ideia terrível que acompanha o poder, isto é, a possibilidade que aquela força maior tem de nos causar dor.

Na sequência de sua argumentação, Burke considera as ideias de privação (na seção VI da segunda parte da Investigação) e de vastidão (na seção VII). Burke julga as privações – ideias como o silêncio, as trevas e a solidão – sublimes porque todas são terríveis.26 No caso da vastidão, o efeito surge da grandiosidade de dimensões, que é

uma “fonte poderosa do sublime” (Ibidem, p. 77). A vastidão possui três modos de afetar da mente, a saber, a extensão por comprimento, altura ou profundidade. Desses três modos, a profundidade é a fonte mais poderosa do sublime e o comprimento é a que possui o menor efeito na mente.27 Burke acrescenta ainda que, do mesmo modo que a                                                                                                                          

25 Vale observar que a ideia de poder não possui exatamente uma relação direta com os textos que serão objetos de análise na segunda parte deste estudo. No entanto, quando consideramos as narrativas de horror, sobretudo quando temos claramente uma monstruosidade envolvida, a ideia de poder se faz presente. Por esse motivo, julgo importante fazer uma breve exposição da consideração burkeana acerca do poder.

26 Burke não se estende muito sobre a ideia de privação. Após afirmar que tais ideias são sublimes porque são terríveis, o autor faz uma referência à Eneida para ilustrar seu ponto de vista. Cf. BURKE, 1993, pp. 76-77.

27 Burke confessa que não tem muita certeza quanto ao grau de afetação dos diversos graus de vastidão. Ele observa que “um plano perpendicular tem um poder maior de produzir o sublime do que um inclinado, e os efeitos de uma superfície irregular e acidentada parecem mais fortes do que quando ela é uniforme e polida” (BURKE, 1993, p. 78). Essas ocorrências constituiriam alguns parênteses que

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grandeza de dimensões é sublime, também o é o caso de uma pequenez extrema. Isso porque, afirma o autor, “a divisão pode ser infinita, como a adição, dado que não se consegue mais atingir a ideia de uma unidade perfeita, tanto quanto a de um todo completo ao qual nada pode ser acrescentado” (Ibidem, p.78). Sendo assim, também a pequenez extrema é capaz de nos deixar atônitos, de tal modo que impossibilita a distinção de seu efeito daquele da própria vastidão. Em seguida, o autor passa a tratar da infinitude, uma ideia que afeta a mente de um modo semelhante à vastidão.28

A infinitude constitui uma fonte do sublime dada a impossibilidade de estabelecer os limites do objeto. Essa impossibilidade provoca na mente aquele “horror deleitoso” (Ibidem), efeito essencial concomitante ao sublime. No entanto, Burke observa que há poucos objetos verdadeiramente infinitos, mas qualquer objeto que, dado o seu tamanho, não permita à mente a identificação de seus limites opera de modo análogo ao infinito autêntico. Esse “infinito artificial” (Ibidem, p. 79) é constituído por dois aspectos: a sucessão e a uniformidade.

A sucessão é fundamental para o infinito artificial, pois as partes do objeto em questão devem seguir em uma determinada direção e por um longo tempo para que possam, estimulando os sentidos, provocar na mente uma ideia de continuidade que ultrapassa seus limites efetivos. Por esse motivo, a uniformidade é igualmente requerida, pois se houver mudança nas formas das partes, a mente, sendo exposta a cada alteração, é capaz de identificar onde cada parte começa e termina.

No restante da parte II da Investigação, Burke continua analisando diversas ideias que também constituem uma fonte do sublime. Tais ideias, pelas razões já expostas anteriormente, não serão abordadas neste trabalho. Mais à frente, na parte IV, Burke passa a buscar a causa eficiente do sentimento do sublime. Esta parte do tratado é importante para nosso estudo porque nela, apesar de retomar algumas noções apresentadas na primeira parte, o autor procura explicar como é possível que a dor seja causa do deleite, e como uma sensação ligada a ideias de dor e terror pode ser benéfica para a mente.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      deveriam ser acrescentados em sua análise sobre a vastidão. Por esse motivo, para não desviar do foco de sua investigação, Burke decide não abordar as ocorrências específicas da vastidão.

28 Burke chegar a afirmar que a infinitude poderia pertencer ao domínio da vastidão (cf. Burke, 1993, p. 78).

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A tentativa de Burke de explicar a causa eficiente do sublime, como observa Monk, é de ordem psicológica e fisiológica (MONK, 1960, p. 96). O filósofo procura “observar a fisiologia da beleza e da sublimidade [...] e trazer todo o organismo para a experiência estética” (Ibidem), salientando sua preocupação em restringir suas análises aos efeitos suscitados no sujeito.

Burke, num primeiro momento, se utiliza da associação para explicar os efeitos provocados pelos objetos (é por associação, por exemplo, que tomamos um precipício como algo mais assustador que uma planície). Contudo, o autor se recusa a explicar todos os efeitos por meio da associação, pela simples razão de que, se há objetos cujos efeitos são produto da associação, é necessário então haver objetos que originalmente produziram tais efeitos. Como explica Burke:

Porém, assim como é preciso reconhecer que muitas coisas nos afetam de uma determinada maneira, não devido a quaisquer poderes naturais que possuam para aquela finalidade, mas devido à associação, seria absurdo, por outro lado, atribuir somente a ela todos os efeitos que as coisas nos causam, e, uma vez que algumas destas devem ter sido original e naturalmente agradáveis ou desagradáveis, fato do qual as outras derivam seus poderes associativos, creio que seria inútil procurar na associação a causa de nossas paixões até que consigamos descobri-la nas propriedades naturais das coisas (BURKE, 1993, pp.136-137).

Nas partes I e II da Investigação, Burke estabeleceu o terror como principal fonte do sublime, sendo o primeiro indispensável para a produção do último. Desse modo, o primeiro passo do filósofo na tentativa de identificar a causa eficiente do sublime é explicar como operam a dor e o medo, para assim mostrar como é possível a produção do deleite (e consequentemente do sublime) a partir de sensações que, à primeira vista, são inteiramente opostas.

Em primeiro lugar, Burke considera pertinente analisar a dor e o medo em conjunto devido ao fato de que, segundo o autor, ambos operam do mesmo modo, isto é, ambos “consistem em uma tensão anormal dos nervos” (Ibidem, p.137). O filósofo observa apenas uma distinção na maneira como operam a sensação e a emoção (cf. MONK, 1960, p, 97). Enquanto a dor afeta a mente através do corpo, o medo e o terror afetam o corpo através da mente. Nas palavras de Burke:

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A única diferença entre a dor e o terror consiste em que as coisas que causam a primeira agem sobre a mente pela intervenção do corpo, ao passo que as que produzem o segundo geralmente afetam os órgãos do corpo pela ação da mente, que o adverte do perigo; contudo, ambos assemelham-se, quer direta, quer indiretamente, por produzirem uma tensão, contração ou excitação violenta dos nervos [...] (BURKE, 1993, p. 138. Modificada).

Ao definir a dor e o terror como uma “tensão anormal dos nervos”, e pelas vias da associação, Burke pode explicar por que objetos que não são essencialmente terríveis podem constituir uma fonte do sublime. Tomemos como exemplo o caso da infinitude, abordado anteriormente. Nesse caso, o objeto não evoca uma ideia de perigo, mas ainda assim causa uma contração dos nervos ópticos em função do fato de que os olhos não conseguem estabelecer seus limites, agindo assim de um modo análogo ao terror, e por isso constituindo uma fonte do sublime. No entanto, ainda há uma questão importante a ser respondida. Como o deleite – que, como vimos, não deve ser confundido com o prazer puro – pode ser produzido a partir de uma emoção como o terror? Para resolver essa questão, Burke lança mão de uma analogia fisiológica. O filósofo argumenta que o terror é benéfico para os “órgãos delicados” (Ibidem, p. 141) do mesmo modo que o exercício físico é benéfico para o corpo. O autor entende que, uma vez que se trata de contração muscular, o exercício físico é bastante semelhante à dor e ao terror, possuindo apenas uma diferença de grau. Portanto, o terror opera como uma espécie de “exercício” dos órgãos delicados:

[...] se a dor e o terror estão moderados a ponto de não serem realmente nocivos, se a dor não é levada a uma intensidade muito grande e se o terror não está relacionado à destruição iminente da pessoa, dado que essas emoções livram as partes, quer as mais delicadas, quer as grosseiras, de um obstáculo perigoso e perturbador, elas têm a faculdade de produzir deleite; não prazer, mas uma espécie de horror deleitoso, de calma mesclada de terror, o qual, visto que pertence à autopreservação, é uma das paixões mais intensas que existem. Seu objeto é o sublime. Chamo de assombro seu grau mais elevado [...] (Ibidem).

Desse modo, Burke pôde concluir que o sublime, como observa Monk, “age diretamente no sistema nervoso através de impressões sensíveis” (MONK, 1960, p. 97). Assim, o autor rompe com a tradição que por um lado considerava o sublime como pertencente ao âmbito do juízo, no caso do Neoclassicismo, e por outro o colocava no domínio do sentimento, como o faziam alguns predecessores imediatos de Burke (Ibidem, p. 98).

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Tendo em vista as principais características do horror cósmico lovecraftiano, e tendo apresentado sistematicamente a teoria burkeana do sublime, é possível agora analisar a relação entre ambas, para assim explicitar a influência de Burke sobre o pensamento de Lovecraft.

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3. O sublime e o medo cósmico

Apesar de não fazer nenhuma referência explícita ao pensamento de Burke, Lovecraft, ao longo de sua reflexão crítica acerca do horror, parece endossar as teses apresentadas pelo filósofo irlandês. Até mesmo o método de análise utilizado pelo autor de Providence é semelhante ao método de Burke. Ambos se inserem em uma tradição estética que julga que o modo adequado de consideração da obra de arte é uma análise que privilegie seus efeitos de recepção em detrimento de seus aspectos puramente formais. Além disso, há outras premissas burkeanas fundamentais para o estabelecimento do pensamento de Lovecraft, como, por exemplo, o papel desempenhado pelas sensações de dor e de prazer no processo de recepção da obra literária e a potência e o caráter primitivo do medo. As relações que podem ser estabelecidas entre o pensamento de ambos os autores são tantas que, quando tratamos da concepção lovecraftiana de horror cósmico, podemos falar de um “horror sublime” (cf. FRANÇA, 2010, p. 87).

Um aspecto de bastante relevância para nossa análise e que merece ser explorado é a semelhança entre as concepções de desconhecido e de obscuridade, de Lovecraft e Burke respectivamente. Como apresentado na seção anterior, Burke considera a ideia de obscuridade um componente essencial para tornar terrível qualquer objeto, sendo, portanto, um elemento vital para a produção do sublime. Ora, Lovecraft não apenas assume a posição burkeana (isto, insisto, não se dá de maneira explícita), como vai além. Isso porque o escritor de Providence não pensa apenas que a obscuridade é uma condição da produção do medo, mas sim que a própria obscuridade – entendida como um correspondente da noção de desconhecido – é algo a ser temido. Esse é o principal pressuposto da asserção lovecraftiana de que o tipo mais intenso de medo é o medo do desconhecido, fundamentando, também, a predileção do autor por um determinado tipo de ficção, a literatura de horror cósmico, em detrimento da “literatura de mero medo físico e do terrível mundano” (LOVECRAFT, 1973, p. 15).

Partindo do pressuposto de que a obscuridade é uma condição indispensável para a produção do sublime, Burke afirma também que, no caso das artes representativas, a sugestão é mais eficaz do que a descrição detalhada dos objetos (BURKE, 1993, p. 70-71). Lovecraft, mais uma vez, não apenas concorda com a tese burkeana, como a

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assimila e faz dela a “diretriz essencial” de sua própria produção ficcional (FRANÇA, 2010, p. 88).29 Do ponto de vista do autor, a coisa mais importante na criação da narrativa de horror é a atmosfera, um cenário apropriado para a criação de um intenso sentimento de pavor:

O verdadeiro conto fantástico possui algo mais que um assassinato secreto, ossos ensanguentados, ou uma forma coberta por lençóis arrastando correntes conforme a regra. Uma certa atmosfera de inexplicável e empolgante pavor de forças externas e desconhecidas deve estar presente; e deve haver um indício, expresso com a seriedade e dignidade condizentes com o tema, daquela mais terrível concepção do cérebro humano – uma suspensão ou derrota maligna e particular daquelas leis fixas da Natureza que são nossa única salvaguarda contra os assaltos do caos e dos demônios de espaços insondados (LOVECRAFT, 1973, p. 15).

Sendo assim, o mais importante em uma narrativa de horror cósmico é a apresentação de coisas que não se pode ver distintamente e das quais não se pode formar uma ideia clara. Desse modo, a imaginação – tanto da personagem que confronta o objeto como do leitor da obra – pode especular acerca da natureza daquele objeto que confronta e trabalhar na tentativa de dar conta de tal objeto. Fica claro, portanto, por que a obscuridade desempenha um papel importante na construção da genuína narrativa de horror cósmico.

Tendo por base outra premissa burkeana, Lovecraft foi capaz de conferir legitimidade à narrativa de horror. O autor, assim como Burke, entende que a dor e o risco de morte são sensações mais vívidas e potentes do que o prazer. Isto, aliado à concepção, endossada por ambos os autores, de que o medo é uma emoção primitiva do ser humano, faz com que Lovecraft acredite que as histórias de horror despertam na humanidade um “fascínio de espanto e curiosidade” (LOVECRAFT, 1973, p. 14), provocando assim uma emoção intensa. E este fato, por sua vez, explica por que a ficção de horror, mesmo enfrentando uma forte oposição (lembremos que o autor identifica, no início do ensaio, como críticos da legitimidade da literatura do medo os materialistas e os idealistas), não apenas sobreviveu como também “se desenvolveu e alcançou níveis notáveis de perfeição” (Ibidem, p. 12).

                                                                                                                         

29 A maneira como isso se dá será explorada na segunda parte deste estudo, onde me proponho a analisar dois contos de Lovecraft com vistas a esclarecer de que modo as teses de Burke se apresentam em sua narrativa.

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Um último ponto que gostaria de ressaltar é a “inspiração burkeana” por trás da própria concepção de horror cósmico. Retomando a definição de Vivian Ralickas, o medo cósmico é aquilo que sentimos “quando confrontados por fenômenos além de nossa compreensão, cujo domínio se estende para além do campo restrito dos assuntos humanos e se vangloria da significância cósmica” (RALICKAS, 2007, p. 364). O horror cósmico representa a visão pessimista de Lovecraft em relação à própria humanidade. O universo é apresentado como algo grandioso, que não foi feito para o homem e sobre o qual este não tem nenhum controle. A concepção lovecraftiana de horror cósmico é, portanto, construída a partir da ideia da vastidão do universo, que por sua vez, em função da insignificância do ser humano frente a ele, constitui uma fonte incessante de horrores e perigos. Além da noção de desconhecido – que, como demonstrado, é bastante semelhante à noção burkeana de obscuridade –, também entram em cena aqui as ideias de vastidão e infinitude.

Como vimos na seção anterior, Burke sustenta que a grandiosidade de dimensões constitui uma fonte do sublime porque esgota qualquer possibilidade da mente humana de estabelecer os limites do objeto contemplado. Isso porque, sem conseguir identificar os limites do objeto, a mente é tomada por um imenso terror, ao mesmo tempo em que se encontra em um estado de fascínio. E é exatamente esta a posição do homem do ponto de vista do horror cósmico. Frente à grandeza do universo, o homem permanece fascinado, ao passo que também se encontra aterrorizado pelo alto grau de incerteza e perigo envolvido na relação entre ambos.

Portanto, apesar de não haver referência explícita, por parte de Lovecraft, à teoria do sublime de Burke, sua estética da narrativa de horror parece ser fundamentalmente dependente das teses do filósofo irlandês. A Investigação de Burke abre o caminho e fornece todas as ferramentas conceituais necessárias para que Lovecraft possa, dois séculos mais tarde, justificar a literatura de horror como obra de arte legítima.

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Parte II

O SUBLIME E AS DIRETRIZES DA FICÇÃO LOVECRAFTIANA 1. O sublime em funcionamento na obra de H. P. Lovecraft

Ao longo da primeira parte deste estudo procurei explicitar as diversas semelhanças entre a teoria do sublime apresentada por Edmund Burke em sua Investigação e a concepção de horror cósmico de H. P. Lovecraft. Para tanto, apresentei sistematicamente tanto a reflexão crítica sobre o horror do escritor de Providence – apresentada no ensaio O horror sobrenatural em literatura – como as teses apresentadas por Burke em seu tratado.

Como apresentado no decorrer dos três itens da primeira parte, do ponto de vista teórico, as teses de Burke oferecem todas as premissas necessárias para que Lovecraft justifique esteticamente a produção do medo pela literatura. Todos os pilares que sustentam a argumentação lovecraftiana são de orientação burkeana. Teses apresentadas pelo autor – como - a herança biológica que explica a potência do medo e as considerações acerca das sensações de prazer e de dor – já haviam sido todas sugeridas pelo filósofo de Dublin. Além disso, as bases do horror cósmico, defendido por Lovecraft como o tipo mais elevado de narrativa de horror, também remetem à teoria do sublime de Burke. Isso porque se trata de uma espécie de narrativa que privilegia a sugestão em vez de uma descrição detalhada dos objetos e que gira em torno do desconhecido, que, como demonstrado anteriormente, é uma concepção bastante próxima à noção burkeana de obscuridade.

Portanto, se há tantas relações e semelhanças que podemos traçar entre a reflexão crítica lovecraftiana e as teses de Burke, não é de se espantar que também na obra ficcional de Lovecraft possamos encontrar diversas relações com o pensamento do filósofo irlandês. Desse modo, nos dois itens subsequentes apresentarei duas narrativas lovecraftianas com vistas a demonstrar que a teoria do sublime tal qual é apresentada por Burke não apenas influenciou o pensamento crítico de Lovecraft como também constitui as diretrizes essenciais de sua ficção.

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