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HEGEMONIA E FICÇÃO NA NARRATIVA BRASILEIRA E CUBANA DA DÉCADA DE 1990 Dionisio Márquez Arreaza UFRJ

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Academic year: 2021

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HEGEMONIA E FICÇÃO NA NARRATIVA BRASILEIRA E CUBANA DA

DÉCADA DE 1990

Dionisio Márquez Arreaza UFRJ Resumo

Neste trabalho, compararei Cidade de Deus (1997) de Paulo Lins e Trilogía sucia de La Habana (1998) de Pedro Juan Gutiérrez como narrativas que elaboram um novo sujeito literário e político, a partir dos conceitos de hegemonia e articulação de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2001) cujo viés discursivo e pós-estrutural aproveito na crítica literária. A violência do tráfico brasileira e a supervivência material cubana constituem ficções realistas do estado falido que sintonizam com os desejos democráticos do leitor-cidadão da época de publicação das obras até hoje. A escrita e a sua leitura passam a ser atos democráticos que têm como objetivo uma identificação com os sujeitos historicamente marginalizados para articular um posicionamento socialmente transformador. O alcance dessa estratégia se mostra debilitado no contexto do horizonte cultural da década de 1990 em que os textos foram publicados. Palavras-chave: Paulo Lins, Pedro Juan Gutiérrez, Hegemonia, Ficção, Transformação. Nesse trabalho, os conceitos de ficção e hegemonia complementam o estudo dos romances Cidade de Deus (1997) de Paulo Lins e Trilogía sucia de La Habana (1998) de Pedro Juan Gutiérrez. Essa relação entre literatura e política permite uma análise dos elementos textuais num sentido cultural mais amplo. A obra de ficção se entenderá como parte de um circuito comunicativo social, no sentido gramsciano, onde as mensagens culturais concorrem para ganhar o parecer do leitor de literatura e do cidadão em sociedades nacionais marcadas pelo analfabetismo na realidade brasileira (CÂNDIDO, 1989) e pela censura e autocensura, na cubana (SALADO, 2016), no contexto do discurso liberal na política e dos estudos culturais na academia dentro do panorama nos anos 90.

Com o conceito gramsciano de hegemonia pode se entender a literatura como um meio de comunicação específico concomitante com outros. Para ganhar a convicção do leitor-cidadão seria preciso elaborar uma mensagem capaz de convencê-lo. Assim, o sujeito do texto e o sujeito da leitura criam as condições latentes de uma articulação hegemônica em constante processo de elaboração no sentido pós-estrutural do filósofo argentino Ernesto Laclau e da filósofa belga Chantal Mouffe, que entendem o social como discurso. Dizem eles que:

Níveis mais profundos de contingência requerem articulações hegemônicas — isto é, contingentes—, o que é outra maneira de dizer que o momento de reativação nada mais significa do que recuperar o ato de instituição política que encontra a sua fonte e motivação em nenhum outro lugar senão em si próprio.

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(Tradução minha) (LACLAU, MOUFFE, 2001, p. xi) Cada elemento narrativo dos romances é a instância de contingência onde, mediados pela linguagem, o texto se “reativa” e se articula com o leitor, e vice-versa, em cada leitura. Dessa forma, o leitor faz uma “identificação” e “subjetivação” (p. xi) daquilo que vai entendendo no texto, não como processo acabado, mas como ato contínuo e problemático. A ficcionalização de cada cultura contém, pois, referências à hegemonia da sociedade através da representação da violência e precariedade. A leitura dessas referências vai articular as identidades marginalizadas que interessam à obra. Vou explorar essa “articulação” identitária como aquilo que deseja intervir na mente do leitor e, ainda, do cidadão, a partir do texto dentro e fora da ficção.

No romance cubano, organizado em contos interdependentes, o narrador-protagonista Pedro Juan adota um estilo que ele próprio chama de “escritura dura” para narrar a vida em Havana entre 1994 e 1995 durante a crise do chamado Período Especial. Ao falar de assuntos tabu que a imprensa oficial censura, a escrita dura transgride a ordem comunicacional socialista, mostrando, por sua vez, as contradições do próprio narrador e dos personagens.

No conto “Abandonando las buenas costumbres”, Pedro Juan fala sobre Miriam, uma mulata que tinha sido prostituta até ter o seu filho, cujo pai é um negro que foi preso quando ela engravidou. Como era mãe, deixa a rua, fica pobre e conhece Pedro Juan. Se ela prefere o homem negro, isto é assim de maneira contraditória. Lemos:

Su falta de pudor llegaba a la grosería. Y eso me gustaba. Yo cada día era más indecente. A ella le gustaban los negros bien negros, para sentirse superior. Siempre me lo decía: «Son groseros, pero les digo ¡negro, échate pa’ allá!, y yo estoy por arriba porque yo soy clarita como la canela.» En realidad era aún más clara que la canela y todo lo valoraba así: los más negros abajo, los más claros arriba. (GUTIÉRREZ, 1998, p. 47) A “falta de pudor” dela chega a ser coisa “grossa”, como se o apetite sexual da mulata deixasse escrupuloso um macho tão libidinoso como ele. Chama muito a atenção que Miriam, uma mulata “mais clara que a canela”, diz que gosta dos “negros bem negros” esclarecendo que é para se sentir superior a eles argumentando que “os negros” estariam “abaixo” e os “mais claros” estariam “acima”. Isso não surpreende porque é um raciocínio colonial ainda audível e reproduzido hoje na sociedade

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latino-americana não só pela elite branca historicamente descendente de europeu e/ou europeizada, mas pelos indivíduos menos esperados: pardos e negros em algum grau, alguns dos quais podem chegar até a participar dessa elite “branca”. Não é o caso da Miriam, mas se destaca, em particular, que uma pessoa de raça negra ou etnicamente misturada escolha um branco para discursar sobre a hierarquia étnico-racial1 que reproduz a discriminação que ela própria sofre por parte de alguém que fosse “mais branco” que uma mulata como ela. Não é possível desligar a fala do seu ouvinte e se essa fala dela muda ao falar com um não-branco como o próprio parceiro negro —como pode se supor— então se verifica como a linguagem de um sujeito muda segundo a circunstância e como todo ato de afirmação de identidade nunca é estável e acabado, pois ele parte da contingência situacional e da subjetividade que a gera. Essas contradições se repetem ao longo do romance enquanto o leitor duvida da isenção dos personagens e até do próprio narrador, e percebe a complexidade das relações étnico-raciais não só entre sujeitos distintos, mas entre pessoas que pertencem a mesma identidade racial. A tensão entre racismo e convívio é como a tensão entre ordem e desordem: esses são os elementos contingentes que articulam a identidade “dura” dos personagens e que vão de encontro à normalidade quotidiana dos meios de comunicação oficiais dos quais o livro de Pedro Juan não faz parte —pelo menos por um período considerável. Com essa articulação identitária contraditória o leitor poderá ou não se identificar e assim designar um sentido tanto no nível dos conteúdos imaginativos do relato quanto na realidade da sua própria circunstância. Por exemplo, o leitor carioca pode imaginar o racismo no relato havaneiro e também no Rio de Janeiro, do mesmo modo que o leitor havaneiro pode fazer igual com o romance brasileiro que comento a continuação. Em Cidade de Deus, se narra a violência do tráfico no conjunto residencial homônimo no Rio de Janeiro. A primeira parte do romance trata dos jovens malandros do chamado Trio Ternura, conformado pelo líder Cabeleira, Alicate e Marreco, e mostra a complexidade das relações raciais cariocas. Nos trechos a seguir, o detetive Touro, acompanhado de outros policiais, persegue o líder no baile de um clube em Jacarepaguá, próximo do conjunto, mas este escapa. Na sequência,

1 Uso aqui o termo “etnia” ou “étnico” não só como grupo autóctone, mas no sentido construtivo de qualquer

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tem confusão e gritos que acabam com os tiros no ar de advertência por parte do detetive.

Então, o presidente do clube, preocupado com a confusão causada pela presença do policial, se aproxima de Touro e tenta acalmá-lo. Mas o detetive, nervoso, diz: “Isso aqui só tem piranha, bandido e maconheiro. O pessoal de

bem não vem pra cá, não” (grifos meus) (LINS, 1997, p. 38). Em resposta, um outro

diretor do clube, Vanderley, se identifica como militar para, primeiro, mostrar autoridade, e segundo, convencer o detetive da respeitabilidade do clube, o que faz o policial se irritar mais e agredi-lo verbalmente. Responde Vanderley ao policial e a discussão esquenta: - Fala direito comigo, fala sem dizer palavrão! Tô falando com o senhor numa boa, não tô a fim de atrapalhar serviço de ninguém, mas se eu quiser não deixo polícia nenhuma entrar aqui dentro, fico na portaria fardado e quero ver alguém colocar a mão ni mim! - Ó rapaz, tu tá pensando que vai ficar no Exército pra sempre? Tá pensando que eu tenho medo de militar? - exaltava-se Touro. - Eu sou militar e tu é bundão, rapá! [...] - Vamo parar, vamo parar! - interferiu o presidente do clube. (LINS, 1997, p. 38-39) O olhar do outro, profissional e racial, motiva o confronto, gerando-se a tensão da diferença da corporação armada. Fora a briga entre patentes, se entende o nervosismo do policial Touro que, depois de ver escapar os bandidos e ter sido questionado por frequentadores do clube, agora se vê contrariado por um militar de patente superior, o que por si só poderia tê-lo dissuadido de uma reação agressiva se esse militar não fosse negro também. Talvez por isso a dificuldade deste em convencer o policial de que o freguês do clube era “pessoa de bem”. Mais tarde na conversa, ainda nervoso, Touro insiste: “Todo mundo aqui tem cara de bandido, quase não tem branco, nesta terra só tem crioulo mal-encarado” (grifos meus) (LINS, 1997, p. 39). O policial reitera a percepção negativa do negro onde “terra” vai significar a localização “periurbana”2 de Cidade de Deus. Em correspondência, esse espaço ficcionalizado está conformado em sua maioria por negros e pardos, em oposição aos bairros urbanos nobres do Rio quase por inteiro conspicuamente

2 O termo periubano é de Andrelino Campos (2005) para definir os espaços marginalizados do Rio de

Janeiro próximos aos centros urbanos com os quais guardam uma relação histórica e tensa que vai do quilombo colonial à favela contemporânea.

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ausentes no texto, o que dá conta de uma espécie de demografia étnico-social da capital fluminense que a obra desvenda.

A interação dos personagens propicia os olhares subjetivos do outro e isso é o motor dos conflitos sociais e raciais ficcionalizados, seja pelo espaço periurbano invisibilizado ou pelo passado desigual histórico. Esse olhar e essa diferença articulam, assim, a identidade dos sujeitos ao longo do romance, o que, por sua vez, mostra a hegemonia cultural carioca. Essa e outras passagens textuais mostram o círculo vicioso de sujeitos historicamente marginalizados, distintos étnica ou regionalmente, como o negro e o nordestino, que reproduzem o olhar de diferença do “outro” para e entre si, mesmo pertencendo ao mesmo segmento étnico-racial, socioeconômico ou profissional. Os romances aparecem no final dos anos 1990 e esse horizonte cultural é importante. Com a unificação alemã em 89 e o fim do bloco soviético em 91, o campo capitalista vindica seu triunfalismo que penetra toda a vida e a filosofia ocidentais e que é abraçado pelos países da América Latina, salvo Cuba, mesmo com o Partido Comunista tendo de se abrir para o turismo de lucro. Essa década viu uma parte da esquerda ficar ideologicamente “desencantada” e desorientada, e migrar na política real para um signo de conformidade com o capitalismo, como aconteceu com vários partidos socialdemocratas, como o PSDB no Brasil. Uma outra parte permaneceu anticapitalista, anti-imperialista e eleitoral, próxima, por exemplo, do Foro de São Paulo3, mas numa posição contra-hegemônica em relação àquele triunfalismo, como o PT no Brasil e os vários movimentos camponeses e urbanos latino-americanos. Em paralelo, é a década da popularização dos estudos culturais e pós-coloniais, por exemplo, dos estudos do jamaicano Stuart Hall (1987), que haviam revitalizado o conceito gramsciano, precisamente, de “hegemonia”, do qual tenho me servido aqui, que, não obstante, se torna mais uma moda acadêmica do que um passo para uma conscientização transformadora dentro e fora da academia. São as “migrações acadêmicas”, como as chamou a crítica chilena Nelly Richard em 1996, entre centro e periferia que legitimaram a hegemonia acadêmica “noratlântica” nas universidades latino-americanas e no resto do mundo chamado de “emergente” ou

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“terceiro-mundista”, a maior parte marcada pelo (neo)colonialismo euro-ocidental e estadunidense.

No contexto desse horizonte ideológico dos anos 1990, o que significam os personagens marginalizados de grandes cidades latino-americanas aos olhos desencantados do leitor-cidadão local e global? Como situar as obras tanto no plano dos conteúdos literários lidos quanto no plano da hegemonia cultural contingentes às palavras do texto e à mente do leitor?

São indagações para respostas irredutíveis e muito diversas, mas é possível dizer que esses conteúdos literários e identitários problemáticos expõem o estado dos posicionamentos dominantes da sociedade para —penso— interpelar ativamente o leitor contemporâneo, como aponta Schøllhammer (2009). Nesse sentido, a potencial força crítica e transformadora das obras tem um problema duplo. Essa força tenta confrontar as hegemonias simbólicas nacionais vividas na sociedade e revividas no texto, e também as hegemonias materiais dos aparelhos públicos e privados que movimentam e promovem o livro no mercado editorial nacional e internacional, e local e global. Trata-se da tensão simbólica e material que situa a interpretação crítica da hegemonia cultural dominante, seja socialista, no caso cubano, ou neoliberal, no brasileiro, que é denunciada, precisamente, na unidade do texto-livro lido e distribuído. A análise dupla entre o texto-livro e os aparelhos comunicacionais propõe o desafio interpretativo de um problema complexo tanto no circuito literário quanto na sociedade em termos amplos no contexto de regimes hegemônicos tanto capitalista quanto socialista na América Latina.

REFERÊNCIAS

BARTH, Fredrik. Enduring and emerging issues in the analysis of ethnicity. In: VERMEULEN, Hans; GOVERS, Cora. (eds.). The anthropology of ethnicity. Beyond

“Ethnic groups and boundaries”. Amsterdam: Het Spinhuis, 2000, p. 10-32. CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005. CÂNDIDO, Antônio. 1979. A nova narrativa. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 199-215. GUTIÉRREZ, Pedro Juan. Trilogía sucia de La Habana. Barcelona: Anagrama, 1998.

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HALL, Stuart. Gramsci and Us. Marxism Today, p. 16-21, jun. 1987.

LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy. Towards a

Radical Democratic Politics. 2. ed. rev. London: Verso, 2001.

LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

RICHARD, Nelly. Signos culturales y mediaciones académicas. In: GONZÁLEZ STEPHAN, Beatriz. Cultura y Tercer Mundo. Cambios en el saber académico. Caracas: Nueva Sociedad, 1996, p. 112-130.

SALADO, Minerva. Censura de prensa en la Revolución cubana. Madrid: Verbum, 2016.

SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

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