A REGULAMENTAÇÃO DA TRANSAÇÃO TRIBUTÁRIA
PORTARIAS Nº 247/2020 (MINISTÉRIO DA ECONOMIA) E Nº 14.402 (PGFN)
Rafael Wallbach Schwind
Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela USP Visiting scholar na Universidade de Nottingham Sócio da Justen, Pereira, Oliveira e Talamini
Fernanda Caroline Maia
Especialista em Direito Tributário pelo IBET Advogada da Justen, Pereira, Oliveira e Talamini
1. Introdução
Neste mês de junho, foram publicadas a Portaria nº 247/2020, pelo Ministério da Economia, e a Portaria nº 14.402/2020, pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. As duas normas visam a regulamentar o instituto da
transação tributária, com fundamento na Lei 13.988 – que, antes da conversão,
ficou conhecida como a “MP do contribuinte legal”.
2. Contexto: a transação tributária
Em regra, quando se pensa em métodos alternativos de resolução de litígios que envolvam a Administração Pública, imediatamente se relaciona o
tema à indisponibilidade dos direitos da Administração – inclusive a
indisponibilidade do crédito tributário.
No entanto, a doutrina há muito tempo faz uma distinção entre interesse público e interesse da Fazenda Pública. Com base nela, por exemplo,
RICARDO LOBO TORRES defende que interesse fiscal “só pode ser o
interesse de arrecadar o imposto justo, fundado na capacidade contributiva”1.
Segundo ele, resquícios de preconceitos e de legalismo não podem permanecer numa tributação fundada no constitucionalismo do Estado Democrático de Direito.
Além disso, o fato é que a possibilidade de se realizar transações em matéria tributária é prevista expressamente, há muito tempo, em leis formais. Portanto, o próprio ordenamento jurídico brasileiro admite textualmente a possibilidade de haver transações tributárias.
O Código Tributário Nacional estabelece que a transação é uma das modalidades de extinção do crédito tributário (art. 156, inciso III). Além disso, o
1
TORRES, Ricardo Lobo. Transação, conciliação e processo tributário administrativo equitativo. In: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; GUIMARÃES, Vasco (org.). Transação e arbitragem no âmbito tributário: homenagem ao jurista Carlos Mário da Silva Velloso. Belo Horizonte: Fórum. 2019, p. 107.
CTN estabelece no art. 171 que a lei pode facultar aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária a possibilidade de celebrar transação, que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção do crédito tributário.
No mesmo sentido, diversos Estados e Municípios editaram leis específicas tratando de transações tributárias.
Mais recentemente, em abril deste ano, foi editada a Lei 13.998, produto da conversão da Medida Provisória nº 899, que dispõe especificamente sobre
transações em matéria tributária – e foi recentemente regulamentada pelas
normas que serão examinadas neste artigo.
É importante ressaltar que transações tributárias não se confundem com programas de anistia, ou seja, situações em que o contribuinte adere a um determinado benefício. A transação tributária é mais ampla. É uma medida autocompositiva que envolve concessões mútuas e que depende da edição de normas regulamentares prévias definindo competências e critérios que serão aplicados.
Os objetivos buscados são não apenas o recebimento mais célere de valores devidos ao Fisco, mas também reduzir o volume de litígios, inclusive futuros.
Em relação a isso, as previsões da Lei 13.998 são de suma importância – assim como as normas infralegais que passamos a examinar.
3. A regulamentação do procedimento de transação tributária 3.1. Créditos passíveis de transação
A Portaria nº 247/2020, do Ministério da Economia, disciplina os critérios e procedimentos para a elaboração de proposta e de celebração de transação em duas hipóteses: créditos derivados de controvérsia jurídica relevante e disseminada ou que sejam de pequeno valor.
Dentre os objetivos previstos, está (i) a promoção de solução consensual de litígios administrativos ou judiciais mediante concessões recíprocas; (ii) a extinção dos litígios já instaurados; e (iii) a redução do número de litígios e dos custos que lhes são inerentes (art. 3º).
Portanto, o mecanismo da transação tributária pode ser utilizado para créditos que estejam tanto em discussão administrativa quanto judicial. Esses créditos integram o que a norma denomina de contencioso tributário.
3.2. Obrigações do contribuinte
Conforme previsto no art. 4º, além das obrigações previstas no compromisso de transação, o contribuinte deve utilizar esse instituto sem limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência (inciso I), ocultar ou dissimular a origem ou destinação de bens, direitos e valores, seus reais interesses ou a
identidade dos beneficiários de seus atos (inciso II) e também sem alienar ou onerar bens ou direitos sem a devida comunicação ao órgão fazendário competente, quando expressamente exigido (inciso III).
Ademais, para aderir à transação, o contribuinte deverá desistir das impugnações ou recursos administrativos e ações judiciais (inclusive coletivas) e seus respectivos recursos que tratem dos créditos objeto da transação, renunciando a quaisquer alegações de direito atuais ou futuras sobre as quais se fundem tais incidentes (incisos IV e V).
Em relação a isso, a portaria prevê ainda que o contribuinte deve se sujeitar ao entendimento adotado pela Administração, inclusive para fatos geradores futuros ou não consumados. Este ponto merece a devida atenção dos contribuintes, pois a eficácia dessa transação apenas cessaria com (i) o advento de precedente persuasivo (art. 927 do CPC e art. 19 da Lei 10.522) e (ii) alteração da legislação (inciso VI).
A transação constitui, portanto, confissão irrevogável e irretratável dos créditos em discussão, nos termos dos arts. 389 e 395 do CPC. Caso o crédito ainda não esteja inscrito ou judicializado, a renúncia ocorrerá por meio de jurisdição voluntária para homologação em juízo.
3.3. Obrigações da Administração Tributária
À luz do art. 5º, cabe à Administração prestar todos os esclarecimentos
sobre a transação, “inclusive das situações impeditivas à transação e demais
circunstâncias relativas de interesse do contribuinte” (inciso I) e notificar o contribuinte aderente caso se verifique a hipótese de indeferimento ou rescisão da transação, concedendo prazo para regularização do vício ou para apresentar impugnação (inciso II).
Além disso, a Administração deve tornar públicas as transações firmadas (inciso III) e apreciar as propostas de controvérsias sugeridas pelos legitimados do art. 28 (conforme item 3.8 abaixo).
3.4. Edital de transação por adesão
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil publicará edital contendo a proposta de transação por adesão. Esse instrumento deverá prever as hipóteses fáticas e jurídicas que se inserem na proposta, as exigências a serem cumpridas pelos contribuintes, os critérios impeditivos, o prazo para adesão, entre outros requisitos essenciais previstos no art. 6º da portaria.
Em relação aos créditos, o edital poderá prever limites considerando (i) “a etapa em que se encontre o respectivo processo tributário, administrativo ou judicial” ou (ii) “os períodos de competência a que se refiram” (art. 6º, inc. II).
Os editais serão publicados nos sítios eletrônicos dos órgãos competentes, além do próprio Ministério da Economia.
3.5. Benefícios para o contribuinte
Conforme previsto no art. 7º, o edital poderá prever descontos sobre o montante principal de até 50% (cinquenta por cento) do valor do crédito.
Para pagamento, poder-se-á prever 84 (oitenta e quatro) meses para pagamento de contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica e 60 (sessenta) meses para créditos de pequeno valor. Nesse último caso, o desconto máximo somente poderá ser atribuído caso o prazo de quitação seja igual ou inferior a 12 (doze) meses.
3.6. Procedimento inicial e suspensão da exigibilidade do crédito
Após a publicação do edital, a adesão à transação deverá ser realizada na Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil no caso de contencioso administrativo não judicializado (art. 8º, I) e na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nas demais hipóteses legais (art. 8º, II).
Com a apresentação da solicitação de adesão, os processos administrativos fiscais em trâmite que tratam dos créditos objeto da transação serão suspensos. Entretanto, não haverá a suspensão automática da
exigibilidade dos referidos créditos – que deverá ser concedida pelos órgãos
fazendários caso a caso.
Se a transação estabelecer o diferimento do pagamento dos créditos mediante parcelas periódicas ou a concessão de moratória, haverá a suspensão da exigibilidade enquanto perdurar o acordo.
3.7. Vedações
Conforme previsto no art. 14, são vedadas transações que envolvam (i) o mesmo crédito tributário já objeto de transação; (ii) redução de multas de natureza penal; (iii) devedor contumaz; (iv) controvérsia definida por coisa julgada material; (v) efeito prospectivo que resulte, direta ou indiretamente, em regime especial, diferenciado ou individual de tributação; e (vi) a acumulação das reduções previstas no edital com outras asseguradas em lei.
Além disso, não é possível conceder descontos para créditos relativos
ao “a) Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições
devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Simples Nacional), enquanto não editada lei complementar autorizativa; e b) Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), enquanto não autorizado pelo seu Conselho Curador” (art. 14, inc. III).
Caso o contribuinte tenha transação rescindida, será necessário aguardar o prazo de 2 (dois) anos contados da data da rescisão para que seja formalizada nova transação (art. 15).
Por fim, são vedadas também a moratória e o parcelamento superior a 60 (sessenta) meses para as contribuições sociais incidentes sobre a folha de salário e demais rendimentos (art. 16).
3.8. Características específicas da transação em caso de relevante e disseminada controvérsia jurídica
Além das disposições acima, aplicáveis para ambas as hipóteses de transação, a portaria prevê aspectos específicos para os créditos de relevante e disseminada controvérsia jurídica.
A competência para propor essa espécie de transação cabe ao Ministro da Economia, restando aos demais órgãos fazendários a possibilidade de sugerir os temas passíveis de serem objeto da transação, conforme previsto no
art. 28.2
Havendo sugestão de temas pelos legitimados previstos no art. 28, caberá à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a avaliação da proposta,
indicando a adequação e a vantajosidade, a partir do cotejo do “objeto da
discussão, quando houver, com: a) discussões correlatas ou similares já decididas em sede de precedente qualificado [...] ou b) a jurisprudência atual sobre o tema no âmbito do contencioso judicial e administrativo” (art. 29, §1º, inc. II).
Além disso, é necessário que a Procuradoria apresente a estimativa de créditos a serem arrecadados e das reduções a serem concedidas, além das informações sobre os processos judiciais conhecidos e que possuam o mesmo objeto (art. 29, §1º, inc. III).
À Secretaria Especial da Receita Federal caberá a avaliação dos impactos da proposta na arrecadação, fiscalização ou administração do tributo em questão, verificando inclusive se a proposta atingirá setor econômico específico ou grupo de contribuintes delimitado, além de realizar cotejo com discussões correlatas ou similares ocorridas no CARF (art. 29, §2º).
Dentre os objetivos propostos está a extinção de litígios administrativos
ou judiciais (art. 29, §3º, II) a partir de propostas que tratem de questões “que
ultrapassem os interesses subjetivos da causa e, preferencialmente, ainda não afetadas a julgamento pelo rito dos recursos repetitivos” (art. 30).
A portaria indica que a característica disseminada ocorre quando, dentre outros pontos, há mais de 50 (cinquenta) processos judiciais ou administrativos que tratem do assunto, sendo sujeitos passivos distintos. Em relação à característica relevante, a portaria prevê que o impacto econômico deva ser igual ou superior a um bilhão de reais, dentre outros aspectos.
3.10. Características específicas da transação para créditos de pequeno valor
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Secretário Executivo do Ministério da Economia, Procurador-Geral da Fazenda Nacional, Secretário Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia, presidente do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, presidente do Conselho Nacional de Justiça e presidente de confederação representativa de categoria econômica ou de centrais sindicais.
A portaria considera crédito de pequeno valor aquele que (i) a inscrição ou lançamento (compreendendo principal e multa) não ultrapasse 60 (sessenta) salários mínimos e (ii) tenham como sujeito passivo uma pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte (art. 32).
Para essa hipótese, os descontos concedidos deverão ser proporcionalmente inversos ao prazo para cumprimento da transação (art. 34, §2º). Além disso, o edital poderá prever o oferecimento, substituição ou alienação de garantias ou de constrições (art. 34, caput, inc. III).
Caso o contribuinte tenha mais de um crédito elegível para essa proposta de transação, ele poderá optar pelas condições e formas de pagamento de forma global ou individual (art. 34, §3º).
4. A transação excepcional prevista em razão da pandemia de COVID-19 No mesmo dia da publicação da portaria pelo Ministério da Economia, a
PGFN publicou a Portaria nº 14.402/2020 disciplinando “os procedimentos, os
requisitos e as condições necessárias à realização da transação excepcional na cobrança da dívida ativa da União [...] em razão dos efeitos da pandemia causada pelo coronavírus (COVID-19) na perspectiva de recebimento de créditos inscritos”.
Essa modalidade de transação visa de forma específica a superar os efeitos econômico-financeiros transitórios ocasionados pela pandemia de COVID-19, assegurando a manutenção da produção, do emprego e da renda dos trabalhadores (art. 2º). É a segunda modalidade de transação prevista nos últimos meses. A primeira, denominada transação extraordinária, encontra previsão na Portaria PGFN nº 9.924/2020, mas não há previsão de descontos.
A portaria prevê que deverá ser mensurado o grau de recuperabilidade das dívidas sujeitas à transação excepcional, considerando a situação econômica dos devedores, a capacidade de pagamento e o impacto na capacidade de geração de resultados ou na renda de pessoas físicas e jurídicas (de forma geral, caracterizada pela redução da soma da receita mensal de 2020, de março até o mês anterior à adesão, em relação à soma da receita mensal do mesmo período de 2019, em qualquer percentual.
Na sequência, os créditos serão classificados em ordem crescente de recuperabilidade: créditos tipo A, B, C e D, iniciando por alta perspectiva de recuperação, média perspectiva, difícil recuperação e irrecuperáveis, respectivamente. A depender da classificação do crédito, serão definidos os percentuais de desconto e o prazo máximo para pagamento, observados os limites previstos na Portaria nº 247/2020.
Em todos os casos, deverá ser paga entrada correspondente a 0,334% do valor atualizado dos créditos durante 12 meses, sendo o restante parcelado em até 72 vezes para pessoas jurídicas e 133 vezes para pessoas físicas, microempresa ou empresa de pequeno porte (art. 9º). É possível que o
desconto seja de até 100% (cem por cento) do valor dos juros, das multas e dos encargos-legais, observado o limite sobre o valor total crédito que varia entre 30 e 70% a depender do caso.
Além disso, é necessário que os créditos discutidos, em valores atualizados, sejam iguais ou inferiores a R$150.000.000,00 (cento e cinquenta milhões de reais). Para créditos superiores a esse limite, será necessário apresentar proposta individual respeitando os limites e condições previstos na Portaria nº 9.917/2020, publicada pela PGFN em abril.
Para essa modalidade de transação, a PGFN receberá propostas de adesão em seu sítio eletrônico no período de 1º de julho a 29 de dezembro de 2020.
5. Conclusão
As recentes normas consistem em importante passo para fortalecimento
do instituto da transação tributária no país – que até então se limitava a
portarias para situações específicas, sem qualquer regulamentação geral sobre o tema.
As normas estabelecem procedimento detalhado para que os órgãos fazendários realizem transações envolvendo o contencioso tributário, visando, nos termos da Portaria nº 247/2020 do Ministério da Economia, ao
estabelecimento de um “novo paradigma de relação entre administração
tributária e contribuintes, primando pelo diálogo e adoção de meios adequados de solução de litígio” (art. 3º, inc. IV).
Logo na sequência, frente às atribuições previstas para a PGFN, foi publicada a Portaria nº 14.402/2020 prevendo a hipótese de transação excepcional para créditos em dívida ativa da União no valor máximo de R$150.000.000,00 (cento e cinquenta milhões). A portaria prevê procedimento mais benéfico que o previsto na portaria anterior, com a possibilidade de concessão de prazo e descontos, mas estabelece um teto mais baixo.
Contudo, considerando os efeitos econômicos da pandemia de COVID-19, é provável que muito em breve sejam lançados diversos outros editais
visando à recuperação de créditos fiscais – seja pela própria necessidade dos
entes federativos de fazer frente às dificuldades econômicas, seja como meio de fomentar a economia e manter a capacidade produtiva das empresas e, consequentemente, do país.
Informação bibliográfica do texto:
SCHWIND, Rafael Wallbach; MAIA, Fernanda Caroline. A regulamentação da transação tributária: Portarias Nº 247/2020 (Ministério da Economia) e nº 14.402 (PGFN). Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, n.º
160, junho de 2020, disponível em http://www.justen.com.br/informativo, acesso em [data].