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Os sentidos no nascer sobre a mercantilização da maternidade

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Academic year: 2021

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“Os sentidos no nascer” –

sobre a mercantilização da

maternidade

Natalia Conti

O Blog Convergência visitou a exposição “Os sentidos no nascer”, no Rio de Janeiro, realizado na Praça Tiradentes, e entrevistou Valesca Egídio. Valesca é formada em Enfermagem pela PUC MINAS, especialista em Terapia Intensiva Neonatal e Pediátrica pela mesma universidade, e atualmente cursa residência em Enfermagem Obstétrica pela UFRJ.

Com teatralização sobre a mercantilização da saúde reprodutiva e podendo percorrer o caminho do nascimento, passando por um corpo gigante, a exposição teve o objetivo de informar e conscientizar sobre a questão do parto normal e problematizar a naturalização que existe em relação à realização de cesáreas, desmistificando os critérios comumente difundidos para a adoção de um método ou outro de parto. O tema da violência obstétrica ganhou muita força recentemente no movimento feminista brasileiro, tendo alcançado uma visibilidade importante, com denúncias de casos e debate público sobre a necessidade em se discutir o problema da mercantilização da saúde e os seus impactos no corpo e na vida das mulheres. A conversa com Valesca, uma das profissionais atuantes na exposição, tem o sentido de contribuir com esse debate.

Natalia – Fiquei muito positivamente impressionada com a

exposição. Antes de entrar, pelo que tenho acompanhado do tema nas redes sociais, principalmente através dos grupos que lutam pelo direito ao parto humanizado, julguei conhecer mais do que conheço na verdade. A exposição mostra que a ignorância reina fortemente sobre o tema da cesárea no Brasil. Gostaria que

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você apresentasse, primeiramente, como surgiu esse projeto e a ideia da exposição; com qual finalidade.

Valesca – Este é um projeto de uma médica de Belo Horizonte,

Sônia Lansky, e de Bernardo Jefferson de Oliveira. No site do projeto eles explicam assim: “Sentidos do Nascer é um projeto que conjuga arte, ciência e tecnologia. Utiliza metodologias de pesquisa-ação para promover transformações nas representações sociais sobre o parto e o nascimento e para analisar as implicações da exposição na percepção dos visitantes”.

A prefeitura do Rio de Janeiro trouxe o projeto pra cá, e solicitou às universidades que oferecem residência em obstetrícia que ajudassem no projeto como mediadores. O objetivo das universidades é divulgar o trabalho da enfermagem obstétrica, e viram no projeto a oportunidade de informar a população sobre nosso trabalho e sobre o parto fisiológico.

N – Durante a exposição você relatou que a OMS havia

estabelecido uma meta de diminuição de mortes maternas, e que o Brasil, com um número muito grande ainda não vencido, teria associado as mortes ao número abusivo de cesáreas. Como isso tem sido tratado pelo poder público brasileiro?

V – Sim, as metas do milênio foram estabelecidas pela

Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000, sendo o Brasil um dos signatários desse projeto, e ficaram conhecidas como Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Os objetivos 4 e 5 são: 4) Reduzir a mortalidade infantil; e 5) Melhorar a saúde das gestantes.

O objetivo 4 o Brasil conseguiu cumprir, mas o 5 não. O país ainda não alcançou a meta. Segundo estimativas da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, entre janeiro e setembro de 2011, a mortalidade materna diminui 21%. A meta é atingir 35 óbitos por 100 mil nascidos vivos em 2015.

Uma maior redução da mortalidade materna depende das ações de promoção integral da saúde das mulheres em idade fértil, e de desenvolvimento de sistemas integrados de saúde pública entre

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os governos Federal, Estadual e Municipal; e com a participação da sociedade.

N – Pelo que entendi, o cumprimento da quinta meta estaria

associado à questão da diminuição do número de cesáreas no Brasil. Como se dá isso? Recentemente acompanhamos diretivas do governo para a saúde que implementavam um projeto de saúde da mãe, a despeito da saúde da mulher de forma integral. Como você enxerga esse movimento? Qual a sua opinião a respeito?

V – Para melhorar a saúde materna, o Ministério da Saúde

instituiu em 2011, no âmbito do SUS, a Rede Cegonha. O programa constituiu-se como uma rede de cuidados que visa assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto puerpério; bem como à criança o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e desenvolvimento saudáveis. Para isso, o Brasil, que é campeão mundial em cesáreas, precisa reduzir suas taxas.

O objetivo do milênio é melhorar a saúde da gestante. Toda a política de saúde para as mulheres é focada apenas na gestação. Como se nosso único objetivo na vida fosse o de ser mãe, e só nesse momento deveríamos ter direito à saúde. Continuamos apenas a ser incubadoras de gente; nosso papel social continua sendo apenas o reprodutivo. Com relação às outras ações de saúde da mulher, o governo lançou também um programa de prevenção de câncer de colo do útero e de mama. Parece que, se garantirmos a saúde no campo reprodutivo, está tudo bem. A mulher não é enxergada além desse campo.

N – Você citou o Rede Cegonha; esse projeto foi bastante

polêmico entre as feministas, principalmente no que diz respeito a uma possibilidade de maior controle do Estado em relação aos abortos. Essa foi uma coisa que senti falta na exposição, que fala bastante sobre o nascimento e o parto natural como uma vontade, um momento que deve ser querido e esperado, além de garantido, do ponto de vista da saúde pública. Mas não cita o número de mortes de mulheres todos os

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anos em razão dos abortos realizados em condições precárias. Como você vê essa relação?

V – O objetivo da exposição era falar sobre a humanização do

parto e, portanto, do nascimento. Por isso o aborto não foi tratado. Mas várias pessoas tocaram nesse tema com os mediadores, acho que também sentiram falta.

O tema do aborto é sempre um tabu e passa por várias questões, mas em todas elas, o centro é sempre o mesmo: o corpo da mulher é propriedade de quem? Quem pode dizer o que fazer com ele? A igreja, o Estado, a própria mulher? Na minha opinião o corpo é de propriedade da mulher, e é ela quem decide o que fazer com ele, e principalmente quando ela deve gerar outro ser humano. Cabe ao Estado dar as condições para ela decidir. Desde 1994, o Brasil tenta implementar uma política de saúde e direito reprodutivo, mas avançou muito pouco no que diz respeito ao direito reprodutivo.

O Plano de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, e o documento resultante da IV Conferência Mundial da Mulher, que aconteceu em Pequim, em 1995, legitimaram o conceito de direitos reprodutivos na sua concepção atual, e estabeleceram novos modelos de intervenção na saúde reprodutiva e de ação jurídica, comprometidos com os princípios dos direitos humanos. O documento do Cairo destaca como direitos humanos básicos:

– decidir livremente e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos;

– ter acesso à informação e aos meios para decidir e gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva, livre de discriminações, coerções ou violência.

Desde 1994 o Brasil tenta implementar políticas para garantir este direito, mas ainda tem falhado.

N – Atualmente, os movimentos que existem pró-parto

humanizado, em sua maioria, envolvem um grupo social de classes médias ou altas. Assim como o aborto é legalizado para

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as mulheres que podem pagar por atendimento em clínicas de luxo, em segurança, o parto humanizado, em casa, custa muito caro e, deste modo, é restrito a uma camada bem pequena das mulheres brasileiras. Existem movimentos de profissionais da rede pública que pautam a necessidade de que se criem condições para as mulheres trabalhadoras fazerem parto humanizado? Existe hoje na rede pública de saúde essa possibilidade, semelhante ao que vivenciam as mulheres que têm seus filhos em casa com o acompanhamento de doulas e enfermeiras?

V – Sim, como já foi dito, é necessário que a taxa de cesáreas

caia para que o parto normal volte a ser a primeira opção das mulheres. Por isso é necessário que o parto normal seja visto de outra forma pelas mulheres e por toda a sociedade. Ele precisa oferecer as melhores práticas para a assistência materna. As melhores práticas, aquelas baseadas em evidências científicas, devem estar disponíveis para a população. Por isso, existe um movimento por parte das instituições públicas e seus profissionais.

A doula é um profissional importante nesse processo de humanização do parto, mas infelizmente ela não integra a equipe destas instituições. Como a doula muitas vezes não é um profissional de saúde, ela não está envenenada com os vícios dos profissionais, e pode de fato ajudar as mulheres. Mesmo que ela seja profissional de saúde, ela não pertence àquela instituição onde o parto está sendo feito, e não precisa seguir os procedimentos adotados pela instituição, que amarram um pouco a gente. E isso ajuda a mulher. Mas justamente pelo falo de não ser da instituição, ela presta um serviço particular, pago à parte. Se o Estado oferecer, ela passa a ser funcionária do Estado, e portanto fica amarrada também.

N – Uma tônica muito forte na exposição é a questão da

mercantilização da saúde e o impacto disso na saúde reprodutiva da mulher. Você considera que a distância que nos separa de uma saúde integral e do alcance dessas metas está

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relacionado principalmente a isso?

V – Nesta lógica de mercantilização da saúde, o valor pago

pelo produto passa a ser mais importante do que a qualidade produto. Com a saúde não é diferente; em nome do menor custo, a qualidade na assistência da mulher que está gestando tem sido sacrificada. Alguns elementos para pensar a questão:

consultas rápidas – A mercantilização da saúde começa do pré-natal, estende-se durante toda a gestação e até depois dela. O valor pago pelas consultas é pequeno, sendo necessário que o profissional realize muitas consultas diariamente. Para manter a produtividade, as consultas no pré-natal têm de ser rápidas e não é possível dar a devida atenção às necessidades de saúde desta mulher. Orientações deixam de ser dadas, alterações deixam de ser percebidas e o que se oferece em termos de assistência é muito aquém do que deveria.

equipe reduzida – Para ser melhorar a assistência seria necessário um aumento no número de profissionais, tanto no pré-natal quanto nas unidades de assistência ao parto. Assim, poderíamos prestar um cuidado mais humanizado e próximo a estas gestantes.

estrutura física – Nas instituições de assistência ao parto, além do número reduzido de profissionais, temos problemas com a estrutura física. A estrutura física que temos hoje na maioria das instituições não favorece a aplicação das melhores práticas. Na maioria das instituições, as salas de pré-parto não permitem a privacidade da gestante e nem a acomodação de um acompanhante durante o trabalho de parto. Teria que haver reformas em várias estruturas.

processo de trabalho – Por fim, e não menos importante, o trabalho de parto que culmina no parto normal/vaginal é um processo demorado, e o profissional que opta por acompanhar este trabalho de parto recebe um valor menor se comparado ao valor da cesárea. Sendo um procedimento cirúrgico, o valor

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pago pela cesárea é maior e o tempo gasto em sua realização é menor. Dessa forma, a cesárea é um um procedimento mais rentável. Para a mulher, porém, o processo fisiológico do trabalho de parto traz benefícios muito superiores, se comparado a ser submetida a um procedimento cirúrgico, principalmente quando ele é desnecessário.

Como se pode ver, o valor direcionado para saúde ainda é aquém do necessário para sanar a necessidade da população.

N – Queria que você falasse sobre os principais mitos em

relação aos benefícios da cesárea e os riscos do parto natural.

V – A retirada do bebê de forma natural do corpo materno traz

muitas vantagens, tanto para a mãe quanto para o bebê. A OMS indica que até 15% dos partos sejam cesarianas, porém, no Brasil estes índices são bem mais altos do que isso. O risco de morte materna associada à cesariana, por exemplo, é 3,5 vezes maior do que ao método natural.

O parto por via vaginal traz melhor recuperação da mulher, menos riscos de infecções, hemorragias e lesões de órgãos abdominais. Há estudos que demostram que o risco de trombose (entupimento das veias) também é menor, uma vez que a paciente se movimenta durante todo o trabalho de parto e volta a caminhar mais rápido do que depois de uma cesárea. A perda de sangue é menor no parto normal do que em uma cesárea, já que não é preciso realizar nenhum corte mais profundo.

O vínculo entre a mãe e o filho fica mais fortalecido, pois logo após o parto, o bebe é entregue à mãe para que seja acolhido, abraçado e amamentado. É um momento importantíssimo para a mãe e para o bebê. Durante o trabalho de parto normal o bebê passa por estresse que desencadeia a produção de um a substância chamada corticoide, que ajuda a preparar o organismo do bebê para o ambiente externo ao útero. A saída pelo canal vaginal faz compressão no tórax do bebê, ajudando a eliminar todo o líquido amniótico das vias respiratórias, aliviando desconfortos respiratórios das primeiras horas de

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vida.

Não existe desvantagem no parto normal. A dor é um processo fisiológico e acontece porque o útero está contraído para expulsar o bebê do seu interior. E para ela temos métodos farmacológicos – medicações – e não farmacológicos para alívio da dor, como massagens, banhos de banheira e atividades, como exercícios na bola.

As condições clínicas da mulher ou do bebê podem se alterar durante o trabalho de parto e pode ser necessária uma intervenção cirúrgica. Portanto, é de extrema importância que a gestante seja acompanhada por profissionais capacitados para intervir no momento certo. A cesárea é um procedimento importante que, quando bem indicado, pode salvar vidas.

Porém, ele não está livre de efeitos indesejados. O maior mito de benefício da cesárea é a ausência de dor. É fato que durante o procedimento, a mulher estará sobre efeitos anestésicos e, portanto não sentirá dor ao nascer o bebê. Porém, como qualquer procedimento cirúrgico, ele poderá passar por experiências dolorosas durante o pós-operatório. Haverá dificuldades em locomover-se, amamentar e cuidar de si mesma e do bebê.

Portanto, é necessária uma boa avaliação sobre a real necessidade de intervenção cirúrgica.

N – Qual a sua impressão sobre o impacto da exposição, quanta gente circulou e se atingiu os objetivos pretendidos.

V – A exposição impactou muito as pessoas; várias saíram de lá falando que após a exposição, têm outra visão do parto normal. Não sei quantos foram os visitantes. Ainda estou atrás dessa informação.

Valesca apontou ainda algumas referências para pensar o assunto:

http://www.odmbrasil.gov.br/os-objetivos-de-desenvolvimento-do -milenio

Acessado em 02/08/2015

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Acessado em 02/08/2015

http://www.minhavida.com.br/familia/materias/15767-conheca-dif erencas-e-vantagens-do-parto-normal. Acessado em 03/08/2015

Aos que virão depois de nós –

resenha do livro Orquestra

Vermelha

Ramsés Eduardo Pinheiro

Realmente, vivemos tempos sombrios! A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas denota insensibilidade. Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar. Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes, pois implica em silenciar sobre tantos horrores?!

(Tempos Sombrios, Bertolt Brecht) Publicado no Brasil no momento em que se comemoram os 70 anos do final da Segunda Guerra Mundial, o livro Orquestra

Vermelha: a história do grupo de amigos que resistiu a Hitler

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uma história muito pouco ainda ignorada: a resistência dos alemães comuns ao Terceiro Reich. Resultado de uma longa e competente pesquisa realizada a partir do final dos anos 1990 pela jornalista e dramaturga Anne Nelson, o livro estrutura-se sobre uma extensa e sólida base empírica que torna possível a autora desenvolver uma narrativa magnífica sobre a ascensão e consolidação do regime nazista na Alemanha nos anos 1930 e grupo de resistentes de Berlim que lutou clandestinamente contra as atrocidades do aparato repressivo alemão.

O título do livro levante uma série questionamentos que são trabalhados por Anne Nelson ao longo de sua narrativa. A expressão Orquestra Vermelha foi utilizada pela inteligência alemã para nomear a rede de espionagem soviética que atuou na Europa Ocidental durante a Segunda Guerra Mundial. O pouco que conhecemos sobre o tema está presente no livro autobiográfico

O Grande Jogo escrito pelo agente secreto polonês soviético

Leopold Trepper, onde o mesmo narra sua experiência no comando da referida rede de espionagem que foi capaz de enviar informações sobre a invasão alemã à União Soviética, advertência esta ignorada por Stálin, resultando em milhões de perdas humanas. O próprio Trepper foi vítima do regime stalinista quando retornou a União Soviética em 1945, ocasião em que foi preso e permaneceu cerca de dez anos encarcerado nos porões da Lubianka, a sede da polícia política soviética em Moscou.

A autora pontua que o termo Orquestra Vermelha foi estendido a todos os grupos que resistiram ao regime nazista independente de sua relação com os soviéticos. De todo modo, Anne Nelson ressalta, em diversos momentos, que o grupo de resistentes de Berlim manteve contatos pontuais com os agentes soviéticos (inclusive com o grupo de Trepper) a despeito de preservar sua autonomia ideológica e operacional. O subtítulo do livro “o grupo de amigos que resistiu a Hitler”, demonstra o caráter singular que o círculo de resistentes de Berlim assumiu e que serve como mote para a narrativa da autora que acompanha a

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história do grupo e sua resistência a partir da perspectiva da jovem Greta Lorke Kuckhoff uma das únicas sobreviventes que deixou um relato memorialístico de sua experiência na resistência antifascista.

A partir da trajetória de Greta vamos sendo apresentados a todos os outros personagens que integravam o grupo de resistentes de Berlim. Desta forma, conhecemos o economista alemão Harvid Harnack e sua esposa a crítica literária estadunidense Mildread Fish, os quais Greta conheceu durante seus estudos nos Estados Unidos nos anos 1920. Também conhecemos o proeminente dramaturgo Adam Kuckhoff, futuro esposo de Greta. Também somos apresentados ao operário John Sieg e sua esposa polonesa Sophie Wloszczynski. John é sem dúvida um dos personagens mais fascinantes do livro, sua condição de operário, jornalista e comunista lhe conferiu uma posição central no processo de resistência ao regime nazista. Completando o núcleo central do círculo de resistentes de Berlim, somos apresentados ao oficial da Luftwaffe

Harro Schulze-Boysen e sua esposa Libertas Haas-Heye, ambos

com ampla circulação entre os círculos aristocráticos e o universo da resistência na capital do Terceiro Reich.

Um dos pontos forte da obra é o papel que a autora confere as mulheres do grupo. Longe de representarem esposas passivas que acompanharam seus maridos na luta contra o nazismo, elas desempenharam uma papel ativo na construção da rede de resistência antifascista de Berlim. Greta, Mildread, Sophie, Libertas e outras mulheres, como a atriz Marta Wolter, revelam toda sua indignação contra as atrocidades perpetradas pelo regime nazista e deixam bastante clara sua escolha de “fazer aquilo que era certo”, ou seja, resistir. Neste sentido, Anne Nelson também destacou a participação ativa das mulheres nos debates políticos e nas operações clandestinas, bem como suas posições emancipatórias em relação a temas como casamento e sexo.

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Weimar na transição das décadas de 1920 para 1930. As imagens de crise econômica e pauperização crescente da população alemã, intensificadas após a crise de 1929, são expostas paralelamente à grande efervescência cultural em Berlim, a capital mais cosmopolita da Europa segundo a autora. Este frenesi cultural é percebido através da grande importância que o teatro adquiriu na capital alemã, inclusive, como instrumento de crítica política e social amplamente utilizado pelo Partido Comunista Alemão (KPD) e intelectuais engajados como Adam Kuckhoff e o jovem Bertolt Brecht. Em meio às ambigüidades deste contexto, Greta e seus amigos observavam com grande preocupação o rápido crescimento do Partido Nazista na Alemanha.

Anne Nelson aborda a ascensão do nazismo na Alemanha a partir de uma perspectiva que confere ao KPD grande parcela da responsabilidade pela chegada de Hitler ao poder. A autora pontuou que ao estabelecer o Partido Social-Democrata (SPD) como seu principal inimigo, os comunistas alemães deixaram o terreno aberto para que os nazistas chegassem ao poder. Anne Nelson explora esta questão argumentando que a política adotada dos comunistas alemães representou um processo de intensa subordinação dos partidos comunistas locais aos ditames da Internacional Comunista, cujo VI Congresso (1928) determinou que os partidos social-democratas deveriam ser considerados os principais oponentes dos comunistas. Em última instância, a autora atribui a Stálin a inviabilização da aliança entre comunistas e socialistas na Alemanha, fato este determinante para a ascensão do nazismo nos pais.

Um ponto negativo no livro da jornalista estadunidense é que ela não expõe a matriz desta interpretação sobre a conquista do poder pelos nazistas. Perseguido intensamente pelo regime stalinista e expulso da União Soviética, Leon Trotsky observou com crescente preocupação a política dos partidos comunistas locais, em especial do KPD alemão, em relação aos partidos socialistas. Diante deste contexto, Trotsky escreveu diversos

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textos defendendo intransigentemente a formação de uma Frente Única entre o KPD e o SPD, sempre alertando que a frustração desta aliança representaria uma carta branca ao nazismo. Os trotskistas brasileiros reuniram estes textos no livro

Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, publicado

originalmente em 1933 e recentemente reeditado pela Editora Sundermann.

A tomada do poder pelos nazistas na Alemanha em 1933 adquiriu uma grande relevância para Trotsky, significando a sua ruptura definitiva com a Internacional Comunista stalinizada e o início da construção da IV Internacional como alternativa marxista e revolucionária. Anne Nelson também apresenta outro debate menos conhecido, trata-se da prisão e execução de inúmeros comunistas alemães que se exilaram na União Soviética após a subida dos nazistas ao poder na Alemanha. A autora ressalta que além de exterminar milhões de dissidentes soviéticos, os expurgos promovidos pelo regime stalinista nos anos 1930 também foi responsável pelo perecimento de 90% dos comunistas estrangeiros que se encontravam em Moscou, entre eles inúmeros comunistas alemães vistos como uma ameaça por Stálin e pela cúpula do KPD.

O historiador trotskista francês Pierre Broué aponta que a eliminação dos comunistas alemães pelo regime stalinista foi comparável a repressão que os mesmos sofreram pelo nazismo na Alemanha. Utilizando dados do historiador Hermann Weber acerca do assassinato dos dirigentes do KPD, Broué aduziu que:

Hermann Webber fez as contas: seis ex-membros do Polburo do tempo de Weimar foram mortos por Hitler; cinco membros titulares e dois suplentes, por Stálin. Dos membros do último Polburo, dois foram mortos por Hitler; cinco, por Stálin. Dos 35 membros do Comitê Central eleito em 1927, sete foram mortos na Alemanha e o mesmo tanto na União Soviética. Dos 38 membros eleitos do CC em 1929, sete pereceram na Alemanha; seis na União Soviética. Dos 131 membros ou suplentes do CC do tempo de Weimar, 18 foram vítimas de Hitler; 15, de Stálin. Trinta e

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seis ex-deputados comunistas do Reichstag pereceram sob Hitler; 13, sob Stálin. Dos 127 delegados do Congresso de fundação do KPD; quatro foram mortos pela direita; quatro, por Hitler, e sete, por Stálin. (BROUÉ; 2007).

Se pensarmos no conjunto dos comunistas alemães exterminados pelo stalinismo e pelo nazismo estes números certamente alcançam cifras ainda mais assustadoras. A autora aponta que este massacre recrudesceu após a assinatura do Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético em 1939, quando Stálin entregou aos nazistas milhares de comunistas alemães acusados de dissidência. A perseguição sistemática aos comunistas alemães exilados em Moscou, bem como a execução de grande parte dos agentes da inteligência militar soviética, terminou por minar as possibilidades de solidariedade internacional aos antifascistas alemães, isolando, assim, os círculos de resistência como aquele do qual participariam Greta e seus amigos em Berlim.

A intensificação da repressão nazista, desde o assassinato brutal do ator comunista Hans Otto no final de 1933 até a construção dos primeiros campos de concentração para presos políticos, foi acompanhada por uma forte indignação de alemães como Greta, Adam e seu grupo de amigos. A passagem a clandestinidade foi o primeiro passo na formação de um círculo de resistência ao novo regime, cujas atividades iniciais se voltaram para a produção e distribuição de panfletos em Berlim denunciando o regime nazista. Mais tarde, muitos integrantes da resistência que trabalhavam em instituições do governo nazista, como Harnack e Harro Schulze-Boysen, passaram a reunir informações-chave sobre a estrutura econômica e militar alemãs, repassando-as a URSS e em menor grau aos EUA. Outra atividade permanente do grupo foi à retirada de judeus do país, operações que sempre envolviam grandes riscos aos participantes.

O desenvolvimento das atividades clandestinas de resistência antifascista em Berlim teve como uma das suas principais bases

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de apoio o bairro operário de Neukölln, que mesmo antes da tomada do poder pelos nazistas era uma das bases mais importantes do KDP. A principal liderança deste bairro era operário comunista John Sieg, a partir deste personagem a autora nos apresenta aos militantes de base do KPD que resistiram à repressão e ao desmantelamento do partido pelos nazistas, restabelecendo suas atividades entre os operários industriais de Berlin. A partir de um velho hectógrafo (uma espécie de mimeógrafo), os militantes de Neukölln reproduziam os textos datilografados por Sieg (outrora um dos redatores do jornal comunista Bandeira Vermelha) e os distribuíam clandestinamente por vários pontos de Berlim. Anne Nelson também evidenciou a forte aversão destes militantes comunistas de base aos membros do Comitê Central do KPD exilados em Moscou e protegidos por Stálin, como Walter Ulbricht, futuro Presidente do Conselho de Estado da Alemanha Oriental.

Anne Nelson evidencia que não havia um grupo de resistência unificado em Berlim, sendo mais adequado falar em círculos que se superpunham como aqueles em torno de Arvid Harnack, Harro Schulze-Boysen e John Sieg. Apesar da forte influencia que os comunistas exerciam no grupo e da simpatia de Adam Kuckhoff e Arvid Harnack pelas ideias socialistas, a autora ressaltou a heterogeneidade na formação destes círculos:

No final de 1941, os círculos haviam se espalhado e se multiplicado em muitas direções. Nunca existiu uma forma de contar seus membros. Já que não se mantinha nenhum registro e o conhecimento sobre outros grupos era o mínimo possível, por questões de segurança. Mas os grupos se estendiam pela profissão médica, pelos militares, a academia e as artes. Politicamente eram constituídos por conservadores, comunistas, social-democratas e ex-nazistas. Suas afiliações católicas incluíam católicos, luteranos, judeus e uma cartomante profissional. As idades iam de adolescentes a avós e avós idosos, e abarcavam de aristocratas a moradores de casas de cômodos. Suas atividades estavam concentradas em algumas

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vizinhanças de Berlim, mas seus contatos estendiam-se pelo país. (NELSON; 2015).

A descrição oferecida pela autora revela a pluralidade de atores que formavam a resistência antifascista na Alemanha, multiplicidade que tinham como ponto de a derrocada do nazismo. Após um intenso cerco promovido pela polícia política nazista, quase todos os membros do grupo de resistentes de Berlin foram condenados a morte e execução nos porões da sede da Gestapo entre 1942 e 1943. Greta foi uma das poucas sobreviventes do grupo, após o fim do nazismo na Alemanha sua principal batalha foi levar a julgamento o juiz militar nazista Manfred Roeder que condenou sumariamente seus amigos à morte. O desejo de justiça de Greta foi inviabilizado pela nova política dos EUA que recrutou inúmeros nazistas para enfrentar seu novo inimigo, a União Soviética, entre eles Roeder o responsável pela condenação e execução dos membros da famigerada Orquestra Vermelha.

O historiador francês Marc Ferro chama a atenção para o forte tabu que envolve a adesão das populações aos regimes fascistas, levantando a responsabilidade não apenas das instituições, mas também dos grupos sociais. De outro modo, também podemos argumentar que a atuação dos grupos de resistência antifascista na Alemanha nazista também ainda é um tema muito pouco explorado. Neste sentido, este assunto só começou a ser esclarecido após a reunificação da Alemanha, quando os mitos sobre a Orquestra Vermelha começaram a ser desfeitos. A partir da minuciosa pesquisa de Anne Nelson, os personagens do grupo de resistentes de Berlim começaram a emergir dos arquivos alemães, russos e norte-americanos, bem como das memórias dos sobreviventes do grupo como Greta não somente como instrumentos de forças externas, mas como sujeitos ativos e conscientes.

O livro de Anne Nelson representa uma enorme contribuição no sentido de resgatar a história do grupo de resistentes de Berlim do silenciamento imposto pela antiga Alemanha Ocidental

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e EUA, bem como da tentativa da antiga URSS de concebê-lo como mais um instrumento de sua rede de espionagem. Sua obra ainda apresenta uma importante contribuição no tocante ao debate sobre a responsabilidade do KPD, da Internacional Comunista e de Stálin em relação à ascensão dos nazistas na Alemanha e também sobre o impacto dos expurgos do regime stalinista sobre os comunistas estrangeiros, em especial dos alemães, e também sobre a rede de inteligência militar soviética.

Enfim, em tempos em que os partidos de extrema direita se fortalecem na Europa defendendo abertamente um discurso de ódio aos imigrantes, recuperar a história dos homens e mulheres que resistiram ao nazismo na Alemanha significa antes de tudo reafirmar a necessidade de lutar permanentemente contra toda e qualquer ameaça fascista. Hoje, como há setenta anos e mais anos.

REFERÊNCIAS

NELSON, Anne. A Orquestra vermelha: a história do grupo de amigos que resistiu a Hitler. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015.

TREPPER, Leopold. O grande jogo. Lisboa: Portugália, 1975.

TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Editora Sundermann, 2011.

BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista, 1919-1943: da atividade política á atividade policial e anexos. São Paulo: Editora Sundermann, 2007.

FERRO, Marc. História da segunda guerra mundial. São Paulo: Editora Ática, 1995.

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Reversão do corte de ponto

pelo CNJ: uma questão de

legalidade

Jorge Luiz Souto Maior(*)

Marcus Orione Gonçalves Correia(*) Valdete Souto Severo(*)

Luís Carlos Moro(*) Alberto Alonso Muñoz(*)

Almiro Eduardo de Almeida(*) Alessandro da Silva(*)

A Constituição de 1988 inverteu uma lógica de negação concreta ao direito de greve, que foi explicitada em diversos momentos da história do Brasil: Lei n. 38, de 4 de abril de 1935; Constituição de 1937; Decreto-Lei n. 431, de 18 de maio de 1938; Decreto-Lei n. 1.237, de 2 de maio de 1939; Código Penal de 1940; Lei n. 4.330, de 1º. de junho de 1964; e “lei de segurança nacional”, de março de 1967; mas o que se verifica é que boa parte dos entendimentos jurídicos sobre a greve ainda hoje se pautam pela ideia de que a ordem jurídica deva servir para inibir a greve em vez de garanti-la, mesmo que o Supremo Tribunal Federal já tenha se pronunciado, exatamente em sentido contrário (Mandado de Injunção 712, Min. Relator Eros Roberto Grau).

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redemocratização do país, que só foi possível em decorrência do advento das greves iniciadas no final da década de 70, os direitos dos trabalhadores ganharam posição privilegiada, inscritos que foram no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, com especial relevo para o direito de greve:

Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

Certo que o § 1º do art. 9º da Constituição estabeleceu que “a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” e que “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei”. Mas essas especificações atribuídas à lei não podem ser postas em um plano de maior relevância que o próprio exercício da greve. As delimitações legais, para atender necessidades inadiáveis e para coibir abusos, não podem ser vistas com um alcance tal que inviabilize o exercício do direito de greve.

Nos termos da Lei n. 7.783/89, deflagrada a greve, compete à entidade empregadora manter diálogo com os trabalhadores e não valer-se da via judicial para que esta dirima o conflito. Preceitua o artigo 9º da Lei n. 7.783/89 que “Durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar

os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável,

pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento.” – grifou-se

As responsabilidades pelo efeito da greve não podem, portanto, ser atribuídas unicamente aos trabalhadores, até porque estão no exercício de um direito. Aos empregadores também são

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atribuídas responsabilidades e a primeira delas é a de abrir negociação com os trabalhadores, inclusive para definir como será dada continuidade às atividades produtivas.

A greve no serviço público, oportuno dizer, não é apenas um ato político de interesse dos trabalhadores como se possa acreditar. Trata-se de uma ação de interesse de toda a sociedade, mesmo quando seu objetivo imediato seja a reivindicação salarial. Afinal, a prestação adequada e de qualidade de serviços à população, que é um dever do Estado, notadamente quando se trata de direitos sociais, depende da competência e da dedicação dos trabalhadores. Sem um efetivo envolvimento dos trabalhadores o Estado não tem como cumprir as suas obrigações constitucionalmente fixadas.

Mas foi a aversão cultural à greve, que gera interpretação extensiva da Lei n. 7.783/89, para aniquilar o direito de greve e fazer letra morta da Constituição Federal, que parece ter inspirado a decisão proferida pelo CNJ, que determinou o corte de ponto dos servidores da Justiça Federal em greve (Pedido de Providências – 0003835-98.2015.2.00.000).

Ora, ao contrário da fundamentação constante da referida decisão, a perda do salário, conceitualmente falando, só ocorre em caso de falta não justificada ao trabalho e a ausência da execução de trabalho, decorrente do exercício do direito de greve, está justificada pelo próprio exercício do direito constitucional da greve.

Além disso, não há distinção legal entre suspensão e interrupção do contrato de trabalho e também não há unanimidade entre os doutrinadores a respeito do melhor critério para identificar as figuras em questão. Arnaldo Süssekind, por exemplo, comentando a origem da distinção, que teria espelhado em experiências estrangeiras, prefere utilizar as expressões “suspensão total” e “suspensão parcial” do contrato de trabalho, fazendo menção, ainda, à posição

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quanto a distinção adotadas pela CLT, sustentando que se verifica em qualquer situação apenas “a suspensão da prestação de execução de serviço”[1].

No tema pertinente à suspensão da relação de emprego, o que importa é, portanto, verificar quais os efeitos obrigacionais são fixados por lei. Não cabe à doutrina dizê-lo. Se o legislador não fixou diferença entre suspensão e interrupção e, ademais, considerando o pressuposto da experiência jurídica estrangeira, trouxe essa forma de nominação fora de um parâmetro técnico, não se pode dizer que quando, em lei especial, referiu-se apenas à suspensão tenha acatado a classificação feita pela doutrina, que, ademais, como dito, não é unânime quanto aos critérios de separação entre hipóteses de suspensão e interrupção.

A lei de greve, além disso, é uma lei especial e que se insere na órbita do Direito Coletivo do Trabalho. Não é tecnicamente correto, portanto, do ponto de vista da lógica hermenêutica, buscar o sentido de um artigo dessa lei a partir de fórmulas doutrinárias imprecisas voltadas a situações genéricas, construídas no âmbito do Direito Individual.

De todo modo, essa polêmica não tem nenhuma relevância na solução do presente problema teórico, pois os efeitos jurídicos atribuídos a cada situação fática em que não há prestação de serviço por parte do empregado e o contrato permanece vigente devem ser definidos em lei e quanto a isso não há qualquer divergência.

Ora, a Lei n. 7.783/89 não trata dos efeitos salariais da greve, deixando a questão, expressamente, para o âmbito da negociação coletiva ou para eventual decisão da Justiça do Trabalho.

A referência legal à suspensão está atrelada à preocupação primordial de proteger o direito de greve, para que o grevista não sofra represálias pelo exercício da greve, notadamente,

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com a perda do emprego. É fácil verificar isso com a simples leitura do artigo da lei, que trata do assunto:

Art. 7º Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho,

devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.

Parágrafo único. É vedada a rescisão de contrato de trabalho

durante a greve, bem como a contratação de trabalhadores

substitutos, exceto na ocorrência das hipóteses previstas nos arts. 9º e 14.

Não há, portanto, na lei, qualquer autorização para o empregador por ato unilateral, cortar salários dos trabalhadores em greve.

Cumpre observar que a Lei 7.783/89 é fruto de uma Medida Provisória, a MP 59 de 26/05/1989, cujo artigo 5º previa:

Art. 5º A participação em greve legal não rescinde o contrato

de trabalho, nem extingue os direitos e obrigações dele

resultantes.

Parágrafo único. A greve suspende o contrato de trabalho,

assegurando aos grevistas o pagamento dos salários durante o período da sua duração e o cômputo do tempo de paralisação

como de trabalho efetivo, se deferidas, pelo empregador ou

pela Justiça do Trabalho, as reivindicações formuladas pelos empregados.

Essa, aliás, tem sido a conduta adotada pela Justiça do Trabalho, de forma majoritária, de negar o direito ao salário aos trabalhadores em greve apenas na hipótese de greves consideradas ilegais ou abusivas.

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recordar que o artigo 5º da MP 59, acima citado, é uma transcrição do art. 20 da Lei 4.330/64, que assim dispunha:

Art. 20. A greve licita não rescinde o contrato de trabalho, nem extingue os direitos e obrigações dêle resultantes.

Parágrafo único. A greve suspende o contrato de trabalho,

assegurando aos grevistas o pagamento dos salários durante o período da sua duração e o cômputo do tempo de paralisação como de trabalho efetivo, se deferidas, pelo empregador ou pela justiça do Trabalho, as reivindicações formuladas pelos empregados, total ou parcialmente.

Ou seja, a investigação histórica demonstra que está totalmente desautorizado conferir à Lei 7.783/89 um sentido mais restritivo do direito de greve do que aquele que já se tinha naquela que ficou conhecida como “lei antigreve” (n. 4.330), do período da ditadura militar.

Se todos os trabalhadores, manifestando sua vontade individual, deliberam entrar em greve, o sindicato, como ente organizador do movimento, deve, segundo os termos da lei, orientar a forma de execução das atividades inadiáveis do empregador. Para tanto, deverá indicar os trabalhadores que realizarão os serviços, os quais, mesmo tendo aderido à greve, terão que trabalhar. Prevalecendo a interpretação de que a greve representa a ausência da obrigação de pagar salário, de duas uma, ou estes trabalhadores, que apesar de estarem em greve e que trabalham por determinação legal, não recebem também seus salários mesmo exercendo trabalho, ou em os recebendo cria-se uma discriminação odiosa entre os diversos trabalhadores em greve.

Dito de forma mais clara, se, por exemplo, todos os trabalhadores do setor de manutenção resolverem aderir a uma greve estarão, por determinação legal, obrigados a realizar os serviços inadiáveis. Assim, deverão definir, coletivamente, entre si quais os trabalhadores farão os serviços e, para

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tanto, poderão deliberar pela realização de um revezamento. Nesse contexto, não se poderá criar entre os que trabalharão e os que se manterão sem trabalhar uma diferenciação jurídica acerca do direito ao recebimento, ou não, de salários.

Veja-se o que se passa, igualmente, nas denominadas atividades essenciais. O artigo 11 da lei de greve dispõe que “Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”, acrescentando o parágrafo único do mesmo artigo que “São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.

Ora, se cumpre aos trabalhadores em greve manterem os serviços essenciais, é natural que pelo princípio da isonomia não se crie uma diferenciação entre os empregados que estão trabalhando para atender a determinação legal, e os que não estão trabalhando, ainda mais porque a deliberação acerca de quem deve trabalhar no período da greve não é uma decisão individual e sim coletiva, como estabelece a própria lei, sendo que, por isso mesmo, a melhor forma talvez seja a do revezamento.

Neste sentido, a decisão de trabalhar, ou não, no período de greve não pertence a cada trabalhador, individualmente considerado, estando legalmente coibida a continuidade da produção por vontade individual, ou pela contratação, por parte do empregador, de empregados para a execução dos serviços, não se admitindo até mesmo que empregados de outras categorias, como terceirizados, por exemplo, supram as eventuais necessidades de mera produção dos empregadores no período.

Não será demais lembrar que os efeitos benéficos da negociação advinda da greve atingirão a todos os trabalhadores

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indistintamente.

No âmbito da OIT, apesar da Ementa 654 deixar a entender que aquela instituição não se oponha ao desconto de salários dos dias de greve, isso está muito longe de representar uma autorização ao desconto. A OIT é demasiadamente favorável à autonomia negocial entre as partes, algo bem normal no direito coletivo do trabalho internacional, mais por uma dificuldade de estabelecer regras possíveis de serem aplicadas a todos os países – um patamar mínimo exigível – do que por uma ânsia flexibilizadora. Assim, as ementas seguintes (655 a 657) seguem no sentido de que a questão do salário deve ser preferencialmente objeto de negociação entre as partes. Logo, não há nada autorizando o pagamento de salários nem autorizando o desconto.

De todo modo, a normativa da OIT deixa claro que o desconto de salários não pode representar uma sanção aos trabalhadores, como se pode interpretar do teor da Ementa 655, quando diz que se deve buscar o desenvolvimento harmonioso das relações profissionais. A Ementa 656 dispõe, ademais, que esse desconto deve ser objeto de acordo entre as partes. Logo, inexiste qualquer autorização para descontos unilaterais por parte do empregador.

O CNJ ao determinar o corte de ponto dos servidores em greve, sem que se tenha deliberado judicialmente sobre a legalidade da greve, sem que tenha havido por parte do empregador negociações para a manutenção dos serviços considerados inadiáveis, fere todos os preceitos legais pertinentes à greve, utilizando da medida apenas como ato de poder para afastar o direito constitucional, atingindo, pois, a esfera do ato antissindical, conforme definido no § 2º do art. 60 da Convenção 98 da OIT (ratificada pelo Brasil, em 1952): “É vedado às empresas adotar meios para constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho, bem como capazes de frustrar a divulgação do movimento”.

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Oportuno lembrar que o Brasil, por diversas vezes, já foi condenado pelo Comitê de Liberdade Sindical da Organização Internacional do Trabalho pela prática de atos antissindicais. No caso n. 1839, tratando da greve dos petroleiros de 1995, o governo brasileiro foi criticado pelas dispensas de 59 trabalhadores grevistas (que, posteriormente, acabaram sendo reintegrados) e pelas multas que o Tribunal Superior do Trabalho impôs ao sindicato em razão de não ter providenciado o retorno às atividades após a declaração da ilegalidade da greve. Em 2007, o Brasil foi novamente advertido pela OIT quando professores, dirigentes do Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES), ligados a várias universidades – Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Universidade Católica de Brasília (UCB), Faculdade do Vale do Ipojuca (FAVIP) e Faculdade de Caldas Novas (GO) – foram dispensados após participação em atividade grevista. Lembre-se, ainda, da condenação do Brasil, ocorrida em 2009, em função das dispensas arbitrárias feitas pelos governos do Rio de Janeiro e de São Paulo por ocasião de greves dos trabalhadores metroviários (Caso nº 2.646).

No caso da decisão do CNJ a situação se complica ainda mais porque, para atacar o direito de greve, sequer se respeitaram aos limites do poder instituído, na medida em que o CNJ não detém poder jurisdicional, não lhe restando competência, portanto, para deliberar sobre o direito de greve. A decisão reflete um caso de grave usurpação de competência.

Caso se argumente que não foi uma decisão judicial e sim uma determinação de cunho administrativo, direcionada aos Presidentes dos Tribunais, os problemas jurídicos se tornam ainda mais graves, pois os atos administrativos devem seguir parâmetros constitucionais e o CNJ, exercendo ingerência sobre o administrador, está submetido a esses parâmetros e aos limites do respeito ao direito constitucional de greve, sob pena do cometimento de ato antissindical.

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Presidentes dos Tribunais, devem realizar os descontos dos salários, vez que, segundo disse, “não existe na Constituição da República um direito à greve remunerada”, e que devem realizar tal ato independente de decisão judicial, então esses administradores, todos eles, já teriam incorrido em ato de improbidade, na medida em que a greve perdura há mais de 90 (noventa) dias e os pontos não foram cortados. Como dito na decisão: “essa é uma noção elementar de probidade na gestão da coisa pública”

A decisão do CNJ, a bem da verdade, de forma contraditória, diz que, embora não haja como justificar o pagamento dos dias não trabalhados, não quer nem “impõe que o administrado adote a suspensão do pagamento no dia seguinte à deflagração da greve” e que seria “temerário definir, de forma rígida e inflexível, um prazo a partir do qual deva se dar o desconto da remuneração dos servidores – por exemplo, em 30 (trinta) dias”.

A determinação, portanto, é tautológica, porque diz que a lei não autoriza o recebimento de salários durante a greve, mas também não reconhece o direito do empregador de efetuar o corte de ponto, a não ser que o tempo da greve ultrapasse o razoável, que o conselheiro não diz qual é, mas garante que noventa dias já ultrapassaram esse limite.

Mesmo sem qualquer critério legal para fixar o tal limite diz que o prazo já se esgotou e que o não corte de pontos deixou de ser razoável, determinando que este seja feito mesmo sem decisão judicial a respeito. Assim, os administradores, mesmo sem se saber a partir de quando, já teriam incorrido em ato de improbidade

Portanto, seguindo o próprio parâmetro adotado na decisão em questão tem o CNJ a obrigação de determinar a instauração de procedimentos administrativos disciplinares contra os administradores, Presidentes dos Tribunais, que não efetuaram os cortes de ponto até hoje, gerando, inclusive, repercussão

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de ordem patriomonial sobre estes, e se não o fizer estará, então, incorrido no crime de prevaricação.

Mas se não for isso, ou seja, se os administradores não estavam juridicamente obrigados a realizar os cortes de ponto – e, de fato e de direito, não estão, como demonstrado – a determinação feita pelo CNJ, sem se pautar em qualquer base legal para definir a partir de quando o corte é devido, r e p r e s e n t a c r i m e d e c o n s t r a n g i m e n t o i l e g a l e a t o antissindical, vez que utiliza o corte de ponto apenas para forçar os servidores a encerrarem a greve, sem sequer dizer se a reivindicação destes é juridicamente válida, ou não.

Aliás, no aspecto do constrangimento ilegal a determinação constante da decisão do CNJ vai além e chega ao ponto extremo de determinar que os Presidentes dos Tribunais “desobstruam o acesso aos prédios da Justiça, caso haja obstáculos ou dificuldades de quaisquer natureza impostas pelo movimento grevista quanto à entrada e circulação de pessoas nos referidos prédios”, como se os administradores tivessem, eles, que se postarem diante dos grevistas para convencê-los a voltar ao trabalho ou que pudessem pleitear força policial, sem necessidade de ordem judicial, para intervir no conflito, desconsiderando-se, ademais, que os piquetes são legalmente previstos e que se justificam para que se faça prevalecer, em concreto, o legítimo e efetivo exercício do direito de greve, na medida em que se veja ameaçado por atos ilícitos do empregador, que se valendo de pressão aberta ou velada com relação aos grevistas e sugerindo premiações aos que não aderirem à greve, tenta destruir a greve sem se dispor ao necessário diálogo com os trabalhadores, sendo certo que o diálogo somente adquire nível de equilíbrio quando os que se situam em posição de inferioridade buscam a ação coletiva.

Segundo dispõe o artigo 6º da Lei de Greve:

Art. 6º São assegurados aos grevistas, dentre outros direitos:

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I – o emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve;

(….)

§ 1º Em nenhuma hipótese, os meios adotados por empregados e empregadores poderão violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem.

(….)

§ 3º As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa.

Mesmo no caso da greve interferir em direitos fundamentais de terceiros, como preconizam os §§ 1º e 3º do artigo 6º, o que se tem como efeito é a existência de um conflito de direitos que se resolve em contenda judicial e não pela via do “exercício arbitrário das próprias razões”, que, inclusive, constitui crime, conforme definido no art. 345, do Código Penal, sendo certo, ainda, que no conflito de direitos há que se dar prevalência ao exercício do direito de greve, pois no Direito do Trabalho a normatividade coletiva supera a individual, a não ser quando esta seja mais favorável. Recorde-se que é a partir dessas premissas que se tem entendido imprópria a interposição de interdito proibitório contra piquetes.

Assim, não é função da força policial intervir em conflito trabalhista e definir arbitrariamente que direito deve prevalecer, reprimindo um interesse juridicamente garantido, acolhendo o abstrato direito de ir e vir e tratando trabalhadores como criminosos.

A decisão remete ao período, das décadas de 30 a 60, em que a greve era tratada como caso de polícia, sendo que na linguagem do antigo Setor Trabalhista, integrado à Divisão de Polícia Política e Social (DPS), órgão do Departamento Federal de Segurança Pública, criado em 1944, no contexto da vigência da

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Lei n. 38, de 4 de abril de 1935, os grevistas eram referidos por “agitadores” ou “comunistas”.

Na época, mesmo que a Constituição democrática de 1946 garantisse o direito de greve, as instituições mantinham-se impregnadas da lógica antissindical, acoplada a uma racionalidade anti-comunista.

A decisão do CNJ, em 2015, sob a vigência da Constituição cidadã de 1988, ao determinar que os Presidentes dos Tribunais “desobstruam o acesso aos prédios da Justiça”, retrocede em mais de 60 (sessenta) anos, fazendo alusão a um tempo em que se produziam ofícios como o que fora enviado ao DPS pelo Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, TST, Manoel Caldeira Netto, em 12 de dezembro de 1952, tratando da greve dos tecelões do Rio de Janeiro, com o seguinte teor:

Sr. Chefe de Polícia

Tenho a honra de solicitar a V. Exa. que se digne de mandar fornecer a esta Presidência, pelo Departamento competente e com possível urgência, as seguintes informações:

a) convicções ideológicas e ação subversiva de todos os 1.

membros da Diretoria do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Fiação e Tecelagem do Rio de Janeiro, cujos nomes constam da relação inclusa;

b) idem, idem de todos os membros do Sindicato dos 2.

mestres e Contramestres de Fiação e Tecelagem do Rio de Janeiro;

c) idem, idem dos elementos de choque designados para a 3.

preparação e deflagração da atual greve dos tecelões, cujos nomes constam da relação enviada pelo Sr. Ministro do Trabalho a este Tribunal Superior. Reiterando os protestos de elevada consideração e elevada estima, subscrevo-me

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Presidente

Prosseguindo na linha das ilegalidades contra o direito de greve, a decisão mencionada determinou que os Presidentes dos Tribunais “adotem medidas que visem garantir a maior continuidade possível de todos os serviços prestados, independente do caráter de urgência da solicitação ou da existência de prazo em curso”, como se a lei não estipulasse que apenas as atividades consideradas inadiáveis e essenciais sejam continuadas durante a greve e, como dito, mediante acordo formalizado entre comando de greve e empregador.

Por todos esses fundamentos, para a devida retomada do respeito à ordem constitucional, torna-se urgente a revogação da determinação do CNJ para o corte de ponto de servidores em greve, assim como das demais determinações referidas na mesma decisão, seja porque falta competência jurisdicional ao CNJ p a r a d e f i n i r o s d e s t i n o s d a g r e v e , s e j a p o r q u e a s determinações realizadas, além de constituem atos antissindicais, desrespeitam os padrões jurídicos aplicáveis ao direito de greve, sendo que no caso específico da greve dos servidores, por ter sido ela motivada pela inércia do governo em cumprir, por nove anos, o direito à revisão anual da remuneração (art. 37, X, da CF), sem que tenha havido por parte do empregador negociações para fixar a forma da continuidade dos serviços inadiáveis, muito dificilmente se poderia declarar, judicialmente, a ilegalidade da greve.

Por fim, se o CNJ pudesse usurpar seu poder para fazer valer a ordem jurídica, alguém poderia sugerir que em vez de determinar que os servidores sejam impedidos de exercer o direito de greve, impondo-lhes o sacrifício do corte de ponto, deveria, isto sim, fixar um prazo para o pagamento dos reajustes salariais devidos há nove anos aos servidores, sob pena de prisão e responsabilização patrimonial do chefe do Executivo.

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Se não pode fazer isso por uma questão de legalidade, pela mesma razão não pode simplesmente negar vigência aos dispositivos constitucionais aplicáveis ao direito de greve e que guarnecem o patrimônio jurídico dos servidores.

São Paulo, 20 de setembro de 2015.

(*) Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.

(*) Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.

(*) Professora de Direito do Trabalho da Femargs- Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS.

(*) Advogado trabalhista em São Paulo/SP.

(*) Juiz de Direito, professor da Escola Paulista da Magistratura e Conselheiro da AJD – Associação Juízes para a Democracia.

(*) Professor de Direito do Trabalho do Instituto Metodista de Porto Alegre.

(*) Juiz do Trabalho/SC, mestrando em Direito do Trabalho na Faculdade de Direito USP.

[1]. SÜSSEKIND, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do

Trabalho. 21ª ed. Vol. 1. São Paulo: LTr, 2003, p. 490.

Modernidade e pós-modernismo:

continuidade ou ruptura?

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Nos últimos tempos se tem feito muito alarde em torno do termo pós-moderno. As interpretações vão desde aqueles pensadores que veem no mundo após a segunda grande guerra, ou pelo menos desde o maio francês, uma nova forma de organização social, um novo período histórico, comumente designado de sociedade industrial ou de modernidade, até àqueles que veem no pós-modernismo uma mera corrente literária fora de moda. Em outras palavras, a questão gira em torno de se existe ou não uma ruptura entre o mundo contemporâneo e o que se convencionou chamar de modernidade.

Vários aspectos situados no escopo puramente teórico podem ser enumerados para justificar tal ruptura. A começar pela crítica da objetividade do discurso, iniciada nos primórdios da modernidade e elevada a sua mais alta expressão nos dias atuais. Segundo essa acepção, o discurso teórico não se refere às relações e coisas reais, mas a si mesmo. Tornado autônomo e um mero predicado subjetivo dos indivíduos, todo discurso se transmuta em representação ou, por vezes, em mera invenção daquele que o enuncia, aquém de qualquer universalidade e objetividade. No curso do século XX e na esteira dessa autonomização do discurso, toda e qualquer reflexão teórica de caráter histórico é igualmente negada, e noções como de sujeito histórico ou progresso histórico são relegadas à um passado moderno de ambições totalizantes e, enquanto tal, totalitárias. Por fim, a ruptura mais característica das concepções pós-modernas propriamente ditas é a crítica da razão. Em detrimento de toda elaboração voltada para compreensão racional da sociedade como um todo ou mesmo alguns de seus aspectos, se acentua a dimensão puramente subjetiva dos indivíduos como suas paixões, impulsos, prazeres, pulsões, identidades e assim por diante.

Salta aos olhos que todos estes aspectos que caracterizam a chamada “razão” pós-moderna, ainda que aqui sumariamente elencadas, se centram no indivíduo isolado a despeito de tudo o m a i s q u e s e c o l o q u e e m s e u c a m i n h o . O c o r r e q u e a

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preponderância do indivíduo sobre o social e mesmo sua pretensa autonomização, longe de ser uma tendência recente, é justamente o que distingue a modernidade europeia de todos períodos precedentes. Não sem razão, é da emergência da noção de indivíduo isolado na modernidade que nossa investigação principia. Somente assim, pensamos, pode-se estabelecer o real lugar do pós-modernismo em nossa sociedade atual. O que ele de fato expressa de novo e em que medida é apenas um novo discurso que procura justificar o mesmo.

Modernidade: alicerce do pós-modernismo

No mundo moderno, na esteira do desenvolvimento da sociedade burguesa, desenvolveu-se, pela primeira vez na história da humanidade, uma acepção de homem assentada na primazia do indivíduo sobre a sociedade. Os filósofos gregos e medievais, por exemplo, em geral, teorizavam sobre o gênero humano: “o que é o homem”, no geral, ainda que, para esses filósofos, os escravos fossem considerados aquém do gênero humano como um mero animal falante. Desse modo, mesmo no mundo grego em que primeiro se verifica um maior desenvolvimento do indivíduo e sua respectiva individualidade, os laços comunitários entre eles se mostram tão sólidos e diretamente perceptíveis que distante estamos da época em que os indivíduos pensam a si próprios como seres autônomos e portadores de uma substância singular.

É somente na modernidade que a concepção de indivíduo em sua nudez e autonomia irá se desenvolver plenamente. Tal tendência, que já aparece em filósofos modernos como Descartes e Kant, desemboca, em autores que se convencionou chamar contratualistas, em concepções de sociedade fundadas no indivíduo isolado. Estes sustentam a existência de um estado

de natureza que constitui a condição natural do indivíduo no

mundo, sendo a sociedade uma construção posterior somente possível em função de um contrato social, seja ele estabelecido pela força, seja pelo pacto consentido entre as

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partes. O indivíduo passa a ter primazia ontológica, cronológica e epistemológica sobre a sociedade.

Pelo alcance e propagação de suas respectivas teses, se reveste de particular interesse para os nossos propósitos a concepção de John Locke. Para este, o homem era por natureza livre e proprietário, tanto de si mesmo como de seu respectivo trabalho. Sendo a terra comum a todos os homens e uma dádiva de Deus, a propriedade privada emerge como um direito natural do homem, por meio da qual este havia assegurado a vida, a liberdade e os bens por meio do trabalho. A violação desse estado de natureza, isto é, da propriedade, por meio de guerras, invasões e inconvenientes de todo tipo, levaram os homens a estabelecerem um pacto social, instaurando uma sociedade política ou civil – com um corpo político único, uma legislação própria, o controle e monopólio do uso da força – tendo em vista a garantia de seus direitos naturais. Baseado nessa mesma primazia do individuo isolado, mas com distintas acepções de seu estado de natureza, desenvolveram-se as concepções contratualistas-naturalistas de Rousseau, Hobbes dentre outros.

Longe de constituir um momento solitário de um longo itinerário de reflexão sobre o homem, a acepção do indivíduo como ponto de partida da história, e dotado de uma natureza própria, tornar-se-á largamente hegemônica desde então, permeando o utilitarismo, o empirismo moderno, a Economia Política nascente e, em diversos sentidos, as principais correntes de pensamento contemporâneas.

Não sem razão, Marx denominou tais concepções de robinsonadas. Tal designação tem sua origem no romance Robinson Crusoé de Daniel Defoe. Este narra a saga de um náufrago que por décadas sobreviveu isolado em uma ilha tropical e cujas habilidades irão figurar como símbolo do triunfo do individualismo, exemplo que será explicitamente retomado por Adam Smith. Frente a esse quadro, Marx enfatiza que o “caçador e o pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e

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Ricardo, pertencem às ilusões desprovidas de fantasia das robinsonadas do século XVIII” (MARX, 2011, p. 39) com os respectivos estados de natureza que lhe servem de fundamento. Põe em relevo que no “contrato social de Rousseau, que pelo contrato põe em relação e conexão sujeitos por natureza independentes, não está fundado em tal naturalismo” (MARX, 2011, p. 39), antes disso, está fundada na sociedade burguesa baseada na livre concorrência em que “o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o faziam um acessório de um conglomerado humano determinado e limitado” (MARX, 2011, p. 39).

Esse estado de natureza originário, advogado pelos pensadores contratualistas, nada mais seria do que “a aparência, apenas a aparência estética das pequenas e grandes robinsonadas” (MARX, 2011, p. 39). Assenta-se, desse modo, na ilusão de que “indivíduo natural, conforme sua representação da natureza humana, não se origina na história, mas é posto pela natureza” (MARX, 2011, p. 40). Em outras palavras, os pensadores modernos tomaram o indivíduo, tal como se apresentam na sociedade burguesa, como a expressão atemporal e a-histórica da natureza humana. Desde então, é lugar comum procurar compreender a sociedade a partir dos indivíduos, e não mais os indivíduos a partir das sociedades no interior das quais estes se autoconstituem.

Essa aparência é possível em função da generalização do trabalho assalariado, que permite aos indivíduos se verem como livres e independentes de todos os demais. Nas formas sociais não capitalistas, os indivíduos estão umbilicalmente ligados aos meios de trabalho e às demais pessoas que integram sua comunidade e, nesse contexto, a acepção de um indivíduo isolado é impossível. O camponês está preso ao seu lote de terra assim como o artesão aos seus instrumentos de trabalho e ao sistema corporativo. Ao mesmo tempo, as relações de exploração se expressam na forma de dominação direta entre pessoas. O escravo é propriedade de um senhor, o servo se liga

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diretamente a um nobre. Em suma, o surgimento do capitalismo pressupõe um longo processo histórico que dissolveu os laços imediatos e diretos do indivíduo com sua comunidade e com os meios de produção, pondo-o como um indivíduo-trabalhador em sua nudez, cuja personalidade passa a ser expressa unicamente em função de suas capacidades subjetivas. Agora, o indivíduo é, por exemplo, um médico, um torneiro mecânico, um professor, um empresário independente do pertencimento a uma dada comunidade e independente da posse ou propriedade de qualquer meio de produção determinado.

Mais ainda, ao contrário de todas formas de sociedades precedentes, na sociedade capitalista a totalidade dos vínculos reais entre pessoas são mediados pela troca e a verdadeira natureza das relações sociais são obscurecidas. Antes de tudo, porque na “esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e venda da força de trabalho”, aparece como “um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham” (MARX, 2013, p. 250). Em primeiro lugar, é o reino da Liberdade, pois compradores e vendedores se defrontam enquanto pessoas livres que, mediante o consentimento mútuo, estabelecem um contrato. Em segundo lugar, é o reino da Igualdade, “pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente” (MARX, 2013, p. 250-251). Em terceiro lugar, é o reino da Propriedade, “pois cada um dispõe apenas do que é seu” (MARX, 2013, p. 251). E por fim, Bentham, teórico do utilitarismo por excelência, pois a “única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados” (MARX, 2013, p. 251).

Como podemos perceber, a esfera da circulação de mercadorias, enquanto uma esfera em que “tudo se passa à luz do dia, ante os olhos de todos”, fundamenta grande parte das concepções e ideologias burguesas que nos são tão familiares. Enquanto

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