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MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade (digitalizado).pdf

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VOL. 22 Coorde1zador Roberto Machado

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Roberto Machado

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CIP-Brasil. Catalogação-Na-Fonte

(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Machado, Roberto Cabral de Melo,

1942-Nietzsche e a verdade/ Roberto Machado. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ISBN 85-7038-007-0

M133n

1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Arte de ciência. 3. Metafísica. 4. Verdade. 5. Ética.

99-0152

I. Título.

EDIÇÓES GRAAL LTDA. R. Hermenegildo de Barros, 31-A- Glória

20241-040- Rio de Janeiro-RJ Te!.: (021) 252-8582

EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua do Triunfo, 177 01212-010- São Paulo-SP

Tel.: (011) 223-6522 Fax: (011) 223-6290

1999

Impresso no Brasil I Printed in Brazil

CDD-193 CDU-1(43)

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Sumário

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

I

ARTE E CIÊNCIA

1. A arte trágica e a apologia da aparência . . . . . . . 17 2. Metafísica de artista e metafísica racional. . .. . . .. . .. 29 3. Arte e "instinto de conhecimento" . . . . . . . . . . . . . . 35

li

CIÊNCIA E MORAL

1. Conhecimento e tipos de vida .. . . . . . . ... . ... . . .. 51 2. Genealogia da moral e vontade de potência . . . . . . 59 3. A "vontade de verdade" ........ . . ... . .... .. .... . 75

III

VERDADE E VALOR

1. A transvaloração de todos os valores. . . . . . . . . . . . . . . 85 2. O conhecimento e a perspectiva da potência .... . .... 91 3. As estratégias da crítica da verdade . . . . . . . . . . . . 99

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INTRODUÇÃO

A

reflexão sobre a oencia. isto é, uma investigação

sobre as questàes afins do conhecimento, do pensamento, do intelecto, da razão, da consciência, do conceito, da verdade, encontra-se no âmago da filosofia de Nietzsche.

Tema constante de seus estudos, dos primeiros aos últi­ mos textos, a presença desta problemática não indica porém a elaboração de um conceito de ciência. Situando-se em uma perspectiva tão global que, na maioria das vezes, não esta­ belece uma diferença essencial entre a racionalidade filosófica clássica e a racionalidade científica moderna, o que interessa a Nietzsche é realizar uma crítica radical do conhecimento ra­ cional tal como existe desde Sócrates e Platão.

Se não existe em Nietzsche propriamente uma questão epistemológica, se ele formula uma recusa de uma teoria do conhecimento, é porque o problema da ciência não pode ser resolvido no âmbito da própria ciência. Em outras palavras, não tem sentido criticar a ciência em nome ou a partir da ciência visando a seu aperfeiçoamento, ao estabelecimento de uma verdade cada vez mais científica. A ciência. considerada pela primeira vez como problemática, suspeita, questionável, foi o problema novo, "terrível" e "apavorante" tematizado por Nietzsche.

Fundamentalmente esta crítica da ciência é uma crítica da verdade. Não no sentido de procurar estabelecer um conceito rigoroso e sistemático de verdade, de denunciar as ilusàes, de superar os obstáculos à realização da racionalidade. Ponto cen­ tral do ambicioso projeto de "transvaloração de todos os valores", a investigação sobre a verdade é uma crítica da própria idéia de verdade considerada como um "valor superior", como ideal; uma crítica, portanto, ao próprio projeto epistemológico.

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Negando à ciência a possibilidade de ela mesma elucidar sua questão, negando a uma crítica interna do conhecimento a possibilidade de se constituir como uma verdadeira crítica, o essencial da démarche consiste em articular a ciência com uma exterioridade capaz de revelar as reais dimensões e os ob­ jetivos do projeto científico; consiste em explicitar os funda­ mentos morais da ciência, apontando, ao mesmo tempo, a arte como um modelo alternativo para a racionalidade. Daí o pri­ vilégio da arte e da moral como instâncias que possibilitam o discurso nietzschiano sobre a ciência, indicando-lhe suas duas direções principais.

A oposição entre arte e conhecimento racional percorre toda a obra de Nietzsche, que valoriza a arte trágica ao com­ bater a pretensão, que caracteriza a ciência, de instituir uma dicotomia total de valores entre a verdade e o erro. Essa anti­ nomia é fundamental: o "espírito científico" - que nasce na Grécia clássica com Sócrates e Platão e dá início a uma idade da razão que se estende até o mundo moderno, que Nietzsche chega a chamar de "civilização socrática" - tem como con­ dição a repressão da arte trágica da Grécia arcaica. Aí se en­ contra o modelo que lhe permite pôr em questão, ao assinalar o seu nascimento, o valor da racionalidade, ressaltando a posi­ tividade da arte como experiência trágica da vida. Colocar-se na escola dos gregos é aprender a lição de uma civilização trágica para quem a experiência artística é superior ao conhe­ cimento racional, para quem a arte tem mais valor do que a verdade. Se Sócrates e Platão significam o início de um grande processo de decadência que chega até nossos dias é porque os instintos estéticos foram desclassificados pela razão, a sabe­ doria instintiva reprimida pelo saber racional.

Se a tese de um antagonismo entre arte e ciência é carac­ terística de toda a obra de Nietzsche, ela não mereceu, no entanto, a mesma atenção em termos de análise em todas as fases de sua reflexão. Cronologicamente a questão da ciência e da verdade, que se constitui como o ponto central de sua

reflexão, aquilo para o qual tudo converge, é marcada por um

deslocamento de uma análise da experiência artística -

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Nietzsche e a· verdade

siderada como única antagonista da ciência - para uma aná­ lise da moral, considerada como aquilo que dá sentido, que dá valor ao conhecimento. Assim, enquanto a oposição entre arte e racionalidade é tematizada de modo mais explícito nos escri­ tos que compõem o primeiro período de sua obra, de 1869 a

1876, a crítica da moral se impõe como a questão mais cons­

tante a partir de Humano, demasiado humano. Deslocamento que não é total na medida em que a preocupação com a moral já aparece nos primeiros escritos, embora seja mais assinalada do que desenvolvida, como se só progressivamente fosse sen­ do descoberta sua importância como fundamento da racionali­ dade; por outro lado, a reflexão sobre a arte também não desaparece dos últimos escritos, depois que foi descoberto o fi

ão da moraL Mesmo que importantes precisões sobre a no­ ção de trágico sejam introduzidas, a questão da arte não me­ rece mais a atenção dos primeiros textos. Isto porque a posi­ ção de Nietzsche já estava firmada desde o primeiro momento: a arte é mais importante do que a ciência.

A segunda direção da reflexão nietzschiana é o proJl!ndo parentesco entre a ciência e a moraL Sua idéia é clara: se há Ôposição entre ciência e arte, há continuidade entre ciência e moraL Nietzsche suspeita justamente da independência da ciên­ cia com relação à moral, assim como da pretensa oposição entre as duas. A ciência não está isenta de juízos de valor; mais ainda: é a moral que dá valor à ciência. Uma genealogia da verdade, tal como Nietzsche a elabora nesse momento, só pode ser feita no âmbito de uma genealogia da moral, posição que não implica uma teoria do conhecimento nem mesmo uma moraL A perspectiva que estabelece uma relação intrínseca entre ciência e moral é propriamente uma genealogia da vontade de potência: uma análise histórico-filosófica dos valores em que a moral, em vez de ser ponto de vista crítico para avaliar o conhecimento, é ela mesma avaliada de um ponto de vista "extramoral", capaz de atingir as bases morais do projeto epistemológico.

Pensando a ciência a partir de seu antagonismo com a arte e de sua continuidade com a moral, o que faz Nietzsche é avaliar o conhecimento racional e a pretensão de verdade por

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meio de dois fenômenos culturais profundamente heterogê­ neos - um considerado positivo e o outro negativo - que exprimem um aumento ou diminuição de força, de potência. A arte expressa uma superabundância de forças: remete aos ins­ tintos fundamentais, à vontade apreciativa de potência. A mo­ ral atesta uma deficiência de forças: remete a instintos secun­ dários, mais fracos, à vontade depreciativa de potência.

Malgrado as diferenças conceituais, as transformações me­ todológicas e as variações de perspectiva, a idéia de avaliar a verdade a partir da dimensão das forças é um importante in­ variante da filosofia de Nietzsche. Neste sentido, a crítica do niilismo e da decadência e a proposta de uma transvaloração de todos os valores implicam uma reflexão sobre a vida como criação de valor.

Este livro se compõe de três partes.

A primeira parte trata da relação entre arte e ciência. Pre­ tendo, primeiramente, expor a noção nietzschiana de "metafí­ sica de artista" estudando os dois "instintos estéticos da na­ tureza" - o apolíneo e o dionisíaco - que estão na base da arte trágica. Trata-se sobretudo de mostrar em que sentido a filosofia da arte que Nietzsche realiza na primeira etapa de sua reflexão - como aspecto positivo e normativo de sua crítica à

racionalidade - se estrutura através das categorias metafísicas de essência e aparência. Isto é, diferentemente de textos poste­ riores em que pensa a vida como aparência ou em que pre­ tende eliminar a oposição essência-aparência, nesta época, sob a influência de Kant e Schopenhauer, sua filosofia parte das dicotomias entre aparência e essência, fenômeno e coisa em si, representação e vontade para tematizar a relação entre beleza e verdade e, por conseguinte, entre apolíneo e dionisíaco. Pre­ tendo mostrar que, embora trabalhe com a oposição metafísica essência-aparência, a grande singularidade do pensamento filo­ sófico de Nietzsche nesta época é fazer uma apologia da apa­ rência como necessária à vida e a única via de acesso à essên­ cia: uma apologia, portanto. da arte.

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Nietzsche e a verdade

Estudarei, em segundo lugar, a antinomia entre metafísica racional e metafísica de artista, ou em que sentido o racionalis­ mo estético socrático é o marco que assinala a morte da arte trágica. Análise do aparecimento das categorias de razão, cons­ ciência, crítica, clareza do saber como princípios que devem nortear e avaliar a criação artística; análise da oposição entre instinto estético e instinto racional, entre a força da arte e a força do conhecimento, considerados como matrizes de dois diferentes tipos de saber; análise da questão da verdade nas perspectivas da metafísica de artista e da metafísica socrática a partir da relação entre essência e aparência.

Estudarei, finalmente, como a crítica à verdade científica já se faz nos textos imediatamente posteriores a O nascimento da tragédia sem referência ao projeto de metafísica de artista. Neste momento o fundamental da análise passa a ser a crítica ao instinto ilimitado de conhecimento pela explicação de sua gênese - que já detectará o seu solo moral - e pela afir­ mação da relatividade do conhecimento, de seu "antropomor­ fismo", de sua força dominante de ilusão. O que conduzirá à

apologia da arte e da filosofia trágicas como forças capazes de controlar o instinto de conhecimento e instaurar um tipo de vida e de conhecimento determinado por valores artísticos.

A segunda parte trata da relação entre ciência e moral tal como foi reformulada sobretudo a partir de Assim falou Zara­ tustra. Pretendo, em primeiro lugar, mostrar como a questão da ciência, que continua sendo fundamentalmente a questão da verdade, não pode ser elucidada através de uma análise interna da própria ciência, mas remete necessariamente a uma genealogia da moral: não uma teoria moral, mas uma teoria da vontade de potência em que a vida é considerada como prin­ cípio último de avaliação tanto do conhecimento quanto da moral.

Em seguida, analisarei o projeto de constituição de uma genealogia da moral que investiga o nascimento e o valor da moral judaico-cristã, expondo as três figuras fundamentais que possibilitam inclusive definir o niilismo: o ressentimento, a má­ consciência e o ideal ascético. A análise histórico-filosófica da

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moral também remete à concepção da vida como força, como potência ou como vontade de potência que lhe serve de fun­ damento. E o que se revela, então, é a grande antinomia entre a moral e a vida: a moral, como manifestação da fraqueza e insur­ reição contra a vontade afirmativa de potência, é uma negação da vida, um combate contra seus valores mais fundamentais.

Será então possível compreender como a genealogia da moral é o fundamento de uma genealogia da verdade: o ele­ mento-chave da argumentação é o conceito de vontade de verdade. A articulação entre ordem epistemológica e ordem moral ou o estabelecimento das condições de possibilidade morais da ciência se realiza pela relação entre vontade de ver­ dade e vontade de potência. A vontade de verdade, que é a crença de que nada é mais necessário do que o verdadeiro, de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade é um valor superior - crença que funda a ciência e constitui a es­ sência da moral e da metafísica - é a expressão de uma vontade negativa de potência. Se a ciência não se opõe ao niilismo moral e deve mesmo ser considerada sua forma mais recente e mais bem elaborada é porque a vontade de verdade que a caracteriza se encontra no âmago do ideal ascético.

A terceira parte trata da relação entre verdade e valor situando a posição central que a questão da verdade ocupa no projeto de "transvaloração de todos os valores". Pretendo, em primeiro lugar, analisar como toda a filosofia de Nietzsche é uma filosofia do valor no sentido de uma crítica radical dos valores dominantes na sociedade moderna e uma proposta de transformação do próprio princípio de avaliação de onde deri­ vam os valores. Se a criação de valores superiores - porque não existe valor em si, todo valor é criado - é expressão do tipo negativo de vontade de potência, a vontade afirmativa de potência é o princípio de uma nova instituição de valores. A questão do valor, e da verdade como valor, remete, portanto, à

avaliação e esta à vontade de potência.

Aprofundarei, em seguida, esta condição básica da trans­ valoração de todos os valores assinalando a importância que na filosofia de Nietzsche têm os instintos ou os impulsos

con-12

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Nietzsche e a verdade

siderados como um conjunto de forças, inconscientes e quali­ tativamente diferentes, em luta. A "fisiologia da potência" é uma concepção do corpo como sede de um conjunto de ins­ tintos em relação que funciona como uma crítica das defi­ nições do homem pela consciência ou pela razão - o niilismo é a subordinação dos instintos fundamentais à consciência, à

razão - e explica como e por que uma teoria do conhe­ cimento é substituída por uma teoria da perspectiva dos instin­ tos que considera o conhecimento como a expressão dessa pluralidade de forças em luta.

Voltarei, finalmente, à problemática da verdade para assi­ nalar a .inflexão que sofre a trajetória histórica de sua reflexão de uma metafísica de artista para uma genealogia dos valores. Mas sobretudo para tematizar, na análise genealógica, a coexis­ tência - pois não se trata de uma "evolução" - de perspecti­ vas estratégicas diferentes sobre a verdade: denúncia da ver­ dade como mentira e reivindicação da aparência como única realidade - sem dúvida, procedimento de inversão da me­ tafísica; superação da oposição metafísica de valores, que é a última e mais radical palavra de Nietzsche. Criticando a opo­ sição de valores que está na origem da metafísica, da moral, da ciência e propondo a arte trágica, dionisíaca, como única força ·capaz de se opor ao niilismo, à negação da vida, uma das grandes criações da filosofia de Nietzsche é a exigência de uma perspectiva para além de bem e mal e de verdade e erro.

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A

arte trágica e a apologia da aparência

O

que é a arte? Que importância tem ela para a vida?

Que relação mantém com a força e a fraqueza? As respostas a essas questões fundamentais de sua filosofia, Nietzsche as su­ gere, desde o primeiro momento, a partir de uma reflexão sobre a Grécia arcaica que sempre lhe serviu de modelo privi­ legiado na crítica aos valores da decadência.

Se é possível estabelecer um ponto de partida de sua reflexão sobre a arte na Grécia, este se encontra na correlação entre uma sensibilidade exacerbada para o sofrimento e uma extraordinária sensibilidade artística que caracteriza os gregos e que se explica pela força de seus instintos. "Por causa da força de todos os seus instintos a vida dos helenos era mais rica em sofrimentos. Qual era o antídoto?"1

Extremamente sensível, capaz de grande sofrimento, bas­ tante vulnerável à dor, o grego tem nessa condição um perigo para a vida: a dolorosa violência da existência pode levá-lo ao pessimismo, à negação da própria existência. A materialidade desse pessimismo radical constitui o que Nietzsche denomina "sabedoria popular''/ "filosofia do povo"3 da Grécia e ilustra pela sabedoria de Sileno, personagem lendário, companheiro de Dioniso. Diz a lenda que Midas, rei da Prígia, encontrando nos bosques o sábio Sileno, que por lá vivia bebendo, rindo e cantando, pergunta-lhe o que existe de mais desejável para o homem, isto é, qual é o bem supremo. A princípio sem querer responder, pressionado, o sábio afmal responde: "Miserável raça de efêmeros, filhos do acaso e da pena, por que me obrigar a dizer o que não tens o menor interesse em escutar? O bem supremo te é absolutamente inacessível: é não ter nascido, não

ser, nada ser. Em compensação, o segundo dos bens tu podes ter: é logo morrer". 4

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A arte grega tem origem nesta problemática. Arte e re­ ligião estão, para os gregos, intimamente ligadas, ou melhor, são idênticas: o mesmo instinto que produz a arte produz a religião. 5 Por que os gregos criaram os deuses olímpicos ou a arte apolínea1' Para tornar a vida possível ou desejável, dando ao mundo uma superabundância de vida. A criação da arte apo­ línea, que tem na epopéia homérica sua mais importante reali­ zação, é a expressão de uma necessidade. "A vida só é possível pelas miragens artísticas"/ esta idéia acompanha Nietzsche em toda sua reflexão. Mas neste momento ela possui um sentido preciso: para que o grego, povo mais do que qualquer outro exposto ao sofrimento, pudesse viver foi necessário mascarar os terrores e atrocidades da existência com os deuses olímpi­ cos, deuses da alegria e da beleza, resplandecentes filhos do sonho.

A epopéia, poesia da civilização apolínea, é um modo de reagir a um saber pessimista do aniquilamento da vida. A im­ portância da arte apolínea, sua força maravilhosa como an­ tídoto, é ser capaz de inverter a sabedoria de Sileno, o deus silvestre, criando a evidência que "o mal supremo é morrer logo, o segundo dos males é ter que morrer um dia" .8 Os deuses olímpicos não foram criados como uma maneira de escapar do mundo em nome de um além-mundo, nem ditam um comportamento religioso baseado na ascese, na espirituali­ dade, no dever; são a expressão de uma religião da vida, intei­ ramente imanente, religião da beleza como floração - e não da falta -, que diviniza o que existeY

Divinizar, neste contexto, significa fundamentalmente tor­ nar belo, embelezar. A arte apolínea é a arte da beleza: se os deuses olímpicos não são necessariamente bons ou verdadei­ ros - como o deus das religiões morais depois analisadas por Nietzsche -, eles são belos. Para o grego beleza é medida, harmonia, ordem, proporção, delimitação mas também signi­ fica calma e liberdade com relação às emoções, isto é, sereni­ dade. Contra a dor, o sofrimento, a morte o grego diviniza o mundo criando a beleza. "Não existe belo natura1.''10 O mundo

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Nietzsche e a verdade

grego da beleza é o mundo da "bela aparência"; a beleza é uma aparência.

A questão da aparência é central em toda a filosofia de Nietzsche. Em O nascimento da tragédia e nos escritos e frag­ mentos póstumos desta época seu pensamento se estrutura, inspirado em Kant e Schopenhauer, utilizando as dicotomias essência e aparência, coisa-em-si e fenômeno, vontade e repre­ sentação. "O homem filósofo tem mesmo o pressentimento que sob a realidade em que vivemos e onde estamos se oculta uma segunda, totalmente diferente, de tal modo que a realidade também é uma aparência."11 Se a beleza é uma aparência é porque há u�a verdade que é a essência. Mais ainda: a beleza é uma aparência, um fenômeno, uma representação que tem por objetivo mascarar, encobrir, velar a verdade essencial do mundo. Para escapar do saber popular pessimista, o grego cria um mundo de beleza que, ao invés de expressar a verdade do mundo, é uma estratégia para que ela não ecloda. Produzir a beleza significa se enganar na aparência e ocultar a verdadeira realidade. "O que é belr?. -uma sensação de prazer que nos oculta em seu fenômeno as verdadeiras intenções da vontade [. .. ] Objetivamente: o belo é um sorriso da natureza, uma su­ perabundância de força e de sentimento de prazer da existên­ cia [. . .] Negativamente: a dissimulação do infortúnio, a supres­ são de todas as rugas e o olhar sereno da alma da coisa [. . .] O

alvo da natureza neste belo sorriso de seus fenômenos é se­ duzir outras individualidades em favor da existência."12 Não é pelo Belo que as coisas belas são belas. Quando se diz que algo é belo apenas se diz que tem uma bela aparência, sem nada se enunciar sobre sua essência. Mascarando a essência, a vontade, a verdadeira realidade, a beleza é uma intensificação das forças da vida que aumenta o prazer de existir.

Trata-se porém de uma aparência necessária. Uma das teses principais de O nascimento da tragédia, sua "hipótese metafísica", é que o ser verdadeiro, o "uno originário" tem necessidade da bela aparência para sua libertação; uma liber­ tação da dor pela aparência.15 A "vontade", termo que é utili­ zado por Nietzsche no sentido que tem em Schopenhauer de

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núcleo do mundo, essência das coisas, mundo visto de dentro, ou "força que eternamente quer, deseja e aspira", 14 tem neces­ sidade do apolíneo como consciência de si. "Conhece-te a ti mesmo" é o lema apolíneo. O mundo apolíneo da beleza é o mundo da individuação (do indivíduo, do Estado, do patri­ otismo), da consciência de si. A individualidade, a consciência, é uma aparência, uma representação do uno originário; através do principium individuationis se produz a transfiguração da realidade que caracteriza a arte: é isso que constitui o processo artístico originário. E a necessidade dessa transfiguração ar­ tística, esse "desejo originário de aparência" é o que possibilita a muralha capaz de resistir à sabedoria pessimista de Sileno. "Com os gregos a 'vontade' queria se contemplar nesta trans­ figuração que lhe ofereciam o gênio e o mundo da arte [. . .] Por

um jogo de espelho da beleza, em que os gregos viam os deuses como seus belos reflexos, a 'vontade' helênica comba­ tia a aptidão, correlata ao dom artístico, para o sofrimento e para a sabedoria do sofrimento. E o monumento dessa vitória é Homero, o artista ingênuo, que se eleva diante de nós."15 O mundo dos deuses olímpicos é um espelho que transfigura a "vontade" que desejava se contemplar nesta transfiguração.

Assim, o primeiro importante resultado da análise nietzschia­ na, ao mostrar como os gregos ultrapassaram, encobriram ou afastaram um saber que ameaçava destruí-los, graças a uma concepção apolínea da vida, é o elogio da aparência. A apolo­ gia da arte já significa, como sempre significará para Nietzsche, uma apologia da aparência como necessária não apenas à ma­ nutenção, mas à intensificação da vida.

Mas isso não é tudo nem mesmo o mais fundamental. Esse primeiro resultado é ainda preliminar inclusive para a con­ cepção da aparência, que adquire toda sua importância quando é pensada além das fronteiras de uma arte apolínea. A razão é que a consciência apolínea é apenas um véu - o véu de Maia - que dissimula ao grego um mundo que, pelo que encerra de verdade, não pode ser ignorado. Pretendendo substi­ tuir o mundo da verdade, ou a verdade do mundo, pelas belas

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Nietzsche e a verdade

formas, a arte apolínea deixa de lado algo essencial; virando as costas para a realidade, dissimulando a verdade, ela desconsid­ era o outro . instinto estético da natureza que não pode ser esquecido - o dionisíaco.

Para que se possa compreender a concepção nietzschiana do dionisíaco e inclusive avaliar as semelhanças e diferenças que ela encerra com relação ao que Nietzsche posteriormente afirmará, é preciso salientar que o dionisíaco, considerado como aniquilador da vida, a que a arte apolínea se contrapõe, não é propriamente grego. Para o grego apolíneo ele é pré-apolíneo, isto é, titânico, ou extra-apolíneo, isto é, bárbaro. Dioniso é o deus· de uma religião que vem do estrangeiro. Mas o culto, vencendo a resistência apolínea, foi, pouco a pouco, penetrando na Grécia e se afirmando, como se pode ver em As bacantes

de Eurípedes.

Foi um momento de grande perigo e grande medo para o mundo grego. "As musas das artes da 'aparência' empalideciam diante de uma arte que, em sua embriaguez, proclamava a verdade e em que a sabedoria de Sileno gritava: 'Infelicidade! Infelicidade!' na cara da serenidade olímpica. O indivíduo -seus limites e sua medida - caía no esquecimento de si carac­ terístico dos estados dionisíacos e perdia completamente a me­ mória dos preceitos apolíneos. A desmesura se desvelava co­ mo a verdade; a contradição e a volúpia nascida da dor se expressavam do mais profundo da natureza."16 O novo culto da religião dionisíaca punha em questão os valores mais fun­ damentais da Grécia. A oposição entre os dois instintos, as duas pulsões, as duas potências, as duas forças artísticas da natureza_ - o apolíneo e o dionisíaco - era totalP A expe­ riência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente uma ruptura com o principium individuationis e uma total reconciliação do homem com a natureza e os outros homens, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade; em vez de autoconsciência significa uma desintegração do eu, que é superficial, e uma emoção que abole a subjetividade até o total esquecimento de si; em vez de medida é a eclosão da

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"exultando na alegria, no sofrimento e no conhecimento";18 em vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade, é um com­ portamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma extravagância de frenesi sexual que destrói a família, por uma bestialidade natural constituída de volúpia e cruelda­ de, de força grotesca e brutal; em vez de sonho, visão onírica, é embriaguez, experiência orgiástica.

Dessa forma, o êxtase dionisíaco produz, enquanto dura, um efeito letárgico que dissipa tudo o que foi vivido no pas­ sado: é uma negação do indivíduo, da consciência, do Estado, da civilização, da história. Metamorfoseados em sátiros e si­ lenos, seres da natureza protótipos do homem verdadeiro, os "loucos de Dioniso" desintegram o eu, a consciência, a indi­ vidualidade e se sentem na verdadeira natureza.

Mas há ainda um segundo perigo decorrente do primeiro: o pesar, o desgosto pela existência, o sentimento de que tudo é absurdo, impossível, que aparece com a volta ao estado de consciência. O conhecimento, ou mais precisamente, porque não se trata rigorosamente de conhecimento, a emoção, a ex­ periência dionisíaca tendo significado um acesso à verdade da natureza, uma verdade que mostra que a natureza é desme­ surada ou que verdade é desmesura, faz o homem compreen­ der a ilusão em que vivia ao criar um mundo de beleza jus­ tamente para, mascarar a verdade. A visão da essência eterna e imutável das coisas faz com que ele desista de agir e construir uma civilização. A civilização, que é um mundo aparente, fe­ nomenal, é revelada como impostura pela natureza, pelo nú­ cleo eterno das coisas, pela verdade dionisíaca. "Quando a consciência foi penetrada por essa verdade, o homem só vê em tudo o horror e o absurdo do ser [ . . .] Reconhece então a sabedoria de Sileno, o deus silvestre. E é tomado pelo des­ gosto."19 Neste sentido, a experiência dionisíaca é uma "em­ briaguez do sofrimento" que destrói o "belo sonho".

Não é esse porém o dionisíaco de que Nietzsche fará o elogio. Expondo suas características, ressaltando seus perigos, seu terrível instinto destruidor, o filósofo visa a realçar ainda

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Nietzsche e a verdade

mais a importância do novo antídoto que contra ele foi criado. Porque é novamente pela arte que o grego é salvo do perigo representado por essa religião dionisíaca bruta, selvagem, na­ tural, destruidora. Ou melhor, pela segunda vez a própria vida salva o grego utilizando a arte como instrumento. "A arte o salva, mas pela arte é a vida que o salva em seu proveito", diz Nietzsche enunciando um pensamento que cada vez adquirirá mais importância em sua filosofia20. Novo tipo de arte, que representa o apogeu da civilização grega, que não pretende mais estabelecer uma trincheira, um anteparo, uma muralha que impossibilite a entrada e a expansão do dionisíaco, como procurou fazer a arte apolínea, a poesia épica. A característica da nova estratégia artística é integrar, e não mais reprimir, o elemento dionisíaco transformando o próprio sentimento de des­ gosto causado pelo horror e pelo absurdo da existência em representação capaz de tornar a vida possível. Mérito ainda de Apolo, mérito do deus do sonho e da beleza, porque mérito da arte. Se desta vez Apolo salva o mundo helênico atraindo a verdade dionisíaca para o mundo da bela aparência é porque transforma um fenômeno natural em fenômeno estético. E se essa transformação do dionisíaco puro, bárbaro, oriental em arte salva a civilização grega é porque integra a experiência dionisíaca ao mundo helênico aliviando-a de sua força destrui­ dora, de seu "elemento irracional", espiritualizando-a.21 A ilu­ são apolínea, característica da arte, liberta da opressão e do peso excessivo do dionisíaco, 22 permitindo à emoção se des­ carregar em um domínio apolíneo.23

É esta arte apolíneo-dionisíaca, reconciliação entre Apolo e Dioniso,Z4 que constitui para Nietzsche o momento mais im­ portante da arte grega.2s Importância que ele exprime em ter­ mos médicos afirmando que ela possui um verdadeiro efeito terapêutico, é um eficaz ato de cura: a arte dionisíaca trans­ forma um veneno a poção mágica, o filtro das feiticeiras -em r-emédio, retirando de Dioniso suas "armas destruidoras". 26 "O pavoroso filtro das feiticeiras feito de volúpia e crueldade perdia a força: apenas o lembravam - mas como os remédios lembram os venenos mortais - a surpreendente mistura nos

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afetos e a duplicidade dos loucos de Dioniso ... "27 Se o puro dionisíaco é um veneno, é porque é impossível de ser vivido; é porque acarreta necessariamente o aniquilamento da vida. Se a arte é capaz de fazer participar da experiência dionisíaca sem que se seja destruído por ela, é porque possibilita como que uma experiência de embriaguez sem perda de lucidez.28

A arte dionisíaca, a arte trágica é um jogo com a em­ briaguez, uma representação da embriaguez que tem justamen­ te por objetivo aliviar a embriaguez; ou, em outras palavras, não propriamente embriaguez ou orgia, mas idealização da embriaguez ou da orgia. "Mas se a embriaguez é o jogo da natureza com o homem, a criação do artista dionisíaco é o jogo com a embriaguez [. . .] O servidor de Dioniso deve estar em estado de embriaguez e ao mesmo tempo permanecer pos­ tado atrás de si como um observador. Não é na alternância entre lucidez e embriaguez, mas em sua simultaneidade, que se encontra o estado estético dionisíaco."29 Essa noção de jogo é fundamental para compreender a diferença entre o dioni­ síaco orgiástico e o dionisíaco artístico e como o grego, através da beleza, reprimiu no dionisíaco bárbaro seus elementos des­ truidores, ensinando-lhe a medida e transformando-o em arte. A arte trágica controla o que há de desmesurado no instinto dionisíaco como se Apolo ensinasse a medida a Dioniso, ou como se servisse a poção mágica, a bebida trágica, em sonho. "A tragédia é bela30 na medida em que o movimento instintivo que cria o horrível na vida nela se manifesta como instinto artís­ tico, com seu sorriso, como criança que joga. O que há de emo­ cionante e de impressionante na tragédia em si é que vemos o instinto terrível tornar-se, diante de nós, instinto de arte e de jogo."31 É evidente, portanto, a distinção assinalada por Nietzsche entre as duas manifestações dionisíacas. Está claro também que o dionisíaco artístico não se opõe ao apolíneo, mas supera esta oposição justamente por ser artístico e implicar necessariamente aparência. E, finalmente,. também o dionisíaco celebrado por ele não é o do culto orgiástico mas o do artista trágico.

A arte trágica possibilita, portanto, a união entre a aparên­ cia e a essência. Sendo capaz de articular os dois instintos, as

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Nietzsche e a verdade

duas pulsões artísticas da natureza, na medida em que trans­ põe em imagens os estados dionisíacos, a tragédia não se li­ mita, como a poesia épica, ao nível da aparência, mas possi­ bilita uma experiência trágica da essência do mundo. Só que essa união, ela a estabelece através de um conflito. A tragédia representa o conflito entre o apolíneo e o dionisíaco, entre o

principium individuationis e o uno originário; ou, mais pre­ cisamente, ela 'epresenta a derrota do saber apolíneo e a vi­ tória do saber dionisíaco na medida em que faz da individua­ ção um mal e a causa de todo sofrimento. "A forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou a vitória alcançada na derrota. A cada vez a individualidade é vencida: e entretanto sentimos seu aniquilamento como uma vitória. Pa­ ra o herói trágico é necessário perecer, por onde ele deve vencer. Nessa antítese, que faz pensar, nós pressentimos a su­ prema avaliação da individuação, como já evocamos uma vez: o Uno originário tem necessidade dela para atingir o fim últi­ mo de seu prazer, de modo que o desaparecimento se torna tão digno e venerável quanto o nascimento e que aquilo que nasceu deve cumprir, com o desaparecimento, a tarefa que lhe incumbe como individualidade."32 Na tragédia o destino do he­ rói é sofrer - como sofreu Dioniso quando foi despedaçado - para fazer o espectador aceitar o sofrimento como inte­ grante -da vida.

Segundo Nietzsche a finalidade da tragédia é produzir ale­ gria. A tragédia, mostrando o destino do herói trágico como sendo sofrer, não produz sofrimento mas alegria: uma alegria que não é mascaramento da dor, nem resignação,33 mas a ex­ pressão de uma resistência ao próprio sofrimento. Idéia es­ boçada nesta época nos termos de uma "metafísica de artista" que pretende conjugar na arte trágica aparência e essência: "A alegria metafísica que nasce do trágico é a tradução, na lin­ guagem da imagem, da instintiva e inconsciente sabedoria dio­ nisíaca: o herói, manifestação suprema da vontade, é negado para nosso prazer porque é apenas manifestação e porque o seu aniquilamento em nada afeta a vida eterna da vontade."34

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Representando a luta e a vitória de Dioniso, a tal ponto que todo herói deve ser compreendido como seu substituto ou sua máscara, a alegria que proporciona a tragédia é o sentimento de que o limite da individualidade será abolido e a unidade originária restaurada.

Situando os valores a políneos como causa do sofrimento humano, a tragédia nega os valores da aparência em nome da unidade de tudo que existe, o que é a condição de um prazer mais fundamental. A arte dionisíaca nos quer persuadir do pra­ zer eterno da existência, coisa em que Nietzsche sempre acre­ ditou. A diferença é que nesta época, pensando a partir das categorias de essência e aparência, ele afirma que este prazer só é possível à condição de o procurarmos não nos fenô­ menos, mas atrás deles. Na experiência trágica, que a arte pro­ porciona, o homem se torna o próprio ser originário, sentindo o seu desejo e o seu prazer de existir: "não obstante terror e piedade, conhecemos a felicidade de viver não como indiví­ duos, mas como este vivente único que engendra e procria e no orgasmo de quem nos confundimos ."y; Enquanto a arte apolínea nega - pela aparência, pela mentira, pela ilusão - o sofrimento da vida e afirma a eternidade do fenômeno, a tra­ gédia nega o indivíduo justamente por ser fenômeno, mani­ festação, representação, afirmando a eternidade da vontade.36

Eis a estranha "consolação" que proporciona a tragédia: a certeza ele que existe um prazer superior a que se acede pela ruína e pelo aniquilamento do herói, da individualidade, da consciência: pela destruição dos valores apolíneos. O que po­ deria dar a impressão de uma negação da aparência em nome ela essência. Isso porém seria um equívoco, na medida em que 3 negação elos valores apolíneos só pode ser realizada em forma ele representação. ele imagem, de ilusão, isto é, apo­ lineamente. Se o dionisíaco puro é aniquilador da viela, se só a arte torna possí,·el uma experiência dionisíaca, não pode haver dionisíaco sem apolíneo. A visão trágica do mundo, tal como Nietzsche a interpreta nesse momento, é um equilíbrio entre a ilusão e a verdade, entre a aparência e a essência : o único modo de superar a radical oposição metafísica de valores.

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Nietzsche e a verdade

Notas

1. Nietzsche, Fragmentos póstumos (Frag. Post.), final de 1870 - abril de

1871, 7 [531. Citarei (salvo aviso em contrário) pela edição Colli e Montinari das obras completas de Nietzsche indicando o número do aforismo ou do fragmento póstumo. Quando for necessário indicarei as páginas da edição alemã da Deutscher Taschenbuch Verlag de Gruyter e da tradução francesa da Gallimard.

2. O nascimento da tragédia (N.T.l, § 3.

3. '"A visão dionisíaca do mundo" (V. D.), § 2, in f.Scrituspôstumos.

4 . .V T, § 3.

5. Cf. Frag. Post., 1871, 9 [102]; NT, § 3.

6. Nietzsche chama esse tipo de arte de apolínea porque considera Apolo o deus mais importante do Olimpo.

7. Frag. Post., final de 1870-abril de 1871, 7 [1S2l. 8. N.T, § 3.

9. Cf. Frag. Post., inverno de 1869-primavera de 1870, 3 [42]. 10. Frag. Post., final de 1870-abril de 1871, 7 [116].

11. N.T, § 1.

12. Frag. Post., final de 1870-abril de 1871, 7 [27]. 13. Cf. NT, § 4.

14. NT, § 6. 15 N.T, § 3. 16 .. VT, § 4.

17. Sobre essas denominaçóes, cf N. T, § 1 e 2. 18. :V. T, § 4.

19. ,VT. § 7.

20. ,VT, § 7.

21. l'D. § 1. "Foi o pO\'O apolíneo que impôs os liames da beleza ao instinto todo-poderoso: subjugou os elementos mais perigosos ela natureza. suas bes­ tas mais selvagens ... Ibid.

22. Cf. N.T, § 21. 23. Cf. N. T, § 24.

24. Cf. Fraff. Post, im·erno de 1869-70, primavera de 1870, 3 [25].

2S. "Na realidade a tragédia helênica é apenas o signo anunciador de uma civilização mais elez'ada: ela foi o ponto extremo que pôde atingir a

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heleni-dade e também o mais alto. Esta etapa era a mais difícil de atingir. Nós somos seus herdeiros." Frag. Post, setembro de 1870 - janeiro de 1871, 5 [94). 26. N.T, § 2.

27. N.T, § 2.

28. Crepúsculo dos ídolos, depois de afirmar que "o essencial da embriaguez é o sentimento de plenitude e de intensificação das forças" ("incursões de um intempestivo", § 8), caracteriza tanto o apolíneo quanto o dionisíaco como estados de embriaguez e distingue-os pelo fato de que enquanto um intensifica o olhar, o outro intensifica o sistema inteiro dos afetos. (Ibíd., § 10.)

29. V.D., § 1; cf. íbíd., § 3.

30. Às vezes Nietzsche distingue o belo do sublime. Um fragmento desta época diz, por exemplo: "Se o belo tem como base um sonho do ser, o sublime tem por base uma embriaguez do ser." Frag. Post., final de 1870 -abril de 187.1, 7 [46).

31. Frag. Post., final de 1870 - abril de 1871, 7 [29). 32. Frag. Post., final de 1870 - abril de 1871, 7 [128). 33. Cf. Frag. Post., primavera de 1884, 25 [951. 34. N.T, § 16.

35. N.T, § 17. 36. Cf. N. T, § 16.

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Metafísica de artista e metafísica racional

(M

etafísica de artista" é a concepção de que a arte é a

atividade propriamente metafísica do homem, a concepção de que apenas a arte possibilita uma experiência da vida como sendo no fundo das coisas indestrutivelmente poderosa e ale­ gre, malgrado a mudança dos fenômenos.1 Mas que significado tem a apologia dessa experiência estética da verdade dioní­ síaca do mundo - experiência metafísica possibilitada pela arte trágica grega - na estrutura mais geral da reflexão filo­ sófica de Nietzsche nessa época? Significa a criação de uma "contra-doutrina'} de uma contra-noção, na luta contra a me­ tafísica e a ciência. Por um lado, é a formulação de uma de­ núncia: depois de ·uma vida breve, a arte trágica desapareceu um dia bruscamente, tragicamente, do campo do saber grego através de uma morte violenta e rápida cujos marcos são Eurí­ pedes e Sócrates. Eurípedes e Sócrates contra a tragédià dioni­ síaca: eis o antagonismo fundamental que assinala Nietzsche quando analisa pela primeira vez as relações entre arte e ciên­ cia. O que em termos conceituais quer dizer a oposição entre razão científica e instinto estético ou entre duas formas de saber: o saber racional e o saber artístico. Por outro lado, a valorização da arte - e não do conhecimento - como a ativi­ dade que dá acesso às questões fundamentais da existência é a busca de uma alternativa contra a metafísica clássica criadora da racionalidade. Idéia que sempre permaneceu fundamental no pensamento de Nietzsche: a arte tem mais valor do que a ciência por ser a força capaz de proporcionar uma experiência dionisíaca.

O ponto de partida da análise é a crítica do "socratismo estético". Se Eurípedes é o marco que assinala a morte da arte trágica é porque com ele, pela primeira vez, o poeta se

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subor-dina ao pensador racional, ao pensador consciente. O que ca­ racteriza a ''estética racionalista", a "estética consciente", é in­ troduzir na arte o pensamento e o conceito3 a tal ponto que a produção artística deriva da capacidade crítica. Momento em que a consciência, a razão, a lógica despontam como novos critérios de produção e avaliação da obra de arte.

Quando a racionalidade faz uma crítica explícita à pro­ dução artística na perspectiva da consciência, quando toma como critério o grau de clareza do saber, a tragédia será des­ classificada como irracional ou como desproporcional: "um com­ promisso de causas parecendo sem efeitos e de efeitos pare­ cendo sem causas",� ou uma profundidade enigmática e infinita, incerta, indiscernível, sombria, em suma, obscura.� Por não ter consciência do que faz e não apresentar claramente o seu sa­ ber, o poeta trágico será desvalorizado, desclassificado pelo saber racional.

A perspectiva socrática de Eurípedes, o poeta sóbrio que condenou os poetas embriagados, assinala uma ruptura na ma­ neira de considerar a arte. Assim, enquanto Eurípedes critica Ésquilo por considerar que ele fazia mal o que fazia por não saber o que fazia, Sófocles, por exemplo, ainda considerava correto o que Ésquilo fazia, mesmo que ele o fizesse incons­ cientemente. "Se Sófocles disse de Ésquilo que ele fazia bem, mas sem sabê-lo, Eurípedes sem dúvida pensou que ele fazia mal por não saber." E Nietzsche enuncia o que constitui o fundamental da distinção entre esses dois momentos: "Nenhum poeta antigo anterior a Eurípedes estava em condições de de­ fender, por motivos estéticos, o que ele tinha de melhor. Pois a particularidade maravilhosa de toda essa evolução da arte gre­ ga é que o conceito, a consciência ainda não estavam expres­ sos e tudo o que o discípulo podia aprender com o mestre tinha relação com a técnica".6 O que faz a diferença é a subor­ dinação da beleza à razão, é o estabelecimento do postulado socrático segundo o qual só pode ser belo aquilo que é cons­ ciente, racional.

Erigindo como fundamento de sua estética o princípio "para poder ser entendido tudo eleve ser da ordem do

entendi-30

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Nietzsche e a verdade

mento",7 Eurípedes se torna o poeta do racionalismo socrático: sua crítica da arte é o prolongamento da crítica socrática aos homens de sua época que por não terem consciência de seu ofício o exercem apenas por instinto. É neste "apenas por ins­ tinto" que se encontra, segundo Nietzsche, a essência do

so-·' cratismo. "O socratismo despreza o instinto e portanto a arte.

Nega a sabedoria justamente onde se encontra seu verdadeiro reino."8 Desprezando o instinto em nome da criação artística consciente que tem como critério a razão, o discernimento, a clareza do saber, o socratismo condena a arte e o saber trági­ cos9. Se algo só é bom se for consciente, se há relação ne­ cessária entre saber-virtude-felicidade, o saber trágico, que é um saber inconsciente, se encontra necessariamente desclas­ sificado. Em suma, pelo Jato de ser impossível expressar con­ ceitualmente- expor e comprovar racionalmente, logicamen­ te - o trágico, Sócrates e Eurípedes negaram um saber como o de Ésquilo, que deve o que tem de melhor a uma "criação inconsciente".

Assim, o estudo da relação entre metafísica de artista e metafísica conceitual, que tem como ponto de partida a crítica do socratismo estético, vai muito mais longe do que uma sim­ ples questão de estética, remetendo em última instância, como sempre em Nietzsche, ao problema da verdade. É, fundamen­ talmente, um modo de pôr em questão o "espírito científico", caracterizado na época por Nietzsche como a crença, que nas­ ceu com Sócrates, na penetrabilidade da natureza. 10 O que é a metafísica racional criadora do espírito científico? É justamente ''a crença inabalável de que o pensamento, seguindo o fio da causalidade, pode atingir os abismos mais longínquos do ser e que ele não apenas é capaz de conhecer o ser, mas ainda de

corrigi-lo" _11 Para Nietzsche, em toda sua investigação e mes­ mo nesse momento em que defende uma "metafísica" de artis­ ta, o saber trágico não foi vencido propriamente pela verdade, mas por uma crença na verdade, por uma "ilusão metafísica" que está intimamente ligada à ciência. Afirmar que o problema

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da ciência não pode ser elucidado no nível da própria ciência, ' a partir dos critérios postulados pela ciência, significa trazer a questão, ou melhor, para considerar Nietzsche como um es­ trategista, situar o combate no terreno da ilusão. A luta contra a ilusão é uma forma de ilusão. Essa idéia é o ponto central da argumentação de Nietzsche mesmo quando considerou a es­ trutura conceitual, racional, da metafísica como imprópria ou como a mais imprópria para exprimir a essência do mundo; mesmo quando pensou em termos de essência do mundo. Foi a "ilusão metafísica" - a crença de que o conhecimento é capaz de penetrar conscientemente na essência, na natureza, no fundo das coisas separando a verdade da aparência e con­ siderando o erro como um mal - que destruiu a arte trágica.

O poder criador do artista trágico foi negado pela metafísica por não ser uma penetração consciente na essência das coisas.

O antagonismo entre o espírito científico e a experiência trágica é em Nietzsche uma crítica da prevalência da verdade ou da verdade como valor superior pela afirmação tanto do caráter fundamental da aparência quanto da exigência de su­ peração da oposição essência-aparência, verdade-ilusão. Se­ parar o dionisíaco e o apolíneo é matar os dois. O herói foi morto não pelo trágico, mas pelo lógico.12 A "metafísica de artista" que Nietzsche defende no primeiro momento de sua reflexão filosófica é a denúncia da verdade como única deusa da ciência - sua ilusão constitutiva - em nome da afirmação de que o ser verdadeiro tem necessidade da bela aparência, de que a arte é uma unificação desses dois elementos: "se o artista, cada vez que a verdade se desvela, permanece em suspense, extasiado com o véu que permanece depois do desvelamento, o homem teórico é aquele que tem sossego e satisfação ao ver o véu arrancado e não conhece prazer maior do que conseguir, por suas próprias forças, tirar novos véus. A ciência não exis­ tiria se não tivesse por única deusa a verdade nua e nada mais". 13 Se a arte tem mais valor do que a ciência, e é sempre utilizada por Nietzsche como paradigma em sua crítica da ver­ dade, é que enquanto a ciência cria uma dicotomia de valores

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Nietzsche e a verdade

que situa a verdade como valor supremo e desclassifica inteira­ mente a aparência, na arte a experiência da verdade se faz indissoluvelmente ligada à beleza, que é uma ilusão, uma men­ tira, uma aparência.

Notas

1 . Cf. N. T., § 7.

2. Cf. N. T., "Tentativa de autocrítica", § 5.

3. "Sócrates e a Tragédia", in Escritospóstumos, edição alemã, t. I, p. 535, tradução francesa, t. I, v. 1, p. 35.

4. N.T., § 14.

5. Cf. N.T., § 1 1 ; "Sócrates e a tragédia", ed. ai., t. I, p. 539; tr. fr., t. I, v. 1, p. 38.

6. "Sócrates e a tragédia", ed. ai., t. I, p. 539-40; ; tr. fr., t. I, v. 1 , p. 38. 7. Ibíd, ed. ai., p. 537; tr. fr., p. 36.

8. Ibíd., ed. ai., p. 542; tr. fr. , p. 40. 9. Cf. N. T., § 13.

10. Cf. N. T., § 17. 11. N.T., § 15.

12. Cf. "Sócrates e a tragédia", in ibíd., ed. ai., p. 546; tr. fr., p. 43. 13. N. T., § 15; Frag. Post., final de 1870, 6·[16).

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3

Arte e "instinto de conhecimento"

A

presentei o que considero o essencial da crítica da

racionalidade científico-filosófica tal como é formulada em O nascimento da tragédia e nos escritos e fragmentos que lhe servem de preparação. É indispensável porém salientar que essa crítica é sempre retomada por Nietzsche, impondo-se co­ mo tema constante, malgrado as diferenças conceituais que servem para formulá-lo. Os textos imediatamente posteriores, como, por exemplo, o conjunto de fragmentos que deveriam constituir O livro do filósofo, retomam a mesma problemática da relação entre arte e conhecimento. Mas se a crítica à meta­ física persiste nesses escritos, como em toda a obra de Nietzsche, ela não mais se faz em nome de uma metafísica de artista, isto é, de uma dimensão metafísica da arte ou de uma experiência artística da essência do mundo - o elemento da arte é a ilusão. A crítica à institução da dicotomia metafísica verdade-aparência agora é realizada a partir do conceito de "instinto de conhe­ cimento" ou instinto de verdade, sem que o elogio da arte explicite uma dualidade de elementos ou de forças, mesmo que seja para afirmar uma síntese, uma reconciliação ou uma unificação.

O que é o "instinto de conhecimento"? Para sabê-lo é preciso resolver um problema: alguns textos negam claramente a existência de um instinto de conhecimento, de um "instinto de verdade honesto e puro" .1 O que Nietzsche pretende então é ressaltar que o conhecimento não faz parte da natureza hu­ mana, ou melhor, não está no mesmo nível que os instintos e que não é possível dizer, por exemplo, como Aristóteles no início da Metafísica, que todos os homens desejam natural­ mente conhecer. O conhecimento não é um instinto do ho­ mem, quer dizer, não é da mesma natureza que os instintos. O

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conhecimento foi produzido, o conhecimento foi inventado, como enuncia a bela fábula criada por Nietzsche: "Em algum ponto do universo inundado por cintilações de inúmeros siste­ mas solares houve um dia um planeta em que animais inteli­ gentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais orgulho­ so e mais mentiroso da 'história universal', mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza o planeta se congelou e os animais inteligentes tiveram que morrer". 2 Quando afirma não haver instinto de conhecimento, ele quer salientar que não se deve definir o homem pelo conhecimento ou o conhecimento como o valor principal do homem porque os instintos são mais fundamentais do que o conhecimento.

Por outro lado, quando ele se expressa em termos de instinto de conhecimento ou de verdade, a expressão deve sempre ser entendida como se referindo a um instinto da cren­ ça no conhecimento ou na verdade. Propriamente o instinto de que fala Nietzsche é de crença e não de conhecimento. É o que significa, por exemplo, a afirmação, à primeira vista enigmá­ tica, de que "não existe instinto de conhecimento e de verdade, mas apenas um instinto de crença na verdade; o conhecimento puro é privado de instinto" .3 E se "instinto de conhecimento" tem o sentido, não de uma tendência natural para a verdade, mas de uma crença - produzida - na verdade é porque não há posse da verdade, mas apenas convicção, suposição de pos­ suir a verdade. "Análise da crença na verdade: pois toda posse da verdade é, no fundo, apenas uma convicção de possuir a verdade. O pathos, o sentimento do dever, vem desta fé e não da pretensa verdade."4 A verdade não tem como critérios a evidência e a certeza; tem como condição um esquecimento e uma suposição.

Ora, dizer que o instinto de conhecimento - denomi­ nação que em Nietzsche é geralmente utilizada criticamente, com a conotação de signo de baixeza, de decadência, de de­ clínio; signo de que a vida envelheceu e de que os instintos fundamentais se tornaram fracos5 - é produzido significa di­ zer que sua análise remete às condições de seu nascimento, de seu aparecimento. É então que aparece uma idéia que cada

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Nietzsche e a verdade

vez mais se imporá a seu pensamento: as condições de possi­ -�lidade do conhecimento são sociais, políticas ou, mais pre­ cisamente, morais. Relação entre verdade e moral que é assina­ lada inúmeras vezes em O livro do filósofo. Eis alguns exemplos: § 91: "A crença na verdade é necessária ao homem. A verdade aparece como uma necessidade social; por uma metástase ela é, em seguida, aplicada a tudo, mesmo onde não é necessária. Todas as virtudes nascem de necessidades. Com a sociedade começa a necessidade de veracidade, senão o homem viveria em eternos véus. A fundação dos Estados suscita a veracidade.

O instinto de conhecimento tem uma fonte moral." § 130: "Por natureza o homem não existe para o conhecimento - a vera­ cidade (e a metáfora) produziu a inclinação para a verdade. Assim, um fenômeno moral, esteticamente generalizado, produz o instinto intelectual." § 133: "A necessidade produz, às vezes, a veracidade como meio de existência de uma sociedade. O

instinto se reforça por um exercício freqüente e é agora injus­ tamente transposto por metástase. Torna-se a tendência em si. Do exercício para casos determinados se faz uma qualidade. Temos agora o instinto de conhecimento." § 134: "O homem bom também quer ser verdadeiro e acredita na verdade de todas as coisas. Não apenas da sociedade, mas também do mundo."

Nessa época, é em "Verdade e mentira no sentido extra­ moral" que a relação entre verdade e sociedade é mais explici­ tamente tematizada. Partindo da distinção entre estado de na­ tureza e estado de sociedade, Nietzsche negará a existência de um desejo natural de verdade através de uma concepção do intelecto como tendo um efeito específico de dissimulação. O

intelecto, que é um meio de conservação dos indivíduos mais fracos, tem originariamente por função produzir disfarce, más­ cara, ilusão, mentira com o objetivo de compensar uma falta de força.

É sobre esse fundo de mentira que vai ser formulada a questão da verdade no estado de sociedade. Para instaurar a paz ou fazer desaparecer o aspecto mais brutal da guerra de todos contra todos, são fixadas leis da verdade a partir das leis

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da linguagem: são essas leis que instituem pela primeira vez a oposição entre verdade e mentira. A partir do momento em que se estabelece uma designação . uniformemente válida e obri­ gatória para as coisas, o mentiroso é aquele que utiliza as palavras, as designações pertinentes, para fazer o irreal parecer real. É esta convenção que estabelece a verdade. A verdade não é uma adequação do intelecto à realidade; é o resultado de uma convenção que é imposta com o objetivo de tornar possível a vida social; é uma ficção necessária ao homem em suas relações com os outros homens.

Conclusão: O homem não ama necessariamente a verdade: deseja suas conseqüências favoráveis. O homem também não odeia a mentira; não suporta os prejuízos por ela causados. O que se proscreve, o que não se aceita e não se deseja é o que é considerado nocivo: são as conseqüências nefastas tanto da mentira quanto da verdade. A obrigação, o dever de dizer a verdade nasce para antecipar as conseqüências nefastas da men­ tira. Quando a mentira tem valor agradável ela é muito bem permitida.6

Pelo modo como tematiza. a questão do aparecimento do instinto de conhecimento e de verdade podemos facilmente ·

observar - o que é uma característica permanente de suá reflexão - como a análise de Nietzsche nunca se situa em um nível propriamente epistemológico, que teria por objetivo esta­ belecer critérios de demarcação entre o verdadeiro e o falso conhecimento. Desde o início, a investigação nietzschiana so­ bre o conhecimento não se limita ao interior da questão do conhecimento, mas o articula com um nível propriamente po­ lítico ou social com o objetivo de mostrar que a oposição entre verdade e mentira tem uma origem moral. Articulação do conhe­ cimento com o social que neste momento pretende sobretudo elucidar como a exigência de verdade surge da exigência da coexistência pacífica entre os homens, da exigência da vida gre­ gária. Paz, segurança e lógica estão intrinsecamente ligadas.7

A relação entre conhecimento e moral não é, entretanto, estabelecida por uma teoria moral. A perspectiva que denuncia a oposição verdade-mentira como fundada na moral é, como

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Nietzsche e a verdade

Nietzsche a denominou, "extramoral" - ou empregando um termo que já aparece neste momento e que posteriormente ganhará toda sua importância - "fisiológica". 8 É essa perspec­ tiva extramoral que, criticando o instinto de conhecimento e de verdade, afirma a necessidade da ilusão, isto é, "de não-ver­ dades tidas como verdades", salientando que o conhecimento verdadeiro tem o mesmo valor que a mentira, a falsidade, a ilusão, a aparência. Desde o início de sua reflexão Nietzsche luta contra a oposição metafísica de valores, afirmando a posi­ tividade do aspecto que foi subestimado: a ilusão é a essência que o homem se criou.9

Daí a perspectiva extramoral implicar uma apologia da arte. Se a crítica da ciência e sua pretensão de verdade, insur­ gindo-se contra a desclassificação da aparência, luta pelo re­ nascimento da arte, é porque a arte é o domínio da aparência. Isto significa o desaparecimento da oposição, não fundamental nos textos que analisamos, entre o apolíneo e o dionisíaco, ou entre um dionisíaco bárbaro e um dionisíaco grego: por ser necessariamente artístico, o dionisíaco nietzschiano implica o apolíneo. Desaparece o conflito entre a bela aparência e uma verdade fundamental dionisíaca. A afirmação da vida, da reali­ dade, que caracteriza a arte trágica é afirmação da aparência porque a própria vida é aparência. Se a arte, diferentemente da ciência, está do lado da vida, é porque a vida quer a aparên­ cia, não despreza seus véus e ilusões. O que era característica da arte apolínea torna-se condição indispensável de toda arte digna desse nome, isto é, da arte dionisíaca; radicalização, atra­ vés da aparência, de um parentesco entre arte e vida que sem­ pre esteve presente no pensamento de Nietzsche. "Única pos­ sibilidade de vida: na arte. De outro modo nos desviamos da vida. O movimento instintivo das ciências é o aniquilamento completo da ilusão: se não houvesse arte, a conseqüência seria

o quietismo."10 .

A perspectiva extramoral critica o desejo de verdade co­ , mo sendo um esquecimento de que o homem é um artista, um

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antago-nismo entre arte e ctencia no próprio campo da ilusão. No fundo, dois tipos de ilusão: a ilusão socrática, ilusão metafísica, que considera a verdade superior

aparência; e a ilusão ar­ tística, consciente do valor da ilusão, que sabe que tudo é ilusão, "figuração", "transfiguração", criação. Utilizando o pro­ cedimento de inversão tão caro a Nietzsche, poder-se-ia dizer

que enquanto a "mentira" da ciência seria querer encontrar a verdade do mundo como outra coisa que não a aparência, a "verdade" da arte é acreditar na imagem como imagem, na aparência como aparência. Ou, em outros termos, enquanto "a humanidade tem no conhecimento um belo meio de perecer", 11 a superioridade <ia arte sobre a ciência é não opor verdade a ilusão, é afirmar integralmente a vida.

Nessa propriedade de afirmação ou de negação da vida se encontra o essencial da reflexão nietzschiana sdbre a re­ lação entre arte e ciência, que se faz não na perspectiva da verdade e da falsidade, mas na perspectiva da força. O an­ tagonismo entre arte e ciência é um antagonismo de forças. A

força da arte é a afirmação da vida, que é totalmente incom­

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tível com a negatividade que caracterizà a ciência. "A arte é mais potente do que o conhecimento, pois ela quer a vida, enquanto o objetivo final que o conhecimento atinge nada mais é do que - o aniquilamento."12 Mais forte do que o conhecimento, a arte foi, no entanto, desclassificada por ele em seu desejo de verdade. O que significa justamente o início de um período de decadência que, sob diferentes formas, se tem perpetuado na história. A alternativa proposta por Nietzsche é inverter essa correlação de forças, negando a negação da vida através da arte trágica considerada como afirmação. Se a força científica reprimiu a força artística dionisíaca, isto é, se a arte, e com ela a vida, foi desvalorizada pela metafísica so­ crática, é preciso revalorizar a arte - que cria uma super­ abundância de forças, que é o grande estimulante da vida, uma embriaguez de vida - para obrigar o saber a um retorno

à vida.

No conflito entre o instinto estético e o instinto de conhe­ cimento, Nietzsche toma claramente posição ao lado da arte. O

Referências

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