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Genealogia da moral e vontade de potência

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e mostrar o problema da moral, fazer uma crítica

radical da moral: essa é uma das tarefas essenciais da filosofia de Nietzsche, que ele considera nunca ter sido realizada antes. "Não vejo ninguém que tenha ousado fazer uma crítica dos juízos de valor morais [. . .] até o momento ninguém examinou o valor da mais famosa das medicinas chamada moral: o que exigiria que se colocasse esse valor -em questão. Pois bem! É esse justamente nosso projeto."1 9_projetq genealógico - daí toda sua relevância e ambição - é uma tentativa de super�o da metafísica através de uma história descontínua dos valores morais que investiga tanto a origem - compreendida como nascimento, como invenção - quanto o valor desses valores. Ligar a filosofia à história - como ele também faz com a filologia, com a fisiologia, com a psicologia - é um_ modo de marcar uma posição, de assinalar sua diferença com relação a uma filosofia que ele pretende denunciar com metafísica e mo­ ral. Se a genealogia é uma reflexão filosófica que pode ser considerada como uma extensão da noção de história, um dos motivos é que Nietzsche não acredita mais em valores eternos: os valores são históricos, advindos ou em devir. "O que nos separa mais radicalmente do platonismo e do leibnizianismo é que não acreditamos mais em conceitos eternos, em valores eternos, em formas eternas, em almas eternas; e a filosofia, na medida em que é científica e não dogmática, é para nós ape­ nas uma maior extensão da noção de 'história'. A etimologia e a história da linguagem nos ensinaram a considerar todos os conceitos como advindos, muitos dentre eles como ainda em devir."2

Os valores não têm uma existência em si, não são uma realidade ontológica; são o resultado de uma produção, de

uma criação do homem: não são fatos, são interpretações in­ troduzidas pelo homem no mundo. "Tudo o que tem algum

valor no mundo atual não o tem em si, não o tem por sua

natureza - a natureza é sempre sem valor - mas um dia

ganhou valor, como um dom, e nós somos os doadores. Fomos nós que criamos o mundo que diz respeito ao homem!".3 O mesmo acontece com os valores morais. Não existem fatos mo­ rais, fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral. 4

Nietzsche torna preciso seu pensamento, acrescentando: uma falsa interpretação. 5 É inegável que ele sempre afirmou que a moral é falsa. Mas isso, sem dúvida, não é a direção mais importante de seu pensamento porque não se pode afir­ mar que a questão do valor dos valores seja uma crítica da verdade desses valores. E a razão é evidente: é que a questão da verdade nasce para Nietzsche no bojo da moral; este é o seu aspecto mais essencial, a ponto de não se poder escapar da moral sem se libertar da vontade de verdade. Neste sentido, em vez de a genealogia ser uma pesquisa sobre a verdade do valor, ela é muito mais propriamente uma pesquisa sobre o valor da verdade. Dizer que a moral é uma "falsa" interpre­ tação é dizer que ela não é fundamentalmente moral; ela é "imoral" ou de origem extramoral.6 Quer dizer, ela é um sin­ toma que, para poder ser compreendido, remete a um nível mais elementar que muitas vezes Nietzsche chamou de fisio-:_ . lógico: nível da vida e suas forças; nível da vontade de potên­ cia? Por isso, colocando a questão do valor, a genealogia da moral está sobretudo avaliando sua força: "fazer sua crítica, isto é, questionar: qual é sua força? sobre o que ela age? o que

acontece com a humanidade (ou com a Europa) sob o seu domínio? Que forças ela favorece, que forças ela reprime? Tor­ na ela mais sadio, mais doente, mais corajoso, mais ávido de arte etc.?"8 Colocando a questão das forças, considerando os valores morais como valores vitais, a genealogia é, assim, tam­ bém uma interpretação; só que uma interpretação que se reco­ nhece "imoral",9 afirma uma incompatibilidade entre a moral e a vida e proclama que é preciso destruir a moral para libertar a

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vida.10 Suspeitando do valor da moral, a genealogia pretende desvalorizar os valores prevalentes até entãô.

Em suma, insurgindo-se contra a tendência a considerar "o valor desses 'valores' como dado, como real, como além de todo questionamento", n a genealogia tem por objetivo colocar

em questão o próprio valor desses valores pelo conhecimento das condições de seu nascimento, desenvolvimento e modifi­ cação. Contra hipóteses metafísicas no azul, a cinza história genealógica do que realmente existiu formula seu problema: "Em que condições o homem inventou os juízos de valor bom e malvado? E que valor eles têm?"12 São signos de declínio ou de plenitude da vida?

Tese central de Nietzsche: a existência, não de uma única, mas de uma dupla origem dos valores morais e de uma oposição histórica irredutível entre dois tipos fundamentais de moral: uma "moral dos mestres" e uma "moral dos escravos"13, ou, para usar as expressões de Crepúsculo dos ídolos, uma "moral sadia", natural, regida pelos instintos da vida, e uma "moral contranatural" voltada contra os instintos da vida.14 Dois tipos de moral, afirma Nietzsche, mas que na realidade são total­ mente heterogêneos, nada têm em comum, implicam uma di­ ferença de níveis, uma hierarquia, mesmo que, como tipos, existam em uma mesma sociedade e até em um mesmo in­ divíduo.15 Em outros termos, a "moral dos mestres", a "moral sadia", mais propriamente do que uma moral, é uma "ética'�16

A "moral aristocrática" é uma ética do bom e do mau considerados como tipos históricos, como valores imanentes, como modos de vida; ética dos modos de ser das forças vitais que define o homem por sua potência, pelo que ele pode, pelo que ele é capaz de fazer. Em contrapartida, a "moral plebéia" é propriamente uma moral: um sistema de juízos em termos de bem e de mal considerados como valores metafísi­ cos e que, portanto, refere o que se diz e o que se faz a valores transcendentes ou transcendentais. Duas formas de con­ sideração da existência humana que se diferenciam irredutível­ mente como uma positividade e uma negatividade, não porque

uma seja verdadeira e a outra falsa, mas porque uma é signo de plenitude e a outra de declínio da vida.

O objetivo fundamental da genealogia é realizar uma crí­ tica radical dos valores morais dominantes na sociedade mo­ derna. Mais precisamente, analisar a "moral altruísta" e demons­ trar que não existe uma relação necessária entre o bom e as a

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ões "não-egoístas". Neste sentido, a ética aristocrática do bom e do mau desempenha claramente o papel de um princípio de avaliação e de modelo de alternativa crítica aos valores domi­ nantes. Como se Nietzsche julgasse a moral a partir da ética. Mas sobretudo como se denunciasse a moral pela destruição dos valores da ética. Daí, várias vezes ter afirmado a existência de um momento e um lugar em que os valores aristocráticos foram dominantes: a Grécia arcaica, que para ele sempre signi­ ficou o apogeu da civilização, é onde vai encontrar na arte - na epopéia, na poesia lírica, na tragédia - os valores que opõe à moralidade. Assim, do mesmo modo que a filosofia socrático-platônica estabelece uma ruptura entre o trágico e o racional, a religião judaico-cristã institui a ruptura entre ética e moral. Balizamentos históricos diferentes mas que têm em co­ mum assinalar o nascimento de um período de decadência.

Há, portanto, entre a moral cristã e a ética aristocrática conflito e vitória; vitória parcial da moral que transformou o "homem-fera" em animal doméstico, uma ave de rapina em cordeiro. Metáforas estas que evidenciam duas coisas: que a análise não é só global, caracterizando povos e grandes perío­ dos, mas também molecular no sentido de privilegiar tipos individuais; e, ao mesmo tempo, que o essencial da análise é a dimensão das forças. A decadência é uma diminuição, um en­ fraquecimento do homem; é a transformação do tipo forte no tipo fraco, o triunfo das forças reativas sobre as forças ativas; é a decomposição das forças ativas, a subtração da força dos fortes que fez com que os próprios fortes assumissem os valo­ res dos fracos. 17 "Eu distingo um tipo de vida ascendente e um outro, do declínio, da fraqueza [. .. ] Esse tipo mais forte já exis­

tiu freqüentemente: mas como acaso feliz, como exceção, nunca como desejado. Muito pelo contrário, era ele justamente que

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mais se combatia, que mais se entravava - ele sempre teve contra si o grande número, o instinto de toda espécie de me­ diocridade, melhor ainda, ele teve contra si a astúcia, a sagaci­ dade, o espírito dos fracos e - por conseguinte - a 'virtude'

[. . .] e foi o medo que ele inspirava que levou a querer, a criar, a obter o tipo oposto: o animal doméstico, o animal gregário, o animal doente, o cristão."18

Três características distinguem, de modo geral, a "moral gregária" da "ética aristocrática". A ética aristocrática é afirma­ t

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va, é o resultado de um sim a si mesmo. É nobre, é bom, é forte aquele que cria, que determina os valores e sabe muito bem disto. "A humanidade aristocrática sente que ela deter­ mina os valores, não tem necessidade de aprovação, julga que aquilo que lhe é nocivo é nocivo em si mesmo, sabe que é ela que confere dignidade às coisas, é criadora de valores."19 Ela também é positiva no sentido em que os aristocratas se posi­ cionam como bons, se sentem bons, estimam seus atos bons, sem se incomodarem com os maus que - não interferindo nesta autoposição de valores - são considerados secundários ou simplesmente desconsiderados. Finalmente, a ética aristo­ crática pressupõe uma atividade livre, criadora e alegre; no forte, atividade e felicidade estão intrinsecamente ligadas. � aili'idade-é uma afirmação da potência: "o que faz agir não é a necessidade mas a plenitude ... contra a teoria pessimista segun­ do a qual todo agir se reduziria a querer ·se livrar de uma

insatiifação, o prazer consigo mesmo seria o alvo de qualquer ação . . . "20 Em contrapartida, a moral dos escravos, além de con­

siderar a felicidade como passividade, paz, repouso, é negativa e reativa: funda-se na negação dos valores aristocráticos, da­ quilo que lhe é exterior e diferente. E, como é esse não que instaura valores, sua ação nada mais é do que uma reàção.

Enquanto a equação dos valores aristocráticos, tal como Nietzsche a estabelece a partir do poeta lírico grego Theognis de Megara, pode ser enunciada como: bom = nobre = belo =

feliz = amado dos deuses, a moral judaica realizou uma total

inversão de valores, uma "vingança espiritual pura", ao afirmar que bons são apenas os miseráveis, pobres, necessitados, im-

potentes, baixos, sofredores, doentes, disformes e que os nQ� _

bres e poderosos são malvados, cruéis, lúbricos, insaciáveis,

í�. 21 Ou, como afirma Além do bem e do mal, "os

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uiram essa prodigiosa inversão dos valores que, durante milênios, deu à vida terrestre um atrativo novo e perigoso: seus profetas fundiram em uma mesma noção 'rico', 'ímpio', 'malvado', 'violento', 'sensual' e pela primeira vez deram um sentido infamante à palavra 'mundo'. Essa inversão dos valores (que também pretende que 'pobre' seja sinônimo de 'santo' e de 'amigo') mostra toda a importância do povo judeu: com ele começa a revolta dos escravos na ordem moral.'122 De um pon­ to de vista extramoral, o "escravo" é um fraco, um infeliz que denomina malvado o "aristocrata", o tipo forte de homem. _A moral judaico-cristã, inversão total dos valores positivos da éti­ ca aristocrática, expressa um enorme ódio contra a vida - o ódio dos impotentes -, contra o que é positivo, afirmativo, ativo, na vida; negação da vida que tem justamente a função de "aliviar a existência dos que sofrem". 23 Em uma palavra, é niilista.

A genealogia da moral define esse tipo de niilismo a par­ tir de suas três figuras principais: o ressentimento, a má-cons­ ciência, o ideal ascético. Situarei os resultados mais importan­ tes dessa análise.

O ressentimento24 é o predomínio das forças reativas so­ bre as forças ativas. O ressentido é alguém que nem age nem reage realmente; produz apenas uma vingança imaginária, um ódio insaciável. "Visto que o homem se consumiria rapida­ mente se reagisse, acaba por não reagir: eis a lógica. E nada consome mais rapidamente do que os afetos do ressentimento. O desgosto, a suscetibilidade doentia, a impotência em se vin­ gar, a inveja, a sede de vingança, o envenenamento em todos os sentidos: eis para o homem esgotado o modo mais nocivo de reagir."25 Compreende-se a afirmação de Nietzsche de que é preciso proteger os fortes contra os fracos. 26 Criando um ini­ migo que considera malvado e imaginando uma vingança con­ tra seus valores, o que faz o ressentido é dar sentido a sua falta de força: o outro é sempre culpado do que ele não pode,

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do que ele não é. Concebendo o inimigo forte como malvado, o ressentido - que é fraco, que é o seu oposto, que é a negação dos valores que o outro institui - pode então se considerar, ou melhor, se imaginar bom. Atitude diametralmente oposta à dos aristocratas que se autoposicionam bons, consi­ deram mau o que é comum, o que não lhes é igual, e não desprezam, ao contrário, veneram os inimigos, isto é, também os consideram bons. "Os bons são urna casta; os maus uma massa, urna poeira. Bom e mau são, por um tempo, sinônimos de nobre e vil, mestre e escravo. Por outro lado, não se olha o inimigo como mau: ele pode revidar. Em Homero tanto o gre­ go quanto o troiano são bons. Não passa por mau aquele que nos inflige algum dano, mas aquele que é desprezível.'>27

A má-consciência ou o sentimento de culpa tem, segundo a genealogia nietzschiana, uma dupla origem. A primeira é a transformação do tipo ativo em culpado28 que se deu com o nascimento do Estado, "a mudança mais profunda que se pro­ duziu na humanidade". 29 A argumentação de Nietzsche nesses importantes textos que analisam essa forma de surgimento da má-consciência se faz pela relação entre instinto e consciência. A idéia central é a seguinte: a força coercitiva, repressora, do Estado - uma tirania terrível - abatendo-se sobre uma popu­ lação nômade, selvagem, livre, desvalorizou abruptamente os instintos - instintos de liberdade, reguladores da vida, incons­ cientemente infalíveis -, reduzindo esses "semi-animais" ao pensamento, à consciência, "a seu órgão mais miserável e mais sujeito ao erro". 30 Impossibilitados de agir no exterior, esses instintos fundamentais, que Nietzsche assimila à vontade de potência,31 inverteram sua direção, voltaram-se para dentro, para o interior, ou melhor, criaram a interioridade. A interiorização do homem se produz quando os instintos mais potentes, não podendo se expandir por causa de uma forte repressão social, voltam sua força contra o próprio indivídu�. É a interiorização

desta força ativa, da vontade de potência, que cria a má-cons­ ciência. "Esse instinto de liberdade tornado latente pela violên­ cia - já o compreendemos - esse instinto de liberdade recal­ cado, coibido, preso no interior e só podendo se expandir e se

desencadear sobre si próprio: é isso, e nada mais do que isso, a má-consciência no início". 32

O segundo modo de surgimento da má-consciência é a transformação do ressentido em culpado realizada pelo padre ascético.33 O papel do padre é descarregar, aliviar seu rebanho do ressentimento acumulado que ele considera um explosivo capaz de destruir tanto um quanto o outro. Como se dá esse alívio descompressor? O ressentido é alguém que sofre e por­ que sofre procura espontaneamente uma causa - um culpado - de seu sofrimento para sobre ele descarregar seu ódio, "dis­ trair a dor pela paixão". Esse culpado, o padre lhe oferece: é ele mesmo, o ressentido. "Alguém deve ser culpado de que eu me sinta mal!", diz o ressentido, ignorando a causa de seu sofrimento; o padre ascético lhe responde: "Tem razão, minha ovelha, alguém deve ser culpado, mas esse alguém é você mesmo; é você mesmo e apenas você que é culpado de você!"34 Sua culpa, sua culpa, sua culpa! dizia incessantemente o res­ sentido; minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa! dirá agora o culpado. É o padre que muda a direção do ressenti­ mento. A má-consciência é o ressentimento voltado contra si próprio. Nasce assim, segundo essa "psicologia do padre", o pecado.35

Terceira forma de niilismo: o ideal ascético. O que teriza o ascetismo religioso? É considerar a vida um erro, negá­ la e fazer dela uma ponte para outra vida, a vida verdadeira: invenção de um além para melhor caluniar um aquém;36 in­ venção de um outro mundo que só se explica pelo cansaço da vida que impera na moral, na religião, na filosofia. "Inventar fábulas sobre um 'outro' mundo diferente deste não tem sen­ tido a não ser que domine em nós um instinto de calúnia, de depreciação, de receio: neste caso nos vingamos da vida com a fantasmagoria de 'outra' vida distinta desta e melhor do que esta."37 Calúnia suprema da vida que, para tornar desejável essa negação da vida, supõe a existência de outra vida, de um mundo do além, de um mundo supra-sensível. Mas o ideal ascético não se distingue essencialmente das duas atitudes an­ teriores; constitui, pelo contrário, o sistema moral do ressenti-

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mento e da má-consciência, mais propriamente, os meios de organização do tipo de moral judaico-cristã. O que caracteriza a moral é ela ser a maior caluniadora e envenenadora da vida.38 Por quê? Porque ela é niilista; porque com ela os "instintos de decadência" dominam os "instintos de expansão", a vontade de nada vence a vontade de viver. "O instinto niilista diz não; sua afirmação mais moderada é que não-ser é melhor do que ser, que o desejo de nada tem mais valor do que querer-viver; sua afirmação mais rigorosa é que, se o nada é o que há de mais desejável, esta vida, como sua antítese, é absolutamente sem valor - condenável"39 Niilista, a moral exprime uma von­ tade de nada, isto é, uma vontade não de afirmar mas de n�gar, de depreciar a vida, possibilitando assim o triunfe.-d:its forças reativas.

Pode-se compreender a importância que Nietzsche con­ fere ao nascimento de uma moral do bem e do mal e o papel central que a reflexão sobre a moral desempenha em sua obra. A sociedade moderna é niilista, isto é, dominada pelos valores morais, pelos valores superiores que são justamente os valores da decadência. E se a humanidade vive um período de de­ cadência, de degenerescência - dois milênios de antinatureza e profanação do homem40 - isso se deve à vitória da "revolta dos escravos na moral". Se a espécie humana não atingiu o grau mais alto de potência e esplendor, isso se deve ao fato de a moral ser o perigo dos perigos.41 Daí a posição de Nietzsche em defesa de uma ética aristocrática como aspecto positivo da denúncia da negatividade da moral. Daí sua posição imoral, amoral ou extramoral, que pretende desmascarar a moral para desmascarar o não-valor de todos os valores em que se acre­ dita,42 criticar a domesticação do homem realizada pela moral em nome de um conceito de cultura como adestramento e seleção. Porque não se deve confundir domesticação, que é enfraquecimento, com adestramento: "Como o entendo, o ades­ tramento é um dos meios do enorme acúmulo de forças da humanidade, de modo que as gerações possam continuar a construir tendo por base o trabalho de seus ancestrais - cres-

cer a partir deles não apenas exteriormente, mas interiormente, organicamente, no que existe de mais forte".43

É por isso que contra o enfraquecimento do homem, con­

tra a transformação de fortes em fracos - tema constante da reflexão nietzschiana - é necessário assumir uma perspectiva além de bem e mal, isto é, "além da moral".44 Mas, por outro lado, para além de bem e mal não significa para além de bom e mau.45 A dimensão das forças, dos instintos, da vontade de potência permanece fundamental. "O que é bom? Tudo que intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo que provém da fraqueza."46

A exposição das teses centrais de A genealogia da moral

mostra como - ao privilegiar na análise as forças, os instintos, a vontade de potência - a genealogia dos valores morais se realiza tomando a vida como critério de avaliação; mas eviden­ cia também a definição mais especificamente nietzschiana da vida como vontade de potência: a natureza da vida é a von­ tade de potência.47 Essa posição primordial da vontade de tência na análise - situação de critério último de avaliação -