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Grimal_Pierre_a_civilização_romana-A_vida_e_as_artes

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PIERREGRIMAL

A CIVILIZAÇÃO

ROMANA

Título original: La Civilisation Romaine @ Les Éditions Arthaud, Paris, 1984

Tradução de Isabel St. Aubyn Capa de Edições 70

Depósito legal n.. 73 171/93 ISBN - 97244-0113-8

Todos os direitos reservados para a língua portuguesa

por Edições 70, L.", Lisboa -

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Telefs. 3158752/3158753 Fax: 3158429

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('11.1"/1aclamações são capazes de conferir a investidura imperial: o povo e o Senado - como na República - mas também o exército, I'lIjn voz é legítimo ouvir. Por fim, é diante das coortes pretorianas q\H' Ga]ba apresenta o filho adoptivo. Nem poderia ser de outro mo-cio. A assembleia popular, já reduzida à insignificância no tempo da república oligárquica, diminuíra ainda mais de importância depois das reformas de Augusto. O Senado, dividido, mostrara que, privado do seu guia, o princeps, já não possuía a sua antiga auctoritas. Res-tava o exército que, esse, possuía pelo menos a força e afides. Seja como for, Roma regressava à antiga moda da colação do poder. O ve-lho mito republicano - o cedant arma togae (<<queas armas se apa-guem perante a toga»), leitnwtiv da teoria ciceriana da cidade

-não resistiu à prova dos factos. O principado augustano destruíra todos os vestíl,rios da democracia civil; no seu lugar surl,riu uma de-mocracia militar, imposta pela lÓl,ricada tradição romana que seis séculos de oligarquia não tinham conseguido abolir. Curiosamente (mas será por acaso?) a aclamação do chefe pelos soldados, que o elegem como rei, por este meio, recorda os costumes macedónicos, perpetuados pelas monarquias he]enísticas. Os pretorianos são o exército da Cidade; o imperator que aclamam tem mais possibilida-des de se impor do que qualquer outro. Mas os exércitos das provín-cias usam do mesmo direito, cada um deles proclama o seu próprio general e surge de novo a guerra civi1. Venha o momento em que o exército tome consciência da sua unidade - à custa de longas crises

-

e o Império, deixando de enar em busca de um princípio do po-der, de osci1ar entre uma monarquia esc]arecida estoicizante e uma teocracia de inspiração semítica, encontrará finalmente alguma es-tabilidade na tirania militar de um Diocleciano. Aconteceu já tarde, quando o Império, envelhecido, privado de forças vivas, se encami-nhava para o fim.

CAPíTULO VI

A VIDA E AS ARTES

O Império de Roma não teria passado de uma conquista efémera se se tivesse limitrldo a impor ao mundo, pela força, uma organiza-ção política e até mesmo leis. A sua verdadeira grandeza talvez resi-da mais naquilo que foi - e continua a ser - o esplendor espiritua1. Foi ele que, no Ocidente, abriu imensas regiões a todas as formas de cultura e do pensamento e que, no Oriente, permitiu que os tesouros da espiritualidade e da arte helénica sobrevivessem e conservassem a sua virtude fecundante. Por vezes, pode ser tentador sonhar com um mundo do qual Roma estivesse ausente mas, vendo bem, isso só nos permitiria avaliar melhor o papel imenso que desempenhou na história do pensamento humano.

Entre todos os milagres que contribuíram para fazer de Roma o que ela foi, o mais surpreendente talvez tenha sido aquele que per-mitiu que a língua dos camponeses latinos se tornasse, em poucos séculos, um dos instrumentos de pensamento mais eficazes e mais duradouros que a humanidade jamais conheceu. Desta história da língua latina, muitas páginas nos escapam. O paciente trabalho dos fi1ólogos

-

esses arqueólogos da linguagem - restituiu-nos algu-mas delas e sabemos hoje que a língua latina, ta] como a escreviam Cícero e VirgI1io, é o resultado de uma longa evolução iniciada há milénios no próprio seio da comunidade indo-europeia, mas que se viu bruscamente acelerada entre o século VI e o século 11 a. C., quando a fala do rústico Lácio, onde se tinham misturado elementos de diversas origens, itálicos, etruscos, e talvez outros mais, recebeu a incumbência de exprimir as concepções de toda a espécie que len-tamente tinham surl,rido no interior da cidade romana. Também sa-bemos que a língua escrita, a dos autores que, para nós, se torna-ram clássicos, n:10 é idêntica à que os Romanos falavam todos os dias: as regras e a própria estética do latim litenh;o resultam de uma escolha consciente, de um trabalho vo]untáJ;o que recusou mil filcilidades oferecidas pela língua falada, que esta por vezes conser-vou e que surgem novamente nos textos tardios, quando as discip]i-nas se tornam menos estJ;tas.

Uma das primeiras tarefas dos escritores latinos consistiu em atinl,rir uma clareza perfeita e uma notável precisão do enunciado,

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não dando lugar a qualquer contestação. É surpreendente que os textos mais antigos que conservamos sejam fórmulas juridicas, sem dúvida porque a lei foi o primeiro domínio em que se sentiu neces-sidade de assegurar a permanência da palavra e da frase. Mas também é verdade

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a história da redacção das Doze Tábuas mos-tra-o - que o primeiro trabalho incidiu sobre o enunciado oral, sendo a fórmula apresentada à memória antes de ser gravada na madeira ou no bronze. Ora, o enunciado oral que pretende ser me-morável deve obedecer a leis, descobrir o ritmo da língua, submeter--se a repetições de palavras ou mesmo simplesmente sonoridades. Por muito profundamente que penetremos na língua latina, encon-tramos sempre essa preocupação com a fórmula encantatória (que não é necessariamente mágica) em que o pensamento se encerra se-gundo um ritmo monótono e se apoia simultaneamente na alitera-ção e na assonância, ou. mesmo na rima. A primeira prosa latina, nos seus humildes primórdios, aproxima-se muito da poesia espon-tânea a que os Romanos chamavam carmen e que é, por vezes, «dança» da linguagem, por vezes gesto ritual de oferenda, repetição sedutora, ligação sonora que encerra o real. Entre estas duas neces-sidades - de precisão total, para não deixar escapar nada dessa realidade que se pretende abranger, e de ritmo

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a prosa não tarda a disciplinar-se, a sublinhar fortemente as articulações da frase, inicialmente simples cavilhas servindo de sutura, depois sinais de classificação que afectam os diferentes momentos da exposição, por fim verdadeiros instrumentos de subordinação que permitem cons-truir frases complexas e hierarquizadas. Simultaneamente, o voca-bulário enriquece-se; a fim de definir as noções, criam-se palavras novas, que a frase justapõe num leque de matizes. A riqueza do vo-cabulário, que Cícero usará amplamente, não é na língua latina uma exuberância gratuita, mas o resultado de um trabalho de aná-lise que tem a ambição de não deixar nada na sombra e que, por desconfiança em relação às definições abstractas e às fórmulas ge-rais, enumera tanto quanto possível todos os aspectos de um objec-to, de um aeto ou de uma situação.

Neste esforço para apontar, sem equívoco, o valor de uma afir-mação, a língua monta uma maquinaria delicada, com todas as pe-ças: não basta enunciar um facto, também é preciso indicar em que

medida aquele que fala assume

esse

enunciado, se lhe quer conferir

uma objectividade plena e total, se, pelo contrário, se apresenta ape-nas como porta-voz de outro ou se se limita a evocar uma simples possibilidade. A forma do verbo utilizado mudará consoante os ca-sos. Os gramáticos, depois, distinguiram um grande número de ca-tegorias: por exemplo, o modo «real», o modo «potencial» (quando a possibilidade é concedida como pura visão do espírito), o modo «ir-real» (quando o que é teoricamente possível se encontra, do ponto de vista daquele que fala, desmentido pela realidade). Haverá também todo o sistema do estilo indirecto, que objectiva o enunciado tornan-do-o um objecto subordinado ao verbo introdutor, desligando-se do

sujeito que fala, salvaguardando a possibilidade de exprimir os dife-rentes aspectos (temporais, modais, etc.) introduzidos pelo primeiro sujeito, aquele cujas palavras são transmitidas. Aquilo que, hoje, se apresenta aos jovens latinistas como um dédalo inextricável, dá pro-vas de um maravilhoso instrumento de análise capaz de descobrir inflexões que escapam a muitas línguas modernas e impondo ao es-pírito distinções que o obrigam a pensar melhor.

Nesta evolução sintáctica, o exemplo das construções gregas não parece ter exercido uma influência apreciável. O que os gramáticos do século anterior consideravam helenismos pertence, de facto, na maior parte das vezes, a tendências próprias do latim. Os helenis-mos de sintaxe surgem muito tarde, quando a língua clássica atingi-ra já a plena maturidade. Não acontece o mesmo com o vocabulário que desde muito cedo admitiu termos vindos do grego. Em Roma, o

grego estava presente em toda a parte: comerciantes,

desde

o século

VI, viajantes vindos da Itália meridional, em breve escravos trazi-dos para o Lácio depois da conquista dos países gregos ou heleniza-dos. Existiu, nessa Itália em que as raças se misturavam, um «sa-bir» italo-helénico que marcou a história do latim. Por via popular (oral, mediata ou imediata) introduziram-se assim nomes de moe-das, de utensflios domésticos, de termos técnicos trazidos pelos na-vegadores, pelos comerciantes, pelos soldados. Todos estes elemen-tos foram rapidamente assimilados, incorporados profundamente na língua. Abundam em Plauto, cujo teatro se destinava ao público popular. Mas, depois das guerras púnicas, surgiria um novo proble-ma, só um século mais tarde solucionado.

A chegada a Roma dos filósofos, depois da conquista da Macedó-nia, fora preparada, como dissemos, por um longo J~eríodo durante o qual prosseguiu a helenização das elites romanas. E verdade que al-gumas famílias, de tradição rústica, opusemm uma séria resistên-cia à invasão do pensamento grego, mas o Pl'ÓP1;0exemplo de Catão o Censor, o mais ardente adversário do helenismo, mostra-nos bem que se tratava de u,ma resistência desespemda: Catão sabia grego, falava-o, até o lia. E significativo que a primeira obra histórica con-sabrrada a Roma tenha sido escrita

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por um senador romano

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em grego, na mesma época em que Plauto compunha as suas comédias. Nessa altura, a língua cultural ainda não é o latim, mas o grego; a prosa literária latina nasceu muito tempo depois de ter começado a poesia nacional. Os filósofos vindos em embaixada, em 155 a. C. não tiveram qualquer dificuldade em se fazer compreender por um vasto público ao qual falavam em grego e podia parecer que a litemtura latina estava condenada a contentar-se com a expressão poética, ce-dendo ao grego os domínios do pensamento abstracto. Apesar deste sério handicap, os escritores romanos conseguiram, em poucas gera-ções, cl;ar uma prosa latina capaz de rivalizar com a dos histOl;ado-res e filósofos helénicos. Apoiando-se nas conquistas já realizadas

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em particular as da língua política moldada pela redacção dos textos jurídicos e dos relatórios das sessões do Senado

-

não

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hesita-ram em começar por redigir relatos históricos, para os quais o voca-bulário tradicional era suficiente e que podiam beneficiar dos exem-plos dados pela!> epopei~s nacionais compostas, no fim do século IH, por Névio(*) e Enio(*). E muito provável que o livro das Origens, es-crito pelo próprio Catão em latim, devesse muito à Guerra Púnica do primeiro e aos Anais do segundo. Ao mesmo tempo, as exigências da vida política impunham aos homens de Estado a obrigação de falar em público: por ocasião dos complicados debates que se de-senrolavam no Senado, quando se tornava necessário agir sobre a massa popular reunida diante dos Rostros ou ainda quando o orador devia defender uma causa no tribunal e persuadir um júri. Infeliz-mente, conservamos escassos fragmentos desta prosa latina do sé-culo H a. C. O único texto de Catão que está completo é o livro Sobre

a Agricultura: a exposição, puramente técnica, não comporta a elo-quência nem os benefícios de um relato vivamente conduzido. No entanto, adivinha-se nesse mesmo texto e nos fraf:,rmentos dos dis-cursos de Catão que conhecemos, que a prosa latina já adquiriu uma maturidade notável. É verdade que ainda apresenta uma certa rigidez; a frase é muitas vezes breve, cortante como uma fórmula de lei, as proposições justapõem-se paralelamente umas às outras em séries intermináveis, m~s, por vezes, a sua própria monotonia con-tém força e grandeza. A herança rítmica do carmen juntam-se as conquistas realizadas pela arte oratória, a necessidade de persua-dir, começando por apresentar aos auditores todos os aspectos de um pensamento, resumind~ depois numa breve formula susceptí-vel de se gravar profundamente no espírito. Nesta prosa eloquente já se unem as duas qualidades da frase ciceriana, a grauitas (a

se-riedade) e o número; a sua própria rigidez, semelhante à das está-tuas arcaicas da arte helénica, contribui para dar uma impressão de autoridade: no tempo de Catão, o latim tornou-se verdadeiramente uma língua digna dos conquistadores do mundo.

Faltava anexar à prosa latina o domínio da especulação pura. Para tal, era necessál;O levar a língua a exprimir o abstracto, o que não deixava de apresentar b>Tavesdificuldades. O latim possuía todo um jogo de sufixos herdados do sistema indo-europeu, mas usava--os com moderação e geralmente para designar qualidades Ülcil-mente entendíveis, ainda muito próximas do concreto. O abstracto era-lhe praticamente estranho. Nestas condições, como traduzir na língua nacional os jogos dialécticos dos filósofos f:,>Tegos?Os primei-ros escritores que tentaram fazê-I o estiveram prestes a renunciar. O desabafo de Lucrécio(*), queixando-se da pobreza da sua língua materna, ficou célebre; outras observações, mais subtis, de Cícero e de Séneca sucedem-se ao poeta que decidira tornar acessível a um público latino o pensamento de Epicuro e de Demócrito. A própria noção de filosofia não respondia a nenhuma palavra da língua. Era preciso criar um dialecto novo copiando a própria forma dos vocábu-los gregos, ou alterando-a. Os dois processos foram utilizados si-multaneamente, mas com intenções e contextos diferentes. Cíce'l'"o

serve-se, por vezes, da palavra philosophia, mas quando pretende designar a técnica em ,si; em outras ocasiões, recorre a um equiva-lente já utilizado por Enio, e escreve sapientia

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que já possui um significado na língua e não pode aplicar-se à especulação filosófica senão por uma transposição de sentido. Sapientia, para um romano, não era a dialéctica em busca de verdade, mas uma qualidade muito mais terra-a-terra, a do homem cheio de bom senso habituado a se-guir pelo caminho mais curto, mas mais na sua conduta do que nos caminhos do conhecimento. Compreende-se a importância, para o próprio futuro da filosofia romana, desta transposição inicial. Na verdade, as palavras assim solicitadas mantinham a sua utilização habitual, as suas ligações semânticas, um peso, associações que não podiam cair subitamente e que inflectiam o pensamento. A

sapien-tia continuou sempre a ser a ciência de regulação dos costumes, aquilo a que nós chamamos sabedoria, antes de ser arte de pensar. Outro exemplo não menos extraordinário é a história da palavra

uirtus, que serviu para traduzir o conceito grego de virtude. En-quanto os Gregos se serviam de um termo infinitamente mais inte-lectual, a palavra do apE't 11,que implica uma ideia de excelência, de perfeição, os Romanos empregaram um termo de acção que designa o poder do homem no seu esforço sobre si mesmo. A língua traiu as-sim a inflexi'io imposta ao pensamento helénico. Dir-me-ão que se trata mais do efeito de uma incompreensão da raça romana, incapaz de se guindar até ao pensamento puro, do que do resultado de um trabalho consciente sobre o vocabulário. Contudo, não podemos ne-gar que os escritores, capazes de pensar e compor até mesmo trata-dos filosóficos em grego, de conversar demoradamente com os filóso-fos brregos que recebiam de boa vontade em suas casas, recorriam, quando se exprimiam em latim, a um vocabulário cujas insuficiên-cias e traições não ignoravam, mas que julgavam mais apto a efec-tuar a necessária transposição para desenvolver um pensamento verdadeiramente romano.

Toda a literatura da época dominada pela figura de Cícero(*) testemunha este trabalho sobre a língua, que é, ao mesmo tempo, gerador de um pensamento orif:,rinal. Criou-se, assim, todo um arse-nal de conceitos, a partir do modelo dos Gregos, mas com variações importantes

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e o curso da história determinou que o pensamento ocidental herdasse não directamente os arquétipos helénicos, mas a sua cópia latina. O que não deixou de ter grandes consequências no futuro. O logos grego tornou-se, em Roma, ratio; o que era «pala-vra» passou a ser «cálculo»

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e o contraste não está apenas nas pa-lavras, está também na atitude intelectual que simbolizam.

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As condições em que se fundou a língua literária dos Romanos bastam para mostrar que a sua literatura não foi

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nem podia ser - um simples decalque da literatura f:,rrega.Não só a O1;f:,rinalidade

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dos autores latinos e o seu temperamento próprio tendiam a criar obras diferentes das dos antecessores, mesmo quando as tomavam por modelos, como o instrumento de que se serviam os arrastava pa-ra novos caminhos.

Veremos mais adiante quais foram as origens do teatro romano, carregado de elementos vindos da tradição itálica. Mesmo quando os autores pediam temas a Menandro ou Eurípides, encenavam-nos num estilo muito particular, muito mais próximo das origens po-pulares dos jogos cénicos do que as obras gregas. No seu modelo, es-colhiam aquilo que podia adaptar-se às condições do teatro nacional e desprezavam o resto. Foi assim que Plauto(*) e Terêncio(*), tendo imitado, com meio século de distância, comédias gregas pertencen-tes ao mesmo repertório - o da Nova Comédia -, compuseram, apesar de tudo, peças que apresentam entre si diferenças considerá-veis: Menandro adaptado por Plauta só de muito longe se assemelha a Menandro, tal como o vê Terêncio. Enquanto Terêncio é mais sen-sível aos problemas morais suscitados pelo tema (problemas da edu-cação infantil, do papel do amor na vida dos jovens, da liberdade de cada um viver a existência que quiser), Plauto utiliza as intrigas forneci das pela comédia grega para defender a velha moral tradicio-nal de Roma - o perigo da liberdade, a necessidade de recusar as tentações da vida grega. Seria impossível conceber teses mais opos-tas - e, no entanto, a matéria da comédia é a mesma. Este exemplo preciso mostra-nos que a influência da literatura grega não impe-diu de modo algum os autores romanos de cliarom obras Oliginais e capazes de exprimir as ideias e as tendências do seu tempo e da sua raç~.

E também com as Oligens populares e itálicas que devemos rela-cionar a invenção de um género que os Gregos ignoram por comple-to e que conheceu um enorme sucesso, a sátira. São assim chama-das, a partir do século II a. C., as obras em prosa e versos, estes de métlica tão diversa quanto o desejasse a imabrinação do poeta. Nes-tas sátiras, havia de tudo: récitas, cenas de mimo, reflexões morais, ataques pessoais, páginas de crítica literária. Era como uma conver-sa livremente desenvolvida e é verdade que nas sátiras de Lucí-lio(*), por exemplo, que se tornou o mestre deste género cerca de 130 a. C., se faz referência às considerações trocadas entre Cipião Emiliano e os amigos nas horas de lazer, e também durante as vela-das de armas em Numância, até onde Lucílio acompanhara o seu protector. Um século mais tarde, Horácio apoderar-se-á da sátira e confelir-Ihe-á um estilo diferente; no entanto, nesta conversa sen-sata, mais preocupada com a perfeição formal, que é a sátira hora-ciana, encontra-se sempre o antigo realismo italiano, o sentido da vida por vezes levado até à caricatura, e - o que constitui um traço tipicamente romano - a vontade de instruir o leitor, de lhe indicar a via do bom senso.

Também já dissemos como, no século II antes da nossa era, a eloquência romana se desenvolveu: as condições da vida pública

ft!'-ziam da arte oratória uma necessidade quotidiana. A multiplicação dos processos políticos, assim como a importância crescente dos de-bates parlamentares no Senado, o peso cada vez maior da opinião popular nos últimos anos da República provocaram o aparecimento de numerosos oradores, ávidos de se suplantarem uns aos outros. Perante esta emulação, a eloquência aperfeiçoou-se; os oradores re-flectiram sobre a sua arte, o que teve certamente como consequên-cia torná-Ia mais eficaz, embora também tenha provocado a forma-ção de uma estética oratória e de uma pedagogia cuja influência ainda se faz sentir no nosso ensino.

Na verdade, enquanto as actividades puramente literárias

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a poesia, a história, a composição de obras filosóficas

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eram suspei-tas aos olhos dos romanos devido à sua própria gratuidade, a elo-quência apresentava-se como o melhor meio de servir a pátria. Ago-ra que os exércitos eAgo-ram permanentes, que a caITeira militar pare-cia aberta sobretudo a alguns especialistas encarregados de manter a ordem nas províncias e a segurança nas fronteiras, parecia na-tural formar a juventude para os combates do forum, pelo menos tanto como para os da guerra. Assim, vemos Cícero(*) resignar-se contrariado a fazer campanha na Sicília como procônsul, mas con-sagrar longas horas à redacção de tratados sobre a arte oratória. Parece-lhe ser o melhor meio de abrir o espírito dos jovens para a vida do pensamento, sem lhes fornecer um certo número de receitas puramente formais

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como faziam os retóricos gregos

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mas im-pregnando-os de uma cultura verdadeira, beneficiando das conquis-tas mais nobres da filosofia. É para realizar este programa que livros como Orator ou De Oratore tentam elevar a concepção já tra-dicional da eloquência e, respondendo às objecções platónicas

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que a consideravam apenas como a arte das aparências - torná-Ia a expressão mais alta e mais fecunda da humanidade. Outrora, era costume propor aos jovens a comparação de Cícero com Demóstenes. Talvez cada um possa, segundo as suas preferências, atribuir um prémio a um ou a outro, colocar o Discurso sobre a Coroa acima das

Catilinárias, mas é evidente que a perfeição formal de Demóstenes, a subtileza dos seus raciocínios, o poder da sua indignação não têm o mesmo peso, na história da cultura humana, que a doutrina coe-rente da eloquência como instrumento de pensamento que Cícero sdube elaborar e impor, para além da morte, a toda a romanidade.

Depois de Cícero, que ficou a dever ao poder da sua palavra os sucessos da sua caITeira política, a formação do orador torna-se o objecto quase único da educação romana. Quintiliano(*), o represen-tante mais ilustre destes mestres da juventude, foi um discípulo re-moto de Cícero. ContJibuiu fortemente para manter o ensino do mestre numa época em que novas preferências corriam o risco de arrastar a literatura para fora do classicismo

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e talvez tenha con-tl;buído, assim, para acelerar a decadência das letras latinas com-batendo com todas as forças tudo o que pudesse contribuir com a mais leve renovação. Foi Quintiliano que, no tempo de Vespasiano,

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começou a ministrar um ensino oficial, pago pelo Imperador. Depois da magnífica exuberância de talentos que marcara o reinado de Ne-1'0, coube-lhe a tarefa de restaurar o velho ideal ciceriano, e de-vemos-lhe uma obra, fruto das suas reflexões de professor, que ins-pirou muitos séculos mais tarde os teóricos dos estudos literários, desde o Renascimento até à época de Rollin. Por seu intermédio, o nosso ensino tradicional mergulha as raízes em plena romanidade, alimenta a sua seiva no pensamento de Cícero desejoso de equili-brar, humanamente, o gosto pela beleza, a perfeição formal e as exi-gências da verdade. O orador deve agir sobre os homens - é esse o seu ofício - mas, para tal, existem receitas. Cícero e Quintiliano sa-bem que só o pensamento justo e sincero, pacientemente amadureci-do, conduz a uma persuasão duradoura. Talvez por ter origem na retórica, o nosso ensino literário tem por carácter essencial formar os espíritos para a compreensão recíproca: o orador deve compreen-der os auditores, prever as suas reacções, esquecer-se de si mesmo e, identificando-se com o outro, levá-Io a pensar como ele. Só é pos-sível persuadir e instruir dentro de uma total clareza. É esta, sem dúvida, a lição mais duradoura de uma eloquência que se sabia rai-nha da cidade, mas se recusava a exercer a tirania.

*

As origens itálicas da literatura latina nunca serão renegadas. Certas tendências profundas da raça: o gosto pelo realismo, a curio-sidade por todos os aspectos, mesmo pelos mais aberrantes, do hu-mano; e também o desejo de instruir os homens, de os tornar melho-res, tudo isso se encontra em todas as épocas nos autores romanos. Todos querem, a vários níveis, servir a cidade, a pátria

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como Tito Lívio(*), que redif:,riua sua História para glorificar o povo-rei - ou, quando se pensou que Roma podia ser a pátria de todos os homens, essa cidade universal com que os filósofos sonhavam. Todos preten-dem igualmente demonstrar: são raras as obras f:,'Tatuitas, justifica-das unicamente pela beleza. Esta beleza tem, de resto, uma função na OJodemdo mundo: Lucrécio é poeta, retrata em versos admiráveis a filosofia epicurista, reencontrando numa série de intuições geniais a força profunda de um sistema que se tornou o corpo do seu próprio pensamento, mas sente necessidade de justificar este recurso à mé-trica, alegando a utilidade de apresentar de forma af:,'Tadável uma filosofia árdua, comparando os ornamentos poéticos com o mel com que os médicos untam os bordos da taça em que as crianças bebem poções amargas. Parece nunca ter tomado plena consciência de que a sua poesia emana directamente da intuição metafísica, de que a beleza, a tensão da forma épica pertencem à essência dessa expe-riência em parte inefiível, inedutível a um simples encadeamento de conceitos. Quer instruir, converter Mémio, seu protector e amigo, a uma filosofia que confEH;rá calma e serenidade à alma humana. Seria, sem dúvida, difícil encontrar em toda a poesia f:,'rega

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lhante calor apostólico, muito diferente de qualquer diletantismo es-tético.

Mas a poesia latina, mesmo antes do seu pleno desenvolvimento, não ignorava as vo}úpias da arte pela arte. Sem remontar ao pró-prio Enio - o Pai Enio(*), como lhe chamaram os poetas que se lhe seguiram

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e ao seu poema sobre a Gastronomia (Hedyphagetica),

que mais não é do que uma obra de puro virtuosismo feita a partir do modelo dos mais decadentes gracejos helenísticos (mas ainda com intenções didácticas), formou-se, no tempo de Cícero e de Cé-sal', uma escola de poetas «novos" (foram eles próprios que assim se chamaram), reclamando-se de Alexandrinoso Quiseram dotar Roma de um luxo novo, o da poesia; a obra mais típica desta estética é, sem dúvida, o poema (relativamente longo para um discípulo daque-les que afirmavam desprezar os longos poemas) escrito por Catu-10(*), cantando as núpcias míticas de Tétis e Peleu. A maior parte do poema é dedicada à descrição de uma tapeçaria em que uma mão divina, como nos diz o poeta, representara o mito de Ariana. A filha de Minos, raptada por Teseu, é abandonada, adormecida, nas praias do Naxos. Acord,a no momento em que a vela de um barco que devia levá-Ia para a Atica desaparece no horizonte; desespera mas, subi-tamente, surge no céu o cortejo de Dionisos, que a atrai para núp-cias divinas. Aparentemente, tudo é gratuito neste poema, puro or-namento como podia ser, nessa época, um mosaico, um quadro, ou um desses preciosos relevos com que se enfeitavam as residências. No entanto, pretendeu-se recentemente - e com alguma razão -que este poema encerrava um sentido misterioso: o mito de Ariana não se encontra frequentemente nos relevos dos sarcófagos, onde reveste, indubitavelmente, um significado religioso? Ariana ador-mecida, no sono que a prepara para a apoteose, é então a imagem da alma que voará, ébria de Dionisos, para a imortalidade astra1. Na verdade, ignoramos se Catulo quis dar esta interpretação do mi-to, se não foi sensível sobretudo às imagens estéticas e pitorescas que lhe permitia criar. Mas, mesmo admitindo que não há mais na-da neste epitálamo do que pura investigação estética, não há dúvida de que os fiéis de Dionisos

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que eram numerosos

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encontravam nele o eco da sua fé. Assim como, em Roma, tudo está carregado de símbolos morais, também a poesia, mesmo nas obras aparentemen-te mais gratuitas, tendia naturalmente para assumir o valor de uma revelação.

A escola dos jovens poetas teve a glória de incluir VirgI1io(*) en-tre os seus, quando, ao sair da adolescência, se treinava em compor as suas próprias obras. Tal como Catulo, de quem era compatriota (Mântua não é muito longe de Sírmio), ele também parece ter prefe-rido começar por abordar temas de pura mitologia. Infelizmente, es-tas primeiras obras de VirgI1io, anteriores às Buc6licas, encontram--se envolvidas em nebulosas. Aquelas que os manuscritos nos apre-sentam como sendo da autoria de Virgl1io talvez não sejam todas autênticas. Seja como for, é perfeitamente claro, se tivermos como

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referência as Bucólicas, que VirgI1io iniciou a sua carreira como dis-cípulo dos poetas alexandrinos. As Bucólicas, esses cantos de pasto-res (ou antes, cantos de boieiros, pois não contêm nada que possa evocar as pastoras adornadas de fitas e os pacíficos carneiros de ou-tros tempos), são uma imitação dos Idílios de Teócrito, outro poeta italiano, pois partira da Sic11ia grega para conquistar o mundo li-terário de Alexandria. No entanto, comparando as duas obras, des-cobrimos rapidamente subtis transposições. Em vez do céu ardente, da secura, das cigarras de Teócrito, vemos em VirgI1io os prados húmidos da Gália cisalpina bordados de salgueiros, irrigados por canais artificiais. Não cantam a mesma natureza. Nem o mesmo ambiente humano: os .problemas urgentes da terra italiana são evocados por VirgI1io. E sabido que a primeira colectânea encena o drama que então se vivia um pouco por toda a parte em Itália. Para recompensar os veteranos que os tinham ajudado, Octávio e António atribuem-lhes terras, à custa dos proprietários provinciais. É pos-sível que VirgI1io também tenha sofrido com esta espoliação e que tenha ficado a dever a Octávio a obtenção de uma recompensa. A história é muito obscura mas, seja qual for o problema pessoal de VirgI1io, a sua poesia ultrapassa-o e retrata, com a alegoria de Títi-1'0 e Melibeia, os sofi'imentos provocados pelas guerras civis aos pe-quenos proprietários. Mais uma vez, o artista puro é ultrapassado pelo sentido romano da cidade.

Toda a história de VirgI1io o poeta cabe nesta evolução: a cada vez maior importância atlíbuída, na sua obra, aos problemas da pá-tria. As Geórgicas, cujo tema foi pelo menos sugerido a VirgI1io por Mecenas, não sendo, como tantas vezes se tem dito, uma obra de «propaganda» destinada a restituir aos Romanos o gosto pela vida rústica, representam, no entanto, uma tentativa para restaurar os velhos valores morais venerados na sociedade rural e para mostrar que o ritmo «dos trabalhos e dos dias» é, entre todas as actividades humanas, o que melhor se insere na harmonia universal. Não se tratava de arrancar os ociosos da plebe urbana aos jogos do circo, mas de revelar ao escol bem pensante a eminente dignidade de uma classe social ameaçada. A poesia das Geórgicas, tão bela, tão pro-fundamente humana, procura sarar os ferimentos causados pelas guerras civis; expressão de uma filosofia da natureza e do homem na natureza, contribui para restaurar a ordem e a paz nos espíritos e colabora, assim, na revolução augustana.

O terceiro grau desta evolução da arte virgiliana encontra-se na

Eneida. Desta vez, é o próprio problema de Roma que está em cau-sa. Trata-se de assegurar o fundamento espiritual do regime nas-cente e, para tal, de descobrir o sentido profundo da missão desti-nada pelos deuses ao filho adoptivo de César. Mas VirgI1io não quis escrever um poema de propaganda política. Não trabalha para o su-cesso de um partido, no seio da cidade; está ao serviço de toda a ideia romana. Animado por uma fé intensa no destino da pátria, jul-gou descobrir o se[,'1'edo dos deuses: foi por a raça romana ter sUJo

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fundada por um herói justo e piedoso que Roma recebeu o império do mundo. A Eneida teve a ambição de revelar a lei secreta das coi-sas e de mostrar que o Império era o resultado necessário de uma dialéctica universal, fase última dessa lenta ascensão para o Bem, da qual o poeta já tivera a intuição ao escrever aIV Écloga anuncia-dora da idade do ouro. É esta, sem dúvida, a base espiritual desta epopeia, em que VirgI1io imitava simultaneamente Homero e tam-bém, fiel à estética dos <~ovens poetas», as Argonáuticas do alexan-drino Apolónio de Rodes. Mas a intenção profunda do poema não impediu Virgílio de criar uma obra, rica e pitoresca, de ternura e grandeza. Assim, não surpreende que a Eneida, recentemente publicada (por ordem expressa de Augusto, pois VirgI1io, quando morreu em 19 a. C., ainda não a terminara e pedira em testamento que fosse destruída), se tornou a Bíblia da nova Roma. Nas paredes das cidades antigas ainda se vêem graffiti em que figuram um ou mais versos do poema. Roma encontrara, finalmente, a sua llíada, mais rica que os cantos do velho aedo, e também mais própria para despertar nos leitores a consciência da continuidade nacional e a dos valores morais e religiosos que constituíam a alma profunda de Roma.

Contemporâneo de VirgI1io e seu mais íntimo no círculo de Mece-nas(*), Horácio(*) também contribuiu para a obra de renovação em-preendida por Augusto, e talvez tanto mais eficazmente quanto pa-receu, durante muito tempo, não querer colaborar. Desejando «acrescentar uma corda à lira latina», criou de raiz uma poesia líri-ca directamente inspirada nos poemas eólios. Em primeiro lugar, foi necessário adaptar a métrica dos seus modelos gregos ao ritmo da língua latina, o que exigiu transposições delicadas. De resto, foi aju-dado pelos esforços dos seus antecessores, Catulo em particular, que tinham tentado fazê-lo com algum sucesso. Em seguida, munido deste instrumento, procurou exprimir sentimentos que, até então, não tinham expressão na literatura de Roma: aquilo que os poetas alexandrinos tinham confiado ao epi[,'1'ama - a alegria de viver, os tormentos e os prazeres do amor, a felicidade, as mais leves impres-sões sentidas ao longo dos dias e das estações

-

tudo isto fornece a Horácio temas para as suas Odes. Mas, pro[,'1'essivamente, vai-se li-bertando desta poesia do quotidiano uma filosofia concreta, que muito deve ao epicurismo professado por Mecenas, mas que não tar-dou a superá-lo. Avesso a todas as dialécticas e a todas as demons-trações abstractas, Horácio exige apenas ao espectáculo do mundo

-

um rebanho de cabras na encosta de uma colina, um santuário em ruínas, a frescura de uma nascente, as primeiras rajadas de vento oeste num campo gelado

-

a revelação do que o universo con-tém de mistério divino. E em breve esta sabedoria, cuja plenitude desabrocha em contemplação mística, autoriza o poeta a fazer-se intérprete da vida religiosa romana. Como Vir[,'11io,vemo-Io cantar a permanência das grandes virtudes da raça encarnadas em Augus-to. As odes nacionais emprestam uma voz eloquente a esta

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revalori-*

parecem ter esgotado toda a seiva. A bem dizer, esta impressão de-ve-se sobretudo ao facto de não possuirmos qualquer das obras es-critas pelos contemporâneos dos últimos anos de Augusto: só o no-me de Ovídio(*) nos sugere que se continuavam a escrever, incansa-velmente, novas obras. Mas as que Ovídio nos deixou, embora não sejam desprovidas de valor e interesse, representam apenas, na sua maior parte, uma exploração sistemática das invenções de Tibulo e Propércio. Em certos aspectos, Ovídio mostra-se, mais do que aque-les, fiel imitador da poesia alexandrina, cujas receitas conhece ad-miravelmente bem. Versificador fertil e fácil, lega-nos nas suas

Me-tamorfoses uma verdadeira súmula da mitologia grega, com a qual relaciona, melhor ou pior, o legendário romano. O tema geral deste poema foi estranham ente escolhido: Ovídio quis desenhar um imen-so fresco representando as transformações sofridas ao longo dos tempos pelas coisas e pelos seres; como pano de fundo destes qua-dros pitorescos, uma concepção resultante da filosofia pitagórica, a ideia de que o universo está em perpétua transformação e não fixa-do, de uma vez para sempre, numa ordem imutável. Ao julgarmos esta singular epopeia, não devemos esquecer que nunca deixou de perseguir a ima/;,'inação dos artistas e escritores da Idade Média, menos sensíveis à verosimilhança científica do que ao simbolismo intenso que julgavam adivinhar, com ou sem razão, neste imenso bestiário.

Ovídio, exilado por Augusto por um crime misterioso (talvez por ter participado numa sessão de adivinhação), acabou os dias em To-mes, na costa do mar Neb'1.'o,escrevendo sempre, contando as suas penas longe da pátria e satisfazendo a sua paixão de versificador ao compor poemas na língua b{u'bara que se falava à sua volta. Com ele, morreu o último representante da poesia augustana.

Contudo, em Roma, não faltavam poetas. Talvez tenha havido alguns excelentes, mas a sua recordação esfumou-se, sem dúvida para sempre. Sabemos apenas que !,'1.'assava a metromania; manter--se-á até ao fim do Impél;o. A poesia é considerada um meio de expressão acessível ao «homem honesto». Mas, na maior parte das vezes, deixa de ser verdadeiramente sél;a, como era para Virgt1io, Horácio ou Propércio; faz-se poesia como jogo de salão e elobriam-se «as obras mais belas». São peças fugazes que recordam a antolo!,ria grega, mas também se encontram obras consideráveis: epopeias, tragédias destinadas à leitura

-

na verdade, o teatro literál;o de-sapareceu quase definitivamente, dando lugar ao mimo, que não deixou marcas. É possível que esta poesia latina desconhecida te-nha tido alguma beleza. Os fragmentos que sobreviveram deixam adivinhar tentativas curiosas, como por exemplo os pequenos poe-mas de Mecenas(*), que foi um estilista precioso, grande apreciador de imagens surpreendentes e hábil na cl;ação de encadeamentos de palavras que o pensamento, torturado, como que permite que se lhe alTanque uma verdade mais secreta.

zação do velho ideal que as guerras civis pareciam ter comprometi-do para sempre. E, por ocasião comprometi-dos Jogos Seculares de 17 a. C., con-sagrando o regresso da paz com os deuses, a grande reconciliação da cidade com os imortais, foi Horácio quem compôs o hino oficial can-tado no Capitólio por um coro de rapazes e raparigas.

Pela mesma altura, Horácio, reflectindo sobre o papel do poeta na cidade, dirá que só ele, no meio do desencadeamento das paixões, saberá manter um coração puro: figura exemplar oferecida à imita-ção dos cidadãos, manterá a moderação, o sentido dos valores eter-nos, semelhante aos heróis lendários, Orfeu ou o tebano Anfião cuja lira encantava os animais e as plantas - porque fora afinada pela harmonia secreta do mundo

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ajudava os homens a construir as ci-dades e a manter a lei.

O terceiro poeta do círculo de Mecenas

-

dos únicos cuja obra se conserva

-,

Propércio(*), também contribuiu, se não para criar,

pe-lo menos para desenvolver um género novo, o da elegia. Os historia-dores da literatura antiga procuraram saber, durante muito tempo, quais podiam ter sido os modelos gregos da elegia romana. Hoje, es-tá praticamente demonstrado que estes modelos mais narrativos e mitológicos do que verdadeiramente líricos não exerceram uma in-fluência decisiva na formação do género. Foi em Roma, nas mãos dos antecessores de Propércio, de Galo(*) (mas as suas obras desa-pareceram) e de Tibulo que os poemas em dísticos elegíacos apren-deram a exprimir os tormentos e as aleb'Tias do amor. Propércio con-vida-nos, assim, a seguir as peripécias do seu romance, tumultuoso, com uma dama bastante volúvel a quem chama Cíntia e que ora o procura ora o abandona para seguir protectores mais afortunados. Nas suas mãos, como nas de Tibulo, seu contemporâneo, a elegia as-semelha-se a um diário íntimo e encerra confidências amorosas. Desta vez, a poesia parece ter descido definitivamente do céu e não se preocupar com a defesa da cidade. No entanto, tanto Tibulo como Propércio incluíram nas suas obras mais íntimas poemas em que cantam os !,'Tandes acontecimentos contemporâneos. Não são, é cer-to, cantos de vitória como talvez desejassem Mecenas e Augusto quando os exércitos do Império apagaram a recordação da derrota sofrida em Canes ou pacificaram as fronteiras da Germfmia, mas composições mais duradouras, consagradas à vida moral da cidade. Tibulo celebrou o santuário de Apolo Palatino, centro da relibrião au-gustana; Propércio, as velhas lendas relacionadas com determina-dos locais da cidade, escolhendo as que assumiam um significado particularmente importante na perspectiva das reformas religiosas e políticas de Augusto.

O extraordinário desenvolvimento da literatura augustana não sobreviveu ao desaparecimento daqueles que tinham sido os seus artífices. Depois da morte de Horácio, em 8 a. C., as letras latinas

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É preciso esperar pelo reinado de Nero para encontrar novamen-te obras que novamen-tenham sobrevivido até aos nossos dias. A segunda me-tade do século I d. C. conheceu uma «ante-estação» poética mais madura, e talvez também mais hábil, que os sucessos do grande flo-rescimento augustano. Os autores aprenderam o oficio, por vezes bem; utilizam-no como virtuoses e, nas suas mãos, a poesia permi-te-se todas as audácias.

Pérsio(*) e Lucano(*) representam, no tempo de Nero, uma ten-tativa de passar para a poesia as especulações do estoicismo. O pri-meiro, obscuro, tenso, só teve tempo, durante a sua curta vida, para escrever algumas sátiras, frementes de indignação. Morreu com 28 anos (em 62 d. C.), deixando uma obra em que se exprimem as con-vicções políticas e morais da aristocracia senatorial que momen-taneamente julgara poder apoiar-se em Nero mas não tardara a desiludir-se. Estas raras páginas, reveladoras de um verdadeiro temperamento de poeta, tornam-se mais densas pela influência, ainda muito recente, da retórica escolar.

A mesma crítica tem sido muitas vezes feita a Lucano, também ele um <<jovempoeta», pois foi uma criança prodígio e morreu aos 26 anos, executado por ordem de Nero por ter participado na revolta de Pisão (65 d. C.). Tendo começado a escrever aos 15 anos, compôs um grande número de poemas de toda a espécie, em particular uma tra-gédia, mas só chegou até nós a epopeia A Farsália (o seu verdadeiro título, aquele que Lucano lhe deu, é A Guerra Civil), cujos dez can-tos estão complecan-tos. Mas a morte interrompeu esta obra, que o au-tor concebera como uma imensa «crónica» da revolução que, entre 49 e 31 a. C., ensanguentou Roma e da qual resultou o regime impe-rial. Ao escrevê-Ia, Lucano ambicionou opor à Eneida, epopeia julia-na baseada num misticismo conformista, uma epopeia de inspiração senatoria1 susceptível de exprimir o pensamento político dos meios estóicos. E inexacto pretender, como fi'equentemente se afirma, que

A Farsália tenha sido originariamente um manifesto da oposição oligárquica, hostil ao Império. Só passou a sê-Io quando se produziu o divórcio entre o re{,,'ime de Nero e os senadores estóicos

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isto é, quando se acentuou a má-vontade contra Séneca (de quem Lucano era sobrinho). Na verdade, inicia-se com um hino a Nero singular. mente entusiasta e que não é uma página aduladora. Diz-se tam-bém que Lucano, inicialmente prote6.;do pelo Imperador, suscitou pelo seu talento a inveja daquele que o considerava um lival mais dotado. E é verdade que a obra, no seu desenvolvimento, não deixa de ref1ectir a evoluç1'io dos sentimentos do autor, mas devemos acre-ditar que as razões pessoais que Lucano podia ter para se afastar de Nero desempenharam um papel menos importante do que a mudan-ça de clima verificada em Roma depois do assassínio de Agripina, da influência crescente de Popeia e, sobretudo, da morte de Burrus. Compreende-se que, progressivamente, Lucano tenha adquirido uma consciência cada vez mais nítida das consequências políticas do ideal estóico. Em sua opinião, a personalidade de Catão da Útica(*)

,

:1 i,

- tão celebrada por Séneca

-

ganha em importância. No debate instituído entre as velhas formas republicanas e o novo mundo cuja gestão nos relata, Catão desempenha o papel de árbitro, como os deuses no destino do mundo. A virtude de Catão eleva-o acima dos outros homens; é a ele que pede inspiração, tal como faziam Séneca e os outros estóicos que morreram vítimas do tirano infiel ao ideal dos seus plimeiros anos.

Numa Roma renovada

-

aquela que quase resultou do ano dos «três Imperadores»

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A Farsália poderia ter-se tornado a Eneida do regime senatOlial restaurado. Os acontecientos desmentiram o sonho do poeta, mas o poema manteve-se para sempre fonte inspi-ração moral e testemunho da 6'1'andeza romana, contra todos aque-les que acusam Roma de decadência e de corrupção irremediável.

Apesar das diferenças, das variações de ,gosto, das oposições de princípios, vê-se que a epopeia romana, de Enio a Lucrécio, a Virgí-lio e a Lucano, se mantém fiel à sua vocação: pensar os grandes pro-blemas da cidade e do mundo. Vê-se também a que ponto a poesia latina está impregnada de religião. Lucrécio procurou subestimar a importância dos deuses no mundo, mas não deixou de lhes reconhe-cer um papel essencial, o de transmitirem aos homens, pelos simu-lacros que emanam dos seus corpos gloriosos, a imagem do soberano Bem, e o hino a Vénus, no início do poema, é uma das páginas mais comoventes do litismo religioso. Lucano também baniu de A

Farsá-lia o maravilhoso tradicional, mas foi para distinguir melhor, nos acontecimentos da história, a vantagem do Destino e a acção de uma Providência. Inelutavelmente, as formas mais elevadas do pen-samento romano conduzem à meditação e à oração.

*

Da literatura claudiana, tão profundamente marcada pela 6'1'avi-dade estóica, a personali6'1'avi-dade mais eminente é, sem dúvida, Séne-ca(*). Este filho de um romano de Espanha, nascido em Córdova no início da era cristã, representa admiravelmente a evolução literária e espilitual deste século do qual Pérsio e Lucano nos mostraram o resultado final. O pai, que fora discípulo atento dos grandes retóri-cos que ensinavam no fim do reinado de Augusto, introduziu-o des-de muito cedo nos meios literários, para os quais a eloquência era o objectivo supremo da vida. Mas também se sentiu atraído, desde a adolescência, pelos filósofos, reunindo numa mesma admiração o es-toicismo de Átalo ou dos dois Sextii e o pitagorismo místico de So-tião. Com eles, aprendeu a desprezar os valores «vulgares» e a não se contentar com as pretensas verdades admitidas pela opinião pública. Admiravelmente dotado, teria provavelmente, com a idade, cedido aos costumes e percorrido com distinção a carreira das hon-ras, praticado como amador os géneros literários mais diversos, se a ~

Fortuna não tivesse vindo contrariar o cumplimento dos votos que lhe eram dirigidos. Tendo adoecido no momento em que deveria

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É preciso esperar pelo reinado de Nero para encontrar novamen-te obras que novamen-tenham sobrevivido até aos nossos dias. A segunda me-tade do século I d. C. conheceu uma «ante-estação" poética mais madura, e talvez também mais hábil, que os sucessos do grande fIo-rescimento augustano. Os autores aprenderam o ofIcio, por vezes bem; utilizam-no como virtuoses e, nas suas mãos, a poesia permi-te-se todas as audácias.

Pérsio(*) e Lucano(*) representam, no tempo de Nero, uma ten-tativa de passar para a poesia as especulações do estoicismo. O pti-meiro, obscuro, tenso, só teve tempo, durante a sua curta vida, para escrever algumas sátiras, frementes de indignação. Morreu com 28 anos (em 62 d. C.), deixando uma obra em que se exprimem as con-vicções políticas e morais da aristocracia senatotial que momen-taneamente julgara poder apoiar-se em Nero mas não tardara a desiludir-se. Estas raras páginas, reveladoras de um verdadeiro temperamento de poeta, tornam-se mais densas pela influência, ainda muito recente, da retórica escolar.

A mesma clitica tem sido muitas vezes feita a Lucano, também ele um '00vem poeta», pois foi uma criança prodígio e morreu aos 26 anos, executado por ordem de Nero por ter participado na revolta de Pisão (65 d. C.). Tendo começado a escrever aos 15 anos, compôs um 6'Tande número de poemas de toda a espécie, em particular uma tra-gédia, mas só chegou até nós a epopeia A Farsália (o seu verdadeiro título, aquele que Lucano lhe deu, é A Guerra Civil), cujos dez can-tos estão complecan-tos. Mas a morte intenompeu esta obra, que o au-tor concebera como uma imensa «crónica» da revolução que, entre 49 e 31 a. C., ensanguentou Roma e da qual resultou o regime impe-rial. Ao escrevê-Ia, Lucano ambicionou opor à Eneida, epopeia julia-na baseada num misticismo conformista, uma epopeia de inspiração senatorial" susceptível de exprimir o pensamento político dos meios estóicos. E inexacto pretender, como frequentemente se afirma, que

A Farsália tenha sido originariamente um manifesto da oposição oligárquica, hostil ao Impél;o. Só passou a sê-Io quando se produziu o divórcio entre o re6rime de Nero e os senadores estóicos - isto é, quando se acentuou a má-vontade contra Séneca (de quem Lucano era sobrinho). Na verdade, inicia-se com um hino a Nem singular-mente entusiasta e que não é uma página aduladora. Diz-se tam-bém que Lucano, inicialmente Prote6rido pelo Imperador, suscitou pelo seu talento a inveja daquele que o considerava um l;val mais dotado. E é verdade que a obra, no seu desenvolvimento, não deixa de reflectir a evolução dos sentimentos do autor, mas devemos acre-ditar que as razões pessoais que Lucano podia ter para se afastar de Nero desempenharam um papel menos importante do que a mudan-ça de clima verificada em Roma depois do assassínio de Agripina, da influência crescente de Popeia e, sobretudo, da morte de Burrus. Compreende-se que, progressivamente, Lucano tenha adqui1;do uma consciência cada vez mais nítida das consequências políticas do ideal estóico. Em sua opinião, a personalidade de Catão da Útica(*)

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tão celebrada por Séneca - ganha em importância. No debate instituído entre as velhas formas republicanas e o novo mundo cuja gestão nos relata, Catão desempenha o papel de árbitro, como os deuses no destino do mundo. A virtude de Catão eleva-o acima dos outros homens; é a ele que pede inspiração, tal como faziam Séneca e os outros estóicos que morreram vítimas do tirano infiel ao ideal dos seus ptimeiros anos.

Numa Roma renovada - aquela que quase resultou do ano dos «três Imperadores»

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A Farsália poderia ter-se tornado a Eneida do regime senatOl;al restaurado. Os acontecientos desmentiram o sonho do poeta, mas o poema manteve-se para sempre fonte inspi-ração moral e testemunho da 6'Tandeza romana, contra todos aque-les que acusam Roma de decadência e de corrupção irremediável.

Apesar das diferenças, das variações de gosto, das oposições de ptincípios, vê-se que a epopeia romana, de Énio a Lucrécio, a Virgí-lio e a Lucano, se mantém fiel à sua vocação: pensar os grandes pro-blemas da cidade e do mundo. Vê-se também a que ponto a poesia latina está impregnada de religião. Lucrécio procurou subestimar a importância dos deuses no mundo, mas não deixou de lhes reconhe-cer um papel essencial, o de transmitirem aos homens, pelos simu-lacros que emanam dos seus corpos gloriosos, a imagem do soberano Bem, e o hino a Vénus, no início do poema, é uma das páginas mais comoventes do litismo religioso. Lucano também baniu de A

Farsá-lia o maravilhoso tradicional, mas foi para distinguir melhor, nos acontecimentos da história, a vantagem do Destino e a acção de uma Providência. Inelutavelmente, as formas mais elevadas do pen-samento romano conduzem à meditação e à oração.

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Da literatura claudiana, tão profundamente marcada pela 6'Tavi-dade estóica, a personali6'Tavi-dade mais eminente é, sem dúvida, Séne-ca(*). Este filho de um romano de Espanha, nascido em Córdova no início da era cristã, representa admiravelmente a evolução literária e espi1;tual deste século do qual Pérsio e Lucano nos mostraram o resultado final. O pai, que fora discípulo atento dos grandes retóri-cos que ensinavam no fim do reinado de Augusto, introduziu-o des-de muito cedo nos meios literários, para os quais a eloquência era o objectivo supremo da vida. Mas também se sentiu atraído, desde a adolescência, pelos filósofos, reunindo numa mesma admiração o es-toicismo de Átalo ou dos dois Sextii e o pitagorismo místico de So-tião. Com eles, aprendeu a desprezar os valores «vulgares» e a não se contentar com as pretensas verdades admitidas pela opinião pública. Admiravelmente dotado, teria provavelmente, com a idade, cedido aos costumes e percorrido com distinção a carreira das hon-ras, praticado como amador os géneros literários mais diversos, se a Fortuna não tivesse vindo contrariar o cumpl;mento dos votos que lhe eram dirigidos. Tendo adoecido no momento em que deveria

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abordar seriamente as primeiras magistraturas, teve de passar vários anos no EI,>ipto, onde entrou em contacto com os meios a1e-xandrinos, então atravessados por diversas correntes re1igiosas e fi-10sóficas e que aprofundaram a sua cultura. De regresso a Roma, ganhou fama de grande e10quência, imiscuiu-se nas intrigas da cor-te, de ta1 maneira que, quando Cláudio foi coroado imperador, a in-fluência de Messa1ina destelTou-o para a Córsega. Aí, no si1êncio do eX11io- um eXl1ioao qua1 teve muita dificu1dade em se adaptar

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foi-se 1ibertando 1entamente de tudo o que, até então, constituíra a sua vida. E, quando foi chamado por Agripina, depois de esta ter substituído Messa1ina junto de C1áudio, renunciara sinceramente a tudo o que não fosse o estudo e a prática da fi1osofia. Mas não pôde recusar à sua protectora o pape1 de responsáve1 pe1a formação mo-ra1 do jovem Domitius Ahenobarbus

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que em breve reinaria com o nome de Nero. E foi como director da juventude do Príncipe que exerceu até à morte de Cláudio uma espécie de regência, adminis-tI'ando o Império em nome do discípu10, enfrentando os mais graves prob1emas de política externa, sugerindo medidas administrativas e 1eis que fizeram dos cinco primeiros anos de reinado um 1ongo idl1io entre o jovem Príncipe e o povo. Séneca, ofica1mente estóico, apoia-va-se nos estóicos do Senado. Mas em breve, Nero, em idade de rei-nar, abandonou os princípios do mestre e Séneca, que esperara rea-1izar o ve1ho sonho de Platão

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c010car a fi1osofia à cabeça da cida-de -, teve de se confessar derrotado. Comprometido na revolta de Pisão, cortou as veias. Este destino, fora do comum, forneceu a Sé-neca uma ocasião de experimentar os princípios estóicos. Aquilo que, antes de1e, fora um jogo da Esc01a, tornou-se, com e1e e por meio de1e, rea1idade actuante. As obras que nos deixou testemu-nham o seu percurso espiritua1, as suas hesitações, mas também as suas certezas profundas, às quais se manteve fiel, apesar de tudo.

Espírito enciclopédico, Séneca abordou prob1emas científicos nas suas Questc3es Naturais. Também estudou problemas de geografia

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mas esta. parte da sua obra não chegou até nós

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sempre com a intenção de descobrir a ordem profunda do mundo e o p1ano da cria-ção, que ju1ga depender de uma Providência. Certo de deter a verda-de, arde em desejo de convencer os outros e de os e1evar à sua sabe-doria, único meio de que o homem dispõe para atinl,rir a fe1icidade. Este desejo de converter, juntamente com a formação oratória que Séneca recebera, 1evou-o a compor tratados morais, na maior parte das vezes concebidos como diá10gos, dirigidos a um amigo ou a um parente - mas o autor representa o pape1 principa1 e o inter10cutor nunca toma a pa1avra de forma directa, apenas 1he sendo atribuídas as oQjecções necessárias ao desenv01vimento do raciocínio.

Séneca pretende não se preocupar com a perfeição literária, mas apenas com a verdade. Na rea1idade, é demasiado natura1mente ar-tista para que a expressão do seu pensamento não assuma em si mesma uma forma e10quente. As suas aná1ises, feitas em anotações dispersas, suscitam a adesão; as velhas fórmulas da Esc01a

renas-150

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cem, porque são permanentemente confrontadas com uma

experiên-cia espiritua1 de particu1ar acuidade. O esti10 de Séneca - tão dife-rente do esti10 periódico de Cícero - é simu1taneamente um método de pensamento e uma forma de escrita. Compreende-se que, à sua v01ta, se tenha formado uma esc01a de jovens ávidos de renovação e revoltados contra a estética, para e1es bana1, da grande prosa c1ássi-ca. Para e1es, Séneca tinha enorme prestígio. Prosador empo1gante, foi também um poeta consideráve1. As tragédias que nos 1egou e que, pe10 menos aparentemente, e aos nossos 01hos de modernos, parecem destinadas não a ser representadas em teatro, mas a ser 1i-das ou recita1i-das em púb1ico, mas que ta1vez tenham sido encenadas e foram com certeza pensadas como ta1, testemunham a mesma ri-queza de pensamento que as obras morais. É verdade que o jovem Nero também foi seduzido por esta extraordinária faci1idade e este sentido da grandeza, que se encontra em Lucano, contrastando com a rude tensão de Pérsio. Mas a esc01a 1iterária de Séneca não dura-ria muito; no tempo de Vespasiano, Quinti1iano foi encarregado de reencaminhar a juventude para o respeito pe10s bons princípios e de restaurar um c1assicismo que, fina1mente, precederá de perto a de-cadência das 1etras 1atinas.

Com a riqueza criativa do tempo de Nero, devemos re1acionar o romance de Petrónio(*), esse Satiricon que 1amentave1mente chegou até nós num estado de muti1ação ta1 que nos impede de conhecer a sua composição de conjunto. Pe1a primeira vez nas 1etras antigas, um autor conta em prosa as aventuras de personagens que não per-tencem à 1enda nem à história. São figuras da sociedade contempo-rânea: dois jovens que abandonaram a escola e vagueiam pe1a Itá1ia meridiona1 vivendo de expedientes, um sírio rico e tão vaidoso como ingenuamente cortês, mu1heres perversas ou amorosas, e todo um povo que frequenta as praças púb1icas, os pórticos e os a1bergues de Nápoles a Tarento. O ve1ho rea1ismo 1atino afirma-se com rara fe1i-cidade; adivinha-se um espírito 1ivre contemp1ando o espectácu10 do mundo, com o desejo de não ceder às aparências e desprezando as convenções.

Veremos uma atitude seme1hante a1guns anos mais tarde, com Marcia1(*), cujos Epigramas nos convidam também para o espectá-cu10 da Roma dos Flavianos. Mas estes <<instantâneos» não possuem a extensão do romance de Petrónio. Escritos em versos fáceis, são caricaturas, ou frágeis estatuetas, ou ainda saborosas anedotas cujo interesse documenta1 sobre os costumes da Roma contemporânea permanece inesgotáve1.

Contemporâneo de Marcia1, Juvena1(*) reencontra a violência de Pérsio. Escreveu SáÜras mas, nas suas mãos, o ve1ho género nacio-na1 aparece mais carregado de retórica e não é compensado pe1a 1i-berdade soberana de que Horácio dera mostras. A seiva parece ter secado apesar da exuberância da forma. Juvena1 gostaria de que Roma continuasse a ser, no tempo de Trajano e de Adriano, o que fora no reinado de Augusto. Se outrora a 1iteratura 1atina começara

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por ser itálica e por ultrapassar ligeiramente os limites da cidade romana, agora é o contrário que se produz: Roma imperial, aberta às influências do Oriente, desconcerta os escritores, cuja visão do mundo nos parece singularmente estreita. Neste aspecto, Juvenal não difere em nada de um Tácito ou de um Plínio o Moço, que tam-bém são italianos, provinciais (como Juvenal, o campaniano de Aquino), com todas as limitações e mesquinhez que a situação com-porta. Os Anais de Tácito(*), obra de um adulto, expõem a história dos reinados que se sucederam de Tibério a Nero [a história de Sue-tónio(*) vai de César a Domiciano] e fazem-no sem qualquer simpa-tia: os acontecimentos processam-se, conduzidos por homens cujas intenções Tácito analisa, preferindo, quando se lhe apresentam vá-rias soluções possíveis, a que menos honra a natureza humana. O conjunto forma um drama no qual se confrontam os representantes da aristocracia senatorial e da corte dos Príncipes. Por um lado, o desejo de servir o Estado, por outro, a inveja e a cupidez, as intrigas da corte esmiuçadas com complacência. Sente-se muito pouco a ex-tensão dos verdadeiros problemas, o peso das províncias no Império

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tudo aquilo que os historiadores modernos se esforçam, hoje em dia, por compreender. Tácito aplica à história da dinastia julio--claudiana as velhas categorias válidas quando Roma era uma pe-quena cidade entregue a rivalidades entre facções, a brigas, a alian-ças entre grandes famílias. Neste aspecto, a sua posição política é, em grande parte, anacrónica. Defende os valores «republicanos», embora saiba que o regime imperial é uma necessidade. Posição in-telectualmente confortável. A sua crítica do principado julio-clau-diano é tanto mais violenta quanto se opõe a um re/;,'''Ímejá remoto, oficialmente condenado pela doutrina política dos Antoninos.

À medida que o Império excede a cidade romana, a literatura la-tina estiola-se. Em contraste com a renovação então experimentada pela expressão da língua grega, Roma está cada vez mais dependen-te da influência do Oriente. Já não existe, verdadeiramente, um pensamento romano autónomo, paralelamente ao pensamento grego

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há apenas sobrevivências moribundas. Os governadores de pro-víncias, os administradores, os magistrados, os comerciantes têm familiares sofistas (é a época, no Oriente, da «segunda sofística»), retóricos, filósofos, artistas. Antigos escravos de origem oriental ocupam cargos de grande responsabilidade. E, nesta simbiose do Oriente e do Ocidente, a literatura de expressão latina apresenta--se como secundária. Uma única obra, em meados do século lI, tes-temunha ainda alguma vitalidade. Fruto desse meio espiritual com-plexo, exprime-o mesmo nos seus contrastes e paradoxos. Trata-se do singular romance escrito pelo africano Apuleio(*) que, na infân-cia, aprendera a falar e a escrever as duas línguas de cultura, o la-tim e o grego. O título, As Metamorfoses, é grego; /;,'1'egotambém o mundo onde se desenrolam as aventuras contadas, mas muitas ve-zes o pensamento, o meio espiritual, as maneiras de sentir denotam os hábitos romanos.

Conhecemos o tema geral: Lúcio, um jovem aristocrata grego ori-ginário da região de Patras, no golfo de Corinto, decide corrrer mun-do para se instruir sobre as coisas da magia. Ao chegar a Tessália, hospeda-se por acaso em casa de uma feiticeira; pretendendo imitar a feiticeira, que se transforma em pássaro, engana-se no unguento e ei-Io metamorfoseado em burro. Começam então mil aventuras, um extraordinário romance picaresco que só termina no dia em que Lúcio, de re/;,rresso à praia de Corinto, implora à deusa Ísis que ponha termo aos seus tormentos. Ísis mostra-se tranquilizadora; Lúcio reencontra a sua forma humana e, reconhecido, inicia-se nos mistérios da deusa.

Apuleio não inventou esta história; soube-a através de um certo Lúcio de Patras (se é que era este o seu nome!), cujo romance deu origem a outra adaptação que nos chegou como pertencente a Lucia-no. Mas acrescentou-lhe novos episódios, como por exemplo a histó-ria de Amor e Psiqué) e conferiu-lhe também uma conclusão religio-sa, fazendo intervir Isis, que não aparecia no modelo. Os acrescen-tos de Apuleio não são ornamenacrescen-tos gratuitos. Não há dúvida de que tentou conferir um sentido simbólico a um tema tradicional. O conto de Psiqué, habilmente inserido no centro da obra, é evidentemente um símbolo de inspiração platónica: é a odisseia da alma humana precipitada num corpo de carne e que, graças ao poder de Eras, reencontra finalmente a pátria celeste. Psiqué, filha de rei, une-se sem o saber ao deus Amor: no momento em que, infringindo a proi-bição que lhe foi feita, descobre a verdadeira natureza do marido, este foge e ela é obrigada a percorrer o mundo para encontrar aque-le que lhe inspirou uma paixão invencível. Reconhece-se, no par Eros e Psiqué (a Alma), um tema familiar aos escultores contempo-râneos de Apuleio, que o reproduziam frequentemente, sobretudo em sarcófagos. É com Platiío e, sem dúvida, para além de O Fedro e O Banquete, com a tradição órfica que se prende esta concepção do Amor como princípio cósmico. Apuleio, que se apresenta como plató-nico, utilizou um velho conto folclórico (a histól;a, conhecida por muitos povos, da Bela e o Monstro) para construir um mito filosófico em que se exprime o seu espiritualismo. A sua filosofia não é, sem dúvida, muito original, mas é um bom exemplo desse pensamento sincrético que reúne em si especulações de origens muito diversas e prepara o advento do cristianismo. Com Apuleio, morre para nós a literatura latina da Roma pagã. Os autores que se seguem não fa-zem mais do que repetir as ideias antigas, retomando incansavel-mente as mesmas formas, das quais está ausente uma verdadeira vida.

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A literatura latina, pela sua variedade e também pelos seus con-trastes, esclarece-nos quanto às preocupações do pensamento roma-no, aos movimentos mais fugazes de uma sensibilidade que utilizou

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certamente, para se exprimir, géneros literários e todo um material técnico originários dos países gregos, mas que também soube apre-sentar criações originais, características da civilização romana. Um inquérito sobre a arte romana fornece-nos a mesma conclusão.

Civilização urbana, apesar de todas as tentações, a civilização romana,soube criar tipos arquitecturais à medida das suas necessi-dades. E verdade que imitou a Grécia, mas também possui as suas próprias tradições. Existe uma forma itálica de templos, de praças públicas, que não se confundem com as formas gregas. E, sobretudo, enquanto as cidades helénicas se tinham preocupado quase exclusi-vamente com a exaltação dos deuses, construindo-Ihes santuários dignos dos Imortais, Roma não esqueceu o conforto nem o prazer dos vivos.

É verdade que os primeiros edifícios da cidade cuja recordação chegou até nós são templos mas, a partir do século 11a. C., começa-ram a multiplicar-se monumentos puramente civis que, pelo seu número, variedade e magnificência, não tardaram a constituir o es-sencial da decoração urbana.

Quando começamos a entrever a existência de uma arquitectura no Lácio, no fim do século VI a. C., predomina a influência etrusca. Constroem-se então templos que se assemelham muito aos templos gregos, pelo seu plano geral, mas que diferem em pormenores im-portantes. Assim, o santuário é sempre construído num telTaço ele-vado (podium), ao gual se ascende por uma escada construída à frente da fachada. E provável que esta disposição característica se explique pela crença segundo a qual a divindade só exerce uma pro-tecção eficaz na medida em que o seu olhar descobre efectivamente o homem ou o objecto sobre os quais deve incidir a sua bênção. Du-rante este período arcaico, os templos são revestidos de telTacota, com ornamentos em relevo e pintados de cores vivas. O estilo da de-coração assemelha-se à arte jónica, que então reinava em toda a ba-cia ocidental do Mediterrâneo. Mas, embora esta decoração atinja, por vezes, uma real beleza, o edificío em si é construído de forma muito b'TOsseira; a pedra só é utilizada nas colunas e na base do que

não se confundem coI)1as formas gregas. E, sobretudo, enquanto as cidades helmadeira. E assim que devemos imaginar os mais antigos templos de Roma, o de Júpiter no Capitólio, o de Castor no Fórum, o de Ceres junto do Aventino. Os motivos da decoração são inspirados em imagens helénicas, revelando, segundo consta, uma notável pre-dilecção pelos motivos dionisíacos, os Sátiros, as Bacantes, e tam-bém pelas formas vegetais, tratadas com profundidade e leveza.

Esta arquitectura deriva visivelmente de modelos OJientais, sem dúvida de um dórico arcaico, cuja influência continuará a fazer-se sentir na posterior evolução da arquitectura sagrada no mundo ro-mano, não obstante os contributos mais recentes vindos da Grécia clássica e do Oriente helenizado.

Na verdade, conhecemos muito maIos ediflcios da Roma republi-cana. Aqueles que nos foram revelados pelas escavações

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por

exemplo, a área sagrada do Largo Argentina - dificilmente se dei-xam interpretar e a cronologia das reconstruções está longe de ser clara. Sabemos apenas que se envidaram esforços para conservar durante tanto tempo quanto possível a antiga simplicidade, e que os Romanos se orgulhavam dos seus templos ornados de relevos e de estátuas de telTacota, que contrastava com o mármore e o ouro dos templos gregos. Este conservantismo impediu investigações tão sub-tis como as dos arquitectos da Grécia clássica. A coluna romana nunca atingiu a perfeição das que vemos no Partenon. Mas quando se desenvolveu a ornamentação dos capitéis e quando, para aligei-rar a linha do fuste, se recorreu às caneluras, as colunas conserva-ram uma certa rigidez, assim como uma tendência, por vezes para uma extrema delicadeza; só raramente conheceram o entasis, que contribui tão b'Tandemente para a harmonia das colunatas clássicas. Além disso, enquanto o Partenon se destina a ser observado de to-dos os ângulos, o templo romano é sobretudo uma fachada. Muitas vezes, a colunata reduz-se a um pórtico anterior ou então, quando é períptero, os pórticos laterais tendem a apagar-se, por atingirem uma largura menor que o pórtico frontal, ou por serem substítuídos por colunas mais leves ou simples pilastras. O templo é mais deco-ração da via pública do que um edifício em si, possuidor da sua per-feição própria. Destina-se a inteb'Tar-Se num forum ou numa área sagrada, fi'equentada por multidões e constantemente ao alcance dos mortais.

Com o Império, surb>iram em Roma os primeiros templos revesti-dos de m1írmore e, ao mesmo tempo, assistiu-se ao triunfo da ordem coríntia. Ao dórico primitivo seguiu-se uma interpretação mais or-namentada desta ordem, como se pode ver, por exemplo, no templo dórico de Cori, que remonta ao início do século I a. C. A ordem jóni-ca não está ausente, mas os capitéis deste tipo não apresentam um tipo puro. Às volutas características vieram juntar-se, na maior parte das vezes, motivos florais que Jllongam o cesto e se inspiram, visivelmente, nos capitéis coríntios. E para uma ornamentação cada vez maior que evolui a arquitectura romana na arte sacra. Um bom exemplo deste coríntio «augustano» é a Casa Quadrada de Nimes, que foi construída em 16 a. C. A delicadeza do friso contribui muito para a impressão de elegância que caracteriza os templos desta épo-ca. Mas em breve a ornamentação começará a complicar-se, à medi-da que os operários italianos e ocidentais se tornam mais hábeis a trabalhar o mármore. Podemos comparar, por exemplo o fiiso de Ni-mes com a arquitrave do templo de Vespasiano, em Roma, onde se sobrepõem várias zonas - numa delas encontram-se esculpidos motivos litúrb>icos, como bucrânios, páteras, vasos e instrumentos destinados ao sacrif1cio e, mais acima, dentículos, óvanos, consolas, enfim todo um conjunto de palmas que não podem deixar de recor-dar os motivos ÜlVoritos da ornamentação arcaica. Nesta evolução, a

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