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Os territórios geográficos e afectivos das Comédias do Minho e do Teatro do Vestido

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TeaTro

porTuguês

ConTemporâneo

EXPERIMENTALISMO,

POLÍTICA E UTOPIA

[TÍTULO PROVISÓRIO]

(2)

© TNDM II & Bicho-do-Mato, 2017

© Ana Bigotte Vieira, Ana Pais, Eunice Tudela de Azevedo, Gustavo Vicente, Jorge Louraço Figueira, Maria Sequeira Mendes, Paula Gomes Magalhães, Rita Martins, Rui Pina Coelho

revisão Mariana Vaz-Freire design da capa Patrícia Flôr impressão AGIR

Lisboa, 2017 | Depósito Legal: 431251/17 | ISBN: 978-989-8349-49-1

Embora o TNDM II tenha envidado todos os esforços para contactar os autores das fotografias contidas na presente publicação, nomeadamente junto dos artistas, companhias e estruturas teatrais com quem colaboraram, não foi possível localizar todos os fotógrafos creditados.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob qualquer forma (eletrónica, mecânica, fotocópia, etc.) sem a prévia autorização da editora e do Teatro Nacional D. Maria II.

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TeaTro

porTuguês

ConTemporâneo

EXPERIMENTALISMO,

POLÍTICA E UTOPIA

[TÍTULO PROVISÓRIO]

COORdENAçãO

(4)

Índice

introduçÃo

experimentalismo, Política e utopia:

um teatro português do início do século xx ao dealbar do novo milénio

7

RuI PINA CoELho

1. Bases de criação para o século xxi: a intensificação

da experiência cénica em João Garcia Miguel (oLHo) e em Miguel Moreira (Útero)

23

GuSTAVo VICENTE

2. regime democrático e regimes de cena:

três encenadores (nuno cardoso, Bruno Bravo e Gonçalo Amorim)

41

JoRGE LouRAço FIGuEIRA 3. os territórios geográficos e afetivos das comédias do Minho e do teatro do Vestido

59

RuI PINA CoELho

4. Lazer, trabalho e afetos ou a arte de identificar

o que é importante: tónan Quito, tiago rodrigues e Gonçalo Waddington

79

ANA PAIS

5. outros artistas: o teatro Praga e o cão Solteiro

99

(5)

6. As poéticas do desassossego da mala voadora, colectivo 84, Martim Pedroso & nova companhia e Miguel Loureiro (coletivo 3/quartos)

117

RITA MARTINS

7. um espaço de transdisciplinaridade: Projecto teatral, Karnart, Visões Úteis e circolando

135

EuNICE TuDELA DE AzEVEDo

8. companhias de atores: modos, processos e configurações d’As Boas raparigas…, da Palmilha dentada e do teatro do eléctrico

155

PAuLA GoMES MAGALhãES

9. uma personagem que sai fora de um livro, uma plateia que lê e um homem que se abraça a uma pilha de livros: Patrícia Portela, Miguel castro caldas e rui catalão

173

ANA BIGoTTE VIEIRA

ABreViAturAS

188

Índice reMiSSiVo

189

Artistas, Autores, Companhias, Espaços, Eventos

(6)
(7)

3

os territórios geográficos

e afetivos das

comédias do Minho

e do teatro do Vestido

RUI PINA COELHO

t Monstro — Parte 1: Calamidade, criação Gonçalo Alegria, Joana Craveiro e Tânia Guerreiro| dir. Joana Craveiro

Teatro do Vestido/Citemor, 2012 |(Tânia Guerreiro, Joana Craveiro e Gonçalo Alegria) |fot. João Tuna

(8)

CoMÉDIAS Do MINho | TEATRo Do VESTIDo | 60

1.

Há na gesta do teatro em Portugal um devir eminen-temente político. Florian Malzacher, na introdução a

Not Just a Mirror: Looking for the Political Theatre of Today (2015), afirma liminarmente que, no

Oci-dente, depois de um forte período de teatro narra-tivo durante as décadas de 1970 e 1980, seguido de um período — os anos de 1990 — dominado por formas pós-dramáticas com o foco na exposição do disposi-tivo teatral, encontramos hoje «um forte desejo por um teatro que não só dê conta de assuntos políticos importantes mas que também se transforme num espaço político, numa esfera pública» (Malzacher, 2015: 12, tradução minha). As circunstâncias especí-ficas da história do teatro em Portugal foram fazendo com que a dimensão política nunca se dissipasse completamente. Mesmo quando a experimentação na maioria do teatro europeu se entusiasmava com processos e procedimentos exploratórios mais for-mais, a cena portuguesa — animada ainda pelo fervor pós-revolucionário e, depois, pela discussão sobre a entrada na comunidade europeia — manteve sem-pre a dimensão política sem-presente. Ora entusiasmada pela aventura da descoberta de um repertório até aí proibido (Brecht, em particular); ora incendiada pelo confronto entre os valores revolucionários e a sua alegada incompatibilidade com a desejada normali-zação da vida pública, tentando avaliar-se o cumpri-mento das promessas anunciadas em abril de 1974.

Assim, à medida que a vida social se ia estabi-lizando, insistia o teatro (algum teatro, claro) em manter um diálogo sobre o destino do país e sobre

o estado da nação. Portanto, à medida que a própria noção habermasiana de «esfera pública» se ia ero-dindo, o teatro ia tentando inventar, construir e pre-servar um espaço onde a discussão sobre os temas que interessam a todos — os temas vitais para a Cidade — era ainda possível e necessária.

Em Portugal, uma das formas de construção desta «esfera pública» tem passado pela prospe-ção do território (geográfico e afetivo) comum e da memória coletiva. Para os criadores mais recentes, os exemplos de companhias como o Teatro O Bando, de João Brites, ou das coreografias comunitárias de Madalena Victorino, assumem-se como inspirações tutelares. Neles, além, claro, das inevitáveis idiossin-crasias estéticas inerentes a cada criador, descobrem--se frequentemente, como recorrências, um interesse por materiais textuais não dramáticos, o tra balho com não-atores, a criação em contacto permanente ou demorado com uma comunidade, uma relação privilegiada com públicos específicos (uma determi-nada comunidade geográfica, profissional ou social), o recurso a recolha de documentos e memórias atra-vés de entrevistas ou de relações de proximidade com o público.

Tendo como um dos eixos mais visíveis do seu trabalho uma inquirição sobre os modos de rela-ção do trabalho artístico com o tecido comunitário circundante, o Teatro do Vestido e as Comédias do Minho preconizam duas maneiras muito diferentes de o entender, fazendo do território e da memória vetores determinantes para o seu trabalho. Ainda que ao longo da sua história (TdV fundado em 2001;

(9)

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Inês Negra, de Miguel Castro Caldas enc. Gonçalo Amorim |Comédias do Minho, 2009 (Tânia Almeida, Celeste Domingues, Mónica Tavares

e Tânia Pereira) |fot. Susana Neves CdM fundadas em 2003) estes dois grupos tenham

estabelecido formas muito diversas de se inscreve-rem artisticamente na comunidade, o trabalho com grupos específicos — de um determinado contexto geográfico, profissional ou social — funciona recor-rentemente como um polo de atração para ambos os coletivos.

As Comédias do Minho mantêm com a comu-nidade uma relação mais «tradicional» de inscrição no território. Fundadas em 2003, numa iniciativa de cinco municípios do Vale do Minho (Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira) e do Teatro do Noroeste (posteriormente substituído pela Caixa de Crédito Agrícola) — um caso singular no país de envolvimento autárquico num projeto artístico —, assumem como objetivo dotar a região onde se inscrevem de um projeto cultural pró-prio, alicerçado em três eixos de ação: uma compa-nhia de teatro, um projeto pedagógico e um projeto comunitário. Ainda que tripartida, a sua ação res-ponde essencialmente a uma relação de proximidade com a «sua» comunidade: 1) na companhia de tea-tro aposta-se «na circulação contínua de criadores nacionais e internacionais e articulando uma progra-mação diversificada, num registo não paternalista, desafiante e arriscado (ao nível das propostas, temáti-cas, criadores e linguagens)»; 2) o projeto pedagógico pretende oferecer «oportunidades de aprendizagem e lazer, que potenciem o desenvolvimento de compe-tências cognitivas, críticas, criativas, afetivas e sociais ao longo da vida, e articular a sua intervenção com o universo artístico da companhia de teatro e do projeto

(10)

CoMÉDIAS Do MINho | TEATRo Do VESTIDo | 62

comunitário, num esforço comum de democratização de acesso às artes»; 3) o projeto comunitário carac-teriza-se «pela colaboração, na programação, for-mação, dinamização e criação artística, dos Grupos de Teatro Amador do território ao longo do ano e em mais pontuais espetáculos comunitários, com forte envolvimento das populações e do tecido associativo local», respetivamente, e tal como definido pelos criadores (Domingues & Vaz, 2014: 17, 67, 151). Trata--se, portanto, de um projeto claramente vocacionado para um trabalho sobre o território e sobre a comu-nidade. Em depoimento prestado ao jornal Público1, Isabel Alves Costa lembrava a necessidade de criar «uma relação íntima com a população».

O Teatro do Vestido, de Lisboa, fundado por uma equipa com valências pluridisciplinares, que preten-dia construir os seus próprios textos dramáticos bem como todos os elementos da cena, ainda que faça da inscrição no território uma prática recorrente, tem como vocação, mais claramente, uma relação eletiva com a memória e com os documentos de arquivo. Tendo como motor a impressiva dramaturgia de Joana Craveiro, nos primeiros espetáculos descobria--se amiúde o recurso a metáforas poéticas, ambientes nostálgicos e introspetivos, mas também o recurso a uma composição feita de fragmentos, histórias de vida (ficcionadas e reais), utilizando fotografias, cadernos, objetos domésticos e outra memorabilia privada. Em trabalhos mais recentes, o TdV parece estar a fazer um movimento criativo no sentido de se relacionar em termos mais permanentes com con-textos comunitários e — muito expressivamente — Inverno, criação Daniel Pinto, Gonçalo Fonseca, João Melo,

Luís Filipe Silva, Mónica Tavares, Rui Mendonça e Tânia Almeida enc. Nuno Cardoso |Comédias do Minho/Ao Cabo Teatro, 2011

(Gonçalo Fonseca, Tânia Almeida, Daniel Pinto e Rui Mendonça) |fot. Nuno Cardoso

(11)

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termo aportado por Isabel Alves Costa, a mentora do projeto na sua atual configuração. Esta «nova cen-tralidade» opõe-se a uma política de descentraliza-ção timidamente operada em Portugal desde os anos de 1970, e concretiza-se na criação de novos centros de cultura, que se consigam edificar com recursos e projetos próprios (logísticos e artísticos) e que se dis-tingam dos projetos hegemónicos dos grandes cen-tros urbanos. Com efeito, em larga medida, o tecido sociocultural em Portugal é ainda determinado por uma concentração de recursos em Lisboa e no Porto. A singularidade do projeto artístico das Comédias reside precisamente na forma como se inscreve na relação entre o centro e a periferia. Para João Pedro Vaz, diretor artístico das Comédias de outubro de 2009 a 2016:

O projeto é desenhado para cada novo modelo/ter-ritório e dá-se a ambição de criar ali novos para-digmas de programação cultural, atuantes de modo absoluto, apesar do localismo e trabalhando mesmo esse localismo como facto de originalidade e valo-rização. [...] De acordo com as necessidades, são importados artistas (com a sua notável mobilidade), conceitos ou linguagens, os formatos podem ter até elevado grau de transferibilidade, mas é o territó-rio de ação que oferece as chaves de leitura últimas (ou primeiras) e o que lá se faz é, por isso, único. (Vaz, 2014: 171)

As Comédias não são, obviamente, o único coletivo artístico português sediado fora de Lisboa, com a memória desses contextos, sejam eles uma

cidade ou uma geração, abandonando uma moldura mais introspetiva e abraçando um olhar mais com-prometido com a esfera pública.

2.

Para justificar a atribuição do Prémio da Crítica 2011 pela Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, Alexandra Moreira da Silva reconhecia nas Comédias do Minho o embrião de uma «movida artística» no Alto Minho que implicava, «desde logo, uma rede de vasos comunicantes que tem levado até aos cinco concelhos do Vale do Minho [...] criadores tão diver-sos quanto Pedro Penim, Madalena Victorino, Sílvia Real, Igor Gandra, Marcos Barbosa ou mais recen-temente Nuno Cardoso e Joana Providência» (Silva, 2012: 11). A esta lista, poderíamos entretanto acres-centar as colaborações de Gonçalo Amorim, John Mowat, Leonor Barata, Ricardo Alves ou Lee Beagley, entre muitos outros. Com efeito, esse será um dos traços mais impressivos desta companhia: o trânsito permanente entre a estrutura artística fixa (os atores Gonçalo Fonseca, Luís Filipe Silva, Mónica Tavares2, Rui Mendonça e Tânia Almeida), os criadores profis-sionais convidados (encenadores, atores, músicos...) e os artistas amadores locais. Esse trânsito garante uma frescura artística aos trabalhos apresentados, dando ao desenho do repertório uma diversidade assinalável.

A intervenção artística das Comédias do Minho inscreve-se também num discurso político que rei-vindica uma «nova centralidade cultural» — um

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públicos que acolhe, acaba por ser a soma de vários projetos de programação. É um projeto generalista mas também é de vanguarda, de algum cânone nas artes performativas — é uma espécie de serviço público muito alargado — um centro cultural na paisagem.

Com efeito, a prática deste coletivo parece indi-ciar isso mesmo: a articulação entre o exercício de uma política cultural de robustecimento do poder do espectador/cidadão e uma prática artística de exi-gência e liberdade artística. Assim, as Comédias do Minho podem ser descritas como um projeto cons-truído em redor de uma equipa nuclear em torno da qual gravitam colaboradores exteriores (amadores ou profissionais convidados, emergentes ou reconheci-dos), sem a presença de uma assinatura individual na direção artística (antes praticando uma partilha democrática). Nas diferentes áreas de intervenção do coletivo não há também uma separação assumida, misturando-se salutarmente criação, formação ou reflexão, defendendo-se uma relação de convívio íntimo e de exigência artística com o território onde se inscreve, visando dinamizar a participação com a comunidade, rejeitando-se abordagens folcloristas ou simplificadoras. Em suma, um projeto cultural «intimamente ligado a um projeto político para a região, sem que isso o torne refém da ação política direta» (Paiva, 2014: 43).

As Comédias do Minho, fundadas em 2003, ini-ciam a sua atividade teatral profissional no ano se-guinte, sob a direção de José Martins. O espetáculo Porto ou de outros centros urbanos. Mas a forma

como fazem articular o seu projeto artístico, político e cívico reveste-se de uma particular singularidade, traduzida na feliz súmula de Helena Santos: «O tea-tro, esse, é a peça central do projeto, linha avançada de uma ação de facetas diversas entre, por um lado, um território, os seus habitantes, a sua cultura e, de outro, a criação artística contemporânea.» (Santos, 2016: 58) Ou, por outras palavras, fazer aproximar o céu de Berlim do Vale do Minho — recordando o testemunho do presidente da câmara de Paredes de Coura, em 2014, por ocasião dos dez anos da compa-nhia: «[c]om as Comédias do Minho a nossa obsessão com o céu de Berlim torna-se bem menor. [...] Estou absolutamente convencido de que este projeto é uma escola invisível.» (Pereira, 2014: 11)

Estes dois aspetos — o trânsito de artistas de diferentes estéticas e metodologias de trabalho e a advocacia de uma nova centralidade — confir-mam, aliás, a hipótese expressa por Helena San-tos: a de que as Comédias «configuram o encontro entre uma política cultural e uma prática artística» (Santos, 2016: 64). Em depoimento pessoal, João Pedro Vaz afirma:

Há vários níveis de preocupações nas comédias. [...] houve sempre a vontade de criar projetos de criação artística contemporânea com alguma rutura — não necessariamente aquilo que se espe-raria encontrar num contexto rural, mas ao mesmo tempo com momentos de algum reencontro, al -guma festa — um projeto que, pela diversidade de

(13)

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inaugural — Era Uma Vez no Vale do Minho (encena-ção coletiva, 2004) — é seguido de O Espelho Único, de António Torrado (encenação de José Martins, 2004), A Farsa do Mestre Pathelin (encenação de José Martins, 2005), Mosquete, de Ângelo Beolco (encena-ção de Pedro Giestas, 2005), e O Marido Confundido, de Molière (encenação de José Jorge Duarte, 2005). Em 2006, a direção do projeto passa a ser assumida pelo ator e encenador Nuno Pino Custódio — artista com fortes ligações ao teatro de commedia dell’arte e a técnicas de máscara. Sob a sua direção são apresen-tados A Festa, de Spiro Scimone (encenação de Pedro Luzindro, 2006), Antskupanabra, a partir de Karl Valentin (encenação coletiva, 2006), e Mistério Bufo, de Dario Fo (encenação de Filipe Crawford, 2006). A dimensão popular, cómica e fársica dos primeiros espetáculos é evidente. No seguimento desta alte-ração na direção artística da companhia, será cons-tituída uma «comissão artística» composta por Nuno Pino Custódio, o encenador e cenógrafo Nuno Carinhas e o investigador, crítico e dramaturgo Jorge Louraço Figueira.

Contudo, no final de 2006, o projeto será alvo de uma reestruturação. Isabel Alves Costa e Miguel Honrado são convidados a constituir uma nova comissão artística, com a colaboração do encena-dor, teatrólogo e pedagogo francês Pierre Voltz — definindo-se nesta altura os três eixos de ação já mencionados. Será a partir daqui que o projeto das Comédias assume as características estruturantes que ainda hoje o caracterizam, operando uma reno-vação no modo como se relaciona com o território,

Casa Grande/Casa Mãe,

enc. Tânia Almeida |Comédias do Minho, 2011 (Mónica Tavares) |fot. Sérgio Moreira

(14)

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os públicos e a comunidade. Isabel Alves Costa assu-mirá a direção artística do projeto, que manterá até 2009 (até ao seu falecimento). Será substituída pelo jovem ator e encenador João Pedro Vaz, fundador, em 1998, da companhia portuense Assédio — Associa-ção de Ideias Obscuras. Em rigor, tratava-se de um regresso de João Pedro Vaz às Comédias, uma vez que assinara já, em 2008, a encenação do espetáculo Auto

da Paixão, uma evocação da tradição popular das

representações da paixão de Cristo. Por altura dessa estreia, em declarações ao Notícias de Coura3, afir-mava — denotando uma sintonia premonitória com o projeto — que é «muito importante descentrali-zar o teatro, levá-lo a todos os tipos de público mas mantendo o mesmo grau de exigência, a mesma qua-lidade em termos profissionais, independentemente do contexto onde se faz esse teatro».

A direção de João Pedro Vaz dará continuidade ao trabalho encetado por Isabel Alves Costa, mas será sob a sua alçada que as Comédias do Minho se afirma-rão como um coletivo teatral de reconhecido impacto no tecido cultural português. Confirmar-se-ão como um espaço privilegiado para a experimentação artís-tica, fazendo confluir de forma agudamente original públicos, criadores e pensadores de proveniências, sensibilidades e territórios (geográficos, afetivos e estéticos) muito diversos.

Um dos exemplos dessa convivência «descen-trada» é o espetáculo El Dorado (2008), encenado por Pedro Penim, um dos membros do Teatro Praga. «Eldorado», na lógica narrativa do espetáculo, seria uma espécie de paraíso, um local onde a ansiedade e Eldorado — Uma Comédia do Minho,

enc. Pedro Penim |Comédias do Minho, 2009 (Mónica Tavares, Rui Mendonça e Luís Filipe Silva) |fot. Susana Neves

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o pânico não podem atingir ninguém. O dispositivo era desabridamente simples: cinco personagens, jo-vens figuras de uma classe média urbana e aborreci-da, expõem as suas inquietações, medos, paradoxos, enfim, os seus lugares de pânico. Numa mesa ao fundo estavam dois ícones dos lares de classe média contemporânea: um plasma e uma máquina de café de cápsulas. A confluência de territórios denotava-se precisamente na convocação de imaginários rurais e urbanos, populares e eruditos, numa mescla de re-ferências — muito ao gosto do eclético criador Pedro Penim — que resultava num espetáculo de pulsão feérica, quase circense. O que sobejava era precisa-mente um espetáculo que recusava qualquer leitura de colonização estética e que se erguia numa lingua-gem de estilo próprio. Esta capacidade revelar-se-á, aliás, imprescindível a uma companhia que faz da presença regular de vários encenadores de estéticas diversas uma das suas marcas de estilo e que, simul-taneamente, não abdica de assumir uma identidade forte.

A sua marca identitária é fortemente robuste-cida pela presença continuada da equipa criativa no território de ação da companhia. A integração efetiva dos criadores no território leva a que se oblitere qual-quer estranheza pelos artistas que ali foram chegando. A identidade da companhia é também fortemente alimentada pelos trabalhos desenvolvidos no âmbito do projeto pedagógico e do projeto comunitário. Com efeito, os espetáculos que implicam o envolvimento das populações e das associações locais, recriando artisticamente tradições populares — ou o FITAVALE,

o Festival Itinerante de Teatro Amador do Vale do Minho (desde 2011), onde os coletivos amadores que trabalham com os elementos das Comédias apre-sentam os seus trabalhos (cada ator das CdM encena ou dinamiza um grupo de amadores em cada con-celho) —, configuram-se como instrumentos para a criação de uma comunidade de traços identitários relativamente partilhados. Deste modo, vai-se cons-truindo um verdadeiro território comum para onde convergem as expectativas da comunidade circun-dante. «A ideia de comunidade não existe. Ela é ati-vada e desatiati-vada muitas vezes em função de projetos que se criam», afirma João Pedro Vaz, em depoimento pessoal (de 2017), denotando a necessidade imperiosa de projetar um trabalho a longo prazo e de implanta-ção efetiva no território.

Em fevereiro de 2016 as Comédias do Minho apresentavam-se em Lisboa, no Teatro Nacional D. Maria II, numa iniciativa denominada «Ocupa-ção Minhota». Além da estreia, em coprodu«Ocupa-ção com o TNDM II, de Os Doze Pares de França — um auto popular do chamado «Ciclo Carolíngio» —, com encenação de João Pedro Vaz, apresentavam--se outros espetáculos, exposições, documentários, oficinas, debates e até provas de vinho e de produ-tos regionais. Seria um momento crucial e de grande projeção, que antecederia a saída de João Pedro Vaz para a direção do Teatro Oficina, em Guimarães4, e que culminaria um ciclo, de dois anos, mais fechado e mais centrado, sem tantos projetos de envolvimento, após a comemoração dos dez anos da companhia (2004-14). De forma curiosa, durante

(16)

Os Doze Pares de França,

enc. João Pedro Vaz |Comédias do Minho/TNDM II, 2016 (Ana Valente) |fot. Filipe Ferreira/TNDM II

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esta «ocupação», nas fachadas do TNDM II lia-se, numa enorme tarja, o slogan que acompanhava o primeiro trimestre da temporada: «Da junta de fre-guesia à Via Láctea.» Para João Pedro Vaz, habituado que estava a estrear nas minúsculas salas das jun-tas de freguesia no Vale do Minho, a inscrição desta frase nas paredes do Teatro Nacional, em Lisboa, era «quase uma vitória, porque é a des-hierarquização, uma diluição do que é periférico e do que é central, quando mais não seja para discutir, para questio-nar»5.

3.

No espetáculo Um Mini-Museu Vivo de Memórias do

Portugal Recente, de Joana Craveiro/Teatro do

Ves-tido, apresentado na Fábrica das Artes do CCB (2017), uma versão curta e para públicos jovens de Um

Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas

(2014) — o espetáculo-palestra de cinco horas que se tornou uma espécie de emblema do teatro político do Portugal sob o jugo da austeridade —, a palestrante solitária perguntava ao seu pai: «Quanto tempo tem que passar sobre um acontecimento histórico para que se possa falar sobre ele?» Nessa mesma per-gunta descobria-se uma reformulação da inquieta-ção primordial, aportada logo nos primeiros anos da

troika em Portugal, sendo um dos principais eixos

dramatúrgicos de Um Museu Vivo... e, em rigor, a inquietação principal da trilogia Monstro

(Cala-midade, 2012; Hecatombe, 2013; Apocalipse, 2013):

«Como chegámos até aqui? — ou seja, de onde vimos, e como viemos aqui parar?»

Com esses espetáculos, o Teatro do Vestido ini-ciava um novo ciclo em que tomava como motivos de inquirição a crise, a história recente de Portugal e, muito agudamente, a memória coletiva. Em

Monstro — Parte 1: Calamidade, Joana Craveiro e

Tânia Guerreiro, encostadas às paredes escalavra-das da Sala B do Citemor — Festival de Teatro de Montemor-o-Velho, envolvidas na perturbadora sonoplastia de Gonçalo Alegria, espacial e etérea, começavam por ouvir a reprodução de um dis-curso de Marcelo Caetano sobre o Levantamento das Caldas, uma tentativa de golpe de Estado frustrada, ocorrida em 16 de março de 1974 — um mês antes da queda da ditadura. Mais adiante, Craveiro pergun-tará, inquieta: «Como é que fazes para não ficares suja por dentro? Quando um país te mete nojo, o que é que tu fazes?» Pelo meio desfiariam e misturar-se--iam memórias familiares, canções de intervenção, a música de Ruy, O Pequeno Cid6, notícias de jornal e histórias do país, e restos de um espólio apanhado no lixo de uma avenida de Lisboa, onde estava, entre outras coisas, uma carta escrita a um soldado na Guerra Colonial e um desenho de um rapaz sobre a Implantação da República (feriado que tinha acabado de ser abolido pelo governo de Pedro Passos Coelho em prol da produtividade nacional) — assumindo--se um tom de clara confissão e de confronto com o real.

Esta pesquisa temática e formal terá momentos significativos com Labor #1, uma primeira aproxi-mação ao formato do espetáculo-palestra (2013), e Retornos, Exílios e Alguns Que Ficaram (2014).

(18)

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Mas o seu ápice será, seguramente, o espetáculo--palestra Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e

Esquecidas, em que Joana Craveiro — num prólogo

e sete palestras «sobre a Ditadura, a Revolução e o PREC», sentada a uma mesa, segurando uma câmara de filmar, projetando páginas de livros, cadernos, mostrando acetatos num retroprojetor, citando jor-nais, ouvindo discos ou manipulando pequenos obje-tos, como um rádio, várias caixas, uma carrinha em miniatura... — entrelaçava, de forma desabridamente pessoal, o íntimo e o público, o subjetivo e o factual, o poético e o jornalístico, misturando a história da sua família com a história recente do país. Sobre os objetivos do projeto, escrevia, no programa do espe-táculo:

Saber como se faz em Portugal a transmissão destas memórias — quais as omissões, revisões, rasuras que estão a acontecer e, por outro lado, quais as outras versões e as outras narrativas que também circu-lam ou que estão silenciadas — foram algumas das perguntas de partida deste projeto, que se assume como uma investigação histórica, etnográfica, afe-tiva, e, a limite, performática. (Craveiro, 2015)

Com este espetáculo, o TdV confirmava o seu interesse por um teatro documental, de um imperio so registo autobiográfico e manifestamente político. Um teatro que tem vindo a ser conceptualizado por Carol Martin como um «teatro do real»: «criado a partir de um conjunto específico de material de arquivo: en -trevistas, documentos, audições, gravações, vídeos,

filme, fotografias, etc.» (Martin, 2006: 9) Um teatro cujas funções, e ainda de acordo com Carol Martin, podem ser resumidas a seis pontos axiais:

1) Reabrir julgamentos de forma a criticar a justiça; 2) Criar factos históricos adicionais; 3) Reconstruir um evento; 4) Misturar autobiografia com história; 5) Criticar as operações quer do documentário quer da ficção; 6) Elaborar a cultura oral do teatro na qual gestos, maneirismos e atitudes são transmiti-dos e replicatransmiti-dos por via tecnológica. (Martin, 2006: 12-13)

Com este ciclo, o TdV afastava-se de uma lin-guagem pautada, sobretudo, pelo lirismo cénico, pela introspeção poética ou por narrativas derivati-vas, para procurar um olhar mais claramente com-prometido com o real, com a política, com a história do país e, muito claramente, com a memória cole-tiva. Não obstante esta análise, afirmava-se, logo na folha de sala de Nunca Serei Bom Rapaz, a partir das cartas de prisão de George Jackson (2006), que o TdV:

[...] acredita num teatro que não se divorcia da rea-lidade, antes olha para ela de frente sem medo e com uma vontade indomável de a transformar. A injus-tiça prevalece; a guerra prevalece; a discriminação prevalece. Enquanto prevalecer o estado de sítio, o teatro, tal como o entendemos e praticamos, será uma arma de construção, de denúncia, de transfor-mação.

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Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, de Joana Craveiro Teatro do Vestido, 2014

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Os anos da crise, a partir de 2008, trouxeram, além dos constrangimentos financeiros e da tão pro-palada austeridade, uma necessidade de encontrar laços identitários que pudessem, de alguma forma, tornar a existência mais tolerável. Multiplicavam-se, pelo país, pequenas associações, grupos de traba-lho, pequenos focos de resistência que iam garan-tindo que o tecido social não esboroava. No teatro, a política regressava em força como temática de aguda pertinência. Os espetáculos do TdV — confessionais e desabridamente interventivos — assumiram-se como nervos expostos perante a acídia geral, perante a indi-ferença das agências de rating, a mudez dos «mer-cados» e a incompreensão das instâncias europeias. As conversas com o público que se seguiam a cada apresentação de Um Museu Vivo..., incrivelmente participadas, tornavam-se autênticos fóruns públi-cos onde se fazia a catarse de muita da história nacio-nal recente e onde se continuava a pesquisa encetada pelo espetáculo, descobrindo, nesse momento, uma comunidade com um património e um território afe-tivo comum, que não podia ser nem ignorado nem desbaratado.

No Manifesto do TdV, publicado no seu sítio em linha e escrito por volta de 20027, fala-se logo numa ideia de comunidade:

[...] o Teatro do Vestido assume-se como uma com-panhia comprometida com uma forma ética de fazer teatro e de se posicionar na arte em geral, e na sua relação com as comunidades.

Labor #2, dir. Joana Craveiro Teatro do Vestido, 2015 | (Estêvão Antunes, Tânia Guerreiro e Ainhoa Vidal) |fot. João Tuna

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experimentais ou períodos de trabalho mais explo-ratórios. São os casos do CAPA — Centro de Artes Performativas do Algarve (Faro), onde se estreou, em 2002, o espetáculo-manifesto (e o terceiro da compa-nhia) Lugar Nenhum — Quatro Dias de Uma Jornada

Para a Utopia; do CENTA — o Centro de Estudos de

Novas Tendências Artísticas, em Vila Velha de Ródão, onde se preparou e estreou Cinzento/Grey (2003); ou do Escrita na Paisagem — Festival de Performance e Artes da Terra (Évora), dirigido por José Alberto Ferreira, onde foi apresentado Walden (2005), em Colos de Odemira, num lagar de azeite abandonado, após uma semana de residência. Essa seria a primeira de várias colaborações com este singular festival. Mais recentemente, poder-se-ia juntar a colabora-ção estreita com o Teatro Viriato (Viseu) ou com o Citemor — Festival de Teatro de Montemor-o-Velho; e também as várias criações no Porto, não só as cola-borações com o TNSJ como também o trabalho com os moradores do Bairro do Leal, a propósito de Museu

SAAL e O Sorriso nas Fotografias (2015).

A questão de uma relação com a comunidade traduz-se também em espetáculos que resultam do contacto continuado com determinadas comuni-dades — como alguns espetáculos da série Esta É a

Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela (Porto, 2012;

Viseu, 2013; Lisboa, 2016); Labor #2 (Barreiro, Moita, Vale de Santarém, 2015); ou Viajantes Solitários, após um processo de pesquisa com camionistas de longo curso, em Viseu, 2015. Espetáculos que resulta-ram do entrelaçar das poéticas locais com os projetos dramatúrgicos da companhia.

E, mais adiante:

É nossa convicção que o apoio ao desenvolvimento de projetos culturais pode ser uma forma de inter-venção sustentada e continuada num património que cremos comum, usufruível e partilhável. Um património cultural, muitas vezes não traduzível em termos monetários, mas bem mais vasto no seu alcance, mais precioso. Num mundo cada vez mais descaracterizado e com perda acelerada de referên-cias, talvez mesmo só o património cultural fará, no fim, o balanço das perdas e dos ganhos. E convi-dará à reflexão, cada vez mais necessária, urgente. (TdV, 2017)

Nesse mesmo Manifesto, tratando da questão da relação da companhia com a comunidade, com-prometia-se o Teatro do Vestido a «desenvolver um trabalho contínuo e de permanência», com públicos jovens, mas também junto de comunidades carencia-das e de fora de Lisboa, a medida que encontravam como justa para a descentralização cultural — «e a única forma que vemos de a pôr em prática» (TdV, 2017). Ainda que com o passar dos anos este vetor de atividade não se tenha tornado um dos seus mais expressivos, o TdV foi descobrindo formas de o ope-racionalizar. Assim, desde cedo a companhia encon-trou no estabelecimento de relações eletivas com estruturas «descentradas» — ou que pugnavam por uma «nova centralidade» — uma forma de conseguir encontrar espaço para descobrir comunidades parti-culares, estabelecer residências artísticas, formatos

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Mas, para chegar aqui, o caminho do Teatro do Vestido foi bastante longo. Lugar Nenhum (2002) foi um espetáculo que reconfigurou a estrutura da companhia. Estreado primeiro em Faro, no CAPA, é depois apresentado no CENTA como uma «mara-tona teatral», dividindo-se em quatro partes, quatro pequenas peças, subordinadas ao tema da «constru-ção do mundo». Surgia também na ressaca de um momento de cisão. Assim, antes de Lugar Nenhum ter-se-á chegado à constatação de que «isto é uma coisa de sacrifício — para vivermos disto vai levar muito tempo — e esse sacrifício implica que se tenha de trabalhar noutras coisas mas sempre com o objetivo maior desta comunidade que se está aqui a criar», declarará Craveiro, em depoimento pessoal8. Esse espetáculo afirmava-se claramente como o primeiro de uma companhia que se proje-tava a longo prazo. Em rigor, a companhia surge da cumplicidade da escrita de Joana Craveiro e Susana Gonçalves, que se encontravam uma vez por semana para escrever.

O TdV é desde a sua primeira criação uma com-panhia da palavra. Procuravam, contudo, uma lite-ratura dramática diferente da que podiam encontrar na maioria dos palcos lisboetas. «Parecia-me sempre que as peças que já existiam [na dramaturgia ociden-tal] eram muito limitadoras para mim», afirmará Joana Craveiro. «O projeto que assiste à fundação do Teatro do Vestido tem como premissas fundamen-tais, em primeiro lugar, a escrita de textos originais em parceria, ou não, por Joana Craveiro e Susana Gonçalves», escrevia-se no já referido «Manifesto Esta É a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela – edição Porto,

criação Ainhoa Vidal, Gonçalo Alegria,

Joana Craveiro, Rosinda Costa, Sofia Dinger, Tânia Guerreiro e Victor hugo Pontes |dir. Joana Craveiro

Teatro do Vestido/TNSJ, 2012 (Tânia Guerreiro) |fot. João Tuna/TNSJ

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artístico e projeto do Teatro do Vestido», publicado no programa de Skyscapes — Todas as Direcções (2002). Com efeito, Tua — o espetáculo inaugural, em 2001 — e Skyscapes são construídos em torno de um texto assinado por ambas (com encenação de Joana Craveiro). Mas, no final de 2002, o projeto será recon-figurado e Susana Gonçalves deixará a companhia. Com Lugar Nenhum surge uma nova configu-ração do TdV e a metodologia de trabalho do Vestido vai-se afinando. O convívio dileto de Joana Craveiro com a singular dramaturgia de Carlos J. Pessoa (foi atriz no Teatro da Garagem de 1998 a 2000) terá sido para si, tal como afirma, «uma segunda escola». Escrever para atores específicos, pensar uma dra-maturgia liberta de preocupações de economia dramática e com confiança no poder transfigura-dor da palavra imprimiu na escrita de Craveiro uma marca indelével.

Para a (também) dramaturga, o contacto com o grupo de collaborative performance Goat Island9, de Chicago, terá sido inspirador e importante «pedago-gicamente, eticamente e ao nível da criação e da cola-boração» (Craveiro, 2013: 30)10. No trabalho deste relevante coletivo norte-americano, ativo entre 1987 e 2009, todos os membros contribuíam para a con-ceção, pesquisa, escrita, coreografia, documentação e requisitos educacionais dos projetos artísticos. Pri-vilegiavam espaços não convencionais para a prática teatral, caracterizando-se por uma gramática cénica na qual se combinava movimento coreografado e do quotidiano, misturando-se assuntos históricos ou contemporâneos através do texto e do movimento.

Lugar Nenhum, texto e dir. Joana Craveiro Teatro do Vestido/CENTA, 2002

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Nos Goat Island, a pesquisa podia resultar em pales-tras para eventos públicos, muitas vezes publicadas em obras especializadas. Tudo isto, de alguma forma, encontrará ecos nas práticas cénicas e pedagógicas do Teatro do Vestido.

Mas a sua prática ganhará cada vez mais idios-sincrasias. São solicitadas tarefas aos atores, que depois são traduzidas numa apresentação, formal ou não: uma performance, uma instalação, um relato...; vários espetáculos resultam de residências artísticas e de um contacto continuado com uma determinada comunidade; a escrita é feita a pensar na especifici-dade de cada projeto e de cada intérprete e em colabo-ração com todos os intervenientes, num processo de criação colaborativa. Contudo, «nós temos uma dire-ção e é importante explicar isso. Não fazemos cria-ções coletivas. Trabalhamos em colaboração, o que me parece uma coisa diferente» (Craveiro, 2013: 31). A dimensão pluridisciplinar do trabalho da compa -nhia gravita portanto, na maioria dos trabalhos, em torno da escrita de Joana Craveiro, que congrega e sedimenta todas as áreas11. Uma escrita de palco, na sua generalidade, de um imaginário nostálgico e poéti co, mas também de uma força matricial, umbili-cal — de arrojo biográfico e que olha desabridamente para a história, para a Cidade, para as ideias e para as coisas do mundo.

4.

Para Joana Craveiro, a ideia de existir uma comuni-dade em potência, uma comunicomuni-dade que é ativada pelo espetáculo, e que depois dele é desfeita, é bastante

apelativa: «Gosto da ideia de mudar a vida de algu-mas pessoas, durante algualgu-mas horas ou alguns dias», confessa. Por seu turno, para as Comédias do Minho, a noção de comunidade faz parte integrante do seu discurso e do seu quotidiano. Num contexto de aguda precariedade da classe teatral, de erosão da noção de esfera pública e de diminuição do poder de inter-venção no domínio coletivo, e com uma crescente agnosia pela história, coletivos como as Comédias do Minho e o Teatro do Vestido, de formas radicalmente diversas, vão construindo pontes com a Cidade, pug-nando contra a corrosão da memória, do sentido de pertença e de comunidade. Na sua atividade teatral e na maneira como habitam o território, o geográfico e o afetivo, mostram-se como impenitentes formas de pugnar por construir um edifício cívico, público e democrático para o país. Indispensáveis.

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77 | CoMÉDIAS Do MINho | TEATRo Do VESTIDo NOTAS

1 Ver Ípsilon, Público de 3 de abril de 2009.

2 Mónica Tavares integrou o elenco das CdM de 2004 a 2014. 3 Ver Notícias de Coura de 1 de abril de 2008.

4 João Pedro Vaz será substituído na direção das Comédias do Minho por Magda Henriques.

5 Afirma em depoimento pessoal recolhido em fevereiro de 2017, prestado ao autor deste capítulo.

6 Uma série de animação espanhola que retrata a infância da personagem histórica Rodrigo Díaz de Vivar (El Cid Campea-dor), popular em Portugal no início da década de 1980. 7 Publicado pela primeira vez no programa do espetáculo

Skyscapes (2002) e atualizado no sítio em linha da compa-nhia [http://teatrodovestido.org/blog/].

8 Depoimento pessoal recolhido em fevereiro de 2017. 9 Companhia norte-americana, sediada em Chicago. Fundada

em 1987, dissolveu-se em 2009.

10 Joana Craveiro frequentou a Goat Island Summer School, na School of the Art Institute of Chicago (SAIC), onde foi aluna de todo o coletivo (2008); na segunda escola de verão (2009), entretanto rebatizada Abandoned Practices Institute, no mesmo local, trabalhou com Matthew Goulish, Lin Hixson Mark Jeffrey, entretanto reconfigurados como Every House Has a Door.

11 A estrutura da companhia organizava-se em torno de um trio constituído por Joana Craveiro, Tânia Guerreiro e Gonçalo Alegria, ao qual se juntava um grupo de colabo-radores recorrentes. Depois da saída de Gonçalo Alegria, em 2013, a companhia passa a ter uma estrutura de quatro membros fixos (Craveiro, Tânia Guerreiro, Rosinda Costa e Cláudia Teixeira, na produção).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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