As literaturas de Clarice Lispector
Texto
(2) 126. As literaturas de Clarice Lispector. DAS VÍCERAS À SUAVIDADE Opiniões controversas atravessam a produção literária de Clarice Lispector, escritora em parte ficcionalizada por sua própria literatura. Muitos romances da autora, aparentemente herméticos e formalmente desestruturados, podem despertar a rejeição ou uma intrigante curiosidade. As obras que mais provocam essa impressão costumam integrar-se à fase de produção de Clarice que poderíamos chamar de “literatura das entranhas”1 (ARÊAS, 1997), compreendida entre os anos de 1944 e 1964. Parece ser nesta fase que a autora tenta consolidar um estilo próprio e os seus temas preferidos2, à revelia do gosto editorial. Na obra ficcional associada à segunda fase, a “com a ponta dos dedos” (ARÊAS, 1997), flagramos um texto caracterizado por uma linguagem menos prolixa, porém, com explícitas declarações sobre sua encomenda mercadológica. É o caso, por exemplo, de A Via Crucis do Corpo (1974). Neste livro de contos, Clarice não esconde sua frustração em ter de escrever sob a condição de prazos e temática prescritos pelo editor: O poeta Álvaro Pacheco, meu Editor na Artenova, me encomendou três histórias que, disse ele, realmente aconteceram. Os fatos eu tinha, faltava a imaginação. E era assunto perigoso. Respondi-lhe que não sabia fazer história de encomenda. (...) Quero apenas avisar que não escrevo por dinheiro e sim por impulso. Vão me jogar pedras. Pouco importa. Não sou de brincadeiras, sou mulher séria. (LISPECTOR, s/d, p.09-10). As alegações da Explicação inicial do livro evidenciam insatisfação diante do cerceamento editorial sobre o fazer literário. Também os contos d’ A Via Crucis são repletos de elementos cômicos, notadamente propositais e vinculados às limitações editoriais impostas à produção da obra. O mesmo se verifica na literatura infantil de Clarice, produzida com a mesma finalidade mercadológica e até no seu conhecido romance de múltiplos títulos, A Hora da estrela (1978). Neste, o narrador Rodrigo S. M., máscara da autora, explicita uma preocupação com o aspecto comercial da obra, ao fazer uma irônica referência ao patrocínio do livro: Também esqueci de dizer que o registro que em breve vai ter que começar – pois já não agüento a pressão dos fatos – o registro que em breve vai ter que começar é escrito sob o patrocínio do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada, refrigerante esse espalhado por todos os países. Aliás foi ele quem patrocinou o último terremoto em Guatemala. (LISPECTOR, 1999, p. 23). Fase que interpõe as obras Perto do coração selvagem (1944) e A Paixão segundo G. H. (1964). Alguns deles: a personagem feminina e questões que a envolvem tais como a fertilidade, a alienação, a sistematização doméstica como um vício cotidiano e um dos aspectos da alienação, a solidão, a morte etc.. 1 2. Revista de Educação • Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009 • p. 125-130.
(3) Cristina Betioli Ribeiro. 127. O mesmo narrador que menciona a Coca-Cola como patrocinadora questionável, desculpa-se pelo trágico final da história, novamente com a queixa sutil sobre a finalidade vendável do romance: Mas não se lamentem os mortos: eles sabem o que fazem. Eu estive na terra dos mortos e depois do terror tão negro ressurgi em perdão. Sou inocente! Não me consumam! Não sou vendável! Ai de mim, todo na perdição e é como se a grande culpa fosse minha. (LISPECTOR, 1999, p. 85-86). Coincidentemente (ou não), muitos elementos cômicos também ilustram esta narrativa, a começar pela questão das treze possibilidades de título oferecidas pela autora. Sob uma linguagem que ironiza o uso excessivamente normativo da língua na ficção3 e desavisadas interrupções do narrador, o romance apresenta uma personagem nordestina que de tão imersa na miséria e alienação, não escapa ao ridículo. No entanto, os caminhos de Macabéa nesta trama clariciana ilustram, ao lado do risível, um marcante caráter social. Em relação a outras obras da autora, esse aspecto é bastante saliente neste romance.. SOCIAL, ADENTRO N’ A Hora da Estrela, Clarice Lispector mascara-se em um narrador incomodado, que se depara com dificuldades na construção da subjetividade de uma personagem inserida em condições sócio-morais diferentes das suas: Vou agora começar pelo meio dizendo que – que ela era incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim. (Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona.) (LISPECTOR, 1999, p. 24). Manifestados em freqüentes parênteses ao longo da narrativa, os incômodos do narrador – às voltas também com a afeição pela sua personagem – são com uma pobre e frágil Macabéa, tão alienada a ponto de não ter consciência da própria infelicidade, enquanto é vítima de uma aberrante situação de exclusão na metrópole carioca. Uma personagem tão pouco instruída e sem conhecimento do mundo, que mal consegue se exprimir e compreender o que se passa à sua volta. Não consegue defender-se da opressão. O seu fim, humorizado entre o trágico e o cômico, é desesperador, na medida em que a personagem morre no seu momento de maior esperança: após a promessa de um futuro promissor, revelada por uma cartomante. A Paixão segundo G.H. (1964), obra publicada catorze anos antes d’A Hora da estrela e nem um pouco cômica, também possui seu caráter social. Acreditamos que,. Revista de Educação • Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009 • p. 125-130.
(4) 128. As literaturas de Clarice Lispector. possivelmente por se tratar de uma obra “das entranhas” e estar associada mais ao gosto estilístico da autora que a finalidades mercadológicas, A Paixão segundo G.H. talvez corresponda a uma das realizações literárias mais identificáveis com Clarice Lispector, dos pontos de vista formal, temático e social. A narradora deste romance está representada pela figura de sua protagonista, G. H., que se dá a conhecer através de suas iniciais: as mesmas que identificam seus acessórios pessoais e ao mesmo tempo sugerem um questionamento de identidade. Do ponto de vista social, o que é interessante e essencialmente diferente entre G. H. e Rodrigo S. M. d’ A Hora da estrela, é a conciliação da narradora com a personagem principal. Mais do que isso, também a situação que a levará a refletir sobre a sua realidade, a organização da sociedade, a ideologia dominante e finalmente a sistematização da sua própria vida e existência. Dona de um apartamento de classe média alta, essa protagonista é desta vez uma burguesa alienada que se dá conta do abismo entre ela e sua empregada doméstica, logo que esta deixa a sua casa. Depois disso, disposta a recuperar o pleno controle de seus domínios, G. H. dirige-se ao quarto da ex-empregada Janair para limpá-lo: da “sujeira” e definitivamente da presença da serviçal. A sua maior surpresa é perceber Janair como um sujeito voluntarioso – sem a passividade de Macabéa! - capaz de exercer poder sobre o espaço que ocupava em sua casa: encontra o cômodo limpo e identifica-se com uma precária ilustração a carvão na parede. Furiosa, interpreta a atitude e o desenho da empregada como uma afronta. Mas o repentino aparecimento de uma barata, saída de dentro do armário do quarto, desencadeia na personagem uma reflexão sobre a construção de sua imagem por Janair e, assim, uma gradual conscientização da sua posição privilegiada no sistema social. Imediatamente esmagada na porta do móvel, a barata, no momento de sua aparição, simboliza a presença do desfavorecido – acuado, rasteiro, relegado à sujeira, resistente ao jugo4 – e, portanto, o duplo de Janair, que como ela habitava o quarto e até então era “invisível” aos olhos da dona da casa (OLIVEIRA, 1985). Como chave para a consciência social de G. H., o inseto será a metáfora para todo o questionamento existencial da personagem, desencadeado pela reflexão social. A preocupação maior da narradora, ao longo do livro, será o desejo panteístico da. 3 Por exemplo, com inserções inusitadas da segunda pessoa: “Mas tenho o direito de ser dolorosamente frio, e não vós. Por tudo isto é que não vos dou a vez.” (LISPECTOR, 1999, p. 13). 4 Segundo Solange Ribeiro de Oliveira, a idéia de “resistência”, biologicamente inerente à barata, não aparece gratuitamente no romance. Representaria a posição secular de sobrevivência do oprimido em relação ao opressor.. Revista de Educação • Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009 • p. 125-130.
(5) Cristina Betioli Ribeiro. 129. imanência5, sem perder de vista o principal símbolo da exclusão social, representado pela barata. Durante esse processo, G. H. toca em todos os persistentes temas ficcionais de Clarice, por meio de uma linguagem e vocabulário inovadores, que desenvolvem um sistema semântico original, resignificando palavras, pontuações e retomando, a cada capítulo, as frases finais dos capítulos precedentes, com a patente manutenção de um fio reflexivo. Esta linguagem peculiar mostra-se funcional, sobretudo no interior da lógica de desvendamento da realidade, que procura abandonar a busca da transcendência e reinterpretar o que é imanente. Ao perceber que a revelação do mistério da existência pode estar no que é intrínseco à realidade palpável, G. H. elege a barata também como metáfora desta revelação. Para experimentá-la, decide pôr na boca a insossa “massa branca” expelida pelo inseto, que a essa altura, do mesmo modo que Janair, ganhara estatuto de rainha. A emersão de um novo ser em G. H., após esta experiência, manifesta-se numa simbólica renúncia à ideologia dominante, a partir do momento em que a personagem se iguala à barata e, simbolicamente, à empregada (OLIVEIRA, 1985). Notamos que A Paixão segundo G. H. tem o mérito de conciliar os tão perseguidos questionamentos existenciais de Clarice com as tensões sociais tão presentes na literatura brasileira do período. Mais do que isso, pensamos que é possivelmente neste romance que tais realizações se dão de maneira apologética, ao mais característico modo clariciano.. REFERÊNCIAS ARÊAS, Vilma. Com a ponta dos dedos. Revista Anthropos, Madrid, dez. 1997. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. ______. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. ______. A via crucis do corpo. São Cristóvão: Artenova, s/d. OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. A barata e a crisálida: o romance de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: José Olympio/INL, 1985.. 5 Trata-se do processo através do qual a personagem G. H. conscientiza-se de que o conhecimento da realidade/existência não está necessariamente no que é externo ou transcendental, mas encontrável no que é imediato e intrínseco ao universo palpável.. Revista de Educação • Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009 • p. 125-130.
(6) 130. As literaturas de Clarice Lispector. Cristina Betioli Ribeiro Graduação em Letras (1998) pela UNICAMP, Mestrado (2003) e Doutorado (2008) em Teoria e História Literária pela mesma universidade. Sua área de pesquisa concentra-se em Literatura Brasileira, com ênfase em Cultura Popular, atuando principalmente com o gênero romance no século XIX. Atualmente, é professora e coordenadora do Curso de Letras da Faculdade Anhangüera de Indaiatuba (SP), leciona nos cursos de graduação da FACAMP (Campinas-SP) e atua como docente na pósgraduação da Faculdade Anhangüera de Campinas (Unidade 3) e do Centro Universitário Padre Anchieta (Jundiaí-SP).. Revista de Educação • Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009 • p. 125-130.
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