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As literaturas de Clarice Lispector

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Academic year: 2021

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(1)Revista de Educação. AS LITERATURAS DE CLARICE LISPECTOR. Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009. Cristina Betioli Ribeiro Faculdade Anhanguera de Indaiatuba cristina.ribeiro@unianhanguera.edu.br. RESUMO O presente artigo apresenta uma leitura particular de duas facetas da prosa de ficção da escritora Clarice Lispector, caracterizadas por dois momentos de sua produção literária que admitem, ora uma escrita difícil de penetrar, hermética e filosófica, ora a leveza, o lirismo e o humor. As hipóteses de interpretação destas duas facetas baseiam-se, aqui, nas obras A Hora da Estrela, A Via Crucis do Corpo e A Paixão segundo G. H. Palavras-Chave: Clarice Lispector; prosa de ficção; literatura.. ABSTRACT This article presents a close reading about the two faces of Clarice Lispector’s literature. Her fictional production can be parted in two different moments: a hermetic and philosophic fraction and another one, more delicate, lyric and good-humoured. To interpret these two phases of Lispector literature, we are based in her following writings: A Hora da estrela, A Via Crucis do Corpo e A Paixão Segundo G. H. Keywords: Clarice Lispector; fiction; brazilian literature.. Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Resenha Recebido em: 07/06/2009 Avaliado em: 09/09/2009 Publicação: 15 de outubro de 2009. 125.

(2) 126. As literaturas de Clarice Lispector. DAS VÍCERAS À SUAVIDADE Opiniões controversas atravessam a produção literária de Clarice Lispector, escritora em parte ficcionalizada por sua própria literatura. Muitos romances da autora, aparentemente herméticos e formalmente desestruturados, podem despertar a rejeição ou uma intrigante curiosidade. As obras que mais provocam essa impressão costumam integrar-se à fase de produção de Clarice que poderíamos chamar de “literatura das entranhas”1 (ARÊAS, 1997), compreendida entre os anos de 1944 e 1964. Parece ser nesta fase que a autora tenta consolidar um estilo próprio e os seus temas preferidos2, à revelia do gosto editorial. Na obra ficcional associada à segunda fase, a “com a ponta dos dedos” (ARÊAS, 1997), flagramos um texto caracterizado por uma linguagem menos prolixa, porém, com explícitas declarações sobre sua encomenda mercadológica. É o caso, por exemplo, de A Via Crucis do Corpo (1974). Neste livro de contos, Clarice não esconde sua frustração em ter de escrever sob a condição de prazos e temática prescritos pelo editor: O poeta Álvaro Pacheco, meu Editor na Artenova, me encomendou três histórias que, disse ele, realmente aconteceram. Os fatos eu tinha, faltava a imaginação. E era assunto perigoso. Respondi-lhe que não sabia fazer história de encomenda. (...) Quero apenas avisar que não escrevo por dinheiro e sim por impulso. Vão me jogar pedras. Pouco importa. Não sou de brincadeiras, sou mulher séria. (LISPECTOR, s/d, p.09-10). As alegações da Explicação inicial do livro evidenciam insatisfação diante do cerceamento editorial sobre o fazer literário. Também os contos d’ A Via Crucis são repletos de elementos cômicos, notadamente propositais e vinculados às limitações editoriais impostas à produção da obra. O mesmo se verifica na literatura infantil de Clarice, produzida com a mesma finalidade mercadológica e até no seu conhecido romance de múltiplos títulos, A Hora da estrela (1978). Neste, o narrador Rodrigo S. M., máscara da autora, explicita uma preocupação com o aspecto comercial da obra, ao fazer uma irônica referência ao patrocínio do livro: Também esqueci de dizer que o registro que em breve vai ter que começar – pois já não agüento a pressão dos fatos – o registro que em breve vai ter que começar é escrito sob o patrocínio do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada, refrigerante esse espalhado por todos os países. Aliás foi ele quem patrocinou o último terremoto em Guatemala. (LISPECTOR, 1999, p. 23). Fase que interpõe as obras Perto do coração selvagem (1944) e A Paixão segundo G. H. (1964). Alguns deles: a personagem feminina e questões que a envolvem tais como a fertilidade, a alienação, a sistematização doméstica como um vício cotidiano e um dos aspectos da alienação, a solidão, a morte etc.. 1 2. Revista de Educação • Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009 • p. 125-130.

(3) Cristina Betioli Ribeiro. 127. O mesmo narrador que menciona a Coca-Cola como patrocinadora questionável, desculpa-se pelo trágico final da história, novamente com a queixa sutil sobre a finalidade vendável do romance: Mas não se lamentem os mortos: eles sabem o que fazem. Eu estive na terra dos mortos e depois do terror tão negro ressurgi em perdão. Sou inocente! Não me consumam! Não sou vendável! Ai de mim, todo na perdição e é como se a grande culpa fosse minha. (LISPECTOR, 1999, p. 85-86). Coincidentemente (ou não), muitos elementos cômicos também ilustram esta narrativa, a começar pela questão das treze possibilidades de título oferecidas pela autora. Sob uma linguagem que ironiza o uso excessivamente normativo da língua na ficção3 e desavisadas interrupções do narrador, o romance apresenta uma personagem nordestina que de tão imersa na miséria e alienação, não escapa ao ridículo. No entanto, os caminhos de Macabéa nesta trama clariciana ilustram, ao lado do risível, um marcante caráter social. Em relação a outras obras da autora, esse aspecto é bastante saliente neste romance.. SOCIAL, ADENTRO N’ A Hora da Estrela, Clarice Lispector mascara-se em um narrador incomodado, que se depara com dificuldades na construção da subjetividade de uma personagem inserida em condições sócio-morais diferentes das suas: Vou agora começar pelo meio dizendo que – que ela era incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim. (Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona.) (LISPECTOR, 1999, p. 24). Manifestados em freqüentes parênteses ao longo da narrativa, os incômodos do narrador – às voltas também com a afeição pela sua personagem – são com uma pobre e frágil Macabéa, tão alienada a ponto de não ter consciência da própria infelicidade, enquanto é vítima de uma aberrante situação de exclusão na metrópole carioca. Uma personagem tão pouco instruída e sem conhecimento do mundo, que mal consegue se exprimir e compreender o que se passa à sua volta. Não consegue defender-se da opressão. O seu fim, humorizado entre o trágico e o cômico, é desesperador, na medida em que a personagem morre no seu momento de maior esperança: após a promessa de um futuro promissor, revelada por uma cartomante. A Paixão segundo G.H. (1964), obra publicada catorze anos antes d’A Hora da estrela e nem um pouco cômica, também possui seu caráter social. Acreditamos que,. Revista de Educação • Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009 • p. 125-130.

(4) 128. As literaturas de Clarice Lispector. possivelmente por se tratar de uma obra “das entranhas” e estar associada mais ao gosto estilístico da autora que a finalidades mercadológicas, A Paixão segundo G.H. talvez corresponda a uma das realizações literárias mais identificáveis com Clarice Lispector, dos pontos de vista formal, temático e social. A narradora deste romance está representada pela figura de sua protagonista, G. H., que se dá a conhecer através de suas iniciais: as mesmas que identificam seus acessórios pessoais e ao mesmo tempo sugerem um questionamento de identidade. Do ponto de vista social, o que é interessante e essencialmente diferente entre G. H. e Rodrigo S. M. d’ A Hora da estrela, é a conciliação da narradora com a personagem principal. Mais do que isso, também a situação que a levará a refletir sobre a sua realidade, a organização da sociedade, a ideologia dominante e finalmente a sistematização da sua própria vida e existência. Dona de um apartamento de classe média alta, essa protagonista é desta vez uma burguesa alienada que se dá conta do abismo entre ela e sua empregada doméstica, logo que esta deixa a sua casa. Depois disso, disposta a recuperar o pleno controle de seus domínios, G. H. dirige-se ao quarto da ex-empregada Janair para limpá-lo: da “sujeira” e definitivamente da presença da serviçal. A sua maior surpresa é perceber Janair como um sujeito voluntarioso – sem a passividade de Macabéa! - capaz de exercer poder sobre o espaço que ocupava em sua casa: encontra o cômodo limpo e identifica-se com uma precária ilustração a carvão na parede. Furiosa, interpreta a atitude e o desenho da empregada como uma afronta. Mas o repentino aparecimento de uma barata, saída de dentro do armário do quarto, desencadeia na personagem uma reflexão sobre a construção de sua imagem por Janair e, assim, uma gradual conscientização da sua posição privilegiada no sistema social. Imediatamente esmagada na porta do móvel, a barata, no momento de sua aparição, simboliza a presença do desfavorecido – acuado, rasteiro, relegado à sujeira, resistente ao jugo4 – e, portanto, o duplo de Janair, que como ela habitava o quarto e até então era “invisível” aos olhos da dona da casa (OLIVEIRA, 1985). Como chave para a consciência social de G. H., o inseto será a metáfora para todo o questionamento existencial da personagem, desencadeado pela reflexão social. A preocupação maior da narradora, ao longo do livro, será o desejo panteístico da. 3 Por exemplo, com inserções inusitadas da segunda pessoa: “Mas tenho o direito de ser dolorosamente frio, e não vós. Por tudo isto é que não vos dou a vez.” (LISPECTOR, 1999, p. 13). 4 Segundo Solange Ribeiro de Oliveira, a idéia de “resistência”, biologicamente inerente à barata, não aparece gratuitamente no romance. Representaria a posição secular de sobrevivência do oprimido em relação ao opressor.. Revista de Educação • Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009 • p. 125-130.

(5) Cristina Betioli Ribeiro. 129. imanência5, sem perder de vista o principal símbolo da exclusão social, representado pela barata. Durante esse processo, G. H. toca em todos os persistentes temas ficcionais de Clarice, por meio de uma linguagem e vocabulário inovadores, que desenvolvem um sistema semântico original, resignificando palavras, pontuações e retomando, a cada capítulo, as frases finais dos capítulos precedentes, com a patente manutenção de um fio reflexivo. Esta linguagem peculiar mostra-se funcional, sobretudo no interior da lógica de desvendamento da realidade, que procura abandonar a busca da transcendência e reinterpretar o que é imanente. Ao perceber que a revelação do mistério da existência pode estar no que é intrínseco à realidade palpável, G. H. elege a barata também como metáfora desta revelação. Para experimentá-la, decide pôr na boca a insossa “massa branca” expelida pelo inseto, que a essa altura, do mesmo modo que Janair, ganhara estatuto de rainha. A emersão de um novo ser em G. H., após esta experiência, manifesta-se numa simbólica renúncia à ideologia dominante, a partir do momento em que a personagem se iguala à barata e, simbolicamente, à empregada (OLIVEIRA, 1985). Notamos que A Paixão segundo G. H. tem o mérito de conciliar os tão perseguidos questionamentos existenciais de Clarice com as tensões sociais tão presentes na literatura brasileira do período. Mais do que isso, pensamos que é possivelmente neste romance que tais realizações se dão de maneira apologética, ao mais característico modo clariciano.. REFERÊNCIAS ARÊAS, Vilma. Com a ponta dos dedos. Revista Anthropos, Madrid, dez. 1997. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. ______. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. ______. A via crucis do corpo. São Cristóvão: Artenova, s/d. OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. A barata e a crisálida: o romance de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: José Olympio/INL, 1985.. 5 Trata-se do processo através do qual a personagem G. H. conscientiza-se de que o conhecimento da realidade/existência não está necessariamente no que é externo ou transcendental, mas encontrável no que é imediato e intrínseco ao universo palpável.. Revista de Educação • Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009 • p. 125-130.

(6) 130. As literaturas de Clarice Lispector. Cristina Betioli Ribeiro Graduação em Letras (1998) pela UNICAMP, Mestrado (2003) e Doutorado (2008) em Teoria e História Literária pela mesma universidade. Sua área de pesquisa concentra-se em Literatura Brasileira, com ênfase em Cultura Popular, atuando principalmente com o gênero romance no século XIX. Atualmente, é professora e coordenadora do Curso de Letras da Faculdade Anhangüera de Indaiatuba (SP), leciona nos cursos de graduação da FACAMP (Campinas-SP) e atua como docente na pósgraduação da Faculdade Anhangüera de Campinas (Unidade 3) e do Centro Universitário Padre Anchieta (Jundiaí-SP).. Revista de Educação • Vol. XII, Nº. 13, Ano 2009 • p. 125-130.

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