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Uma análise das protagonistas de A vida invisível de Euridice Gusmão e Purple Hibiscus sob as lentes do dialogismo e da crítica feminista

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Academic year: 2021

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CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

NAIDE SILVA DIAS

UMA ANÁLISE DAS PROTAGONISTAS DE A VIDA INVISÍVEL DE EURIDICE GUSMÃO E PURPLE HIBISCUS SOB AS LENTES DO DIALOGISMO E DA

CRÍTICA FEMINISTA

NATAL-RN 2020

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UMA ANÁLISE DAS PROTAGONISTAS DE A VIDA INVISÍVEL DE EURIDICE GUSMÃO E PURPLE HIBISCUS SOB AS LENTES DO DIALOGISMO E DA

CRÍTICA FEMINISTA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestra em Estudos da Linguagem na Área de concentração em Estudos em Literatura Comparada

Orientador: Prof. Dr. Orison Marden Bandeira de Melo Júnior.

NATAL-RN 2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Dias, Naide Silva.

Uma análise das protagonistas de A vida invisível de Euridice Gusmão e Purple Hibiscus sob as lentes do dialogismo e da crítica feminista / Naide Silva Dias. - Natal, 2020.

108f.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas Letras e Arte, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientador: Prof. Dr. Orison Marden Bandeira de Melo Junior.

1. Dialogismo - Dissertação. 2. Literatura comparada - Dissertação. 3. Crítica feminista - Dissertação. 4. A vida invisível de Eurídice Gusmão - Dissertação. 5. Purple Hibiscus - Dissertação. I. Melo Júnior, Orison Marden Bandeira de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091 Elaborado por Heverton Thiago luiz da Silva - CRB-15/710

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EURÍDICE EM A VIDA INVISÍVEL DE EURIDICE GUSMÃO E KAMBILI EM PURPLE HIBISCUS: UMA ANÁLISE DAS PROTAGONISTAS SOB AS LENTES DO

DIALOGISMO E DA CRÍTICA FEMINISTA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestra em Estudos da Linguagem na Área de concentração em Estudos em Literatura Comparada.

Natal, ___ de __________ de _____.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Orison Marden Bandeira de Melo Jr.

Presidente — UFRN

________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves

Examinadora interna — UFRN

________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ilane Ferreira Cavalcante

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Ao meu Deus que me permitiu chegar até aqui “Pois nele vivo, nele me movo, nele eu existo” (ATOS 17:28). Sem ele nada seria.

A minha família, cujo amor não sei explicar, gratidão! Aos meus pais Francisco Cesário Dias e Maria Lúcia Silva Dias pelo amor e compreensão incondicional e todos os esforços de uma vida que me ajudaram e continuam ajudando na construção da pessoa que sou. Meu amor a vocês por toda minha vida. Minha preciosa irmã, Nara Lidiana Silva Dias Carlos, que é uma das fortes razões de nunca me fazer desistir. Amo tu! E ao meu cunhado Richelly Carlos pelo apoio de sempre.

Ao meu orientador, Orison Marden Bandeira de Melo Junior por ter sido tão presente na minha vida acadêmica. Wow! Jamais saberei agradecê-lo pela compreensão, pelas muitas horas de orientação e dedicação incansável (mesmo quando eu já estava cansada), pelos livros emprestados, pelo tempo gasto me ajudando a pesquisar, por sempre estar presente quando precisei de um direcionamento acadêmico. Você fez história na minha vida acadêmica!

E por falar em história, às professoras Maria da Penha Casado Alves, por quem nutro um respeito e um afeto criado ao longo da minha formação acadêmica, por tantos abraços, incentivos e aprendizados que levarei para sempre comigo e a Professora Ilane Ferreira Cavalcante, que, de pronto aceitou ao meu convite, embarcou comigo nesse caminho de construção sem hesitar. Você tem todo meu respeito e admiração; seus conselhos me fizeram enxergar para mais além.

Aos demais professores do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem que contribuíram no meu processo de formação enquanto mestranda, em especial aos que me acompanham desde a graduação, meu muito obrigada a vocês!

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, a que damos os nossos sinceros agradecimentos.

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Perguntas e respostas supõem uma distância recíproca. Se a resposta não gera uma nova pergunta, separa-se do diálogo e entra no conhecimento sistêmico, no fundo impessoal.

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contribuição para essa área do conhecimento e respaldado inúmeras pesquisas no âmbito acadêmico. Nessa perspectiva, essa análise acrescenta aos estudos comparatistas a abordagem dialógica dos estudos literários, e busca de que maneira o heterodiscurso em relação à mulher nos moldes de uma sociedade patriarcal/machista é representado nas obras A vida invisível de

Eurídice Gusmão (2016) da escritora brasileira Martha Batalha e Purple hibiscus (2003) da

autora nigeriana Chimamanda Adichie, corpus desta pesquisa. As obras, que são analisadas com base na teoria do dialogismo do Círculo bakhtiniano (Bakhtin, Volóchinov e Medviédev) em diálogo com a crítica feminista, refletem e refratam a posição da mulher na contemporaneidade, um tema bastante consistente e significativo nas sociedades dos dias atuais, tendo em vista que as narradoras dos romances são personagens centrais que estão postas em posições de inferioridade. Metodologicamente, esta pesquisa bibliográfica segue as orientações do Círculo de que a análise parte do texto, indo ao contexto do pequeno tempo e do grande tempo. Os resultados desse estudo comparativista/dialógico entre os romances trouxeram reflexões não apenas sobre o posicionamento das mulheres representadas nos romances e vivida no mundo da vida de seus contextos de produção, mas também sobre o diálogo entre o dialogismo e a crítica feminista e a sua contribuição para a análise literária.

Palavras-chave: Literatura comparada. Dialogismo. Crítica feminista. A vida invisível de

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and grounded countless academic research studies over the years. In this regard, this research adds a new component to comparative studies, viz., the dialogic approach to literary studies, and aims to find out at what extent the heterodiscourse related to women in a patriarchal/male chauvinist society is represented in the novels A vida invisível de Eurídice Gusmão (2016), written by Brazilian author Martha Batalha, and Purple hibiscus (2003), written by Nigerian author Chimamanda Adichie, the corpus of this research. These works, which are analyzed from the perspective of the theory of dialogism of the Bakhtin Circle (Bakhtin, Voloshinov, Medvedev) in dialogue with feminist criticism, reflect and refract the position of women in contemporary societies as the main characters of the novels are placed in positions of inferiority. Methodologically, this bibliographical research follows the Circle’s orientation that the analysis of a text starts from the text and reaches the context of small time and great time. The results of this comparative/dialogical study between the novels prompted reflections not only on the position of the women represented in the novels and lived in the world of life of the novel’s context of production, but also on the dialogue between dialogism and feminist criticism and its contribution to literary analysis.

Keywords: Comparative literature. Dialogism. Feminist criticism. A vida invisível de Eurídice

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1 INTRODUÇÃO ... 10

2 DIALOGISMO E CRÍTICA FEMINISTA EM DIÁLOGO ... 13

2.1 Dialogismo e outros conceitos ... 13

2.2 Feminismos ... 32

2.3 Aproximações entre o dialogismo e a crítica feminista em suas diferentes vertentes... ... 45

3 EURÍDICE E KAMBILI: UMA CONVERSA CONTINENTALMENTE DIALOGIZADA ... 52

3.1 A representação da in(visibilidade) ... 54

3.1.1 O papel da mulher e o patriarcado ... 54

3.1.2 O posicionamento materno diante do patriarcado ... 62

3.1.3 O posicionamento das mulheres diante do patriarcado ... 67

3.2 Cotejo dialógico ... 91

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 102

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1 INTRODUÇÃO

A literatura comparada sempre foi um tema frequente de pesquisas de teóricos, críticos e pesquisadores da área da literatura no mundo todo desde seus primórdios quando, em 1962, passou a ser chamada de literatura comparada, conforme explica Nitrini (1994). Em seu artigo, Transmissão e relação: pensando um sistema para os muitos métodos da Literatura Comparada, Ferreira de Almeida (2012, p.15) nos diz que “O campo da Literatura Comparada se funda na ideia de que o texto literário está conexo com outros textos, sejam eles anteriores, contemporâneos ou posteriores àquele sujeito que escreve”.

Sabe-se também que não é de hoje que se fala sobre os conceitos de literatura comparada. Nitrini, em seu livro, Literatura comparada: história, teoria e crítica (2000), dedica um capítulo consistente sobre os conceitos que fundamentam o estudo da literatura comparada, bem como seu percurso em sentido geral na história. Da mesma maneira, Ferreira de Almeida (2012) sistematiza os métodos correntes que a literatura comparada faz uso em suas investigações.

Quanto à literatura escrita por mulheres, é sabido que ainda há muito a ser estudado, pesquisado e lido, tendo em vista que ela é vasta e, se for pensada ao longo dos tempos, é uma soma considerável de conhecimento negligenciado. No entanto, é sabido que a academia tem dispensado atenção à produção literária feita por mulheres há mais de cinquenta anos, o que não torna essa corrente de estudos tão recente, mas que, no entanto, tem ainda um vasto caminho a ser trilhado cheio de descobertas relevantes, não apenas para literatura, mas também para a sociedade em diversas esferas.

O fato dessa temática continuar em crescimento exponencialmente ascendente em sua relevância faz com que, consequentemente, a voz da mulher seja ouvida, pois sabemos que o movimento social criado pelas mulheres se deu no século 20 e a entrada da teoria feminista na academia brasileira vem desde os anos 1980 com a criação de núcleos de estudos da mulher em universidades públicas, como, por exemplo, o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher, criado em 1985 na Universidade de São Paulo (USP).1 Ademais, a literatura feita por mulheres está entre os assuntos mais estudados na atualidade acadêmica, mostrando, dessa maneira, sua importância para a literatura nas diversas áreas do saber, sejam eles históricos, sociais, e/ou para o ensino. Em qualquer área que lhe seja pertinente o estudo, a representatividade da mulher na literatura está presente e tem muito a dizer.

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O corpus da análise são as obras A vida invisível de Eurídice Gusmão da escritora brasileira Martha Batalha, que estreou no cenário literário com o referido título no ano de 2016 em uma feira de livros na Alemanha, após ter sido rejeitada em seu país de origem, e

Purple Hibiscus, da escritora nigeriana Chimamanda Adichie que, de igual modo, estreou no

cenário literário em 2003, com o título mencionado, nos Estados Unidos. É interessante notar que ambas as escritoras tiveram seu primeiro livro lançado fora de seu país de origem.

O critério de seleção das obras se deu pelo fato de serem ambas escritas por autoras coetâneas, que tratam da mesma temática, isto é, obras de aspecto feminista, de países distintos, o que certamente possibilita a percepção de como a temática feminista é retratada em diferentes culturas e épocas.

Fazendo levantamento sobre os estudos realizados sobre as duas obras, percebeu-se que existe um número considerável de análise dos livros em questão, especialmente no tangente à crítica feminista e à literatura contemporânea feita por mulheres. Como exemplo, encontram-se os estudos Sobre travessias pós-trama de Giselle Leite Tavares Veiga (2018), O

olhar sobre o invisível de Juliana Recalde Gimenez (2017), As novas vozes da literatura brasileira contemporânea de Geysiane Aparecida de Andrade (2018), relacionados a A vida invisível de Eurídice Gusmão ou que cita o livro em certo ponto da análise. Já Antes do domingo de ramos: o declínio familiar em Hibisco Roxo de Chimamanda Ngozi Adichie de

Mariana Antonia Santiago Carvalho e Stelio Torquato Lima (2018), Por uma modernidade

própria: o transcultural nas obras Hibisco Roxo de Chimamanda Ngozi Adichie, e O sétimo

juramento, de Paulina Chiziane de Rafaela Cristina Alves Teotônio (2013), O sétimo

juramento de Paulina Chiziane e Hibisco Roxo de Chimamando Ngozi Adichie: um olhar

sobre a constituição dos personagens de Juliana Sant’Ana Campos (2018) são trabalhos referentes a Purple Hibiscus. No entanto, ambas as obras não foram postas em situação de comparação/confronto, nem tão pouco abordadas tomando por base teórica a perspectiva dialógica bakhtiniana e da crítica feminista. Dessa forma, o fato de essas duas obras ainda não terem sido colocadas em diálogo/confronto com base nessas perspectivas teórico-críticas até o presente momento abre essa lacuna, possibilitando um trabalho de cunho comparatista/dialógico/analítico entre as obras.

Diante disso, esse trabalho será norteado pelas seguintes perguntas de pesquisa: Em que medida a abordagem dialógica do Círculo dialoga com a crítica feminista e seus

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diferentes feminismos? Em que medida esse possível diálogo contribui para a análise das obras A vida invisível de Eurídice Gusmão e Purple Hibiscus, colocadas em confroencontro?2 O objetivo dessa pesquisa é buscar um diálogo entre a teoria dialógica e a crítica feminista. Ademais, com base nesse diálogo, busca perceber como essa aproximação teórica permite uma análise enriquecida de obras literárias que trazem, como protagonistas, personagens mulheres.

Dessa maneira, essa análise se justifica nas três esferas: pessoal, social e científica. Na esfera pessoal, a escolha do corpus da pesquisa e da perspectiva teórico-critica resultou do fato de essa pesquisadora querer estabelecer um diálogo entre duas perspectivas teóricas importantes para a área da literatura atreladas às duas obras. Já no âmbito social, o dialogismo dá o suporte para uma análise material e sociológica, e a análise por meio da crítica feminista é uma temática que necessita de estudos contínuos na academia, devido à sua importância para a sociedade. E na esfera científica, o fato de as obras A vida invisível de Eurídice

Gusmão e Purple Hibiscus ainda não terem uma análise comparativa entre elas na perspectiva

comparatista/dialógico/analítica.

A fim de responder à pergunta de pesquisa e alcançar os objetivos propostos, esta pesquisa será dividida nas seguintes seções: na segunda, serão apresentados alguns conceitos do dialogismo do círculo de Bakhtin pertinentes à pesquisa, bem como aqueles da crítica feminista que se fizeram pertinentes para, de igual modo, respaldar a análise proposta nesse trabalho. Em seguida, serão apresentados alguns estudos que trazem o diálogo entre o dialogismo e a Crítica feminista, buscando contribuições para a análise a ser feita nessa fronteira teórica.

Na terceira, utilizando as mesmas categorias de análise para as duas obras, serão analisados, em confroencontro, os romances A vida invisível de Eurídice Gusmão e Purple

Hibiscus, para, por fim, estabelecer um Cotejo dialógico em que excertos dos dois livros serão

colocados sob lentes dialógicas.

Por fim, nas considerações finais, buscaremos responder às perguntas de pesquisa, bem como apontar as contribuições desta pesquisa e os caminhos que ela pode percorrer nas futuras análises das obras, e de igual modo, para o estudo da literatura em geral.

2 A noção de “confroencontro” e/ou cojetamento será mais detalhada na seção Cotejamento dialógico. No entanto, grosso modo, pode-se afirmar que cotejar ou “confroencontrar” é mais do que apenas comparar, pois é colocar as obras em diálogo, o que indica responder uma à outra, tomar posição de uma em relação à outra, colocá-las em tensão. Para maiores informações checar a seção 3.2 Cotejo dialógico.

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2 DIALOGISMO E CRÍTICA FEMINISTA EM DIÁLOGO

Nesta seção serão discutidas as abordagens teóricas que irão orientar a análise deste trabalho. A primeira abordagem teórica que será discutida é o dialogismo, que parte da perspectiva do Círculo bakhtiniano e de demais conceitos que, juntos, abrangem o conceito de dialogismo. A segunda abordagem a ser discutida serão os diferentes conceitos da Crítica feminista e suas diferentes vertentes e ênfases, desencadeando diferentes feminismos. Por fim, serão apresentadas diferentes pesquisas embasadas no diálogo entre dialogismo e feminismo para que se possam trazer reflexões sobre essa aproximação teórica, sabendo que há, como afirma Bakhtin (2017b), enriquecimento mútuo no diálogo fronteiriço, não apenas entre culturas, mas também entre saberes.

2.1 Dialogismo e outros conceitos

Segundo Faraco (2009), o Círculo de Bakhtin foi um grupo de estudiosos nascidos na Rússia por volta dos anos 90 do século dezenove e esteve na ativa entre os anos 1919 a 1929. Eram estudiosos de diversas áreas, tais como música, direito, biologia, filosofia, literatura, linguística, e apesar dessa multidisciplinaridade do grupo, eles tinham um interesse principal e comum entre eles que era o amor pela linguagem.

Entre os participantes do Círculo, pode-se tomar conhecimento de alguns deles, como o filósofo Kagan, o biólogo Kanaev, a pianista Yudina, o professor de literatura Pumpianski, o linguista Volóchinov, o professor multitarefas Medviédev e o professor de literatura e filósofo Bakhtin, sendo esses três últimos de maior destaque devido ao legado escrito que deixaram para a posteridade, a exemplo de Problemas da poética de Dostoiévski (2010),

Marxismo e filosofia da linguagem (2017) e O método formal nos estudos literários (2012), e

um deles de quem o grupo herdou o nome.

O Círculo de Bakhtin deixou um legado consistente, vasto de conceitos que estão ligados entre si, que se completam e se complementam. Estes conceitos permeiam toda a sua obra de maneira que se torna quase impossível escolher apenas um e não relacioná-lo com outros, ou até mesmo a concentração de tal assunto em apenas um livro. É preciso minimamente conhecer a obra para saber que um determinado conceito pode ser formado e entendido com a leitura continuada dos livros porque são interligados, formando assim, um grande complexo coerente da obra toda.

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No entanto, existem conceitos que saltam à vista pela grande importância que exercem nessa análise, tornando-se, portanto, chave para o desenvolvimento desta pesquisa. Partindo do pressuposto, já conhecido, de que os conceitos no Círculo andam vinculados e se encontram dispostos em quase toda obra, seria irresponsável pensar o dialogismo sem que sejam discutidos os elementos que o compõem, assim como também não pensar na produção do Círculo bakhtiniano. De antemão, deixamos claro que esta pesquisa não tem a pretensão de tratar o conceito em sua totalidade, de maneira acabada, porque seria necessário uma pesquisa analítica que se voltasse completamente para ele, o que demandaria um estudo único e exclusivo sobre o conceito.

Para entender melhor a proposta de Bakhtin e do Círculo, é preciso saber que, para eles, a língua não tem apenas um papel linguístico preso a normas e estudos formais, mas, para além desse entendimento, “[...] daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da linguística” (BAKHTIN, 2010, p. 207); ou ainda: “língua ideologicamente preenchida, [...] enquanto cosmovisão e até como uma opinião concreta que assegura um maximum de compreensão mútua em todos os campos da vida ideológica” (BAKHTIN, 2015, p.40, grifo do autor).

Apesar da afirmação supracitada, é importante saber que ele reconhece o valor que determinados estudos linguísticos trouxeram para sua teoria, pois “[...] são justamente esses aspectos, abstraídos pela linguística, os que têm importância primordial para os nossos fins” (BAKHTIN, 2010, p. 207). Essa análise linguística tem uma importância substancial, como diz o próprio Bakhtin; contudo, seu foco é na língua concreta, importando sua análise no meio vivo, na vida.

Não é fácil encontrar conceitos já acabados na obra do Círculo, mas o conceito de discurso está presente no livro Problemas da Poética de Dostoiévski, no capítulo específico para o discurso. Bakhtin conceitua o discurso da seguinte maneira, “[...] porque temos em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva” (BAKHTIN, 2010, p.207; grifo do autor). Ou ainda, mais adiante, quando está discutindo a impossibilidade de separar as relações dialógicas do campo do discurso, ele afirma:

Assim, as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem (BAKHTIN, 2010, p. 209; grifos nossos).

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Logo, pode-se entender que, ao se referir ao extralinguístico, isto é, à língua em uso, ele está se referindo ao discurso. Bakhtin também se refere ao discurso como sendo enunciado, com a continuação de sua fala sobre as relações dialógicas, ele diz:

Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto-semânticas devem, como já dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso ou seja, enunciado, e ganhar

autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa (BAKHTIN,

2010, p. 210; grifos nossos).

Nesses trechos, Bakhtin aponta aspectos relevantes na conceituação de discurso que acontece na concretude da língua viva, ou seja, em seu uso, a partir das relações intra- e extralinguísticas; assim, as relações sintático-semânticas e as inter-relações sociais que constituem o discurso se ligam. Dessa forma, ele se constitui a partir do enunciado, e isto pressupõe a existência de um enunciador/autor que assume uma posição axiológica, que, por sua vez, é estabelecido por sua inserção em uma situação social cujo discurso está permeado por valores sociais e subjetivos advindos de sua vivência enquanto ser social, porém único e capaz de refletir e refratar esses valores (ideologias) em seu discurso.

Ou ainda, quando em Os gêneros do discurso, Bakhtin afirma que o discurso está fundido em enunciado e que o enunciado acontece na vida, retomando a ideia de que o(a) discurso/língua/enunciado é vivo(a): “O discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir” (BAKHTIN, 2016a, p.28).

A existência do discurso está sempre ligada ao enunciado para que ele esteja vivo, pois o enunciado está presente na vida do sujeito, em suas escolhas, em seu modo de pensar, de agir porque o enunciado tem sua origem no meio social. É preciso estar em sociedade para que o enunciado tenha vida, pois é em/da sociedade que nascem as ideologias, que, segundo Volóchinov (2019), são os reflexos e as refrações das atividades sociais, expressas por meio de signos verbais ou não. É, por essa razão, que não existe neutralidade nas atividades do ser, pois todo e qualquer discurso/enunciado implica uma atitude pensada, valorada e refratada pelo sujeito.

Sabendo que o discurso/linguagem, que é próprio/a da atividade humana, é materializado/a em forma de enunciado que pode vir na forma escrita, oral e também corporalmente expressiva, percebemos que, para o Círculo, não faz sentido separar discurso/língua/enunciado da vida e essa afirmativa fica clara na citação seguinte: “Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. [...] O emprego da

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língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana” (BAKHTIN, 2016a, p.11).

Faraco, em Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin, reafirma e explica bem essa noção quando diz que “qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no interior de uma das áreas da atividade intelectual humana)” (FARACO, 2009, p.47).

A partir daí, é possível constatar que o discurso nasce na vida, i.e., em uma situação extraverbal, e os seus fatores linguísticos, entoação/tom valorativo provêm dessas situações também. Logo essa constatação nos leva a perceber que o enunciado se constitui na interação verbal, nos enunciados que o antecederam e nos que o sucedem, como menciona Bakhtin:

Não pode haver enunciado isolado. Ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem. Nenhum enunciado pode ser o primeiro ou o último. Ele é apenas o elo na cadeia e fora dessa cadeia não pode ser estudado (BAKHTIN, 2017c, p. 26).

E isto confere ao enunciado um caráter dialógico, porque ele, o enunciado, está sempre respondendo a outro enunciado, em acordo ou não, e até mesmo complementando-o. Então, “essas relações (dialógicas) se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico” (BAKHTIN, 2010, p.209).

De acordo com Casado Alves (2016), o enunciado é comunicação discursiva; de fato, é de caráter social e, por consequência, também é ideológico.

Dessa forma, o enunciado, sob a perspectiva bakhtiniana, constitui-se como a unidade da comunicação discursiva, é de caráter social e, consequentemente, de conteúdo ideológico. O centro organizador de toda enunciação, de toda expressão é o contexto social. Sendo assim, em consonância com o princípio dialógico da linguagem, todo enunciado é direcionado a um interlocutor (ouvinte, leitor, destinatário, auditório médio); é marcado por um posicionamento, por uma tomada de posição ideológica, que se materializa pela entonação expressiva/avaliação (tom amistoso, autoritário, conciliador, reacionário, sexista); e todo enunciado é um ela na cadeia de enunciados ditos e aqueles que lhe seguirão em resposta, pois não é o primeiro nem o último e, por isso, carrega e conserva ressonâncias e, ao mesmo tempo, antecipa outros (CASADO ALVES, 2016, p. 167).

O fato de o discurso/enunciado se constituir na interação verbal leva-o a ser único; ou seja, aquele enunciado, naquele momento exato, em determinada situação não irá se repetir. Por mais que ele seja pronunciado em outro momento, não será o mesmo porque a situação

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em que ele foi proferido era outra e não se repete. Como afirma Bakhtin: “mas todo enunciado (ou parte do enunciado) nenhuma oração, mesmo a de uma só palavra, jamais pode se repetir: é sempre um novo enunciado (ainda que seja uma citação)” (BAKHTIN, 2016b, p. 79).

Também se pode acentuar mais um caráter do discurso: a capacidade de refletir e refratar. Volóchinov (2017, p.91) em Marxismo e filosofia da linguagem, afirma que qualquer produto ideológico além de ser uma realidade social e natural, reflete e refrata uma realidade que se encontra fora dos seus limites, e se é ideológico tem significação social. Reflete porque o falante repete um discurso que antes dele proferir já havia sido produzido por outro falante antes dele, e refrata porque, apesar da reprodução do discurso, ele será sempre diferente, pois implica contexto diferente, entoação diferente, em meio social diferente. Ele vem axiologicamente carregado.

Todos esses discursos verbais estão correlacionados, é claro, com outros tipos de manifestação e interação por meio de signos: com a expressão facial, a gesticulação, os atos convencionais e assim por diante. Todas essas formas de interação discursiva estão estreitamente ligadas às condições da situação social concreta, e reagem com extrema sensibilidade a todas as oscilações do meio social (VOLÓCHINOV, 2017, p.107,108).

A exemplo desse processo de refletir e refratar, Volóchinov (2017) cita a palavra, que “é o fenômeno ideológico par excellence” (p.98), como indicador sensível que reflete as mudanças da existência social, e por assim dizer: “a existência não é apenas refletida no signo, mas também é refratada nele” (VOLÓCHINOV, 2017, p.112). Assim, ele afirma que o que determina essa refração são os interesses sociais que são distintos e que convergem na luta de classes.

As mudanças sociais são condicionadas aos acontecimentos sócio-históricos. De igual modo acontece com a língua, pois suas mudanças são promovidas também por forças históricas, como relata Bakhtin,

Esse conteúdo basilar está condicionado a determinados destinos sócio históricos das línguas europeias, aos destinos do discurso ideológico (inclusive do literário) e àquelas tarefas históricas especiais que o discurso ideológico resolveu em certas esferas sociais e em etapas definidas de seu desenvolvimento histórico. (BAKHTIN, 2015, p. 39)

Bakhtin (2015) ainda declara que são nesses destinos e tarefas que residem as forças que operam na língua. Nesse caso, as forças centrípetas, que convergem para a centralização e unificação de uma língua única, o sistema de normas linguísticas. Já no caso da língua viva e em desenvolvimento que atua ao lado da centralização verboideológica, existe o constante

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processo de descentralização e separação que é promovido pelas forças centrífugas. O teórico ainda afirma que o ponto de aplicação dessas duas forças é o ato enunciativo, ou seja, o enunciado/discurso, e ainda mais, que é nesse meio autêntico da enunciação que se forma o heterodiscurso social.

Partindo desse pressuposto, fica menos difícil de entender porque Bakhtin concebe a ideia de o discurso ter esse caráter dialógico. Se o discurso/enunciado de um falante está sempre voltado para a interação com o outro, ele assume, portanto, um papel dinâmico e responsivo, de maneira que, “O discurso falado vivo está voltado de modo imediato e grosseiro para a futura palavra-resposta: provoca a resposta, antecipa e constrói-se voltado para ela” (BAKHTIN, 2015, p. 52).

Nesta citação, Bakhtin se referia à natureza dialógica do discurso, à sua capacidade de responder, de antecipar, de gerar tensão entre eles, de ser dinâmico, a capacidade de ter em si, de ser em si dialógico e interagir com outros discursos, pois como ele próprio afirma, “O discurso surge no diálogo como sua réplica viva, forma-se na interação dinâmica com o discurso do outro no objeto. A concepção do seu objeto pelo discurso é dialógica” (BAKHTIN, 2015, p. 52; grifo do autor).

O discurso a que o Círculo se refere é o discurso verbal, vivo. Não obstante, o mesmo pode ser aplicado à compreensão responsiva, pois o próprio Bakhtin (2015) afirma que, no discurso vivo, a compreensão concreta é ativa. Ou seja, a compreensão e a resposta são condicionadas uma a outra. Isto é, a resposta já antecipa a interpretação do outro, a resposta do outro, que, por sua vez, já responde ao outro pensando também no posicionamento dele.

Dialogismo não é e não pode ser uma compreensão passiva. Se existe posicionamento de ambos os lados, se existe resposta também de ambos, isto quer dizer que a comunicação, o discurso/enunciado, é um processo ativo. Faraco faz um apanhado dessa conclusão dizendo:

Para Bakhtin, ao contrário, a consciência individual se constrói na interação, e o universo da cultura tem primazia sobre a consciência individual. Esta é entendida como tendo uma realidade semiótica, constituída dialogicamente (porque signo é, antes de tudo, social), e se manifestando semioticamente, i.e., produzindo texto e o fazendo no contexto da dinâmica histórica da comunicação, num duplo movimento: como réplica ao já dito e também sob o condicionamento da réplica ainda não dita, mas já solicitada e prevista, já que Bakhtin entende o universo da cultura como um grande e infinito diálogo.

Em consequência disso, a compreensão não é mera experienciação psicológica da ação dos outros, mas uma atividade dialógica que, diante de um texto, gera outro(s) texto(s). Compreender não é um ato passivo (um mero reconhecimento), mas uma réplica ativa, uma resposta uma tomada de posição diante do texto (FARACO, 2009, p. 42; grifo do autor).

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Entende-se por dialogismo, de maneira concisa, as relações de sentido estabelecidas tanto entre dois enunciados, pois, como reforça Bakhtin, “[n]ão pode haver enunciado isolado. Ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem” (BAKHTIN, 2017c, p. 26) (dialogismo interdiscursivo), quanto dentro do próprio enunciado, porquanto a palavra, seja ela dita ou escrita, é saturada de intenções e significados outros (dialogismo intradiscursivo). Segundo Campos,

Toda a palavra que se lê, que se escuta é um objeto saturado de intenções multifacetadas, mas não é um dado morto, virgem, à espera de alguém. O objeto está presente na voz de quem o enuncia. A esse fenômeno, o autor denomina dialogicidade interna da linguagem (CAMPOS, 2018, p. 122).

Como já mencionado antes, a palavra dialoga com outros enunciados/palavras que já a saturaram anteriormente, ou irão fazê-lo posteriormente, como afirma Bakhtin (2017c, p. 26) “[n]enhum enunciado pode ser o primeiro ou o último. Ele é apenas o elo na cadeia e fora dessa cadeia não pode ser estudado”.

A dialogicidade interna está presente dentro da própria estrutura do discurso, do sentido e da maneira de expressão. Bakhtin (2015) assegura que, na prosa ficcional, isto é, no romance, até a ingenuidade é intencional; por essa razão ganha caráter interno polêmico e por consequência, torna-se dialógica. Ele ainda garante que “[a] dialogicidade interna do discurso encontra sua expressão em várias particularidades da semântica, da sintaxe e da composição [...]” (BAKHTIN, 2015, p. 52).

Assim como todo conceito formulado pelo Círculo, o dialogismo interdiscursivo e o dialogismo intradiscursivo se complementam. A percepção do dialogismo interno parte das relações dialógicas externas, já que elas preenchem o enunciado. Bakhtin deixa claro essa relação entre ambos os conceitos quando afirma que:

A política interna do estilo (a combinação de elementos) é determinada por sua política externa (pela relação com a palavra do outro). É como se a palavra vivesse na fronteira do meu contexto e do contexto do outro.

A réplica de todo diálogo real também leva essa vida dupla: ela é construída e assimilada no contexto de um diálogo integral, constituído por minhas (do ponto de vista do falante) enunciações e pelas enunciações do outro (do parceiro). Não se pode retirar a replica desse contexto mesclado de palavras minhas e do outro sem perder o seu sentido e o seu tom. Ela é parte orgânica do todo heterodiscursivo (BAKHTIN, 2015, p.57-58).

Sobre heterodiscurso, pensando em termos de ficção, é interessante citar a definição de Campos sobre o termo. Ela conceitua da seguinte maneira: “Conjunto de linguagens

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diferentes trazidas pelas personagens que falam nas suas linguagens e nos seus discursos originais” (CAMPOS, 2018, p. 123). Ela ainda diz que é necessário pensar o mundo social real como sendo externo ao mundo da escrita; no entanto, esses mundos são indissociáveis e não se excluem.

Em seu Breve glossário de alguns conceitos-chave, no livro Teoria do romance I, Paulo Bezerra, apoiado no trecho “O romance é um heterodiscurso social artisticamente organizado, às vezes uma diversidade de linguagens e uma dissonância individual” (BAKHTIN, 2015, p. 29), classifica heterodiscurso como sendo “diversidade de discurso”,

Trata-se de um heterodiscurso social que traduz a estratificação interna da língua e abrange a diversidade de todas as vozes socioculturais em sua dimensão histórico-antropológica, fecunda a linguagem da prosa romanesca através da dissonância individual de cada autor em relação ao conjunto do processo literário (BEZERRA, 2015, p. 247).

Ou seja, a diversidade está relacionada às diferentes “línguas” ou “linguagens”, que não são vistas pelo aspecto dialetal, mas pelo aspecto social, já que língua é cosmovisão.

Bakhtin, em uma afirmação sobre heterodiscurso, no âmbito da prosa ficcional, esclarece nessa passagem que “O heterodiscurso introduzido no romance (quaisquer que sejam as formas de sua introdução) é discurso do outro na linguagem do outro” (BAKHTIN, 2015, p.113 grifo do autor), e ainda oferece várias direções pelas quais podemos trilhar e compreender as dimensões de tal palavra quando, ainda escrevendo sobre romance, o teórico deixa claro como o heterodiscurso acontece nesse gênero.

O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados e os discursos dos heróis são apenas as unidades basilares de composição através das quais o heterodiscurso se introduz no romance cada uma delas admite uma diversidade de vozes sociais e uma variedade de anexos e correlações entre si (sempre dialogadas em maior ou menor grau) (BAKHTIN, 2015, p. 30).

Ou, ainda, quando fala sobre linguagens sociais;

[...] – o que é essencial para nós – em linguagens socioideológicas: linguagens de grupos sociais, profissionais, de gêneros, linguagens de gerações, etc. Desse ponto de vista, a própria linguagem literária é apenas uma das linguagens do heterodiscurso e, por sua vez, também está estratificada em linguagens (de gêneros, tendências etc.) (BAKHTIN, 2015, p. 41).

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Estes são dois exemplos claros em que o autor traz as linguagens da vida para dentro do romance e exemplifica de forma a explicar o que é o heterodiscurso. Nesse contexto, Bakhtin ainda acrescenta que o dialogismo interno do discurso se desenvolve nas linguagens socialmente organizadas: “A dialogicidade interior do discurso autêntico-prosaico, que medra de forma orgânica da linguagem estratificada e integrante do heterodiscurso, não pode ser dramatizada de modo substantivo e dramaticamente concluída” (BAKHTIN, 2015, p. 115).

A partir desse pensamento, é possível ter um esclarecimento melhor sobre heterodiscurso e sua diversidade de discursos; logo, também é necessário que se discorra sobre mais dois conceitos que estão diretamente ligados ao heterodiscurso, sem os quais a discussão sobre dialogismo ficaria incoerentemente incompleta. São eles a bivocalidade e o hibridismo.

Pensar em vários discursos dentro de um enunciado e não pensar em bivocalidade seria quase impossível. Mas é de vital importância saber identificar cada um desses conceitos. Bivocalidade entende-se por duas vozes distintas em uma mesma palavra/discurso que dialogam entre si. Como diz Bakhtin (2015), ela é interiormente dialogada. Segundo Campos, “entende-se o discurso bivocal internamente dialogizado em todos os seus tipos e variantes multiformes, como sendo o de duas vozes, duas expressões, dialogicamente correlacionadas, como se conhecessem uma à outra, como se conversassem entre si” (CAMPOS, 2018, p. 125).

Bakhtin, descrevendo sobre a relação entre heterodiscurso e a palavra bivocal, faz a seguinte distinção entre os dois conceitos, que, assim como os demais, são correlacionados e ligados entre si; no entanto, apesar de sua semelhança não são iguais. Segundo o teórico:

Ela [a palavra bivocal] serve ao mesmo tempo a dois falantes e traduz simultaneamente duas diferentes intenções: a intenção direta da personagem falante e a intenção refratada do autor. Nessa palavra há duas vozes, dois sentidos e duas expressões. Ademais, essas duas vozes são correlacionadas dialogicamente, como que conhecem uma à outra (como duas réplicas de um diálogo, conhecem uma à outra e são construídas nesse conhecimento recíproco), como se conversassem uma com a outra. A palavra bivocal é sempre internamente dialogada (BAKHTIN, 2015, p. 113).

Bakhtin (2015) ainda afirma que a bivocalidade é uma fonte inesgotável de dialogismo interno, porque a dialogicidade caminha ao lado da estratificação da linguagem, o heterodiscurso. É interessante notar que isto não diz respeito apenas à realidade social concreta, pois “[n]o romance essa bivocalidade tem suas raízes profundamente fincadas no essencial heterodiscurso sociolinguístico e na diversidade de linguagens” (BAKHTIN, 2015,

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p. 115); não diz respeito apenas ao falante do cotidiano, mas de igual modo, ao que escreve prosa ficcional. “o romancista fala com uma linguagem heterodiscursiva interiormente dialogada” (BAKHTIN, 2015, p 121). Além disso, ele

[...] erige esse heterodiscurso social em torno do objeto até atingir a imagem acabada, penetrada pela plenitude dos ecos dialógicos, das ressonâncias literárias calculadas para todas as vozes e tons essências desse heterodiscurso. Contudo, como já afirmamos, todo discurso da prosa extraliterária – discurso do dia a dia, o retórico, o científico – não pode deixar de orientar-se “dentro do que já foi dito”, “do conhecido”, “da opinião geral”, etc. A orientação dialógica do discurso é, evidentemente, um fenômeno próprio de qualquer discurso. É a diretriz natural de qualquer discurso vivo. Em todas as suas vias no sentido do objeto, em todas as orientações, o discurso depara com a palavra do outro e não pode deixar de entrar numa interação viva e tensa com ele (BAKHTIN, 2015, p.42).

E por que não dizer que são dois sujeitos, já que são duas vozes? Não há problema, desde que não seja negligenciado o entendimento de que esses dois sujeitos e essas duas vozes são encontradas em uma mesma palavra/enunciado/discurso/texto. Por assim dizer, é a voz de um construída com a voz de outro. Bakhtin alega que esse discurso/texto bivocal:

É o representante do estilo, da visão de mundo, do tipo humano, cheira a contextos, nele há duas vozes, dois sujeitos (aquele que falaria assim tão sério, e aquele que parodia o primeiro). [...] a segunda voz só entra na combinação de palavras que se torna um enunciado (isto é, recebe o sujeito do discurso sem o qual não pode haver segunda voz). E uma palavra pode tornar-se bivocal se vier a ser uma abreviatura de enunciado (isto é, se ganhar autor) (BAKHTIN, 2016b, p. 78).

Pode-se entender, portanto, que a bivocalidade é o encontro de duas vozes dentro de um enunciado que, não necessariamente, estejam marcadas; elas podem vir de maneira velada. A palavra bivocal também é social, é ideológica, socialmente valorada. E por ter esse caráter social, a separação entre o que diz e o que está sendo dito não fica de todo nítida. É perceptível que são vozes, mas não são demarcadas nitidamente.

O discurso bivocal é uma das maneiras mais eficazes de inserir o discurso alheio no enunciado, pois é um discurso internamente dialogizado em que não existe uma separação nítida das vozes; isto é, nem sempre é possível perceber com nitidez o enunciado de quem está citando ou de quem está sendo citado. Alguns exemplos de discurso bivocal que Bakhtin (2010; 2015) traz é a paródia, a polêmica sendo ela direta ou velada, também o discurso indireto livre, entre outros.

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Em contrapartida, no campo da matéria do enunciado, existe o hibridismo, por assim dizer, o discurso de um falante misturado ao de outro na estrutura sintática. Nas palavras de Bakhtin, hibridismo “é a mistura de duas linguagens sociais no âmbito de um enunciado – o encontro, no campo desse enunciado, de duas diferentes consciências linguísticas divididas por uma época ou pela diferenciação social (ou por ambas)” (BAKHTIN, 2015, p. 156).

É interessante ressaltar que, para Bakhtin, existe diferença no emprego do hibridismo. Ele entende que o hibridismo pode ser historicamente não intencional e também literário intencional, ou híbrido romanesco. O híbrido “não é apenas bivocal e duplamente acentuado, mas bilíngue. Aí estão presentes duas consciências sociolinguísticas, duas épocas que enfrentam e lutam sobre o campo do enunciado plurilíngue” (CAMPOS, 2018, p.127).

Dessa maneira, é importante frisar que, sempre que Bakhtin se refere ao hibridismo, seja ele histórico ou literário, é no campo da materialidade, na estrutura sintática, enquanto sistema da língua, que ele está presente.

Para distinguir melhor essas duas perspectivas híbridas, apontaremos para duas citações em que Bakhtin diferencia o híbrido histórico orgânico, que é voltado puramente para análise sistemática, do híbrido romanesco, que é dialogizado, e ressalta a importância de cada um deles no processo de análise.

Sobre o híbrido histórico orgânico:

Aqui, [no híbrido histórico orgânico], porém, trata-se de uma mistura surda e obscura e não de um confronto social e de uma oposição. É necessário, contudo, observar que é justamente essa mistura surda e obscura de visões linguísticas do mundo dos híbridos orgânicos que, em termos históricos, é profundamente eficaz: é prenhe de novas visões de mundo, novas “formas internas” de apreensão verbal do mundo (BAKHTIN, 2015, p. 158-159). Quanto ao híbrido romanesco, ele “se caracteriza pela fusão de dois diferentes enunciados sociais em um só enunciado. A construção sintática dos híbridos intencionais é fraturada por duas vontades linguísticas individualizadas” (BAKHTIN, 2015, p. 159). Segundo Bakhtin, todo enunciado vivo, isto é, que pertence a uma língua viva, é híbrido em algum momento.

Em se tratando de enunciado vivo, que pertence a uma língua socialmente viva, isto é, uma língua que, social e historicamente, é preenchida por valores que acompanham as mudanças da sociedade em que ela se insere, é interessante relembrar que é partindo dessa perspectiva do Círculo em conjunto com os estudos feministas, que esses valores social e historicamente preenchidos são as mudanças sociais levadas em consideração para o contexto

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desta análise. Para tanto, é pertinente, a partir de agora, a discussão de um dos pontos fundamentais do pensamento Bakhtiniano, a ideologia. Apesar de esse conceito já ter sido citado anteriormente, convém, nesse momento, mostrar de que maneira o Círculo e seus leitores que seguem a mesma linha de pensamento, entendem por ideologia.

A perspectiva bakhtiniana de ideologia não pode ser tida como falsa consciência3 ou romanticamente idealista (MIOTELLO, 2018). Bakhtin e o Círculo não pensam a ideologia como sendo a expressão de uma ideia, e tudo mais que lhe diz respeito está unicamente no mundo das ideias, como confirmam Ponzio, Miotello e Faraco; antes, porém, o Círculo concebe ideologia como tomada de posição.

Bakhtin e seus companheiros do Círculo não trabalham, portanto, a questão da ideologia como algo pronto e já dado, ou vivendo apenas a consciência individual do homem, mas inserem essa questão no conjunto de todas as outras discussões filosóficas que eles tratam de forma concreta e dialética, como a questão da constituição dos signos, ou a questão da constituição da subjetividade (MIOTELLO, 2018, p. 168).

Ideologia é o que se entende da realidade social, é a expressão dessa realidade social e histórica. O Círculo “vai construir o conceito na concretude do acontecimento, e não na perspectiva idealista” (MIOTELLO, 2018, p. 168).

Medviédev, em O método formal nos estudos literários, afirma com clareza que o fenômeno ideológico é material e histórico (MEDVIÉDEV, 2012, p.44) e que as obras de arte, trabalhos científicos, símbolos e cerimônias religiosas são produtos da criação ideológica, “são objetos matérias e partes da realidade que circundam o homem” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 48).

No entendimento do Círculo, a ideologia é um construto social/histórico, bem como sua criação. A referência a construto é no sentido de organização, de fato, à maneira que a sociedade organiza seu pensamento nos mais diferentes períodos da história da humanidade, e

3 “Falsa consciência: O conceito de ‘falsa consciência’ deriva da teoria marxista da classe social. O conceito refere-se à deturpação sistemática das relações sociais dominantes na consciência das classes subordinadas. O próprio Marx não usou a frase ‘falsa consciência’, mas prestou bastante atenção ao conceito, a ele relacionado, de ideologia. Membros de uma classe subordinada (por exemplo, trabalhadores, camponeses, servos) têm uma falsa consciência, pois suas representações mentais das relações sociais ao seu redor ocultam ou obscurecem sistematicamente as realidades de subordinação, exploração e dominação que essas relações incorporam. Os conceitos relacionados incluem mistificação, ideologia e fetichismo” (LITTLE, 2007, p. 81-83; nossa tradução). No original: “False consciousness: ‘The concept of “false consciousness’ is derived from the Marxist theory of social class. The concept refers to the systematic misrepresentation of dominant social relations in the consciousness of subordinate classes. Marx himself did not use the phrase “false consciousness” but he paid extensive attention to the related concept of ideology. Members of a subordinate class (eg., workers, peasants, serfs) suffer from false consciousness in that their mental representations of the social relations around them systematically conceal or obscure the realities of subordination, exploration, and domination those relations embody. Related concepts include mystification, ideology, and fetishism”.

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pelo que lutam, e a que atribuem valor. Segundo Ponzio, em A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea, “A ideologia é a expressão das relações histórico-materiais dos homens, mas ‘expressão’ não significa somente interpretação ou representação, também significa organização, regularização dessas relações” (PONZIO, 2012, p. 113).

De acordo com Faraco, ideologia é tudo que circunda o ser humano e tudo que ele é criativamente capaz de produzir. Ele garante que:

Ideologia é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o universo que

engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais (para usar certa terminologia da tradição marxista) (FARACO, 2009, p. 46; grifo do autor).

Então, para entender o conceito de ideologia nos termos bakhtinianos, é preciso que o homem esteja em sociedade para que seja possível que esse fenômeno aconteça, o que quer dizer que o homem sozinho não cria ideologia. Segundo Medviédev (2012), é de vital importância que haja comunicação social. O teórico ainda acrescenta:

Não há significado fora da relação social de compreensão, isto é, da união e da coordenação mútua das reações das pessoas diante de um signo dado. A comunicação é aquele meio no qual um fenômeno ideológico adquire, pela primeira vez, sua existência específica, seu significado ideológico, seu caráter de signo (MEDVIÉDEV, 2012, p. 50).

Volóchinov (2017) acrescenta que a consciência ideológica se forma no material sígnico (livros, pinturas, roupas) que é formado no processo de comunicação de uma sociedade organizada. “A consciência se forma e se realiza no material sígnico criado no processo da comunicação social de uma coletividade organizada. A consciência individual se nutre dos signos, cresce a partir deles, reflete em si a sua lógica e suas leis” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 97). O teórico ainda afirma que a lógica da consciência e a lógica da comunicação ideológica são a mesma coisa e que se privarmos uma da outra não existirá nada.

É interessante ressaltar que, para o Círculo, a ideologia pode ter dois sentidos: na área das atividades intelectuais humanas, tais como arte, ciência, religião, entre outras, e, de igual modo, no aspecto valorativo, isto é, na posição avaliativa de um enunciado, em seu aspecto axiológico. Como bem explica Faraco:

Algumas vezes, o adjetivo ideológico aparece como equivalente a axiológico. Aqui é importante lembrar que, para o Círculo, a significação

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dos enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico – para eles, não existe enunciado não ideológico. E ideológico em dois sentidos: qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no interior de uma das áreas da atividade intelectual humana) e expressa sempre uma posição avaliativa (i.e., não á enunciado neutro; a própria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica) (FARACO, 2009, p. 47).

Todo esse valor axiológico atribuído à palavra, ao discurso, à obra, ao enunciado em sentido geral, está diretamente ligado às mudanças temporais do contexto. Em outras palavras, o contexto extratextual é integrado ao enunciado. Nas palavras de Bakhtin;

A obra é integrada também por seu necessário contexto extratextual. É como se ela fosse envolvida pela música do contexto axiológico-entonacional, no qual é interpretada e avaliada (é claro que esse contexto muda conforme as épocas da percepção, o que cria uma nova vibração da obra) (BAKHTIN, 2017a, p. 74).

Portanto, ideologia é o sistema que representa a sociedade e está sempre atualizado, tendo em vista que ela acompanha o desenvolvimento social de cada povo, dos grupos sociais e que se constrói com as modificações dos símbolos em cada um desses grupos, em seus enunciados concretos e vivos.

Tudo que é ideológico tem significação, segundo Volóchinov (2017); logo, pode-se entender que é signo. Ele também esclarece que é preciso que haja signo para que exista ideologia “onde não há signo também não há ideologia” (VOLÓCHINOV 2017, p. 91; grifo do autor). O teórico continua com seu raciocínio levando o campo ideológico e o campo sígnico ao mesmo patamar, e afirma que “onde há signo há também ideologia” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 93). De igual modo Medviédev acrescenta:

As concepções de mundo, as crenças e mesmo os instáveis estados de espírito ideológicos também não existem no interior, nas cabeças, nas almas das pessoas. Eles tornam-se realidade ideológica somente quando realizados nas palavras, nas ações, na roupa, nas maneiras, nas organizações das pessoas e dos objetos, em uma palavra, em algum material em forma de um signo determinado (MEDVIÉDEV, 2012, p. 48-49).

Depois de feita a observação dessa constatação, é possível compreender porque Volóchinov elevou a palavra ao posto de representante por excelência do fenômeno ideológico. Ela, a palavra, também pode ser assimilada como enunciado quando é posta dentro da realidade social concreta e “[c]omo enunciado (ou parte do enunciado) nenhuma

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oração, mesmo a de uma só palavra, jamais pode se repetir: é sempre um novo enunciado (ainda que seja uma citação)” (BAKHTIN, 2016b, p. 79).

Uma palavra, quando posicionada, assume a função de enunciado e fica carregada, saturada de valor, capaz de, por exemplo, em dada época, ter uma carga axiológica positiva e, décadas depois, acompanhando as mudanças extratextuais do tempo em que for utilizada, ter um peso negativo: “qualquer signo ideológico tem duas faces. Qualquer xingamento vivo pode se tornar um elogio [...]” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 113). Por esse motivo, a capacidade de adaptação da palavra de acordo com o valor que lhe atribuem, a depender do período histórico/social vivido pela sociedade, seja em qualquer que for o horizonte ideológico, segundo Volóchinov, pode assumir qualquer função ideológica e por isso “A palavra não é apenas o mais representativo e puro dos signos, mas também um signo neutro” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 99); isto é, neutra porque pode ser preenchida de ideologia, valorada axiologicamente de acordo com o uso que lhe é feito ou o contexto da época em que está sendo usada.

Na percepção de Miotello, a partir do Círculo, a palavra é tecida por fios ideológicos, possui acentos ideológicos; isto é, é tecida porque é capaz de passar pelos mais diferentes lugares ideológicos e assumir diferentes valores a depender do posicionamento responsivo que lhe for atribuído.

Bakhtin/Volóchinov defende que as menores, mais ínfimas e mais efêmeras mudanças sociais repercutem imediatamente na língua; os sujeitos interagentes inscrevem nas palavras, nos acentos apreciativos, nas entonações, na escala dos índices de valores, nos comportamentos éticos-sociais, as mudanças sociais. As palavras, nesse sentido, funcionam como agente e memória social, pois uma mesma palavra figura em contextos diversamente orientados. E, já que, por sua ubiquidade, se banham em todos os ambientes sociais, as palavras são tecidas por uma multidão de fios ideológicos, contraditórios entre si, pois frequentaram e constituíram em todos os campos das relações e dos conflitos sociais. Dentro das palavras, em uma sociedade de classes, se dá discursivamente a luta de classes. O signo verbal não pode ter um único sentido, mas possui acentos ideológicos que seguem tendências diferentes, pois nunca consegue eliminar totalmente outras correntes ideológicas de dentro de si (MIOTELLO, 2018, p.172).

Segundo Stella, em oposição ao tratamento tradicional abstrato que a palavra sempre teve, Bakhtin e o Círculo trataram a palavra de maneira diferente, observando sempre sua historicidade e a linguagem em uso: “A palavra dita, expressada, enunciada, constitui-se como produto ideológico, resultados de um processo de interação na realidade viva” (STELLA, 2018, p. 178).

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Essa participação na realidade viva é o que estabelece relações e faz com que a palavra de um esteja interagindo com a palavra do outro. Segundo Bakhtin, “Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda uma vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro” (BAKHTIN, 2017c, p. 38). Não é possível estar em sociedade sem que haja interação, sem que a palavra de alguém não seja uma resposta à palavra do outro, ou ainda, que a palavra do outro não faça parte do enunciado concreto e vivo de alguém.

Bakhtin afirma que a percepção do outro é a primeira percepção que o homem tem de si mesmo, porque é por meio do outro que acontece o autorreconhecimento. É em concordância ou em oposição ao outro que o indivíduo percebe quem é, que precisa do outro para se reconhecer, já que é pela diferença do outro que se percebe quem se é, e o que é comum a si. Parece paradoxal, mas não é. É um parâmetro de autorreconhecimento e de reconhecimento do alheio.

Tudo que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe, etc.), com a sua entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional. A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros: dele eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo (BAKHTIN, 2017c, p. 30).

De igual modo, a palavra do outro faz parte da consciência do outro indivíduo, da formação humana dele “o imenso e infinito mundo das palavras do outro são o fato primário da consciência humana e da vida humana” (BAKHTIN, 2017c, p. 38).

Em concordância com o pensamento de Bakhtin, o teórico Volóchinov confirma que a consciência individual é apenas uma parte do todo: “A consciência se forma e se realiza no material sígnico criado no processo da comunicação social de uma coletividade organizada” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 97). E, como se sabe, a ideologia nasce da/na sociedade, já que ela está presente em todos os momentos, durante os mais diferentes períodos históricos sociais da humanidade.

A consciência, sendo ela individual ou social, é expressa por meio da palavra, o material sígnico; isto é, “A consciência se forma e se realiza no material sígnico criado no processo da comunicação social de uma coletividade organizada” (VOLÓCHINO, 2017, p. 97). O próprio Volóchinov adiciona, logo a seguir, que a palavra é o material sígnico que melhor expressa a comunicação, por isso ela é o fenômeno ideológico par excellence; e mais, “a palavra é o médium mais apurado e sensível da comunicação social” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 99; grifo do autor).

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Se a palavra é o fenômeno ideológico por excelência e, de igual modo, o mediador mais apurado e sensível às mudanças da comunicação estabelecida em/na sociedade, é natural que ela siga as tendências, costumes e poderes que são estabelecidos nas sociedades ao longo dos tempos, e se adeque a essas forças regentes. Nesse sentido, a palavra participa “de toda interação, e de todo contato entre as pessoas” e “Na palavra se realizam os inúmeros fios ideológicos que penetram todas as áreas da comunicação social” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 106).

No entanto, essa interação, essa comunicação social, esse diálogo na sociedade entre as suas diferentes camadas não se dá de maneira de todo pacífica. Como lembra Bakhtin, existe uma luta entre as classes. Ele ainda afirma que as relações são tensas, que o diálogo em essência, é tensão. “Para cada indivíduo, todas as palavras se dividem nas suas próprias palavras e nas do outro, mas as fronteiras entre elas podem confundir-se, e nessas fronteiras desenvolve-se uma tensa luta dialógica” (BAKHTIN, 2017c, p. 38). Volóchinov afirma que a multiacentuação (o valor axiológico atribuído ao signo ideológico) é o que mantém o signo vivo:

Mas justamente aquilo que torna o signo ideológico vivo e mutável faz dele um meio que reflete e refrata a existência. A classe dominante tende a atribuir ao signo ideológico um caráter eterno e superior à luta de classes, apagar ou ocultar o embate das avaliações sociais no seu interior, tornando-o monoacentual (VOLÓCHINOV, 2017, p. 113).

Contudo, o signo não pode ser isolado do cerne sociológico. Caso isso venha acontecer, o signo perde sua natureza sígnica servindo apenas para análise linguística. “Ao ser retirado da disputa social acirrada, o signo ficará fora da luta de classes, inevitavelmente enfraquecendo, degenerando em alegoria e transformando-se em um objeto de análise filológica e não a interpretação viva” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 113).

De maneira semelhante, Bakhtin (2017c, p. 44-45) escreve que o discurso não pode ser separado do falante, da situação que o circunda, de quem está ouvindo e a que/quem está vinculado, se a um sistema, se a uma religião, se a uma autoridade seja ela familiar, política, religiosa, acadêmica, a qualquer representação de autoria, autoridade(autoritarismo) e poder.

Bakhtin usa o enunciado “Reflexo das relações entre os homens no discurso, sua hierarquia social” (BAKHTIN, 2017c, p. 55) para tratar das palavras/discursos hierárquicos, de poder e alertar que o tom não é determinado pelo conteúdo, mas pela relação entre falante e interlocutor, aquele que manda e aquele que recebe a ordem. O discurso que estabelece

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apenas uma voz é o discurso hegemônico, seja ele religioso ou político, por exemplo; é um discurso monológico, pois veda o diálogo, não abre espaço para o outro.

Segundo Faraco, enquanto as ideologias são construídas, as vozes tomam direções diferentes de funcionamento. Umas se definem como vozes de autoridade, os discursos monológicos; outras como vozes internamente persuasivas, o discurso dialógico. Ele argumenta: “Nesse processo de construção socioideológica do sujeito, as vozes funcionarão de diferentes modos. Algumas entrarão como vozes de autoridade e outras como vozes internamente persuasivas” (FARACO, 2009, p. 84).

Para tal conclusão, Faraco toma por base a seguinte citação de Bakhtin:

Ganha um significado ainda mais profundo e substancial a diretriz voltada para a assimilação do discurso do outro no processo de formação ideológica do homem, na própria acepção do termo. Aqui, o discurso do outro já não atua como informação, instrução, regras, modelos, etc.; ele procura determinar os próprios fundamentos da nossa relação ideológica com o mundo e do nosso comportamento, atua aqui como um discurso autoritário e como discurso interiormente persuasivo (BAKHTIN, 2015, p. 135-136).

Segundo Bakhtin (2015), o discurso autoritário é exigente, cobra reconhecimento, adesão incondicional e é, por natureza, autoritário, como já informa seu nome. Os discursos autoritários são, segundo o autor, os discursos políticos, religiosos, morais, do pai ou do adulto com relação à criança, do mestre, do professor, do cientificismo, de toda figura que, por meio de alguma posição social representativa que lhe foi atribuída, exerce sua função autoritariamente. Podemos acrescentar, aqui, o discurso da figura do homem em uma sociedade patriarcal/machista.

Bakhtin afirma que o discurso autoritário exige distanciamento; ele pode até organizar em torno de si as massas discursivas, mas de modo algum se mistura com elas; ao contrário, exige posição de destaque, é praticamente impenetrável e avesso a mudanças. “Nesse discurso é bem mais difícil inserir mudanças semânticas com auxílio do contexto que o moldura, sua estrutura semântica é imóvel e morta, pois está concluída e é unívoca, seu sentido basta à letra, petrificada” (BAKHTIN, 2015, p. 137)

Faraco apresenta a palavra autoritária conforme Bakhtin a conceitua e logo em seguida já a contrapõe à palavra interiormente persuasiva dizendo que:

A palavra de autoridade, em seus variados tipos, é aquela que nos interpela, nos cobra reconhecimento e adesão incondicional. Trata-se de uma palavra que se apresenta como uma massa compacta, encapsulada, centrípeta, impermeável, resistente a bivocalizações.

Referências

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