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http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/21/artigo77283-1.asp

O filósofo do Brooklyn

A relação do cinema com a Filosofia nos filmes do nova-iorquino Woody Allen POR FLÁVIO PARANHOS

O cineasta estadunidense em cena da comédia Scoop, o grande furo, de 2006, em que ele faz o papel de um mágico, lançado pela Focus

Não há como tratar das relações entre cinema e Filosofia sem correr o risco de defender algumas teses. Cinema é arte e será tanto mais arte quanto mais filosófico for. Há diferentes maneiras do cinema ser filosófico. A mais comum delas é a acidental. Um filme absoluta e sinceramente despretensioso pode despertar no espectador o espanto típico do indivíduo que filosofa. Dependendo da erudição desse espectador, o espanto virá contaminado de referências bibliográfi- cas, o que nos traz à primeira e mais comum associação entre cinema e Filosofia, o uso como arma de ilustração de teses filosóficas.

É arte o cinema que não faz concessões (ou, se as faz, será o mínimo necessário para sobrevivência). Será filosófico todo cinema-arte?

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O que tem Arnold Schwarzenegger a ver com Descartes? Ou Steve Martin com Platão? Ou Frank Sinatra com Santo Agostinho? Por espúrias que pareçam à primeira lida, tais associações foram feitas, respectivamente, por Mary M. Litch1, Christopher Falzon2 e Juan Antonio Rivera3, para ilustrar o ceticismo cartesiano (Total Recall, O Vingador do Futuro, 1990), a metafísica platônica (All of me, Um espírito baixou em mim,1984) e as confissões agostinianas (The man with the golden arm, O homem do braço de ouro, 1955). São associações acidentais na medida em que os autores desses filmes certamente não tiveram a intenção de estabelecê- las. O que por certo não lhes tira a validade. Se uma comédia romântica bobinha, feita com o único objetivo de entreter, ou um filme de ação estúpido, repleto de lutas e perseguições de carros (como Matrix, por exemplo) suscitam indagações filosóficas, tudo bem.

A essa altura o leitor terá identificado a inevitável armadilha na qual eu caí e da qual é preciso sair pra seguir adiante. Diz respeito ao conceito de entretenimento e sua relação com a arte. Numa entrevista ao Performing Arts Journal, em 1977, Susan Sontag responde à questão sobre haver uma hierarquia da arte, a que dá prazer e a que faz pensar, de forma brilhante: pensar é uma das formas de prazer4. Ora, o conceito de entretenimento varia muito, embora seja verdade que há um certo gosto médio relativamente previsível e a partir do qual decisões holywoodianas são tomadas. Pensar não é uma forma de prazer com muito ibope hoje em dia. Algumas pessoas inclusive são explícitas: vão aos cinemas e teatros para relaxar, e não para pensar.

Cena do filme Noivo neurótico, noiva nervosa, de 1977, que conta a história de um divorciado humorista judeu, que faz análise há quinze anos, que se apaixona por “Annie Hall” (título original), uma cantora em início de carreira e com uma

Este texto introdutório abre o segundo volume da Coleção Filosofia & Cinema, livro da Nankin Editorial, analisando a obra cinematográfica do diretor estadunidense Woody Allen, a ser lançado no segundo semestre.

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http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/21/artigo77283-2.asp cabeça um pouco complicada

O filósofo do Brooklyn

A relação do cinema com a Filosofia nos filmes do nova-iorquino Woody Allenol POR FLÁVIO PARANHOS

Correrei aqui outro risco: um preconceito. Ou preconceitos. Pessoas com preguiça de pensar não são pessoas, são “impessoas”. Autômatos dissolvidos no impessoal5. Seres humanos inautênticos, de espírito empobrecido. Essa massa compacta e sem identidade responsável pelos sucessos de blockbusters idiotas (e de equívocos históricos como o nazismo e outros fanatismos) não pode ser balizadora de coisa alguma. Há, portanto, sim, uma hierarquia da arte. É arte o cinema que não faz concessões (ou, se as faz, será o mínimo necessário para sobrevivência). Será filosófico todo cinema-arte? Como dito acima, é possível enxergar Filosofia até em filmes assumidamente despretensiosos. Não vejo problema nisso. Mas estes não são propriamente filosóficos. Ajudar a ilustrar teses é válido, mas não o suficiente. É preciso dar um passo adiante. O filme deve, ele

próprio, pensar (mais do que “fazer pensar”). Se a Filosofia é, como querem Deleuze e Gattari6, a elaboração de conceitos, é preciso que um filme os elabore para ser

‘filosófico’. Ainda que sejam conceitos- imagem, como propõe o professor Julio Cabrera, autor do primeiro volume dessa coleção7.

1 LITCH, Mary M. Philosophy through film. Routledge, 2002. 2 FALZON, Christopher. Philosophy goes to

the movies. An introduction to philosophy. Routledge, 2002.

3 RIVERA, Juan Antonio. O que Sócrates diria a Woody Allen. Cinema e filosofia. Trad. Magda Lopes. Planeta, 2003.

4 POAGUE, Leland (ed.). Conversations with Susan Sontag. University Press of Mississipi, 1995, p.85.

5 O Das Man heideggeriano.

6 DELEUZE, G. & Guattari, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz, Editora 34, 1997 (2a. edição brasileira).

7 O professor Cabrera já havia desenvolvido sua tese em O Cinema Pensa, Rocco, 2006, dando-lhe seguimento com De Hitchcock à Greenaway pela História da Filosofia, Nankin, 2007.

Cabrera considera que, assim como há pensadores logopáticos (Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger), pensadores que trabalharam com a sensibilidade (e não apenas com a

Cartaz do filme Ponto final (Match Point, no original), de Allen, rodado em Londres, em 2005, no qual um jovem professor de tênis é convidado a morar na casa de um de seus alunos, membro da alta classe britânica, e começa um

relacionamento com duas mulheres que freqüentam a casa, uma destas, a atriz estadunidense Scarlett

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racionalidade) para construir seus conceitos, também há cineastas filósofos,

elaboradores de conceitos na forma de conceitosimagem8. O passo adiante dado foi elevar o cineasta à condição de pensador, e não de mero ilustrador de teses. O que não é pouco, considerando- se as resistências que sofreu por parte da academia (algumas, quem sabe, de caráter corporativista).

Há, todavia, dois problemas com a abordagem de Cabrera. Embora os diretores ganhem status de pensadores, em diversos momentos de sua análise temos a impressão de que se trata de filmes filosóficos e não de diretores. Em determinado momento Cabrera é explícito: “(...) eu nunca atribuo concepções filosóficas conscientes aos cineastas: isso levaria a falsidades factuais. Eu analiso filmes do ponto de vista filosófico; por conseguinte, o filósofo sou eu, não os diretores ou os atores analisados (...)”.9 Outro problema são os dois diretores escolhidos para análises mais detalhadas, Hitchcock e Greenaway. Por mais que se admita tratar- se de dois excepcionais cineastas, e o são, ambos trabalharam com material alheio. Dois filmes analisados por Cabrera, Um corpo que cai (1958, Hitchcock) e Prospero’s book (1991, Greenaway) são adaptações de livros, respectivamente D’Entre les Morts, de Pierre Boileau e Thomas Narcejac e a peça The Tempest, de Shakespeare. No caso de Greenaway, pelo menos, o roteiro é dele10, já no caso d’O corpo que cai, nem isso. Essa discussão não é nova. É o principal argumento para aqueles que não consideram o cinema como uma forma legítima de arte. Convenhamos, não deixa de ser uma refutação, ela própria, legítima. Quem é afinal o autor de um filme? Quem escreve o roteiro? Quem dirige? Quem produz? Quem edita? O ator principal? Ou, no caso dos blockbusters, o público-amostra, que serve para nortear a edição e aumentar as chances de sucesso comercial? 8 Deleuze e Gattari certamente não concordariam com essa utilização da palavra

conceito, já que para eles sua elaboração é ato exclusivo da disciplina Filosofia, sendo a arte criadora de perceptos e afectos, não de conceitos (op.cit, pp. 13 e 37).

9 CABRERA, Julio. De Hitchcock a Greenaway pela História da Filosofia, Nankin, 2007, p.37.

10 Embora o roteiro de The Prospero’s books seja de Greenaway, a peça The tempest, de Shakespeare, é transcrita literalmente, do começo ao fim, com alguns acréscimos. Claro, sempre se pode dizer que jamais The tempest será representado de forma tão bela quanto o foi por Greenaway, mas aí estamos no terreno do artístico ‘fazerpensar’, não do filosófico ‘pensar’

CONCEITOS COGNITIVO-AFETIVOS

“[...] A minha idéia é que o cinema constitui um dos meios, não certamente o único, que gera

conceitos de tipo logopático, conceitos cognitivo- afetivos, e que com essa abordagem de problemas o cinema contribui a problematizar os tratamentos tradicionais dados a problemas pela filosofia, na medida em que esta continua apática, ou seja, atrelada ao uso puramente intelectual de conceitos. Algo acerca da natureza e limites do pensamento filosófico, tal como hoje o entendemos, deverá ser colocado à luz destes estudos sobre cinema e filosofia. Mas, por outro lado, creio que também a filosofia escrita, em toda a sua historia, tem sido logopática sem querer assumi-lo abertamente, ou seja, tem pensado com a mediação inconfessa do afeto. Paralelamente, se pretendeu, muitas vezes, ver o cinema como um fenômeno puramente afetivo (de “impacto”), sem nada de cognitivo. As minhas noções de logopatía e conceitoimagem tendem a evitar estas dicotomias, desvelando a afetividade do intelecto e a cognitividade do afeto. A filosofia, dominada, em toda a sua tradição, desde a filosofia grega até o século XIX, pelo intelectualismo, só recentemente começou a sentir a necessidade de

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enriquecer a sua noção de racionalidade, repensando as relações tradicionais entre o intelectual e o afetivo-sensível [...]”

Julio Cabrera, no seu site pessoal www.unb.br/ih/fil/cabrera

A coisa fica ainda mais complicada quando o filme foi baseado ou é uma adaptação de obra literária. Short Cuts (1993), Laranja Mecânica (1971), The Hours (2002), e mesmo os escolhidos por Cabrera são primorosos exemplos de filmes filosóficos. Mas de quem? Altman ou Carver? Kubrick ou Burgess? Daldry ou Cunningham? 11 Não por acaso, escolhi Woody Allen para abordar aqui. Allen escreve o roteiro, escolhe os atores, seleciona a trilha musical, dirige e até atua em vários de seus filmes. As concessões que faz são as mínimas necessárias à sua sobrevivência (‘sobrevivência’ tomada em seu sentido literal, como veremos mais adiante). Ignoro alguém que seja

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http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/21/artigo77283-3.asp

O filósofo do Brooklyn

A relação do cinema com a Filosofia nos filmes do nova-iorquino Woody Allenol POR FLÁVIO PARANHOS

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Love and Death (A Última Noite, de Boris Grushenko), de 1975, por exemplo, ao fazer piadas constantes com as grandes questões filosóficas (principalmente aquelas ligadas ao existencialismo), dá a impressão de tratar-se de um moleque que leu superficialmente os filósofos e já se sente intelectual o suficiente. Uma cena emblemática disso é a da conversa de Boris Grushenko e seu pai, um pingue-pongue com títulos de livros de Dostoievski

Há quem iguale, mas inexiste quem o ultrapasse. Discordo, portanto, de Cabrera. Acredito que há cineastas com projetos filosóficos bem delineados. Não somos nós que pensamos por eles, mas eles próprios. São verdadeiros filósofos. Para o bem da verdade, entretanto, devo dizer que minha opinião não confronta apenas a de filósofos

acadêmicos, mas também a de apreciadores de Woody Allen. Foster Hirsch, Sam Girgus e Sanford Pinsker12, por exemplo, recusam- se a conceder-lhe o status. Pinsker coloca a coisa nos seguintes termos: “(...) se por um lado eu não o incluo entre nossos filósofos ou críticos sociais significativos, por outro lado penso que seu gênio para paródias e o aprimoramento constante de sua persona cômica são aquisições

importantes para nossa cena cultural.”13 Para Pinsker há uma grande diferença entre levar Woody a sério ou solenemente. Colocá- lo no mesmo patamar de filósofos é um perigo, ele continua, pois corre-se o risco de massacrá-lo com o arsenal acadêmico, como o fizeram Alan Bloom e Mark Shechner. Esse último chegou a comparar a filosofia de Woody a um “existencialismo ginasial”, pelo qual “Deus está morto; a vida não tem sentido; o homem é um ponto insignificante num vasto e impessoal vazio.”14 CONTINGÊNCIA HISTÓRICA

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filosofia podem variar imensamente, desde o poema filosófico até a exposição more mathematico, o ensaio e o aforismo: a filosofia não está condenada a um único estilo expositivo. E se aceitarmos que o filosofar esteve vinculado apenas contingentemente com uma tradição, pensadores ou artistas ou estudiosos de outras tradições podem pensar o real e articulá-lo em conceitos, ou mostrá-lo em sua vivencialidade histórica, mesmo fora dessa tradição. Se filosofar consiste em dizer idéias sobre a condição humana, a moral, a linguagem, etc, não há nada que condene estas problemáticas a uma forma escrita de exposição. É uma contingência histórica que as imagens, e não os textos escritos, não tenham sido escolhidos pelos humanos para exprimir idéias filosóficas [...]”

Julio Cabrera, no seu site pessoal www.unb.br/ih/fil/cabrera

Admito que há momentos da obra do diretor norte-americano em que cabe à crítica. Love and Death, por exemplo, ao fazer piadas constantes com as grandes questões filosóficas (mormente as caras ao existencialismo), dá a impressão de tratar-se de um moleque que leu superficialmente os filósofos (ou nem isso, talvez apenas excertos ou livros do tipo Heidegger em 90 minutos) e já se sente intelectual o suficiente. Uma cena emblemática disso é a da conversa de Boris Grushenko e seu pai, um pingue-pongue com títulos de livros de Dostoiévski. A obsessão por certos temas existencialistas, explorando- os à exaustão, também pode causar no espectador15 a impressão de superficialidade.

Por outro lado, pode-se recorrer a Julio Cabrera e sua noção de conceitos-imagem, logopáticos. No caso de Woody, com muitas palavras, além da imagem, é verdade. Ou, simplesmente, invocar o princípio da linguagem diferente. A do cinema não é a mesma da filosofia acadêmica. Esta é prolixa, inchada em gordura retórica, de tal forma a torná-la coisa de iniciados. Apare todas as folhas e galhos dessa mata fechada, desça a espada em todos os espinhos até achar a bela adormecida na clareira do Ser e será tocado por Deus em pessoa. Só que muita gente fica no meio do caminho. Ou, vai ver, nunca houve clareira. Só mata fechada mesmo. Ian Jarvie16 pensa que essa linguagem diferente faz dos filmes de Woody peças de arte, não peças de Filosofia, já que, como as primeiras, comporta interpretações diferentes. Discordo. Não que não admitam mais de uma interpretação. Mas isso não é exclusivo de obras de arte17, mas de Filosofia também.

Voltando à perigosa tarefa de tentar definir arte e Filosofia, recorro novamente a Deleuze e Gattari: “As molduras da arte não são coordenadas

científicas, como as sensações não são conceitos ou o inverso. As duas tentativas recentes para

aproximar a arte da Filosofia são a arte abstrata e a Cartaz do Laranja Mecânica

(Clockwork Orange), filme filosófico de Stanley Kubrick, de 1971, inspirado no romance distópico homônimo de Anthony Burgess. Quem seria o filósofo? Kubrick ou Burgess?

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arte conceitual; mas não substituem o conceito pela sensação, criam sensações e não conceitos.”18

Apesar disso, a dupla presenteia o leitor com um exemplo patético de aproximação entre arte e Filosofia por meio de um desenho abstrato, um “retrato maquínico de Kant”, na página 75 do mesmo livro, com sua decifração na página seguinte. Nesse caso seria mais razoável seguir a orientação de Susan Sontag: “A pintura abstrata é a tentativa de não ter conteúdo algum, no sentido ordinário; e já que não há conteúdo, não há como ter interpretação”.19 Deparamo- nos então com o seguinte problema: será mais filosófico o que for mais ou menos abstrato? Do qual se depreenderão outros: será mais arte quanto mais concreto ou mais abstrato? Será filme-arte quanto mais concreto ou abstrato? 11 Short cuts é uma adaptação de contos de Raymond Carver, Laranja mecânica, de um romance homônimo de Anthony Burgess e The hours, de Michael Cunningham.

12 HIRSCH, Foster. Love, Sex, Death and the Meaning of Life. The Films of Woody Allen (2nd. Ed). Da Capo Press, 2001. GIRGUS, Sam B. The Films of Woody Allen. Cambridge University Press, 2002. PINSKER, Sanford. “Woody Allen’s Lovable Anxious Sclemiels.” In: The Films of Woody Allen. Critical Essays. Ed. Charles L.P. Silet, The Scarecrow Press, Inc. 2006.

13 Idem

14 PINSKER, S. op. cit., p.2.

15 No leitor também. Vide o conto This Nib for Hire, em que ser-para-a-morte, liberdade, escolha, neutralidade moral do universo, enfim, temas-chave do

existencialismo são colocados na boca dos... Três Patetas (ALLEN, Woody, Mere Anarchy, Random House, 2007, pp.35-43).

16 JARVIE, Ian. “Arguing interpretation: The pragmatic optimism of Woody Allen.” In: Woody Allen and Philosophy, pp.48-65. Open Court, 2004,.

17 Uma das interpretações mais disparatadas de algum filme de Woody é a de Sander Lee (Eighteen Woody Allen Films Analyzed, pp.160-163 e 222-223. McFarland & Cia. Publishers, 2002,). Ao tentar “salvar” o filme Crimes e Pecados da acusação de niilismo e cinismo moral, Lee insiste em sua leitura otimista do filme mesmo depois de, numa entrevista por escrito a ele concedida e incluída em seu livro, Woody rechaçá-la por completo.

18 Deleuze & Gattari, Op.cit., p.254

19 Sontag, Susan, Against Interpretation, Anchor Books, 1990, p.10 (tradução minha).

Fonte:

http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/21/artigo77283-4.asp

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A relação do cinema com a Filosofia nos filmes do nova-iorquino Woody Allenol POR FLÁVIO PARANHOS

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Rudolf Arnheim20 acredita que os filmes, de modo geral, trabalham com o concreto, por meio de imagens descritivas. Dessa forma são capazes até de transmitir conceitos abstratos, mas não são escravos desses conceitos. Quando acontece, não são bons filmes. Arnheim ilustra sua tese comparando uma cena d’ A corrida do ouro, de Charles Chaplin e The General Line, de Eisenstein. Do primeiro, a cena em que o vagabundo come o próprio sapato, e, do segundo, do trator passando por cercas de propriedades rurais. A poesia contida no filme de Chaplin permite toda sorte de interpretações, até mesmo políticas. A falta dela, em Eisenstein, amarra o filme a uma interpretação oficial, obrigatoriamente política. De uma perspectiva artística o russo sai perdendo, seu filme é empobrecido.

Allen escreve o roteiro, escolhe os atores, seleciona a trilha musical, dirige e até atua em vários de seus filmes, mais de duas dezenas até hoje

O que Arnheim apresenta-nos é apenas sua maneira de discutir o velho dilema da arte engajada. E, de fato, não há como negar, quanto mais descaradamente a serviço de uma causa, mais pobre será a arte. Menos arte será. Em qualquer forma que assuma.

Entretanto, cabe perguntar: isso continua valendo do ponto de vista filosófico? Se, seguindo minha própria tese, será mais filosófico o filme que pensa do que o que faz pensar, então Eisenstein é mais filósofo do que Chaplin. E é. O cineasta Eisenstein tinha um projeto filosófico bem delineado. Chaplin, não. Podemos talvez colocar a coisa nos seguintes termos: Eisenstein era um filósofo-artista, Chaplin, um artista-filósofo. Há filósofos nãoartistas? Há. E artistas não-filósofos? Não. Se nem pensar fizer, arte não será. Será perda de tempo.

Depreende-se facilmente do exposto acima que quanto mais filosófica uma obra for, mais artisticamente pobre será. O que é verdade. Parcialmente, pelo menos. São vários os exemplos que serviriam para ilustrar essa tese. Na dramaturgia, Gorki é mais filósofo do que Tchékhov, embora infinitamente mais pobre. O primeiro tinha um projeto definido, o segundo, um espanto mais geral. Gorki pega pelo braço e guia o leitor pelos Pequenos Burgueses e Os Inimigos. Tchékhov observa sua angústia diante d’As três irmãs com um discretíssimo meio-sorriso. Na música há um excelente contra-exemplo. Chico Buarque conseguiu como ninguém colocar sua música a serviço de uma causa política sem empobrecê-la.

Música, aliás, é um capítulo à parte. Belas melodias sem letra alguma jamais pensarão, sempre farão pensar. É o caso do jazz e da música erudita.

Esta última, obviamente, pode pensar, se tiver letra. Como regra, entretanto, não é o que acontece. As óperas, por

exemplo, não se imagina seus compositores munidos de algum Cartaz de Um corpo que cai (1958), Vertigo, no original, dirigido por Alfred Hitchcock

Em Melinda e Melinda, de 2005, Allen filma a história desta personagem, uma cômica e a outra trágica, criada por dois escritores

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projeto filosófico a partir dos libretos, a maioria bobinhos (talvez uma exceção seja Wagner). O Idomeneo, de Mozart, dá um bom caldo filosófico-moral, mas duvido que tal viagem passou-lhe pela cabeça. Mesmo quando eventualmente se valem da própria filosofia em suas obras, como Mahler fez com o Zaratustra, de Nietzche, em sua terceira sinfonia, não se trata de um projeto.

ARTISTA-FILÓSOFO

Será mais filosófico o filme que pensa do que o que faz pensar, então Eisenstein (na foto, com um crânio) é mais filósofo do que Chaplin (na imagem, em A busca do ouro). E é. O cineasta Eisenstein tinha um projeto filosófico bem delineado. Chaplin, não. Podemos talvez colocar a coisa nos seguintes termos: Eisenstein era um filósofo-artista, Chaplin, um artista-filósofo. Há filósofos não-artistas? Há. E artistas não-filósofos? Não. Se nem pensar fizer, arte não será. Será perda de tempo. Na dramaturgia, Gorki é mais filósofo do que Tchékhov, embora infinitamente mais pobre. O primeiro tinha um projeto definido, o segundo, um espanto mais geral. Gorki pega pelo braço e guia o leitor pelos Pequenos Burgueses e Os Inimigos. Tchékhov observa sua angústia diante d’As três irmãs com um

discretíssimo meio-sorriso. Na imagem, Gorki e Tchékhov, em Ialta, em 1900.

Sem letras, ou melhor, palavras, as artes plásticas também ‘farão pensar’, mais do que ‘pensarão’. E há ainda as combinações de filme, música e pintura, que podem resultar em belíssimas peças de arte-filosofia, como a de Kurosawa com Van Gogh e Chopin, em Sonhos (1990). O que me traz de volta ao cinema. Tendo escrito Film as Art na primeira metade do século passado, Rudolf Arnheim via com enorme desconfiança a cor e o som nos filmes, considerando-os como artisticamente empobrecedores, na medida em que promoviam uma naturalização, uma maior e nefasta aproximação com a realidade. Era a “vitória dos ideais de museu de cera sobre os da arte

criativa”21. O tempo veio desmentir Arnheim. Nem a

cor, nem o som empobrecem (necessariamente) o cinema. Os diálogos não paralisam a ação visual, como ele acreditava22. Pelo contrário, podem vir a compor de forma

Sem letras, ou melhor, palavras, as artes plásticas também ‘farão pensar’, mais do que ‘pensarão’. E há ainda as combinações de filme, música e pintura, que podem resultar em belíssimas peças de arte-filosofia, como a de Kurosawa com Van Gogh e Chopin, em Sonhos (1990)

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plenamente eficaz o todo que dá ao filme sua configuração criativo-artística. E filosófica.

Palavras são bem-vindas. Woody Allen, talvez o cineasta mais verborrágico de toda história do cinema, me ajudará a provar isso.

20 ARNHEIM, Rudolf, Film as Art. University of Califórnia Press, 1957, pp.143-151. 21 ARNHEIM, R., Op. Cit, p. 154.

Referências

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