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então, questiona até que ponto Lenin e o bolchevismo se conformaram aos (ou se afastaram dos) ideais de Marx

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Academic year: 2023

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Gregory Claeys University of London

Tradução de Helvio Moraes

Resumo

A coincidência de três aniversários, 1516, 1818 e 1917, provoca uma renovada reflexão sobre a natureza do componente utópico tanto em Marx como no marxismo. Esta apresentação introduz uma concepção de sociabilidade moreana; em seguida, pergunta até que ponto Marx a aceitou ou a desenvolveu; então, questiona até que ponto Lenin e o bolchevismo se conformaram aos (ou se afastaram dos) ideais de Marx. Por fim, aborda o problema da relevância de Marx para o século XXI e conclui que, se algo do pensamento de Marx se mantém pertinente numa era de avanço da mecanização e de uma economia “pós-trabalho”, são seus componentes utópicos, mais do que os

“científicos”.

Palavras-chave

Utopia, Marx, Revolução

Gregory Claeys é Professor da História do Pensamento Político na Universidade de Londres. Em 2016, foi eleito presidente da Utopian Studies Society (Europa). Seus interesses são a história do radicalismo e do socialismo na Grã-Bretanha do século XIX, o utopismo de 1700 a 2100, o darwinismo social e a eugenia e a história intelectual britânica de cerca de 1750 até o presente. Desde o início de sua carreira, seus interesses de pesquisa se concentraram principalmente na teoria e na prática da sociabilidade. Ele é autor e editor de muitos livros, como Citizens and Saints. Politics and Anti-Politics in Early British Socialism (1989); Searching for Utopia: the History of an Idea (2011, com edições subsequentes em alemão, espanhol, português e japonês);

Mill and Paternalism (2013); Dystopia: a Natural History (2016). Em 2018, A Pelican Introduction: Marx and Marxism será publicado pela Penguin Books.

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Gregory Claeys University of London

Abstract

The coincidence of three anniversaries, 1516, 1818 and 1917, provokes renewed reflection on the nature of the utopian component both in Marx and Marxism. This presentation introduces a Morean conception of sociability; then asks to what degree Marx accepted or built on it; then questions how far Lenin and Bolshevism conformed to or departed from Marx's ideals. Finally it addresses the problem of Marx's relevance to the 21st century, and concludes that if anything it is the utopian rather than the “scientific” components in Marx which remain pertinent in an era of advancing mechanisation and a “post-work” economy.

Palavras-chave

Utopia, Marx, Revolution

Gregory Claeys is Professor of the History of Political Thought at University of London. In 2016 he was elected Chair of the Utopian Studies Society (Europe). His interests are the history of radicalism and socialism in 19th century Britain, utopianism 1700–2100, Social Darwinism and Eugenics, and British intellectual history c. 1750 to the present. From the beginning of his career his research interests have focused chiefly upon the theory and practice of sociability. He is author and editor of many books, such as Citizens and Saints. Politics and Anti-Politics in Early British Socialism (1989); Searching for Utopia: the History of an Idea (2011, with subsequent editions in German, Spanish, Portuguese and Japanese); Mill and Paternalism (2013); Dystopia: A Natural History (2016). In 2018, A Pelican Introduction: Marx and Marxism, by Penguin Books, will be published.

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I. Introdução

Os anos de 1516, 1818 e 1917 marcam três grandes eventos no calendário da especulação utópica.1 O nascimento de Karl Marx e o aniversário da revolução bolchevique estão claramente entrelaçados. Para nós, 1516 também permanece significativo, especialmente na medida em que vemos as aspirações de Thomas More culminarem no movimento que Marx inaugurou. Mas culminaram de fato? Esta tarde, levarei em consideração a hipótese de que Marx buscou uma forma utópica de sociabilidade. Em seguida, avaliarei brevemente o motivo de o sistema de Marx ter fracassado em não se materializar depois de 1917 e, por fim, apresentarei o argumento de que, se pudermos recuperar algo útil de Marx, é o componente utópico de seu sistema, ao contrário do supostamente “científico”, o que continua a nos atrair.

* * * *

Em primeiro lugar, definamos Utopia. Se presumimos que o utopismo compreende três aspectos, a saber, a ideologia, a literatura e as comunidades intencionais que aspiram ao bom viver de um determinado grupo, as “sociedades ideais” são evidentemente definidas por seu foco nas variações de amizade e solidariedade. Na Utopia, as pessoas se tratam melhor do que normalmente o fazem: é simples assim. Sua sociabilidade é “reforçada” além da norma. Isto porque, frequentemente, compartilham juntas a propriedade, são ligadas por um ethos coletivista e muitas vezes igualitário e por uma sensação de promoverem o bem-estar mútuo. Também vivem sob regimes de supervisão transparente, que eliminam as chances de se violar as normas. Em suas formas distópicas extremas, estes vínculos são muito restritos e sufocam o indivíduo. Aqui, o medo predomina sobre a amizade. Aqui também, no entanto, a distopia às vezes imita a sociabilidade utópica, produzindo uma ersatz bonhomie que Leszek Kolakowski chama de “solidariedade compulsória” (Kolakowski, 1983, p. 237). Mas a amizade, todos sabemos, não pode ser forçada:

deve ser voluntária.

1 Este ensaio resume os argumentos de meu livro A Pelican Introduction. Marx and Marxism (Penguin Books, 2018, no prelo).

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II. Marx e Utopia

Deixem-me perguntar a Marx até que ponto seu sistema procurou promover um tal ideal de sociabilidade. Chamar Marx de “utopista” é ir de encontro à terminologia convencional. Ao se distanciar, entre 1844 e 48, de seus predecessores socialistas, Marx classificou como “utopistas”

aqueles que não conseguiam ver o proletariado como o potencial agente de transformação e sonhavam com “edições em formato duodécimo da Nova Jerusalém” em vez de imaginar a queda violenta do capitalismo. A história tradicional aqui é, sem dúvida, conhecida de todos vocês. Marx começou sua carreira de crítico como um humanista radical. Quando seus pensamentos sobre o assunto começaram a se consolidar em 1843-44, ele adotou a concepção de Ludwig Feuerbach de

“ser genérico” (Gattungswesen) para descrever o ideal de harmonia que visava e o ponto de vista crítico para denunciar o capitalismo. Até mesmo a troca deveria ser “igual à atividade genérica e ao espírito genérico cuja existência verdadeira, efetiva e consciente é a atividade social e o desfrute social”(3: 216-17). Em 1845-6, abandona esta noção em favor de uma perspectiva anti-idealista que vislumbrava as relações sociais do futuro como sendo originárias do presente. Em vários pontos posteriores, continuou a ressaltar sua distância dos “utopistas”. A respeito da Comuna de Paris, por exemplo, Marx repetiu que os trabalhadores não tinham “nenhuma utopia pronta para implantar par décret du people[...] Eles não têm ideais para realizar, a não ser libertar os elementos da nova sociedade dos quais a velha sociedade burguesa em colapso está prenhe “(22: 335).

No entanto, há muito tempo tal narrativa tem estado sob suspeita. Marx não somente continuava a admirar muitas ideias dos primeiros socialistas, em particular o esquema de cooperação e a teoria da educação de Robert Owen, e a insistência de Charles Fourier em superar a rígida especialização. Ele também defendeu, na maturidade, o ideal que havia estabelecido por volta de 1844 como o ponto final do processo revolucionário, ou seja, a criação uma sociedade que pudesse nutrir um “completo” desenvolvimento de caráter. A idéia de multilateralismo foi compartilhada por escritores do Iluminismo alemão, como Schiller e Lessing. Em Marx, foi o antídoto para a divisão de trabalho opressivamente estreita, alvo dos “Manuscritos de Paris” de 1844, contra a qual Hegel havia se queixado já em 1802, com referência a Adam Ferguson em particular.

A teoria da ideologia da “Ideologia Alemã” é muitas vezes entendida como relativização da moral, na afirmação de que a moral e a religião são meramente parte da superestrutura e alteram-se à medida que muda o modo de produção. No entanto, a noção de multilateralidade é um ideal de

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Marx antes e depois de 1845. A multilateralidade não é, no entanto, uma teoria da sociabilidade como tal. Marx a estabeleceu ao defender o que chamou de “solidariedade”, mais tarde descrita mais precisamente como “cooperação”. Na sociedade comunista, Marx nos diz em 1845, “o desenvolvimento genuíno e livre dos indivíduos “seria”determinado precisamente pela conexão dos indivíduos, uma conexão que consiste em parte nos pré-requisitos econômicos e em parte na necessária solidariedade [Solidarität] do livre desenvolvimento de todos e, finalmente, no caráter universal da atividade dos indivíduos com base nas forças produtivas existentes”(5: 439). Tanto antes quanto depois de 1845, portanto, o ideal de Marx consistiu em dois componentes, multilateralidade e solidariedade. Ambos, no entanto, não eram apenas ideais, mas na verdade existiam e se originavam das relações produtivas emergentes. Marx, em 1844-45, via claramente as relações entre as pessoas, ou sociabilidade, como uma medida-chave do progresso de toda a humanidade. Não há dúvida de seu antagonismo em relação à ganância e ao egoísmo. Como escreveu em 1845, o objetivo era “libertar [o homem] da imundície do ganho” e de ser “o escravo do trabalho para o ganho e de necessidades egoístas, tanto suas como de outros homens”(4: 113).

Isso seria realizado ao se assegurar de que “a todo homem deve ser dado alcance social para a manifestação vital de seu ser. Se o homem é moldado pelo meio ambiente, seu ambiente deve tornar-se humano “(4: 130-1) - eis o ponto-chave de Owen. Em 1844, no entanto, Marx não estabeleceu uma teoria muito robusta da sociabilidade. Sua relutância em aplaudir o entusiasmo de Engels pelo comunitarismo o privou de uma estratégia útil para o desenvolvimento do conceito.

Depois de abandonar a noção de “ser genérico” em 1845, a teoria parece ainda mais fraca. Após o ataque de Max Stirner ao comunismo, Marx relutou em falar sobre “o estado fundado no amor” ou numa nova religião da “sociedade” (5: 211), frases associadas a outros socialistas como Moses Hess e Karl Grün, bem como Owen e os sansimonianos.2

Contudo, tanto a solidariedade como a multilateralidade permanecem como ideais nos escritos posteriores de Marx. O Grundrisse e O Capital promovem a solidariedade, a cooperação, a sociedade dos “produtores livres”, a auto-realização e a multilateralidade. Se o utopismo consiste em aspirar a uma sociedade definida por uma sociabilidade mais acentuada, Marx se encaixa claramente na definição. Na década de 1860, Marx continuava negando que fosse “utopista”. O que

2 Marx ainda insistia que “a propriedade privada aliena [entfremdet] a individualidade, não apenas das pessoas, mas também das coisas” (p. 230). Ver Marx & Engels (2002, pp. 140-4) para uma descrição do impacto de Stirner sobre Marx. A tese de que Stirner ajudou Marx a ir além de Feuerbach é defendida por Lobkowicz (1969, pp. 64-5). Engels pensou que as idéias de Stirner “devessem imediatamente se transformar em comunismo” porque ele levou o egoísmo burguês a sua conclusão logicamente absurda (38:11).

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ele agora queria dizer era que a cooperação produtiva – fábricas geridas por trabalhadores – estava emergindo no interior do capitalismo como um modelo de relações econômicas futuras. Esta produção comprovada era possível “sem a existência de uma classe de mestres empregando uma classe de mãos”. A “cooperação” seria agora a ponte do capitalismo para o comunismo, em que a democracia vai além da política para a economia. A declaração frequentemente citada na Ideologia Alemã - que confundiu tantos comentaristas - de que “o comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido [...] Denominamos comunismo o movimento real que abole o atual estado de coisas “ (5:49), que em 1845-46 era uma vaga afirmação, descrevia agora com precisão este processo. E assim, Engels descreveria o futuro em termos de “uma sociedade organizada para o trabalho cooperativo, de forma planejada, para garantir a todos os membros da sociedade os meios de existência e o livre desenvolvimento de suas capacidades e, de fato, em medida cada vez maior” (25: 139).

* * * *

No entanto, há muitos outros sentidos que nos permitem chamar Marx de utopista.

(Retornarei adiante a alguns usos negativos do termo). Além do sentido já descrito, Marx era um

“utopista”, em sentido neutro ou positivo, em sete modos, pelo menos.

O primeiro e mais óbvio é que a defesa do comunismo estava associada à tradição estabelecida pela Utopia de Thomas More. Em 1845, Marx, Engels e Hess projetaram uma

“biblioteca dos melhores escritores socialistas estrangeiros”, que deveria incluir Thomas More e Campanella.3

O segundo é a persistente hostilidade de Marx em relação à especialização. Jon Elster considera “uma das idéias mais utópicas de Marx a de que, no âmbito do comunismo, não haverá mais ocupações especializadas”; assim, “não haverá mais pintores, apenas pessoas, que entre outras coisas, também pintam”4. Marx e Engels, evidentemente, concordavam com Fourier ao retratarem a futura sociedade comunista em uma bem conhecida (ainda que controversa) passagem, como sendo aquela “em que ninguém possui uma esfera exclusiva de atividade, mas onde cada um pode se realizar em qualquer ramo que deseja; a sociedade regula a produção geral e, portanto, torna

3 Um obelisco chamado Obelisco dos Pensadores Revolucionários foi criado em Moscou, em 1918, a partir de um monumento de 1914 aos Romanov, e nele se incluía o nome de Thomas More. Foi retirado em 2 de julho de 2013 para dar lugar a outro monumento aos Romanov.

4 Elster (1986, p. 43); [5: 394]

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possível que eu faça uma coisa hoje e outra amanhã, caçar na parte da manhã, pescar à tarde, cuidar do gado ao fim do dia, criticar depois do jantar, como melhor me aprouver, sem que me torne caçador, pescador, pastor ou crítico” (5:47). No entanto, esta imagem extremamente vívida, tão evidentemente inadequada para a moderna visão urbana e industrial do comunismo implícita no Manifesto Comunista , confundiu muitos comentaristas. Engels reiteraria, contudo, em 1847, que

a divisão do trabalho, fazendo de um homem um camponês, outro, um sapateiro, um terceiro, operário, um quarto, corretor, desapareceria completamente”. No futuro, “a educação permitirá que os jovens passem rapidamente por todo o sistema de produção, [...] de um ramo da indústria para outro, de acordo com as necessidades da sociedade ou suas próprias inclinações. Por conseguinte, ela os libertará desta unilateralidade que a atual divisão do trabalho imprime em cada um deles. Assim, a organização comunista da sociedade dará aos seus membros a chance de um exercício completo de habilidades que tenham recebido um desenvolvimento completo (6: 348, 353).

Esta descrição definitiva da multilateralidade evidentemente unia os esquemas de Fourier e Owen.5 Uma questão crucial, no entanto, é o quão longe Marx, na maturidade, manteve esta perspectiva. A Crítica do Programa Gotha (1875) descreve o comunismo como pondo fim “à subordinação escravizante de indivíduos sob a divisão do trabalho e, com isso, também à antítese entre o trabalho mental e o trabalho físico” (24:87). Engels reiterou em 1872 a necessidade de se

“abolir a antítese entre cidade e campo”, observando que nos planos de Fourier e Owen ela não mais existia, e isso implicava a eliminação das “grandes cidades modernas” (23: 347-8, repetido em 1878 em 25: 279). Isso fere a visão moderna e urbana que temos de grande parte do marxismo posterior. Mas deixa sem solução, entre outras, a questão de saber até que ponto queremos uma

5 O plano de Owen envolvia o movimento sequencial através de todas as principais atividades da vida. A primeira

“classe”, desde o nascimento até os 5 anos, frequentaria a escola. Os de 5 a 10 anos ajudariam com o trabalho doméstico, supervisionados em parte por aqueles de 10 a 15 anos, que também aprenderiam habilidades agrícolas e industriais. A partir dos 15 aos 20 anos todos participariam da produção, ajudando também a supervisionar o grupo etário mais jovem. Aqueles com idade entre 20 e 25 anos supervisionariam todos os ramos de produção e educação.

Todos os de 25 a 30 anos preservariam e distribuiriam a riqueza, enquanto aqueles com idade entre 30 e 40 anos governariam as comunidades. Os mais maduros (40-60), conduziriam os “assuntos externos”. Ver Owen (1836-44, parte 6, pp. 84-6). Fourier propôs que os indivíduos, inclusive as crianças, tivessem até oito atividades diferentes a cada dia, embora “a divisão do trabalho seja levada até o último grau, para que cada sexo e idade possa se dedicar às obrigações que lhe são mais adequadas” e “no pleno gozo do direito ao trabalho ou do direito de se envolver no ramo de trabalho que deseja escolher, desde que dê prova de integridade e habilidade” (Fourier, 1901, pp. 163-71, aqui 164).

Há evidências de que o ideal de Marx foi aceito. Lunacharsky (1981, p. 190) escreveu posteriormente que “a escola marxista, real, completa, como Marx a previu, só pode ser realizada na prática em um estabelecimento educacional que esteja ao lado do estabelecimento industrial e que compartilhe da vida deste”. Deu a isto o nome de “princípio marxiano da escola de trabalho” (ibidem, p. 210).

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sociedade definida pelo amadorismo. No momento em que o bisturi é posicionado, queremos um cirurgião cardíaco cujo coração está na poesia? No momento em que o avião aterrissa, queremos um piloto cujo verdadeiro amor é a jardinagem? Ou que ficou em primeiro lugar no exame de teoria do marxismo? Como um passageiro frequente, tenho uma visão clara sobre isso.

Em terceiro lugar, há a questão da política. Em 1843, Marx decidiu que os estados existentes apenas refletiam conflitos de classe na sociedade civil, de modo que a “emancipação humana” não poderia ocorrer na esfera política. Rejeitando a ideia de Hegel de que uma burocracia neutra poderia arbitrar entre as lutas de classe, ele agora acreditava que o poder do Estado como uma função dos antagonismos de classe “desapareceria” quando as classes desaparecessem. A sociedade comunista somente envolveria o gerenciamento ou “administração” democrática das

“coisas”, e não o “governo das pessoas”.

Isso conclama, é claro, muitas questões sobre o potencial de desacordo mesmo em sociedades sem classes. Ao mesmo tempo, no entanto, um antídoto para o problema da alienação foi fornecido em uma variante da cooperação produtiva de Owen, tornando o controle democrático a chave para a emancipação dos trabalhadores e resolvendo politicamente o que havia sido em parte, até mesmo principalmente, um problema existencialista e psicológico em 1844.

O quarto pressuposto utópico de Marx é o de que o comportamento social melhoraria dramaticamente após o fim da propriedade privada. Iring Fetscher afirma que “uma das idéias centrais de Marx era a de que os homens são tão modificados pela revolução socialista que se comportam espontaneamente em um espírito de solidariedade e preocupação em relação à comunidade” (Fetscher, 1971, p. 45). Como a maioria dos socialistas, Marx pensava que a propriedade privada fosse a principal fonte de inquietação social, particularmente o roubo, a violência pessoal e a prostituição.6 O seu ideal de um período futuro de paz e abundância tem uma conotação quase milenarista, e em certos pontos parece uma versão secular do desenvolvimento providencial. Marx provavelmente acolheu os pressupostos moreanos sobre a supervisão mútua.

Ali há também sugestões de uma teoria essencialista da natureza humana, particularmente vinculada a um ideal de comportamento da classe trabalhadora. Marx relutava em prover de detalhes sua visão de Gemeinschaft. Mas alude à familiaridade, à confiança e ao apoio mútuo como opostos à coerção, exploração e medo.

6 “Nós eliminamos a contradição entre o homem individual e todos os outros, contrapomos a paz social à guerra social, cortamos com machado a raiz do crime - e assim tornamos supérflua a maior, de longe a maior, parte da atividade atual dos órgãos administrativos e judiciais” (Engels: 4: 248).

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O quinto pressuposto utópico de Marx reside na relação das primeiras fases da sociedade com a última etapa. E. H. Carr vê Marx como se compartilhando com os utopistas “sua concepção do estado primitivo do qual o homem surgira e do futuro estado que o homem eventualmente alcançaria”, afirmando que “nesses pontos essenciais, o próprio Marx não contribuiu com nada original e se contentou em ser o discípulo fiel dos socialistas utópicos” (Carr, 1934, p. 81). O comunismo primitivo carecia de luta de classes. A nova síntese do futuro superior preservaria alguns de seus atributos. Mas, embora a maior parte das sociedades primitivas possuam um sentido muito maior de responsabilidade de grupo do que as modernas, a sociedade futura precisaria mitigar, senão abolir, esse egoísmo fomentado pelo capitalismo. O interesse tardio de Marx pelas comunas russas evidencia claramente seu juízo de que algumas sociedades mais antigas ofereciam pistas sobre como as futuras organizações comunistas poderiam evitar esse problema. Por fim, concluiu que a propriedade comunal era “de origem indiana” e poderia “ser encontrada entre todos os povos europeus no início de seu desenvolvimento” (43: 434). No entanto, qualquer sociabilidade evidente aqui devia ser contrabalançada com o compromisso do Manifesto de colocar o desenvolvimento multiforme na fase mais avançada do desenvolvimento industrial, que produzia

“a dependência multiforme, esta forma natural primária de cooperação histórico-mundial dos indivíduos”.

Em sexto lugar, lembramos a expectativa de Marx de que as conquistas na socialização, nomeadamente no abrandamento da coerção, da violência e da opressão, que eram claramente alcançáveis em comunidades de pequena escala, poderiam ser emuladas ao nível do Estado-nação.

O problema de escala é aqui extremamente importante. Muito do que funciona com alguns milhares de pessoas, no nível comunal, incluindo o próprio comunismo, pode ser impossível com milhões, ou com uma estrutura organizacional diferente. Marx pode, no entanto, ter pressuposto que as unidades cooperativas básicas preencheriam algumas das funções anteriormente associadas a pequenas comunidades voluntárias ou intencionais (como as chamaríamos hoje). Mao Tzé-Tung, por exemplo, certamente o fez mais tarde.

Em sétimo lugar, o ideal de “sociedade comunista” é frequentemente descrito, por exemplo, por Steven Lukes (1984, p. 156), como a própria “utopia de Marx e Engels”. Esta seria uma finalidade última, uma condição de paz e abundância semelhante à Idade do Ouro ou ao paraíso cristão, que não poderia ser superada. Aqui o proletariado encontraria sua verdadeira redenção.

Perguntado sobre o que era o comunismo, Ho Chi Minh uma vez respondeu: “Ninguém jamais será

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explorado, nos amaremos e todos seremos iguais” (Brocheux, 2007, p. 65). Tais reivindicações não poderiam ser superadas nesta vida: este era o paraíso na terra.

* * * *

Nenhuma dessas qualidades utópicas, como tais, reduz o valor da visão de Marx. Delineá- las apenas nos ajuda a esclarecer como devemos compreendê-lo e julgar suas idéias e propostas como realistas ou não. Rubel chamou Marx de o “maior dos utopistas sociais”, até mesmo “o mais utópico dos utopistas”, precisamente porque ele “deu à utopia socialista uma base racional, ligando o postulado ético da realização do socialismo à lei científica da destruição do capitalismo e a suas consequências inerentes ao comportamento humano” (Rubel, 1981, p. 26-8). Outros, no entanto, veriam tais atributos como talvez o aspecto menos utópico do legado de Marx. Vimos acima que a combinação feita por Marx de um ideal de multilateralidade juntamente com a cooperação econômica e o controle comunal democrático constitui um claro ideal da emancipação da classe trabalhadora, especialmente por proporcionar mais tempo livre e a liberação da fadiga, com o emprego de mais maquinário. Ironicamente, é justamente o que há de mais utópico em Marx, a saber, esta visão do futuro, e não o que há de mais “científico” (a concepção materialista da história e a teoria da mais-valia), o que lhe dá grandeza. Sua capacidade de conceber uma sociedade amplamente melhorada, de superar todos os preconceitos da época quanto à impossibilidade de melhoramento das massas, tornou-o um visionário de primeira ordem. E a declaração de Marx sobre a capacidade humana de se desenvolver por completo é algo duradouro, cujo valor permanece inalterado.

III. Marxismo e Revolução

Permitam-me passar agora à Revolução bolchevique de 1917, após o que, como bem sabemos, os objetivos de Marx não foram, infelizmente, concretizados. Não podemos tomar em consideração, hoje, todas as razões disto. Mas vamos apontar para o mais óbvio, antes de retornar à vexatória questão do grau de relação que Marx estabelece com eles.

O problema principal da Revolução de Outubro, obviamente, foi que ocorreu em uma nação de base esmagadoramente camponesa, com um pequeno proletariado. Depois de 1905, alguns acreditavam que apenas um pequeno grupo de revolucionários profissionais e bem organizados

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poderia derrubar a autocracia czarista. Uma vez que o modelo de partido de massas que Marx defendia foi descartado em favor de um grupo conspiratório altamente centralizado, a possibilidade de a democracia de massa evoluir a partir da revolução era muito limitada. Também paira certa dúvida sobre se Lenin pensava ser possível, para um longo período, algo além do centralismo democrático. No entanto, vale a pena recordar uma série de pontos decisivos na degeneração da Revolução em ditadura, especialmente entre 1917 e 1921.

Cinco desses pontos marcam esse processo. O primeiro foi o golpe bolchevique em outubro de 1917, que encerrou o governo provisório e a perspectiva de democracia multipartidária. A seguir, Lenin esmagou a oposição em seu próprio partido, e de outros partidos (mencheviques, social-revolucionários e anarquistas), bem como de sindicatos e cooperativas. Em terceiro lugar, surgiu a suposição de que o Partido, ao contrário do proletariado reunido em soviets, representava o movimento liderante da revolução. Em quarto lugar, seguiu-se a ditadura pessoal de Lenin.

Finalmente, emergiu um estado policial, com a ascensão do Tcheka ao poder, dentro, fora e acima do partido. Para muitos, esta última etapa foi a mais perigosa de todas e, como pensou o veterano revolucionário Victor Serge (1973, p. 81), produziu “os erros mais graves e inadmissíveis que os líderes bolcheviques cometeram em 1918”. Desde cedo os bolcheviques claramente consideravam como justificável qualquer meio para preservar seu poder. “Nossa moralidade”, disse Lenin, “está completamente subordinada aos interesses da luta da classe proletária [...]. A moral é o que serve para destruir a velha sociedade exploradora”.7 O caminho estava agora aberto para destruir a vida de cerca de vinte milhões de cidadãos soviéticos nas purgas e no Gulag em nome da rápida industrialização e da criação de uma sociedade socialista.

Em todas estas etapas, é central uma atitude em relação à oposição como tal. A concepção de oposição de Lenin foi descrita como “preponderante” entre os fatores que produziram o autoritarismo soviético. Contra Kautsky em 1918, Lenin insistiu em que a “oposição” é um conceito de luta pacífica e exclusivamente parlamentar” (Lenin, 1963-4, vol. 3, p. 53). Lenin parece ter imaginado que, se ele e o Partido representavam o interesse da classe trabalhadora, qualquer coisa contrária a eles, ou mesmo fora deles, era hostil, errado, incorreto ou “burguês” e tinha que ser erradicado (Lovell, 1984, p. 188). No início, os principais rivais eram os mencheviques. Em fevereiro de 1921, o governo menchevique na Geórgia foi expulso, e o partido, que exigiu que o Tcheka fosse abolido, foi proscrito. Uns poucos mencheviques e anarquistas proeminentes foram autorizados a se exilar. Então veio a supressão do levante de Kronstadt em

7 Citado em Conquest (1972, p. 41).

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março de 1921. Os marinheiros de Kronstadt haviam tentado uma “derrota da ditadura do Partido e retorno à democracia soviética” (Rosenberg, 1934, p. 155). Esta foi a última oportunidade de realização de tais ideais sob o Bolchevismo. Mas os rebeldes foram esmagados sem piedade. “No décimo Congresso do Partido, realizado durante o levante, Lenin declarou que “Organizarmo-nos em grupos diferentes (especialmente antes de um congresso) é, naturalmente, permitido (o mesmo vale para o pedido de votos).” Mas acrescentou: “isso deve ser feito dentro dos limites do comunismo”. Ao Partido, ele disse que “independentemente de quais tenham sido as extravagâncias de discurso que nos permitimos, com razão ou erroneamente, no passado, agora reconhecemos a necessidade de maior harmonia e unidade do que nunca” (Maximoff, 1940, p.

260). Uma imprensa livre, ele insistia, significava “liberdade para a organização política da burguesia e seus servos mais confiáveis - os mencheviques e os social-revolucionários [...], significa ajudar o inimigo da classe” (ibidem, p. 158).

A supressão de todas as oposições permaneceu compatível com aspirações utópicas. Lenin assumiu que, algum dia, o estado proletário interino “ou semi-estado” definharia e “as pessoas se acostumarão a observar as condições elementares da vida social sem violência e sem subordinação”. Na sociedade comunista, Nicolai Bukharin acrescentou, “haverá uma completa liberdade “pessoal”, sem quaisquer normas externas que regulem as relações entre as pessoas - em outras palavras, atividade auto-regulada sem restrições.”8 Do mesmo modo, Leon Trotsky, fazendo eco a Saint-Simon e a Marx, previu em 1920 um tempo em que o próprio Partido Comunista desapareceria, sendo substituído por um Conselho Supremo de Economia Pública. Enquanto isso, foi criada uma sociedade que, em breve, era mais distópica do que utópica. À medida que a rede de vigilância e suspeita se fechava cada vez mais fortemente sobre a população, o medo dos outros dominava a vida cotidiana, adentrando, de fato, a década de 1950. A história, assim, tendeu a julgar duramente a Revolução de 1917. No entanto, ainda que um fracasso colossal, ela foi, sem dúvida, um nobre experimento, cujo fracasso nos permite construir uma sociedade melhor precisamente por nos mostrar como não proceder.

IV. Marx, Utopia, Revolução

Permitam-me, então, abordar o papel específico da utopia neste processo, e da utopia de Marx em particular e, em seguida, brevemente perguntar a relevância desta nos dias de hoje. Marx

8 Cf. Bukharin (1982, pp. 13, 73, 78).

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é muitas vezes acusado de utopismo no sentido negativo, sendo geralmente associado ao mais amplo fracasso dos regimes comunistas do século XX. Leszek Kolakowski, por exemplo, acusa seu sistema de utopismo “porque se baseia nos valores antitéticos de liberdade e unidade social” (apud Lovell, 1984, p. 18). Críticos como Eric Voegelin sugerem que a visão de Marx, no início da década de 1840, além de buscar apenas a perfeição humana, era quase religiosa e especificamente quiliástica.9 John Maguire (2009, p. 234) descreve a “versão inicial do comunismo” de Marx como

“extremamente utópica” (por exemplo, por vislumbrar um fim para todos os conflitos entre homem e natureza e homem e homem), mas já “menos milenarista” no Manifesto, onde a ideia de abolir todas as distinções foi substituída pela de acabar com a propriedade privada nos meios de produção.

Meu livro recente, Dystopia: A Natural History, tenta separar os pressupostos que podemos designar mais adequadamente de milenaristas daqueles que são melhor descritos como “utópicos”.

Estas tradições se sobrepõem historicamente e conceitualmente, e Marx e Engels reconheceram sua forte inter-relação.10 Tomando Thomas More como modelo, no entanto, o utopismo representa uma tradição essencialmente secular de busca por uma sociedade muito melhorada graças à reorganização institucional. O milenarismo, ao contrário, propõe uma sociedade muito mais perfeita, na qual o comportamento humano se aprimora ainda mais dramaticamente. Nele, é comum uma expectativa de novidade extrema e uma limpeza moral que elimina o pecado. Em sua forma secular, próxima à utopia, ele não requer nenhuma intervenção divina, mas complementa o desejo recorrente dos modernos por uma novidade completa, uma mudança total e um compromisso com a perfectibilidade. A diferença aqui pode parecer ser de grau: nenhum crime no estado milenarista, crime e até mesmo escravidão na utopia. Mas também pode medir a distância entre realismo e perfeição. E o grau de perfeição que esperamos pode muito bem ser proporcional à coerção e à repressão que de bom grado exercemos ao criá-la. O assassinato em massa pode parecer apropriado para alcançar a salvação ou a redenção da humanidade. Para reduzir a taxa de criminalidade, parece ser contraproducente, pelo menos. Marx pode ser visto como vinculado às duas tendências em vários momentos. Mas geralmente se admite que a linguagem da “emancipação humana” de 1844 cedeu, até o fim da década de 1850, ao pressuposto mais modesto de que os trabalhadores poderiam aspirar à multilateralidade, uma vez que tivessem tempo livre suficiente.

9 Karl Löwith (1949, p. 45) discute a inspiração do Manifesto em termos de “messianismo e profetismo judaicos”.

10 “Por reino de Deus, Münzer queria dizer uma sociedade sem diferenças de classe, sem propriedade privada e sem autoridade estatal independente e estranha aos membros da sociedade” (Engels, 10: 415).

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Os maiores desastres que acompanham a implementação da visão de Marx vieram do ritmo extremo de modernização que ela implicava, em primeiro lugar; e, em segundo lugar, como vimos, a atitude em relação à oposição que Lenin e outros presumiam que a “ditadura do proletariado”

requeria. O anseio por uma acelerada industrialização deixa claro que Lenin e ainda mais Stalin escolheram o caminho rápido para a utopia. Grande parte do dano causado resultou de sua atitude em relação ao campesinato e da natureza extremamente punitiva da coletivização agrícola e das campanhas anti-kulaks. O velho tema moreano de transparência e supervisão mútua também produziu uma sociedade na qual a confiança era rara e a suspeita era a norma. Portanto, jamais seria provável que tais meios produzissem fins utópicos. A solidariedade mais alta do jovem Marx, enquanto almejada no ethos dos membros do Partido e no idealismo dos Komsomols, permaneceu dúbia na sociedade em geral. Tivessem a abundância e mesmo a superfluidade sido alcançadas, a história poderia ter sido diferente. Mas não foram.

V. O Legado de Marx

Deste modo, por fim, qual é a nossa posição em relação a Marx? O Marx utopista, em vez do científico, continua a ser uma figura atraente. Do lado positivo, destacam-se três características do sistema de Marx. Em primeiro lugar, sua visão do futuro. A pobreza pode ser abolida e, além dela, muita miséria adicional. O tempo livre ainda pode ser reivindicado por todos - os antigos e os europeus medievais, afinal de contas, desfrutavam um terço do ano no ócio. Estamos trabalhando demais há 500 anos: agora podemos parar. (Então, por que estamos aumentando a idade de aposentadoria?) Marx imaginou que as máquinas dariam tempo livre aos muitos. Uma nova onda de mecanização pode tornar isso possível agora. O utopismo hoje aponta para uma sociedade “pós- capitalista” e “pós-trabalho”. Reivindicações de uma renda básica universal atendem tanto a um sistema de bem-estar cada vez mais mirrado quanto a uma persistente falta de empregos bem remunerados.11 Estas propostas podem parecer uma pálida sombra da ideia de se abolir toda a servidão. Mas certamente são um passo na direção certa.

Em segundo lugar, vimos que a imagem do futuro de Marx se baseava em sua teoria da alienação e em sua contraparte, um ideal de complet total desenvolvimento. Com algumas modificações, aplicar isto ao século XXI não é difícil. No trabalho, horas mais longas, a mecanização, o salário mais baixo e as pensões reduzidas ameaçam até mesmo as classes médias.

11 Ver Bregman (2017).

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Milhões de trabalhadores resvalam cada vez mais para o precariado e estão cada vez mais preocupados com seu emprego, sua saúde e seu futuro. No mundo menos desenvolvido, grandes massas de trabalhadores de fábricas suportam condições vitorianas. Fora do trabalho, a solidão é um problema crescente em todo lugar. Nas grandes cidades, estamos cada vez mais distantes dos que nos rodeiam, até mesmo de nossas próprias famílias. À medida que a taxa de divórcio aumenta, mais pessoas vivem sozinhas e nosso senso de responsabilidade pelos idosos diminui. O egoísmo e a competitividade têm um valor maior do que a sociabilidade, a deferência para com os necessitados e o altruísmo. Nosso sentido de comunidade diminui rapidamente. Aqueles que encontramos nas ruas são, em sua maioria, desconhecidos para nós, e objeto de soturno desprezo ou mesmo de antagonismo. Politicamente, uma sensação de ser dominados e de não controlar nossas vidas é forte e a apatia é generalizada. No lazer e na cultura, a obsessão com o consumo e com bens de luxo predominam como nunca antes. À medida que o mundo natural se desintegra incessantemente ao nosso redor e nos tornamos cada vez mais urbanos, fazemos menos parte dele do que nunca. Nossa sociabilidade também diminui em outras áreas. A servidão às máquinas avança rapidamente. Nos espaços públicos, muzak e imagens intermitentes causam cada vez mais distração na conversação e na interação humana direta. Na era da “amizade” de Facebook e do uso obsessivo-compulsivo dos Smartphones, a interação pessoal geralmente perde lugar para o clique viciante do envolvimento virtual. Aqui, uma tecnologia fetichista literalmente nos funde com a mercadoria, e a desconexão de nossos dispositivos traz desorientação e uma sensação de perda de poder e de significado. Se considerarmos que Marx priorizou a comunicação pessoal direta e, em grande parte, entre iguais, isso indica um aumento maciço da alienação tecnicamente induzida, embora nem todas as formas de ilusão e de realidade alternativa pertençam a esta categoria.

Culturalmente, também, a manipulação de massas, inclusive a mais recente, que urde um ódio nacionalista e xenofóbico, nos compele a mais antagonismos. A alienação permanece, assim, como uma maneira vital de abordar nossa condição, embora muitas dessas formas não derivem do capitalismo, mas de nossa relação com as máquinas. Contudo, curiosamente, quase não falamos sobre isso hoje, e poucos anseiam por “libertação” ou “emancipação” de sua

“unidimensionalidade”.

Em terceiro lugar, a análise sistemática de Marx sobre o capitalismo permanece extremamente relevante. Marx enfatizou a natureza orgânica de qualquer modo de produção, sua constante propensão à mudança e a motivação de seus atores-chave por um auto-interesse persistente. O primado dos fatores econômicos é seu pressuposto central. A concentração da

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riqueza e o crescimento da desigualdade no início do século XXI continuam sem obstáculos. A guerra de classes está viva e bem, mas os ricos estão ganhando. Mais sociedades desiguais são, todavia, mais cruéis e menos felizes, mesmo para os ricos.12 A ganância é mais aberta, e mais abertamente celebrada, do que nunca. Não estamos avançando em civilidade nesta frente. Os ricos fazem uma guerra constante, geralmente sem constrangimento, contra os pobres, a quem consideram meros carneiros a serem abatidos. Até que as classes pobres e médias percebam que o sucesso dos ricos deve-se à sua custa, será impossível qualquer mudança. A ideologia dominante, no entanto, inibe essa percepção, e a estabilidade cultural, assim, mascara ou compensa a instabilidade política crescente. As eleições podem ser vencidas ou perdidas de acordo com os caprichos de uns poucos bilionários manipuladores dispostos a financiar campanhas de propaganda. (No Reino Unido, 50% dos jornais vendidos pertencem a apenas dois bilionários - ambos de extrema direita). Em uma época de “pós-verdade”, a manipulação ideológica é mais forte do que nunca.13 Neste ponto, a teoria da ideologia de Marx, reforçada pelos insights de Gramsci, pela Escola de Frankfurt e outros teóricos da manipulação de massa hegemônica, bem como seus satiristas, como Aldous Huxley e George Orwell, são mais necessários do que nunca. O marxismo cultural pode não ter uma alternativa, especialmente a alternativa histórica de um proletariado revolucionário. Mas sua crítica continua a ser útil para o presente. A premissa básica do fetichismo da mercadoria - a de que as relações entre as pessoas são disfarçadas como relações entre coisas - é um ponto de partida tão importante como jamais fora.

Marx, então, continua a ser um pensador que ainda tem algumas respostas. 2017 não é 1917, mas não nos faltam problemas a resolver. Um programa marxista, hoje, tentaria domar o sistema financeiro internacional; controlar ou erradicar os paraísos fiscais; e tornar as transações financeiras tão transparentes quanto possível. Reconheceria que o meio ambiente tem uma prioridade que lhe faltava no tempo de Marx e que o esquema alternativo de industrialização que o marxismo-leninismo promoveu não é uma ajuda agora. O ponto crucial hoje, talvez, é que Marx estava disposto a condenar o presente como inadequado, oferecer a visão de um futuro distante muito melhor e exigir que tentássemos alcançá-lo. Salvar um planeta que, de outro modo, está provavelmente destinado à destruição, não exige nada menos.

12 Ver Wilkinson e Pickett (2009).

13 Um bom começo aqui é Chomsky (1989).

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* O tradutor agradece à leitura minuciosa da primeira versão deste artigo e às sugestões apontadas por André Vidal Viola.

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