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D EFESA DEFENSÁVEL DA

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D EFESA DEFENSÁVEL DA

ESCRAVIDÃO EM A RISTÓTELES 1

PETER PHILLIPS SIMPSON

Resumo: O objeto deste trabalho é o de discutir os argumentos do cap. 5 e 6 do livro I da Política, de Aristótles, destacando esquematica- mente, e em forma silogística, a estrutura, coerência e validade de seu arrazoamento. Também demonstrarei como os argumentos e conclu- sões de Aristóteles são, ao mesmo tempo, mais e menos controversos do que os acadêmicos de hoje geralmente supõem.

Abstract: The purpose of this work is to discuss the arguments from chap. 5 and 6, book I of de Politics of Aristotle highlighting schematically in syllogistic form, the sctructure, coherence and validity of Aristotle’s reasoning. I will also show how Aristotle’s arguments and conclusions are both more and less controversial than current scholarship has generally supposed.

Palavras-chave: senhor, escravo, natureza, virtude master, slave, nature, virtue

A

discussão de Aristóteles acerca da escravidão encontra-se nos capítulos 4 ao 7 do livro Política. O tema é introduzido por algumas observações ao final do capítulo 3 (1253b14-20). Ali, Aristóteles diz que o objetivo da sua discussão tem um duplo caráter: primeiro, quanto ao uso de escravos, e, segundo, adquirir uma melhor compreensão das concepções correntes. O primeiro objetivo recupera as afirmações do capítulo 2 (1252a31) de que o escravo é necessário por questões de preservação. O segundo relembra suas afirmações nos capítulos 1 e 2 (1252a7-9, 30-34) de que a escravidão ocorre por natureza, e saber como comandar escravos difere do saber relativo

Peter Phillips Simpson é professor de Filosofia da City University of New York, EUA.

1. Este ensaio é uma reelaboração e uma confirmação do que escrevi no meu Philosophical Commentary on the Politics of Aristotle. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1998, 28-46.

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a outros tipos de comando, pois as concepções então correntes negam ambas as afirmações. Esse duplo caráter permite-nos estabelecer uma divisão bastante clara dos capítulos sucessivos: capítulo 4, que trata do uso dos escravos ou a sua serventia, e os capítulos 5 a 7 que lidam com o segundo objetivo, o de atingir uma compreensão melhor do que as concepções correntes. O conteúdo desses capítulos permite-nos dizer, ainda, que os capítulos 5 e 6 mostram que a escravidão ocorre por natureza, e o capítulo 7, que a dominação é uma espécie distinta de comando. O capítulos 5 discute diretamente que a escravidão é natural, e o cap. 6 aborda os contra- argumentos. Essa é, de uma forma geral, a divisão esquemática dos capítulos.

Para os propósitos desta exposição, estarei focalizando somente os capítulos 5 e 6, uma vez que eles contêm a central e mais controversa das teses de Aristóteles.

C

APÍTULO

5

O capítulo 5, seguindo o plano do capítulo 3, procura responder se existe escravos por natureza. É dessa forma que ele se inicia (1254b17-20), e conclui que a resposta a tal pergunta é afirmativa (1254b37-1255a2). Temos que entender e analisar os argumentos adequadamente. Aristóteles começa dizendo que a resposta pode ser encontrada tanto “através da razão como pelo que de fato ocorre” (1254a20-21). Isso sugere que ele oferecerá dois argumentos ou formas de argumento, e que esses argumentos diferirão, visto que um deles é extraído de fatos da experiência, e o outro de princípios primeiros. Apesar da ausência de indicações nítidas no texto, e das dúvidas dos comentadores2, dois desses argumentos diferentes podem ser encontrados. Primeiramente, Aristóteles apresenta quatro proposições (1254a21-26):

(1) Comandar e ser comandado são necessários e benéficos.

(2) Algumas coisas estão separadas em comandantes e comandados logo ao nascerem.

(3) Há muitos tipos de comandantes e comandados.

(4) Comandar servos melhores é sempre melhor.

2. Algo observado por NEWMAN. The Politics of Aristotle. Oxford: Univ. Press. Pxfprd., 1887-1902, 2, 140, ARISTOTLE. Politics. Livros 1 e 2. Trad. Saunders. Oxford: Clarindon, Press, 1995; 7 SCHUTRUMPF E. Aristoteles Politic. Akademie Verlag. Berlim: 1991, 1-250.

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Segue-se, então, o que parece ser um argumento para (4) (1254a26-28):

(5) A partir do material melhor alcança-se um trabalho melhor.

(6) Quando se comanda algo e o outro é comandado, sempre há algum trabalho envolvido.

Considero (6) que o trabalho do comandante e comandado diz respeito ao que o comando é ou o que faz com que seja o que é, e que o comandante completa esse trabalho atuando como agente sobre o comandado enquanto passivo ou material3. Um maestro que rege uma orquestra, por exemplo, trabalha seus músicos para extrair deles o desempenho musical. Evidente- mente, quanto melhores os músicos, melhor o desempenho que ele pode extrair deles, em princípio (5). Assim, seu comando para extrair desempenho musical será, em princípio, como (4) afirma, tão bom quanto bons forem os músicos que ele comanda.

As proposições (1) a (4) são, enquanto tais, questões empíricas. São questões sobre “o que de fato acontece”. Assim sendo, elas devem ser compreendidas como constituintes básicas para esse argumento – dentre os dois que defendem a escravidão por natureza –, e que Aristóteles prometera no começo do capítulo. Entretanto, essas proposições não são incontroversas e são apresentadas de modo por demais geral para serem claras de imediato.

O que Aristóteles diz a seguir serve para confirmá-las e ilustrá-las. Ele apresenta as seguintes proposições (1254a28-32):

(7) Tudo o que é moldado em uma unidade comum a partir da combinação de muitas partes, sejam estas contínuas ou separadas, manifesta um comandante e um comandado.

(8) Isto é inerente às coisas em toda natureza.

As proposições (1) a (4) seguem-se destas duas. A proposição (8) afirma que (7) é uma verdade de natureza, ou um princípio naturalmente inerente a todas as coisas compostas enquanto compostas, e não, por exemplo, algo imposto a elas por uma força exterior. Conseqüentemente, em se tratando de tais coisas, segue-se que: (a) uma parte comandando e outra sendo comandada hão de ser necessárias e benéficas (o que é natural para as coisas é necessário e benéfico); (b) essas partes serão separadas em comandante e comandado imediatamente ao serem geradas, ou assim que nascem (o que é natural às coisas existe nelas tão logo possuam sua natureza, isto é, tão logo venham a ser o que são); (c) há muitos tipos de comandantes

3. Cf. 4 (7) 4.4.1325b, 40- 1326a 8; Ética 1.13.1102a 7/12.

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e comandados (há naturalmente muitos tipos de coisas compostas); (d) comandar melhores súditos é melhor (algumas coisas são naturalmente mais apropriadas para determinados tipos de trabalho do que outras, e compostos feitos a partir dessas coisas serão, seguindo as proposições (5) e (6), melhores com relação à execução desse trabalho).

Aristóteles oferece ilustrações, tiradas novamente “daquilo que de fato ocorre”, da verdade de (7) e (8) (1254a32-b14). Mas, há uma advertência: as proposições (7) e (8) referem-se a um princípio da natureza. Exemplos ilustrativos delas devem ser tomados dentre as coisas que estão de acordo com a natureza. Qualquer coisa contrária à natureza, obviamente falseará o resultado e deve ser descartada como irrelevante desde o princípio. Uma coisa é manifestamente contrária à natureza quando não está de acordo com o que sua natureza exige, e, sim, está perdendo ou perdeu essa natureza.

A doença, por exemplo, é contrária à natureza nesse sentido. O animal ou órgão doente é, precisamente qua doente, deixando de ser o que era. O pulmão canceroso está deixando de ser um pulmão e de carregar oxigênio ao sangue, e o animal possuidor de tal pulmão está deixando de mover-se fácil e livremente e começando a morrer. Da mesma forma, o vício é contrário à natureza. O homem corrompido, precisamente Qua corrompido, está deixando de ser homem. Sua gula está corrompendo seu corpo, sua ignorância e sua loucura estão corrompendo sua mente, sua covardia está corrompendo sua capacidade de agir como deseja, forçado pelo medo.

Somente corpos saudáveis e almas saudáveis, ou somente os melhores, são relevantes na determinação da verdade de (7) e (8).

Essa espécie de amostragem aleatória, que não faz julgamentos prévios sobre o melhor e o pior e que nós, modernos, tomamos como caminho para a verdade, é aqui, precisamente, o caminho para o erro. Em uma determinada população, ela pode indicar ou o que é comum, ou a média;

não indicará, a menos que a população inclua apenas os melhores, o que é natural. Então, guiando-nos pelos melhores, podemos ver prontamente como os exemplos de Aristóteles fundamentam (7) e (8). No que diz respeito às combinações contínuas de corpo e alma e de intelecto e apetite, vemos que, no melhor, estes dividem-se em comandante e comandado, respec- tivamente, e assim se dá seguindo os princípios de sua natureza. A alma naturalmente comanda o corpo despoticamente (o corpo não possui nenhum princípio de ação separado da alma e, quando muito, faz qualquer coisa que a alma comande sem impedimento ou distorção); e o intelecto natu- ralmente comanda o apetite com comando político e soberano (os apetites,

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que têm, de fato, seu próprio princípio de ação, ouvem, quando muito, o julgamento da razão e a obedecem). É claro que as coisas são diferentes onde o comando entre essas partes é igual ou invertido. O doente e paralítico, o corrompido e o incontinente, todos sofrem prejuízos nestas partes.

No que tange aos compostos distintos de humanos e animais, macho e fêmea, vemos que, no melhor, estas também dividem o comandante e comandado, respectivamente, e assim o fazem de acordo com os princípios de suas naturezas. Os humanos naturalmente comandam os animais domesticados, cuja natureza é melhor que a dos selvagens (é possível conseguir mais deles, como o trabalho, e não somente alimento); e os animais domesticados são melhores assim, sendo comandados (vivem mais e estão mais protegidos dos predadores e das doenças). O comando dos humanos sobre os animais é evidentemente despótico (os bois, por exemplo, pertencem aos fazendeiros como ferramentas para toda a vida, do mesmo modo que os escravos pertencem aos senhores). Quanto aos machos e fêmeas, os machos são naturalmente melhores e comandantes, pelo menos no que se refere aos animais em que macho e fêmea unem-se para formar uma combinação duradoura.

No caso de homens e mulheres, por exemplo, ou daqueles de melhor espécie, o homem possui a deliberação juntamente com o controle e autoridade, ao passo que a mulher, não (1.13.1260a13). Ela é, podemos supor, naturalmente mais sujeita às funções corpóreas e às paixões delas resultantes (como durante a menstruação), e deve encontrar dificuldades para impor as resoluções da deliberação em si mesma. Ela é, também, naturalmente de compleição mais frágil e deve encontrar maior dificuldade para exercer a força e impor as resoluções da deliberação a outros. Ainda assim, possui deliberação e, dessa forma, pode contribuir para criar decisões.

Conseqüentemente, o comando do homem sobre ela há de ser político. É um sinal de barbárie para um homem comandar despoticamente sua mulher (1.2.1252a34-b7).

Tudo isso é utilizado como ilustração e prova de (7) e (8), assim como de (1) a (4). Em seguida, Aristóteles aplica essas proposições à escravidão (1254b14-20). Considerando que elas são universais, têm que dar conta de todos os casos de compostos formados por seres humanos, inclusive o composto senhor e escravo. Por conseguinte, assim será: uma combinação natural de (7) e (8); benéfica e necessária, a partir de (1); e da espécie despótica de (3) – desde que seja entre humanos que, de acordo com o que são ou se tornaram de (2), estejam relacionados reciprocamente como os humanos e animais, alma e corpo (os padrões naturais do comando

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despótico), ou em outras palavras, cujo melhor trabalho seja efetuado por animais e pelo corpo (4), juntamente com (5) e (6). Esse trabalho é, obviamente, o uso do corpo (capítulo 4). Conseqüentemente, os escra- vos por natureza serão aqueles cuja melhor serventia possível é o uso do corpo.

Esse é o primeiro dos argumentos de Aristóteles sobre o escravo por natureza. É completo e válido como tal. Aristóteles dá seqüência, imediatamente, ao seu segundo argumento, apresentando as seguintes proposições (1254b20-23):

(9) É escravo por natureza aquele que tem poder de pertencer a outro (10) e que tem razão suficiente para percebê-la mas não para possuí-la.

A proposição (9) repete a definição do capítulo 4 de forma resumida.

O escravo foi nela definido como alguém pertencente a outro enquanto ferramenta para toda a vida, e eu considero “poder”, aqui, no sentido de

“poder de pertencer”, é uma referência ao poder do escravo como ferramenta para a vida. Se assim for, este é evidentemente o modo de iniciar um argumento de razão, pois que se inicia o argumento do princípio primeiro apreendido por ela sem nenhuma coisa colocada, ou seja, a definição. A conclusão desse argumento, caso seja o segundo dos dois argumentos de Aristóteles, deve ser a mesma daquela dada ao primeiro, isto é, escravos por natureza são aqueles cujo melhor trabalho é o uso do corpo. A questão é como essa conclusão seguirá da proposição (9). Está claro que precisamos de outra proposição para firmar que:

(11) Aquele cujo melhor trabalho é o uso do corpo tem o poder de pertencer a outro (no sentido considerado).

Aristóteles não sustenta tal proposição, mas a proposição que sustenta (10) pressupõe isto, quando analisada com outra que ele afirma brevemente.

Há duas partes para a proposição (10): que o escravo por natureza (a) partilha da razão o suficiente para percebê-la, mas (b) não para tê-la. A for- ça de (10b) parece evidente. Refere-se à parte da definição de escravo que implica pertencer a outrém. Não possuir razão significa, efetivamente, perten- cer a outro. É estar sujeito aos que podem pensar em seu lugar. Ao contrário, ter a razão de si é estar apto a comandar a si mesmo por seu próprio pensar, que é a marca do domínio de si. Assim sendo, por um processo de eliminação, podemos assumir que (10a) refere-se à parte da definição do escravo que significa ser ferramenta para a vida. Diga-se, novamente, que de uma ferramenta viva é suposto o agir percebendo e obedecendo o comando do senhor (como as máquinas de Dédalo e Hefesto). Mas, o comando do senhor vem da sua própria razão. Então, para perceber esse comando, o

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que uma ferramenta viva deve fazer, é algo como perceber a razão. A questão é, então, saber como o escravo tem essa percepção. Certamente, ele não pode perceber a razão “como” razão, pois para isso ser-lhe-ia exigido possuí- la por si mesmo, o que, ex hypothesi, ele não pode. Uma resposta pode ser achada na próxima observação de Aristóteles (1254b 23-24):

(12) Os diferentes animais prestam serviço não percebendo pela razão mas pelo que sentem.

A maioria dos tradutores e comentaristas não traduz o grego assim.

Dizem, ao invés, algo como:

(12a) Os outros animais (em contraste com o escravo) não seguem a razão, mas suas paixões.

O grego não pode sustentar essa tradução da forma como está dada.

Algo tem que ser tirado ou acrescentado. É claro que as correções para um texto são algumas vezes exigidas. Mas, não se deve corrigir a menos que seja imprescindível. Nesse caso, o grego pode ter uma tradução gramatical- mente correta, como a que foi dada e que escrevi em (12)4. A única questão é se essa tradução, embora gramaticalmente correta, esteja também logica- mente correta. Ela faz sentido no arrazoamento de Aristóteles? A resposta é que faz, embora (12a) não faça. O que (12) descreve, de fato, é como os animais servem seus senhores enquanto ferramentas vivas. Eles têm que agir assim, é claro, percebendo o que seus senhores querem, porque é assim que ferramentas vivas operam. Mas não podem perceber o que seus senhores querem pela razão, pois não a possuem. Eles só podem perceber pelo que sentem. Por exemplo, cavalos e bois percebem sentindo o puxão das rédeas, e cães pastores ao ouvir gritos e apitos. Escravos por natureza que, afinal, são como animais para seus senhores, e que fornecem o mesmo serviço corpóreo que os animais na provisão de necessidades (1254b24- 26), têm que perceber o comando do senhor de um modo semelhante. A proposição (12) mostra, assim, que aqueles que têm razão o suficiente para percebê-la (embora não a possuam) – proposição (10a) –, são ferramentas vivas como os animais. Podemos, então, formular o argumento seguinte:

4. Minha tradução toma hypereteí absolutamente e em seu sentido primário de “dar assis- tência” (baseando-me na palavra para assistente hyperetés, no último capítulo), e não em seu outro sentido de “seguir” e/ou “obedecer” como governando “sentimentos” (pathémasin);

esta mesma forma de traduzir o grego já fora sugerida por KORAES. Aristotelous Politikon ta Sozomena. Paris: Didot, 1821, 236. SUSEMIHL. De Politicis Aristote Quaestiones Criticae. Jahrbücher für classische Philologie, 1886:343, notou a sugestão de Koraes mas rejeitou-a porque não conseguiu perceber sua força no contexto.

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(13) Aquele que compartilha da razão o suficiente para percebê-la mas não pertence ao outro como ferramenta viva.

(14) Aquele cujo melhor trabalho é o uso do corpo, possui razão o suficiente para percebê-la mas não para tê-la.

(15) Portanto, aquele cujo melhor trabalho é o uso do corpo pertence a outro como ferramenta viva.

A proposição (13) é a combinação da (10) e (12). O significado da proposição (14) é evidente para aquele cujo melhor trabalho é o uso do corpo. Tal pessoa não pode ter razão, uma vez que tendo razão isso a tornaria capaz de um trabalho melhor (algum trabalho de razão e não somente corpóreo), mas precisa partilhar da razão o suficiente para perceber os comandos do senhor, ou o senhor não extrairia dele o melhor trabalho de que é capaz. A proposição (15) é a (11) expressa diferentemente. De (11) e (9) segue-se a conclusão: é por natureza um escravo aquele cujo melhor trabalho é o uso do corpo. Isso é o que o Aristóteles pretendeu. A proposição (12a) não é capaz de construir esse padrão de arrazoamento. De fato, até onde ela alcança, solapa-o. Faz com que aqueles que percebem a razão mas não a possuem sejam animais dessemelhantes dos demais, o que implica que eles têm razão num sentido mais forte do que animais têm. Isto implica que, dessemelhantemente aos animais, não são ferramentas vivas perten- centes a outro. Devemos rejeitar (12a).

Note-se que a razão que falta ao escravo não quer dizer que ele não possua nenhuma capacidade de planejar ou desenvolver habilidades. Alguns animais podem, até certo ponto, planejar e desenvolver habilidades, e Aristóteles afirma posteriormente que as habilidades podem ser ensinadas aos escravos (1.7). O que é excluído da capacidade do escravo, como da dos animais, é o discernimento do bem e do nobre. Ao escravo falta a previsão e a deliberação próprias ao senhor (1.2.1252a.31-34, 1.13.1260a.12), pois este tem que ser bom e nobre deliberando sobre os fins que sejam bons e nobres. Note-se, também, que Aristóteles fala do escravo por natureza como alguém que tem uma determinada “condição” (1254b17). Ele se abstém de dizer como essa condição sobrevém. A expressão “por natureza” e a proposição (2) – que algumas coisas estão separadas em comandante e comandado logo ao nascer –, fazem pressupor, freqüentemente, que essa condição surja no momento do nascimento, de forma que o escravo por natureza é alguém que nasce escravo. Isso não é o que se segue. A condição relevante poderia ocorrer, sem dúvida, no nascimento, mas não há nada que a impeça de surgir de outras maneiras – como por acaso, ou pela educação, ou até mesmo por escolha. Ser por natureza um escravo é, para Aristóteles, estar em uma determinada condição, é simplesmente a de não

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ter nenhum trabalho melhor que o uso do corpo. A origem dessa condição é irrelevante para o desenvolvimento e estrutura do argumento de Aristóteles.

C

APÍTULO

6

A discussão do capítulo 6 diz respeito a determinadas objeções sobre o ponto de vista de que a escravidão, por vezes, é natural e justa. Essas objeções voltam-se para o fato de que há escravidão por lei tanto quanto por natureza. A primeira objeção discute a escravidão por lei e, condenando- a, condena a escravidão integralmente. A lei em questão diz que o que é conquistado na guerra pertence aos conquistadores. Os contestadores dizem que (1255a9-11):

(1) É uma coisa terrível se quem é forçado à submissão venha a tornar- se escravo do mais forte.

Assim, uma vez que essa proposição é o que a lei está dizendo efetiva- mente, eles concluem que a lei é terrível e injusta. Uma vez que eles ainda supõem que os escravos se tornem escravos por esta lei, também concluem que a escravidão é terrível e injusta. Este arrazoamento assume que quem é forçado à escravidão pelas conquistas, não é escravo por natureza. Não há nada no argumento de Aristóteles sobre a escravidão por natureza que im- peça alguém que se tornou escravo pela conquista também o seja por natu- reza. O que faz o escravo por natureza é uma determinada condição da alma que poderia existir naqueles que ainda não estão servindo a ninguém como escravos. Eles poderiam estar andando livres em algum lugar. Torná- los escravos requereria conquistá-los primeiro. O uso da força nesses casos não seria terrível ou injusto, porém o contrário (1.8.1256b24-26). O argumento dos que se opõem à escravidão só funciona na suposição de que não há escravos por natureza às soltas que mereçam ser conquistados. Prova, apenas, a injustiça da escravidão ao presumir a injustiça da escravidão. É puro sofisma.

Nessa forma crua, o argumento contra a escravidão fracassa. Mas há mais para dizer. Alguns dentre os sábios consideram a lei de conquista terrível e injusta; outros, entretanto, discordam (1255a11-21). A interpretação

5. TOMÁS DE AQUINO, op. cit. 1.4, NEWMAN, op. cit. 2:150-52, SCHÜTRUMPF, op. Cit.

1:272-81, SUSEMIHL e HICKS. The Politics of Aristotle. London: MacMillan, 1894; 163-66, 205-209; ver TIMBER BARKER. Political Thought of Plato and Aristotle. 368-69, Lord, Aristotle. The Politics. Chicago: University of Chicago Press, 1984: 248 nº 19, SAUNDERS, op. cit. 80, e SCHOFIELD, in Patzig. Aristotle’s Politics. Göttingen: Vandenhoeck and Ruprecht, 1990, 23-27.

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das observações de Aristóteles nesse ponto tem sido motivo de divergências entre os acadêmicos5. Eu proponho o que se segue. A afirmação sobre a virtude ter o poder de usar da força quando tem os instrumentos deveria significar que o conquistador em questão, sobre o qual se diz ter superioridade em alguma forma de bondade, é superior na virtude da bondade e não só, digo, na força6. Se ele se superasse apenas na força, não poderia ser para os conquistados um senhor por natureza de escravos por natureza (virtude, não força, marca a diferença entre o senhor e o escravo por natureza). Esperar-se-ia que o sábio reconhecesse que alguns con- quistadores podem superar os conquistados em virtude. Essa é, penso eu, a razão que leva Aristóteles a dizer que a força em questão “parece não estar sem a virtude” (1255a15-16). Os sábios estão pensando em conquistado- res virtuosos, não em qualquer conquistador.

A discordância dos sábios não é quanto à superioridade do conquistador em questão, mas “ao justo” (1255a16), quer dizer, à lei de conquista7. Alguns dos sábios consideram a lei “bondosa” e não terrível (1255a17-18)8. Eles supõem que ela só se aplica aos casos em que o conquistador é superior em virtude, isto é, só nos quais os senhores por natureza estão conquistando escravos por natureza. Outros sábios entendem a lei de conquista como “o comando do mais forte é justo” (1255a18-19)9. Entendem isso como significando que é justo para qualquer conquistador comandar, seja ele superior em virtude, ou não. Sua conclusão é que a lei é terrível porque permite a escravização de qualquer um que seja conquistado, indepen- dentemente do fato de serem os conquistados escravos por natureza e os conquistadores senhores por natureza.

6. Minha tradução: “quando a virtude se apodera do instrumento, ela tem uma capacidade especial de usar a força, e também o conquistador sempre se supera em algum tipo de bondade”.

7. Muitos comentadores tomam “o justo” (tò dikaíon) para significar justiça da questão, ou algo assim. Mas “esse justo” (toûto tò dikaíon) foi usado anteriormente, em 1255 a7-8, como todos acordam, referindo-se a esse “princípio de justiça” como eu o traduzi, então, tem o mesmo significado aqui.

8. Todos os manuscritos trazem “bondade” (eunoía), mas as interpretações de alguns comentadores exigem que “bondade” seja mudada para “insensatez” (anoía).

9. Traduzo essa passagem como: “outros pensam-na [a lei da conquista] como isso, que o comando do mais forte é justo”, diferindo da tradução de outros comentadores e tradutores e se apóia em pontuar o grego como autò toûto, dikaíon tó (é isto, ...que... é justo”) e não autò toûto dikaíon (isto é justo em si, comando...).

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Podemos formalizar a discussão entre os dois grupos de sábios da seguinte maneira: ambos aceitam que:

(2) a escravização de escravos por natureza, conquistados na guerra por senhores por natureza, ou por conquistadores superiores em virtude, é justa, mas a escravização do conquistado em outra circunstância, não é justa.

Porém, um grupo acrescenta a isso o seguinte:

(3) A lei de conquista diz que os conquistadores superiores em virtude podem escravizar os conquistados.

Eles concluem, então, que:

(4) A lei de conquista é justa é boa.

O outro grupo adiciona a (2) o seguinte:

(5) a lei de conquista diz que qualquer conquistador pode escravizar os conquistados independentemente da superioridade em virtude.

E finalizam:

(6) A lei de conquista é injusta e terrível.

Esses argumentos “sobrepõem-se” (1255a13), pois partilham a proposição (2) em comum. Discordam nas suas conclusões porque discordam sobre “o justo”, isto é, a lei de conquista e sua interpretação, e acrescentam proposições opostas (3) e (5) à proposição (2). A discordância de interpretação não é surpreendente. A lei só existe como um “acordo” e quanto ao que as pessoas “dizem” (1255a8-7), e o que as pessoas dizem pode não significar o mesmo para todos os que dizem isso. Por conseguinte, alguns podem dizer isso de modo justo, outros de modo injusto. A discordância entre os sábios prossegue dessa forma. Mas, uma vez postos de lado esses argumentos, em particular a proposição (2), então os outros mencionados no princípio, em particular a proposição (1), não têm peso. A proposição (1), diferentemente da (2), não faz nenhuma distinção entre conquistadores virtuosos e não virtuosos. Condena toda a escravização pela guerra, inclusive a de escravos por natureza por senhores por natureza.

Uma vez que ela ignora totalmente os argumentos do cap. 5, não é forte nem convincente.

Outra objeção é levantada por aqueles que vão para o extremo oposto, ao afirmarem que toda escravidão na guerra é justa (1255a21-36). Sua posição é refutada facilmente por eles mesmos. Como acontece com todos quando forçam, não é possível dizerem que alguém que não merece ser um escravo deveria ser feito escravo, se conquistado. Mas seu ponto de vista os obriga a isso, uma vez que nada impede que o que é bem nascido e o bom sejam ocasionalmente conquistados ou capturados. Desse modo, negam o que

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haviam dito anteriormente e limitam a escravidão por conquista somente aos bárbaros. São efetivamente forçados a procurar uma idéia de escravidão por natureza, como Aristóteles. Mas dele diferem, todavia. Aristóteles não identificou escravidão por natureza com ser bárbaro, mas em ter uma determinada condição da alma. Nacional ou geográfica, a origem é uma característica derivada (4) (7) f.7.1327b20-36). Entretanto, sua tentativa canhestra para identificar escravos com bárbaros é um degrau para a direção certa. Eles estão procurando algo que transforme alguém em escravo em qualquer lugar, e não apenas se a alguém ocorrer ser conquistado em algum lugar. A boa estirpe é semelhante. A boa estirpe é similar. Natural ou por verdadeiro nascimento, acompanha seu possuidor em todos os lugares, no seu lar ou além dele.

Tal é a postura da Helena de Theodectes, quando apela para sua ascendência divina negando que mereça ser chamada de escrava (1255a36- 38). Esse apelo à alta linhagem ou virtude dos pais implica em duas coisas:

primeiro, que vício e virtude fazem a diferença entre o escravo e homem livre; segundo, que a alta estirpe ou virtude dos pais é passada para os filhos. Aristóteles prontamente concorda com a primeira dessas implicações, uma vez que é a maneira pela qual ele distingue o escravo do homem livre.

Rejeita a segunda, uma vez que a natureza nem sempre é bem sucedida gerando filhos semelhantes aos pais (1255a39-b4). O insucesso da natureza, aqui, ao combinar corpos e almas, equipara-se ao seu insucesso mencionado ao término do capítulo anterior. A introdução de Helena não é acidental.

Helena tinha um belo corpo, mas uma alma vil. Era uma adúltera e o adultério é vil (Ética 2.6.1107a8-17). Era livre por nascimento, no entanto, por natureza ou pela condição da sua alma, era uma escrava. Quando Aristóteles a menciona, perguntando quem ousa chamá-la de escrava, devemos entender que é ele quem responde “Eu ouso”.

C

ONCLUSÃO

A postura de Aristóteles a respeito da escravidão por natureza, e seus argumentos em prol dela, não são nem falaciosos nem irônicos, contrariamente às opiniões de muitos comentadores. As conclusões seguem- se em acordo com as premissas, e as premissas, sejam elas asserções empíricas ou teses sobre razão e virtude, são plausíveis, embora controversas. Não há nenhuma razão para pensar que são premissas que Aristóteles não aceita seriamente. Nada que ele diz em outras passagens contradiz ou qualifica o

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que diz aqui. Até mesmo sua asserção posterior de que a liberdade deveria ser dada aos escravos como uma recompensa (4(7).10.1330a32-33), é explicável quanto ao escravo por natureza. A condição que faz o escravo por natureza não precisa ser permanente.

Alguns escravos por natureza poderiam, talvez, ser educados à margem da escravidão. A escravidão sob um senhor verdadeiramente virtuoso poderia ser essa educação, se o escravo começasse, por observação e imitação do senhor, a apreciar o nobre para si mesmo. Tais escravos mereceriam a liberdade. Aristóteles não afirma, em nenhum ponto em que discute a escravidão por natureza, que seja injusto libertar ou não escravizar os escravos por natureza. Tudo que diz é que é injusto escravizar os que não são escravos por natureza. Essa última proposição não é a mesma nem depende da anterior.

Em todo caso, podemos resumir as colocações de Aristóteles sobre escravidão da seguinte maneira: os senhores por natureza são funda- mentalmente os virtuosos, ou aqueles que se aperfeiçoaram no seu desen- volvimento, e os escravos por natureza são fundamentalmente os perversos, ou aqueles que em algum ponto se prejudicaram ou se corromperam seu desenvolvimento. Certamente, muitos bárbaros estão nessa condição, mas não é necessário supor que todos estejam. E mais, alguns gregos estariam nessa condição, particularmente alguns aos quais muitos admiram. Essas colocações ajustam-se, e pode-se dizer que seguem os ensinamentos da Ética (onde os alguns são caracterizados, certamente, como servis e bestiais (como em 1.5.1095b19-20, 10.9.1179b10-18, 1180a4-14). Não estão na perspectiva peculiar dos antigos gregos antigos ou de Aristóteles10.

Tradução de Luizir de Oliveira Revisão de Lucia Haddad (Alumni)

10. A mesma idéia é encontrada nos Provérbios 11, 29, “the fool (the moral fool, that is) will become slave to the wise”. Comparar com MILTON, Paradise Lost 12.97-101: “Yet sometimes nations will decline so low/ from vertue, which is reason, that no wrong/ but justice, and some fatal curse annext/ deprives them of their outward libertie,/ their inward lost.” Ver também, AGOSTINHO DE HIPONA. Cidade de Deus. Livro 19, capítulo 15 e S.

MILL, Sobre o Governo Representativo, capítulo 2.

Referências

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