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Montagem de arquivos Questões para o documentário contemporâneo

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Academic year: 2021

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Abaixo, texto da documentarista e pesquisadora Anita Leandro que fará parte da 5ª edição da Revista Milímetros, publicação a ser lançada na X Mostra Produção Independente – O Lugar da Memória.

Montagem de arquivos

Questões para o documentário contemporâneo

Anita Leandro1

As inovações tecnológicas do século XXI proporcionaram a salvaguarda e a difusão de um grande volume de imagens de arquivo, utilizadas com frequência cada vez maior não apenas em documentários, mas também em filmes de ficção, reportagens, teatro, dança e instalações. O acesso aos arquivos e a necessidade de compreensão da história fazem com que a montagem cinematográfica apareça no espaço contemporâneo como um paradigma dos tempos atuais. A manipulação da massa documental proveniente do nosso passado, atividade antes reservada aos historiadores, acontece, agora, na mesa de montagem, o que atribui ao cinema – e, em especial, ao documentário – grande responsabilidade no tratamento de uma matéria prima importante para os processos de construção de memória coletiva. Em que medida o documentário é capaz de revezar com a historiografia, propondo uma outra forma de escrita da história que passa pela valorização dos documentos visuais e sonoros de nosso tempo?

Embora, na história do cinema, a montagem de arquivos já fosse praticada desde os primórdios (A vida de um bombeiro americano, Edwin Porter, 1903), foi o campo do documentário que desenvolveu as potencialidades dessa técnica de composição, inaugurando novas formas de interação com as imagens do passado. Nos anos 1920, na Rússia, período das experimentações construtivistas, os documentaristas Dziga Vertov e Esther Schulb deram início a uma abordagem dos arquivos em sua                                                                                                                

1  Professora  de  cinema  da  Escola  de  Comunicação  da  UFRJ,  coordenadora  do  projeto  de  pesquisa  

“Arquivos   da   ditadura”,   no   âmbito   do   qual   realizou   o   documentário  Retratos   de   identificação   (Brasil,   2014,   71   min.),   feito   a   partir   dos   arquivos   fotográficos   das   agências   de   repressão   brasileiras  do  período  militar.  

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materialidade documental, por meio de uma montagem valorizadora da singularidade do plano, em detrimento da continuidade narrativa ou, mesmo, do choque dialético proposto por Eisenstein. Numa outra direção, Vertov mostrou o intervalo entre as imagens, fazendo da montagem o lugar de um inventário de dados documentais (2008, p. 264), de treino para o olho humano no aprendizado das técnicas de seleção, triagem, isolamento dos planos ou, ao contrário, de associação entre eles. Ao ver no intervalo a

“matéria prima da arte do movimento”, que deve ser mostrada enquanto tal, Vertov chamava a atenção para o “entre dois” (VERTOV apud SADOUL, 1973, p. 62). Entre duas imagens, há o espectador, um ser histórico, que interage com o que vê. A montagem de arquivos recém inventada vinha, assim, atender às necessidades mais prementes daquele período entre guerras e que ainda são as nossas: interrupção do progresso (a criação do intervalo entre os planos) e ligação entre passado e presente (a restituição da continuidade narrativa).

A montagem de arquivos diversificou-se no espaço contemporâneo em diversos documentários de Jean-Luc Godard, Chris Marker, André Labarthe, Rithy Panh, Sergei Loznitsa, Haroun Farocki, Susana de Sousa Dias, Claudio Pazienza ou Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucci, sem esquecer as experiências radicais de Guy Debord ou de Artavazd Pelechian, determinantes para a reflexão sobre a apropriação das imagens existentes. A lista é extensa e mencionamos, aqui, apenas alguns dos cineastas mais conhecidos. Na mesma linha de Vertov e em sintonia com a chamada Nova História, voltada para a materialidade documental dos arquivos, esses documentaristas souberam abordar as imagens como seres singulares, carregados de sentido e vinculados ao contexto histórico de sua produção.

Seus filmes propõem uma verdadeira política do arquivo para o mundo de hoje e descobrimos, neles, o valor dos vestígios do passado. A mesa de montagem aparece em primeiro plano, como um lugar de restauração de ruínas e de resgate de sobrevivências. Abordadas como seres vivos, as imagens, em seus filmes, testemunham sobre o passado, da mesma forma que os entrevistados.

Yervant Gianikian et Angela Ricci Lucci, por exemplo, dois dos maiores montadores de arquivo da atualidade, cujos trabalhos ainda são inéditos no

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Brasil, dedicaram toda a sua obra à busca de filmes desaparecidos, que eles retomam, na montagem, sem nenhuma entrevista, apostando apenas na força da imagem. O casal de cineastas reuniu, nas últimas décadas, um grande volume de filmes anônimos, de diferentes bitolas. São imagens deterioradas, filmes mudos, que eles reproduzem fotograma por fotograma, com alterações de velocidade do movimento e reenquadramentos, produzindo o que eles chamam de uma “decomposição analítica” do gesto dos homens do passado, estratégia de montagem informada na cartela de abertura de um de seus filmes mais importantes, feito a partir de imagens amadoras de turistas ingleses na Índia dos anos 1920, Imagens do Oriente.

Turismo vândalo (GIANIKIAN-RICCI LUCCI, 2001). O método de montagem de Gianikian e Ricci Lucci traz à superfície da imagem o detalhe imperceptível, oferecendo ao presente uma resignificação do acontecimento filmado. O close no fotograma e o slow motion acentuado desvendam enunciados secretos e gestos fugazes, dissimulados no naturalismo das imagens amadoras.

Outros documentaristas, embora não se interessem pelo reemprego das imagens de arquivo e evitem utilizá-las em seus filmes, como é o caso Claude Lanzmann, constituíram, com suas obras, arquivos para o futuro.

Lanzmann filma lugares de memória, sobreviventes da história, testemunhas, monumentos. Em Shoah (LANZMANN, 1985), filme de nove horas e meia de duração, sem nenhuma imagem de arquivo, mas rodado em sítios históricos, com sobreviventes do genocídio dos judeus, o passado comparece, no entanto, graças a uma relação diferenciada que o filme estabelece com o tempo e com a duração. Mesmo que Shoah relativize nossa crença na capacidade das imagens de arquivo de tornar presente o irrepresentável, o filme não perde de vista a dimensão eminentemente histórica, o caráter de ruína, mesmo, de cada testemunho e de cada lugar filmados por Lanzmann2. Por outro lado, sabemos que, em entrevistas com pessoas em situação de perigo ou de dor, como acontece geralmente com os sobreviventes da história, nem tudo pode ser dito. É assim que, no lugar desse testemunho impossível, as imagens de arquivo podem aparecer no set de filmagem como                                                                                                                

2 Sobre a polêmica em torno dos arquivos suscitada pelo filme de Lanzmann, ver Images malgré tout, de Didi-Hubermann (2003).

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um elemento desencadeador e organizador da fala. A mediação do documento e sua associação à fala do entrevistado estão na origem de testemunhos que seriam impossíveis de outra maneira, como os dos antigos carcereiros, torturadores, chefes de polícia e sobreviventes do genocídio cambojano, filmados por Rithy Panh em Bophana (1996), S21, a máquina de morte Khmer Vermelho (2003) e Duch, o mestre das forjas do inferno (2011).

É também o caso das falas de prisioneiros da ditadura Salazar, recolhidas por Susana de Sousa Dias, em 48 (2009), ou, ainda, no registro oposto, as falas por demais seguras de militares e juízes israelenses, confrontadas a imagens da ocupação palestina que estremecem o relato oficial, como acontece no filme de Ra’Anan Alexandorwicz, The Law in these Parts (2014)3. Enfim, a retomada dos arquivos no cinema não se limita ao vão exercício da ilustração ou da representação descritiva e totalizante do passado, como pode sugerir a reserva de Lanzmann em relação às imagens.

A montagem contemporânea inventa memórias a partir da própria falta de arquivos e do silêncio das imagens que restaram. O cinema de montagem é, hoje, um “lugar de memória”, como dizem os historiadores (NORA, 1997), um espaço de ressonância do que restou do passado. Uma experiência da falta espreita o montador que se volta para os arquivos.

Antes mesmo das primeiras experiências cinematográficas com as imagens de arquivos, o historiador da arte Aby Warburg, recentemente editado no Brasil (WARBURG, 2013), já propunha, a partir de uma técnica de montagem, uma antropologia do gesto histórico que sobrevive nas imagens.

Com seu atlas Mnemosyne, colagem de imagens de diferentes origens e épocas, com a qual ele ambicionava estabelecer uma outra história da arte, uma história visual, sem texto, Aby Warburg, cujo método é muito comentado na atualidade, percorreu toda a história da arte em busca da memória arquivada nas imagens e da possibilidade de acessá-la, pela montagem. Seu procedimento já antecipava, por exemplo, em vários aspectos, a montagem associativa de Jean-Luc Godard nas História(as) do cinema (1988-1998),

                                                                                                               

3 A mesma técnica de mediação de documentos da história para obtenção da fala é desenvolvida em Retratos de identificação, acima citado, filme em que o sistema de perguntas e respostas foi substituído pela presença das fotografias no set de filmagens. Isso permitiu às testemunhas uma margem de negociação consigo mesmas e com o filme no difícil processo de exposição de sua tragédia pessoal.

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uma das experiências mais ousadas de compilação do conjunto de imagens do século XX.4

Uma nova estilística da montagem pode, hoje, ser recenseada nos documentários de arquivo, assinalando, com o gesto de montagem, uma proximidade entre imagem, história e memória. Reenquadramentos de fotogramas, interrupções de movimento, variações de velocidades, associações, sobreposições, repetições, produção de intervalos diversos, uso da tela preta, de cartelas, reconstituições sonoras, são algumas formas recorrentes dessa escrita singular história, que passa pela retomada das imagens do passado. Não se trata de uma mera estilística ou, menos ainda, de uma técnica, mas de respostas da montagem a uma necessidade do presente. As novas políticas da montagem de arquivo no documentário valorizam as imagens em sua materialidade, evitando reduzi-las à ilustração de conteúdos, como é de praxe na televisão.

A intervenção do cinema na elaboração de uma memória coletiva é um trabalho que os documentaristas brasileiros já haviam começado a formular durante a ditadura, no exílio. Em 1971, ao chegar ao Chile, o cineasta carioca Luiz Alberto Sanz, banido do Brasil, depois de quase um ano preso, filma cinco de seus companheiros. Não é hora de chorar, feito por ele e pelo chileno Pedro Chaskel, reunia os primeiros relatos da resistência à ditadura no Brasil, expondo marcas ainda visíveis da tortura. Embora o filme tenha um breve prólogo informativo, com imagens de cinejornais e da imprensa, o arquivo mais importante dessa obra pioneira era a fala viva dos exilados, suas vozes embargadas e os esgares de seus rostos maltratados, que Sanz filma de frente, rente à câmera, obtendo testemunhos tão difíceis quanto corajosos, para os dois lados da câmera. Na ausência total de imagens comprobatórias dos crimes da ditadura brasileira naquele momento, Sanz produzia, com esse documentário, um importante arquivo de testemunhos para o futuro. Algumas das pessoas entrevistadas por ele em 1971 já morreram e suas falas constituem um importante legado da resistência para o cinema. As falas de Maria Auxiliadora Lara Barcellos, por exemplo, foram utilizadas no filme seguinte de Sanz, Quando chegar o momento (Dôra), feito                                                                                                                

4 Sobre a montagem warburguiana e seus desdobramentos no espaço contemporâneo, ver Giorgio Agamben (1998) e Georges Didi-Huberman (2002).

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na Suécia, em 1978. Recentemente, essas mesmas falas reapareceram em dois outros documentários sobre a ditadura, Retratos de identificação, já citado, e 70, de Emília da Silveira que, além do testemunho de Maria Auxiliadora, retoma também as falas de Carmella Pezzuti, outra exilada filmada por Sanz e já falecida.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, G. “Le cinéma de Guy Debord”. In: Image et mémoire. Hoëbeke, 1998.

DIDI-HUBERMAN, G. Images malgré tout. Paris: Minuit, 2003.

DIDI-HUBERMAN, Georges. L’Image survivante. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002.

NORA, P. Les Lieux de mémoire. Gallimard, 1997.

RICŒUR, P. Temps et récit. Tome 3. Le temps raconté. Paris: Seuil, 1985.

SADOUL, G. Dziga Vertov. Paris: Champ Libre, 1971.

VERTOV, D. “Extrato do ABC dos Knocks (1929). In: XAVIER, I., org. A experiência do cinema. São Paulo: Graal, 2008.

WARBURG, A. A renovação da Antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

Referências fílmicas

ALEXANDORWICZ, R. The Law in these Parts, Israel, 2014.

DA SILVEIRA, E. 70, Brasil, 2013.

DE SOUSA DIAS. S. 48, Portugal, 2009.

GODARD, J.-L. História(s) do cinema, 8 episódios, França, 1988-1998.

GIANIKIAN-RICCI, Y. & RICCI LUCCI, A. Imagens do Oriente. Turismo vândalo, Itália, 2001.

LANZMANN, C. Shoah, França, 1985.

LEANDRO, A. Retratos de identificação, Brasil, 2014.

PANH, R. Bophana, França, 1996.

PANH, R. S21, a máquina de morte Khmer Vermelho, França, 2003.

PANH, R. Duch, o mestre das forjas do inferno, França, 2011.

SANZ, L. A. e CHASKEL, P. Quando chegar o momento, Chile, 1971.

Referências

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