A ÉTICA COMO SUBJETIVAÇÃO
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Héctor Hugo Palacio Dominguez
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1Resumo
I
BCH-UFC
i
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
N o p r e f á c io
a O
uso dos prazeres, F o u c a u / t c a -r a c t e -r iz a a a t it u d e q u e t in h a a r e s p e it o d e s i m e s -mo c o m o f iló s o f o e a r e s p e it o d a s t r a d iç õ e s f ilo s ó f ic a s c o n s id e r a n d o - a s c o m o um ethos, u m a m a n e ir a d e s e r f iló s o f o . S u a o b r a n ã o s e d e s e n -v o l-v e c o m o u m a t e o r ia ou um s is t e m a , e la d ir e c io n a - s e p o r s e g u id a s t e n t a t iv a s d e r e e la b o -r a ç ã o t e n t a n d o "pensar de outra forma aquilo quejá se pensava e de perceber aquilo que se tem
feito de uma perspectiva diferente e sob uma luz
mais clara". A r e la ç ã o c o n s ig o m e s m o q u e s e t r a n s lu z em s u a o b r a , t e r ia , p o is , af o r m a d e um e x e r c í c io p e lo q u a l s e c h e g a a s e r o q u e s e
é
ao d e s p r e n d e r - s e d e s i m e s m o . A q u e le s c u jo e t h o s s e a s s im ila a e s t e d e s p r e n d im e n t o d e s i, d iz F o u c a u / t , v iv e m em um " p la n e t a d if e r e n t e " d a -q u e le s q u e b u s c a m ump o n t o f ix o d e c e r t e z a , umc a m in h o a u t ê n t ic o ou u m a d e c is ã o a u t ê n t ic a .
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
É e s t a c o n c e p ç ã o d e r e la ç ã o c o n s ig o m e s m o , c o m oe t h o s ou c o m o m a n e ir a d e s e r f iló s o f o , q u e e s t á em jo g o n a t e n t a t iv a d e F o u c a u lt 'q u e a p o n t a
a
r e c o n s id e r a r a s t r a d iç õ e s q u e c h a m a m o s é t ic a s .Palavras-chave: Técnicas de subjetivação -
Ética-Liberdade.
Abstroct:
Ethicol Subjectivity
I n t h e p r e f a c e o f t h e w o r k " T h e U s e of P le a s u r e s " , F o u c a u / t c h a r a c t e r iz e s h is o w n a t t it u d e s a s
a
p h ilo s o p h e r a n d h is r e s p e c t f o r p h ilo s o p h ic a l t r a d it io n s w h ic h h e c o n s id e r s a s a n ethos, o ra
w a y of b e in g a p h ilo s o p h e r . H is w o r k d o e s n 't d e v e / o p a sa
t h e o r y o r s y s t e m , in s t e a d it m a k e s s e v e r a l a t t e m p t s a t r e - e la b o r a t in g h o w t o " t h in k in a d if f e r e n t m a n n e r f r o m t h a t w h ic h o n e h a s1 Doutorando do Program a de Pós-Graduação da Universida-de FeUniversida-deral do Rio GranUniversida-de do Sul e professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.
2003
70
EDUCAÇÃO EM DEBATE FORTAlEZA ANo 25t h o u g h t of a lr e a d y b u t f r o m ad if f e r e n t p e r s p e c t iv e a n d f r o m
a
c le a r e r v ie w p o in t " . H is o w n p e r s o n a l r e la t io n s h ip w h ic h c o m e s t o lig h t in h is w o r k w ill h a v e t h e r e f o r e t h e f o r m of a n e x e r c is e a t w h ic h h e a r r iv e s a t b e in g w h a t it m e a n s t o b e d e t a c h e d f r o m o n e s e lf . T h o s e w h o s e e t h o s a s s im ila t e s t h is d e t a c h m e n t f r o m s e lf , s a y s , F o u c a u / t , liv e " o n a d if f e r e n t p la n e t " f r o m t h o s e w h o t r y t o f in da
f ix e d p o in t of c e r t it u d e , o r a n a u t h e n t ic w a y o r d e c is io n . I t is t h is m a n n e r of r e la t in g t o o n e s e lf , a s a n e t h o s o r w a y of b e in g a p h ilo s o p h e r , t h a t is a t s t a k e in F o u c a u lt 's e f f o r t s t o r e c o n s id e r t h e t r a d it io n s we c a ll e t h ic a l.Key words: Subjective techniques - Ethos - Liberty.
De 1976 até 1984, Michel Foucault
traba-lhou em seus dois últimos volumes da H is t ó r ia d a
S e x u a lid a d e ,
e
ainda, em outros ensaiose
confe-rências, versando todos em torno do tema da
éti-ca da subjetivação. Mas, para escrever essa obra
refez, totalmente, a ótica de seu trabalho, como
ele próprio afirma no começo do segundo
volu-me da supracitada obra. Quais foram as
mudan-ças que se operaram em seu pensamento?
Em primeiro lugar, Foucault argumenta que
o poder não é o objeto principal de suas
investi-gações. Declaração bastante surpreendente se
le-vamos em consideração que desde Vigiar e Punir
até o primeiro volume da História da
sexualida-de, todos seus escritos, entrevistas e conferências
tinham girado em torno da questão das relações
de poder, seguindo assim, segundo suas próprias
palavras, a genealogia nietzscheana. Neste
últi-mo período que muitos costumam denominar
"éti-co" no pensamento de Foucault, ele focaliza seu
objetivo em três campos: 1) Os jogos da verdade,
2) os jogos do poder, 3) as técnicas de
subjetivação. É este último aspecto que desejo
abordar no espaço deste relatório.
Em segundo lugar, há uma autocrítica na
qual se questiona o estudo nietzscheano do
po-der como confronto, como belicosidade. Essa
autocrítica encontra-se em suas Iições sobre a
q u e f iz n o d e c o r r e r d o s ú lt im o s a n o s in s c r e v e - s e
n o e s q u e m a d e lu t a - r e p r e s s ã o ,
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e é
is s o q u e t e n h ot e n t a d o f a z e r f u n c io n a r a t é a g o r a , m a s q u e
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
me v e jo o b r ig a d o ar e c o n s id e r a r , s e ja p o r q u e em t o d au m a s é r ie d e p o n t o s e s s e e s q u e m a e n c o n t r a - s e , a in d a , in s u f ic ie n t e m e n t e e la b o r a d o , s e ja p o r q u e a c r e d it o q u e
as
p r ó p r ia s n o ç õ e s d e r e p r e s s ã oe
d e g u e r r a d e v e m s e r c o n s id e r a v e lm e n t e m o d if ic a d a s , o u , em ú lt im o t e r m o , a b a n d o n a d a s . D e q u a lq u e r f o r m a c r e io q u e e la s d e v e m s e r r e c o n s id e r a d a s " .(FOUCAULT, 1992, p. 31) A partir de agora ele
vai trabalhar o poder como "governo", e ainda,
distingui r entre o governo das coisas (tecnologia),
governo dos homens (política de estado) e
gover-no de si próprio (a ética). Essa tríplice divisão dos
governos aparece no artigo L a g o u v e r n e m e n t a lit é (A governabilidade).
Em terceiro lugar há, também, uma nova
valoração da Ilustração. Isso para questionar a
sim-plificação pós-moderna de Lyotard e em resposta,
adiantada, às críticas de Habermas. Logicamente,
não se trata dos conteúdos da II ustração senão
daquilo que Foucault chama de uma "ontologia
do presente". osso autor pensa que Kant se
co-locou a pergunta:
a
que somos nós nestemomen-o? Pergunta que pode ser reiterada em cada
.
presente e que conduz à
JIHGFEDCBA
ontologia do presente.a mesma linha do pensamento iluminista,
Foucault destaca que não se pode criticar a razão
em termos absolutos, ao contrário, o que é
neces-ário é questionar a racional idade dos códigos
dominantes da cultura, a racional idade que serve
à efetivação da dominação e assujeitamento dos
eres humanos. Escreve Foucault: C a r a c t e r iz a r e i
o
e t h o s f ilo s ó f ic o p r ó p r io d a a n t o lo g ia c r í t ic a d e'lÓ Sm e s m o s c o m o u m t e s t e h is t ó r ic o p r á t ic o d o s lim it e s q u e p o d e m o s s u p e r a r e a s s im c o m o um t r a b a lh o q u e e f e t u a m o s n ó s m e s m o s s o b r e n ó s m e s m o s c o m o s e r e s liv r e s (Qué es Ia lIustración?, Pôster, 1990, 311).
Essas três mudanças são o pressuposto
ne-cessário para compreender a virada foucaultiana
para a ética da subjetivação. Essas três mudanças
são supostos necessários para compreender a
gui-ada foucaultiana para a ética da subjetivação.
EDUCAÇÃO EM DEBATE
Foucault começa assinalando que o
"cui-dado de si" tornou-se o princípio básico da
racional idade ética e, ao mesmo tempo,
condi-ção necessária da vida fi losófica e de acesso à
fi-losofia. Foucault refere-se aos filósofos gregos do
século IV a.c., e aos estóicos. Em seu programa
de pesquisa também havia projetado um estudo
sobre a técnica de subjetivação no cristianismo,
texto que chegou a escrever, mas não a publicar.
a
título da obra era A s a v e n t u r a s d a c a r n e . No prefácio a O u s o d o s p r a z e r e s , Foucaulttentou caracterizar a atitude que tinha a respeito
de si mesmo como filósofo e a respeito das
tradi-ções filosóficas considerando-as como um e t h o s ,
uma maneira de ser filósofo. Sua obra não se
de-senvolve como uma teoria ou um sistema, ela
direciona-se por seguidas tentativas de
re-elabo-ração tentando " p e n s a r d e o u t r a f o r m a a q u ilo q u e
já
se
p e n s a v ae
d e p e r c e b e r a q u ilo q u ese
t e m f e it o d e u m a p e r s p e c t iv a d if e r e n t ee
s o b u m a lu z m a is c la r a " . A relação consigo mesmo que setransluz em sua obra, teria, pois, a forma de um
exercício pelo qual se chega a ser o que se é ao
desprender-se de si mesmo. Aqueles cujo ethos
se assimila a este desprendimento de si, diz
Foucault, vivem em um "planeta diferente"
da-queles que buscam um ponto fixo de certeza, um
caminho autêntico ou uma decisão autêntica. É
esta concepção da relação consigo mesmo, como
ethos ou como maneira de ser filósofo, que está
em jogo na tentativa de Foucault que aponta a
reconsiderar as tradições que chamamos éticas.
A tradição da filosofia ética não nos é dada
como um todo unificado. Até o que chamamos
de moral judaico-cristã se formou em virtude de
uma espécie de c a l/ a g e de fontes pagãs.
Múlti-plas mudanças afetaram não só os códigos que
regulam a conduta, mas a concepção mesma de
ética, suas questões centrais, o que a ética supõe
verdadeiro sobre nós e as classes de relações que
ela supostamente tem com a religião, com a
ciên-cia, com a política e com o direito.
Uma das tarefas mais urgentes da filosofia no
momento atual é, segundo Foucault, favorecer um
tipo de relação do indivíduo consigo mesmo.
a
anterior supõe, de alguma forma, a denúncia e a
rejeição da suposta universalidade de todo
funda-mento. Uma filosofia que contribua para que as
re-lações de poder não se cristal izem em estados de
dominação, uma forma de pensamento que se
cons-titua sem a necessidade de recorrer a uma suposta verdade interior, dada de antemão ao
conhecimen-to e
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à experiência e arraigada em uma profundida-de íntima e inacessível. Em poucas palavras, trata-sede colocar o sujeito no centro da reflexão, mas um
sujeito liberado dos atributos que lhe foram dados
pelo saber moderno, pelo poder disciplinador e
normalizador e por uma determinada forma de moral
orientada para a obediência a um código.
A caminhada histórica, já multissecular, fez
com que ao longo do caminho o sujeito não
con-seguisse se libertar das aderências, dos achados,
das imposições e até das coisas que em um
deter-minado momento puderam-lhe ser de alguma
uti-lidade. Esses "acidentes" de percurso têm acabado
modelando ou construindo concepções
"discur-sos" diferentes de si.
Usos e costumes encontrados no ambiente
greco-Iatino assim como o estudo de algumas
tecnologias do eu nas quais encontramos traços
que permanecem na moral moderna, levam
Foucault a pensar na matriz de uma moral
orien-tada para a ética e que não é e nem pode ser uma
cópia da moral pagã. Foucault não quer
oferecer-nos um programa acabado, um desenho
comple-to das formas que o pensamento ético foi
adquirindo com o passar do tempo, muito pelo
contrário quer nos oferecer a oportunidade de
orientar nossos esforços teórico-práticos para a
constituição daquilo que ele mesmo denomina
como "Estética da Existência":
Por toda uma série de razões, a idéia de uma moral como obediência a um código de regras está pre-sentemente em um processo de desaparecimen-to, já desapareceu. E a essa ausência de moral responde, deve responder uma busca de uma es-tética da existência (FOUCAULT, 1994b, p. 732).
A afi rmação de Foucau It pode ser vista como
um chamado a assumir uma postura crítica diante
das e a as contemporâneas de encontrar o
fun-dame o para uma moral universal de caráter
norma i o. a última entrevista antes de sua
mor-te, ele e pronunciava a esse respeito nos
seguin-tes termo:
A bu ca de e tilos de existência tão diferentes uns dos outros como seja possível me parece um dos pontos, graças aos quais a investigação
contemporânea se pode inaugurar na
Antigüi-dade, em grupos singulares. A busca de uma forma de moral que seja aceitável para todos -no sentido de que todos devam submeter-se a
ela - parece-me catastrófica (FOUCAULT,
1994b, p. 706).
Se levarmos em conta que, para Foucault, a
ética é uma forma de relacionamento do
indiví-duo consigo mesmo (FOUCAULT, 1984, p. 219)
a questão que se coloca é eminentemente
práti-ca. Não se trata de investigar o quê ou de propor
um fundamento que possa vir a legitimar,
nova-mente, um código (ainda que mínimo) mas de
perguntar pelo como: como se constitui o
indiví-duo em sujeito moral de suas ações. Como
intro-duz a variabilidade, a transformação possível, a
diversidade. Investigar como se encontra o fato
de que o fundamento é móvel e altamente
transformável (Foucault demonstrou essa tese tanto
para o âmbito do conhecimento, como para o
político e moral nos seus livros mais célebres).
Perguntar pelo como em relação à constituição
do indivíduo como sujeito de suas ações supõe
aceitar a variabilidade e a diversidade, pensar a
ética como criação de liberdade e a partir da
li-berdade e pensar o sujeito como obra, obra de si
mesmo, obra de arte.
A reconstrução da ética greco-romana,
pro-posta por Foucault, em O
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
u s o d o s p r a z e r e s e Oc u i d a d o d e s i aponta para um tipo de relação do
homem consigo mesmo que não se baseia nem
na universalidade de um fundamento; nem em
uma reflexão sistemática sobre o sujeito como algo
preexistente, como um dado prévio àexperiência
e à ação. Na moral grega se respeita o caráter
in-dividual da conduta: a escolha do modo de vida é
uma questão pessoal e a elaboração, o trabalho
sobre a própria vida, se apóia em uma série de
técnicas
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(-n:XVTl rou
fltou,ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
a r s v it a e ) que não temcaráter normativo nem pretende se organizar em
forma de código. O elemento sobre o qual
des-cansa a moral antiga é o trabalho sobre si, a
ascética elevada à categoria de matriz constitutiva do
EeOa,
onde ethos implica relação doindiví-duo consigo mesmo, relação com os outros e a
relação com a verdade.
O que chama a atenção de Foucault na
moral antiga, e com o que ele mostra afinidade, é
com o papel do trabalho sobre si mesmo, o papel
de uma estetização do sujeito moral. Da
afinida-de para com tal princípio, várias vezes expressa,
nasce a proposta de Foucault: basear a moral na
escolha pessoal do indivíduo, entender o sujeito
como forma, que cada um deve elaborar,
traba-lhar e constituir segundo critérios de estilo e
atra-vés de tecnologias. Este seria, resumidamente, o
esquema de uma estética da existência, tão
au-sente em sociedades como as nossas:
o
que me surpreende éo fato de que, em nossasociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a
indivídu-os ou à vida; que a arte seja algo especializado
ou feito por especialistas que são artistas. Entre-tanto, não poderia a vida de todos se transfor-mar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida? (FOUCAULT, 1995a, p. 261).
Deslocar a arte - entendida como um
con-junto aberto e variável de técnicas de construção
e criação - do mero âmbito dos objetos ao da
vida e colocar esse conjunto de técnicas nas mãos
de cada indivíduo para que ele mesmo produza
sua própria vida e gerencie sua própria liberdade
é uma aposta que Foucault faz não só a partir das
bases de uma moral (a grega) constituída segundo
esses critérios, mas desde a reflexão sobre um dos
textos importantes de nossa modernidade: o texto
de Kant O que
é
o / lu m in is m o ? Neste pequenotexto, comentado por Foucault, Kant define o
lIuminismo como a saída do homem de sua
cul-pável incapacidade (conf. Kant, 1984: 100), como
maturidade para tomar e assumir as próprias
de-cisões sem recorrer ao dogma ou à autoridade.
Na avaliação de Foucault, a decisão mais
impor-tante, e talvez a única de fato crucial, é a que
afeta o estilo de vida de cada indivíduo, na qual
se vejam implicadas as relações que este mantém
consigo mesmo e com os outros. Assumir
radical-mente o princípio governante da modernidade
significa, a partir desta perspectiva, colocar as
condições para que o indivíduo seja artista ou
ar-tífice do seu próprio ethos. E se essa modernidade
apontada por Kant, nesse ambiente de
maturida-de, se inaugurou com um trabalho crítico, isto é,
com uma reflexão sobre os limites do
conheci-mento e da ação, o estabeleciconheci-mento da crítica, na
visão de Foucault, consiste em seguir
trabalhan-do e refletintrabalhan-do sobre os limites, mas não com a
intenção de legitimar sua condição de estruturas
transcendentais, dadas a priori, e
conseqüente-mente invariáveis, mas com o propósito de
mos-trar sua historicidade, sua contingência com o
objetivo de tornar possível sua transformação.
Algumas das mais fortes características
des-sa fase do pendes-samento de Foucault se encontram
na releitura desse texto de Kant. Eu disporia essas
características em três pontos:
1. Mostrar a imanência daquilo que
pensa-mos como transcendental. Para Foucault,
tanto o conhecimento quanto a ação
en-contram suas condições de
desenvolvi-mento nos sistemas de ordenamentos
(dispositivos e epistemes) que são
total-mente históricos - e como tais,
contin-gentes e possivelmente superáveis. Tais
sistemas organizam o espaço do saber e
do poder (isto é, respondem às
pergun-tas
"0
que podemos saber?" e "O quedevemos fazer?" em um determinado
momento. Esses sistemas se
apresentari-am como condições históricas da
reali-dade (conf. FOUCAUL T, 2000, p. 344-6).
2. Substituir o fundamento pela
experiên-cia. A partir daqui, a investigação
foucaultiana assume a forma sistemática
que obriga
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à pergunta não pelofunda-mento (entendido como substância
inva-riável ou como forma transcendental),
mas pela forma histórico-crítica e que
tem como objeto a descrição das
distin-tas experiências, as distintas relações
entre domínios de saber, tipos de
normatividade e formas de
subjetivida-de. O propósito desta forma de
investi-gação é mostrar que nem os limites do
conhecimento, nem as divisões
norma-tivas, nem as posições que o sujeito
ad-quire respondem a um fundamento ou
necessidade, mas têm caráter de
aconte-cimento histórico (conf. Ibid, p. 347-8).
3. Colocar o sujeito no espaço da
experiên-cia, não como norma constituinte, mas
como forma constituída de maneira
in-completa. O sujeito não é uma
invariante, uma essência fixa, acabada e
idêntica a si mesma, mas uma forma
constituída com e pelas experiências
his-tóricas. Falar de sujeito é falar das
com-plexas relações que os indivíduos
mantêm consigo mesmos, com os outros
e com a verdade. O sujeito se constitui
na experiência e através de práticas e
tecnologias (de saber, de poder, de si)
(conf. Ibid, p. 349-50). •
A proposta de uma estética da existência
en-contra sua possibilidade em um triplo
deslocamen-to: se os limites do conhecimento e da ação carecem
de suporte transcendental; não cabe submeter-se ao
ditame de nenhum fundamento e se, sobretudo, o
sujeito não é dado, só nos resta uma conseqüência prática "temos que criar a nós mesmos como uma
obra de arte" (FOUCAULT, 1995a, p. 262).
A proposta desenvolvida por Foucault,
des-liga-se de qualquer tipo de esteticismo fantasioso
e inconseqüente: a escolha pessoal da própria
for-ma de vida, situada na base da estética da
exis-tência, não se produz em um espaço vazio, mas
no âmbito da experiência que gera um desenho
no qual algumas escolhas são possíveis e outras
não. Não é uma escolha totalmente deliberada
que possa ignorar os movimentos do tecido social.
ANo 25 V. I • Na 45 2003
74
EDUCAÇÃO EM DEBATE0_
O:,
diz Foucault, pretendiam dar umes ilo à . a ele, uti I izavam técn icas para
estilizar a
JIHGFEDCBA
co du a, realizavam um constantetrabalho sob e
i
mesmos e uma constanterefle-xão sobre e e me mo trabalho, envolvendo os
outros e en
01
-endo
a verdade, acabam fazendoda ética uma estética do eu e da autocriação de si
(estética) um esforço com forte conteúdo ético
(conf. FOUCAUL T, 1995a, p. 261).
A constituição do indivíduo como sujeito, a
escolha do estilo, se realizava em um marco
regi-do por princípios e cercado por limites que se
im-punham como condições: princípios e limites que,
mesmo não sendo permanentes, não podiam ser
mudados sem atender a princípios e limites que,
por outro lado, não se oferecem completamente à
consciência, posto que constituem o impensado
do pensamento (conf. FOUCAULT, 1995a, p. 257).
Uma estética da existência, tal como
Foucault a concebe, propicia uma maior
possibi-lidade de escolhas pessoais, convida a considerar
a própria vida como obra de arte, propõe uma
ética do estilo; ainda que autorizado e limitado
pelos domínios do saber e das construções
normativas que constituem o indivíduo como
su-jeito/objeto de determinados conhecimentos e
poderes. A escolha, porém, é possível tendo como
pano de fundo o sistema, os jogos de verdade e
os dispositivos de poder.
Esta constatação converte a estética da
exis-tência em um modo de ver a ética, que tem como
características a crítica e a experimentação.
Enquan-to modo crítico, a estética da existência encontra
em sua base o fato de que os domínios de saber e
os dispositivos de poder que condicionam a
expe-riência e desenham a margem de possibilidades
da época não são necessários nem imutáveis. Isto
quer dizer que os limites impostos se
evidenciarr
como tantos outros lugares de transgressão
possí-veis, que devem ser pensados com atenção tend
em conta sua radical contingência. O que a
experi-ência histórica mostra é o fato de que os limites
são variáveis e que os fundamentos são rnutáveis
A escolha do estilo deve questionar a experiência
Devem os m udar totalm ente nosso m odo de ser,
nossa relação com os outros, com as coisas, com
a eternidade, com Deus, etc. e se produzirá um a
verdadeira revolução sob as condições dessa
m udança radical de nossa experiência
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
(FOUCAULT, 1994a, p. 749).
Nesse sentido, a moral do estilo não é o
retiro solipsista a uma individualidade isolada e
auto-suficiente. Tem, pelo contrário, dimensões
tanto epistemológicas (ligadas a um saber
com-partilhado) como políticas (ligadas a um contato
imerso nas relações de poder com os outros). A
parti r da perspectiva de Foucault, o i ndivíduo não
pode mudar seu modo de ser sem mudar simulta-neamente as relações consigo mesmo, as relações com os outros e as relações com a verdade.
Enquanto modo de experimentação, a
esté-·ca da existência propõe colocar à prova tanto os
mites impostos
à
experiência, comoà
própriaondição de sujeito. A crítica permanente de
nos--a época histórica e de nosso próprio eu se
apre-nta ao mesmo tempo como um deslocamento
limites e como práticas de si. Ao enfatizar o
-áter
"prático" da ética, (o ethos como umaprá-a), prática de liberdade (conf. FOUCAULT,
94b, p. 711), o sujeito será finalmente objeto
preocupação, de trabalho. Não há de ser
so-te visualizado, mas configurado segundo
es-nas individuais e critérios de estilo.
No centro da estética da existência se situa
uestão
da liberdade. A crítica comocornpo-'e da estética da existência tem como tarefa
ar tão longe quanto possível o trabalho da
li-ade (conf. FOUCAULT, 2000, p. 348). Com
- ão à ética, a liberdade é condição e objeto,
: a liberdade é "condição ontológica da ética,
ica é a forma reflexiva que adota a
liberda-FOUCAULT, 1994b, p. 712).
Que a liberdade seja objeto de uma
cons-ão é algo que, em certa medida, contrasta
-osarnente com boa parte do pensamento
lecido e vigente que serve de base tanto para
niões quanto para a ação individual e
cole--costumamos-nos a pensar a liberdade como
reito, como algo que, em qualquer caso, se
EDUCAÇÃO EM DEBATE
tem ou não se tem, perde-se ou conquista-se. Para
Foucault, contudo, a liberdade é um processo
complexo engendrado pela reflexão, pela
práti-ca, pela atitude. O objeto ao qual se aplicam
re-flexão, prática e atitude é o sujeito: nós mesmos
enquanto seres historicamente determinados, em
parte por relações de poder-saber, mas, ao
mes-mo tempo, sujeitos a transformações, capazes de
enfraquecer as fronteiras, os limites que nos
cons-tituem por meio de um trabalho sobre nós
mesmos, em exercício prático-crítico e que
denominamos como estética da existência. O que
se pode dizer do sujeito é que ele se constitui
se-gundo alguns limites contingentes que, em sua
contingência, anunciam a possibilidade de
trans-formação do sujeito. Compreende-se, assim, que
a concepção de pensamento e de filosofia de
Foucault, exclua o refúgio da identidade
preca-vendo-se contra as armadilhas do fundamento:
desprender-se de si mesmo é o exercício prático
e crítico que corrói os limites e desloca o
funda-mento (conf. FOUCAULT, 1995b, p. 239).
Não é estranho que o pensamento de
Foucault acabasse chegando a um ethos,
entendi-do como conjunção de atitude e exercício: um
modo de relação com respeito à atualidade,
esco-lha voluntária de uma forma de ser ou tipo de
rela-ção consigo mesmo, com os outros e com a
verdade. Esseethos filosófico que "consiste em uma
crítica do que dizemos, pensamos e fazemos,
atra-vés de uma ontologia histórica de nós mesmos"
(FOUCAULT,2000, p. 347), caracteriza-se porduas
atitudes fundamentais, aquelas que Foucault
cha-ma de atitude-limite e atitude experimental.
A atitude-limite implica numa relação de
análise dos limites que nos constituem. Trata-se
de saber o que há de singular, contingente e
arbi-trário naquilo que nos tem sido legado como
uni-versal, necessário e obrigatório: "trata-se, em suma,
de transformar a crítica exercida sob a forma de
limitação necessária em uma crítica prática sob a
forma de transgressão possível. Para isso é preciso
empreender uma análise, não de estruturas
for-mais com valor universal, mas dos conjuntos
his-tóricos que nos conduziram a nos reconhecermos
como sujeitos de nossos pensamentos e ações. O
que se busca, longe de assegurar a legitimidade e
a pretensão universalista de qualquer
fundamen-to, é "tratar tanto os discursos que articulam o que
pensamos, dizemos e fazemos, com os
aconteci-mentos históricos" (Foucault, 2000: 348). Por meio
dessa análise refletimos sobre a contingência que
nos faz ser o que somos e, a partir dela, sobre a
possibilidade de não ser, fazer ou pensar o que
somos pensamos e fazemos (conf. FOUCAULT,
2000, p. 348).
A segunda atitude denominada por Foucault
de "atitude experimental" pretende complementar
a crítica dos limites com um trabalho de
transfor-mação prática, precisa e constante da
contingên-cia que nos constitui, por meio de um exame
"histórico-crítico dos limites que podemos
trans-por, portanto com o trabalho sobre nós mesmos
como seres livres".(ibid.) De fato, o próprio
exer-cício da travessia como transgressão que busca
estender o possível, além do supostamente
neces-sário, é entendido como exercício de liberdade.
O trabalho de Foucault começa por um
es-tudo dos domínios ou eixos nos quais o sujeito se
constitui: o poder, o saber e a ética, ou dito de
outra forma, as relações com os outros, com a
verdade e consigo mesmo; Fouc~ult entende que
nesses domínios se exercem práticas de
domina-ção e prática de liberdade. O estudo de tais
práti-cas - a ontologia histórica de nós mesmos - nos
indica como fomos constituídos "como sujeitos
que exercem e sofrem relações de poder, como
nos constituímos como sujeitos morais de nossas
ações" (Foucault, 2000: 350). Essa ontologia de
nós mesmos não pode ser considerada como uma
teoria ou doutrina nem mesmo um corpo de
sa-beres; temos que considera-Ia como um ethos,
"uma vida filosófica em que a crítica do que
so-mos é simultaneamente análise histórica dos
li-mites que nos são colocados e prova de sua
transgressão possível" (FOUCAUL T, 2000, p. 351).
Para essa filosofia entendida como ethos, a
liberdade é simultaneamente condição, objeto e
objetivo. Para essa filosofia entendida como
prá-tica, o presente é contingência que nos configura
e também possibilidade de transgressão. Para essa
filosofia, o trabalho ascético do indivíduo sobre
ele mesmo, que transforma suas relações com os
outros e com a verdade - é um exercício de
liber-dade que transgride os limite da contingência, um
exercício por meio do qual o sujeito se
despren-de despren-de si, con
rqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
rencidos de que no presente existemmais liberdades possíveis, mais possibilidades de
recriar o nosso futuro do que possamos imaginar.
É
possível que não se possa avançar muitomais. O inacabamento forçado do trabalho de
Foucault, o fato de que sua morte tenha
interrom-pido justamente o momento no qual ele elaborava
seu trabalho sobre a estética da existência nos
obri-ga apenas a construir hipóteses. A obra de Foucault
não se fecha sobre si mesma, não adquire - e
nun-ca pretendeu adquirir - a forma fechada de um
sistema. Insinua-se pelo contrário uma abertura,
uma brecha, na qual é possível seguir pensando ...
Foucault pensa que, embora não procure
alternativas no passado, nem mesmo no nível
éti-co, é preciso saber que há risco, perigo em tudo.
Essa sua posição leva a um ativismo pessimista,
mas não à apatia:
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
A c h o q u e a e s c o lh a é t ic o - p o lí ti-ca
q u e t e m o s q u e f a z e ra
c a d a d iaé
d e t e r m in a rq u a l
é
op e r ig o p r in c ip a l (DREYFUS, 1984, p. 41). Seu interesse pelos pensadores antigos, - dosúltimos anos antes de Cristo aos primeiros da era
cristã, isto é, os gregos clássicos e os romanos,
-não está, propriamente no estabelecimento de um
modelo ético, mas, seu interesse, está relacionado
àaquisição de instrumental de análise para a
com-preensão do que somos atualmente.
Foucault, embora não tenha buscado em
Aristóteles ou em Cícero o tema da amizade,
con-sidera-o muito importante. Na verdade é o tema
da reciprocidade. Enquanto a amizade é
recípro-ca, as relações sexuais não o são. Portanto, é
difí-cil, segundo Foucault, manter a reciprocidade da
amizade e, ao mesmo tempo, a
não-reciprocida-de das relações sexuais. Mesmo entre os gregos,
por exemplo, em Plantão, esse tema é tratado desta
forma: é importante a reciprocidade numa
amiza-de, mas era difícil para os gregos (Platão) aceitá-Ia
no plano físico (sexual). Pode-se tomar, ainda,
outros exemplos: Xenofonte, Banquete. Sócrates nestes escritos diz que na relação entre um
meni-no e um homem, o prazer é para o homem e o
men ino é apenas espectador do prazer do homem.
Esta investigação dos gregos, feita por
Foucault, leva a um problema que pode e deve
ser pensado:
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
S o m o s c a p a z e s d e le v a r em c o n si-d e r a ç ã o
rqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
o
p r a z e r d o o u t r o ? Éo
p r a z e r d o o u t r o a lg o q u e p o s s a s e r in t e g r a d o em n o s s o p r a z e r , s e mr e f e r ê n c ia à le i, ao c a s a m e n t o , ou s e ja lá o q u e f o r ? ( lb id e m , p . 4 6 ) .
Para os gregos, por exemplo, de Sócrates a
Sêneca, a questão que trazia preocupação era qual
"techne", qual arte eu tenho que usar para viver
ão bem quanto devo viver. Em outros termos, que
écnicas de si mesmo se pode ter: cuidar da
cida-de, cuidar de si mesmo ou cuidar de si mesmo
para governar a cidade (só quem se governa, pode
overnar os outros). Aqui a temática parece ser a
e uma estética da existência. Essa idéia é muito
cara a Foucault: a vida como material para uma
ça estética de arte. E mais, a ética como
estru-- ra da existência, sem referência ao jurídico, sem
• ferência ao que é obrigatório. Para os gregos a
uestão
era: você é escravo ou senhor de seusejos? O problema para eles era de moderação
ão tanto de desvio moral.
O que dizer do século XX, com relação a
'e tema da austeridade sexual? O que
impressi-a Foucimpressi-ault é o fato de que, em nossa
socieda-a socieda-arte se tenha tornado algo relacionado
ente a objetos e não a indivíduos, ou à vida.
rque a arquitetura pode ser uma obra de arte e
ossa vida não? Se enquanto indivíduos não
os dados, temos que nos produzir enquanto
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
' à de arte, para Foucault é, como para Nietzsche
A C a ia C iê n c ia , nossa relação conosco
mes-deve ser uma atividade criativa. É claro que
s em aqui implicações importantes para a
éti-enquanto código, na medida em que o código
ouca ou nenhuma margem à criatividade.
Foucault procura distinguir entre o
compor-ento real das pessoas e o código moral que é
sto a elas. Entre o código que determina que
.tos
sejam permitidos ou proibidos e o códigoEDUCAÇÃO EM DEBATE
que determina o valor positivo ou negativo de
comportamentos diferentes possíveis e, ainda, o
tipo de relação que se deve ter consigo próprio, o
que Foucault chama de Ética e que determina
como o indivíduo se constitui como sujeito moral
de suas próprias ações.
Qual o campo principal da moralidade ou
o aspecto do meu comportamento que está
liga-do à conduta moral? Esta é uma questão
impor-tante a ser respondida. Por exemplo, para os
cristãos, esse campo principal da moral idade na
Idade Média foram os desejos; para Kant foram as
intenções e; para a nossa sociedade são os
senti-mentos. Isto é o que Foucault chama substância
ética, o material que vai ser trabalhado pela ética.
Para os gregos a substância ética, do campo ético
principal, eram os atos ligados ao prazer e ao
de-sejo em sua unidade; para os cristãos a substância
ética era a carne; hoje temos a sexualidade como
a substância ética que pode e deve ser pensada.
Podem-se, pois, distinguir quatro aspectos
éticos: a substância ética; o modo de sujeição,
isto é, o modo pelo qual as pessoas são
convida-das ou incitaconvida-das a reconhecerem suas obrigações
morais. (O que nos convida? É a lei natural, uma
ordem cosmo lógica, uma regra racional, uma
exis-tência melhor?) De que modo podemos
modifi-car a nós mesmos para nos tornarmos sujeitos
éticos? (Como trabalhamos a substância ética? O
que devemos fazer para modificar nossos atos ou
para decifrar o que somos? Erradicar nossos
dese-jos, ou usar nosso desejo sexual para a
procria-ção? Aqui se fala de toda uma elaboração de nós
mesmos para nos comportarmos eticamente). O
que aspiramos ser quando nos comportamos de
uma maneira moral? (Puros, livres, imortais,
se-nhores de nós mesmos)?
Certamente, devemos correr o risco. Risco
que constitui o perigo fundamental da existência
humana, já proposto por Kant na seguinte
fórmu-la: "Tem a coragem de pensar por ti mesmo". Ou,
numa outra aproximação, proposta, nestes termos,
por Sócrates: "Conhece-te a ti mesmo". De
qual-quer modo, o risco que se deve e que se pode
correr não é outro senão o eterno risco de existir
autonomamente, por si, constituindo-se uma obra
de arte, a mais bela possível. Penso que a
propos-ta de Foucault, embora não seja uma elaboração
ética acabada, já que nada neste pensador é
as-sim, possa ser formulada de uma velha maneira:
a existência bela não é aquela que simplesmente
obedece ou diz sim. A beleza é uma relação
con-sigo mesmo.
A ética em Foucault, ainda que se possa
re-feri-Ia de modo restrito ao que poderíamos
pen-sar como sendo o plano ético em nosso autor, vale
lembrar que se poderia entendê-Ia como domínio
de si. Domínio que indica o tipo de relação a
par-tir do qual o indivíduo se constitui enquanto
su-jeito moral sobre si mesmo, sobre suas próprias
ações. Talvez seja importante marcar um
deslo-camento que Foucault opera sobre si mesmo, isto
é, nos seus últimos escritos (O
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
u s o d o s p r a z e r e s e O c u id a d o d e s i) , ele passa do problema dogo-verno dos outros para o do gogo-verno de si mesmo.
Ainda que isto seja verdade, não se deve tomá-Ia
de modo absoluto, já que, para Foucault, há
sem-pre uma relação com os outros e consigo mesmo
num mesmo feixe de relações, ou seja, deve-se
falar de relação de relações:
Não creio que haja moral sem um certo núme-ro de práticas de si. Acontece estas práticas de si serem associadas a estruturas de código nu-merosas, sistemáticas e opressoras. Acontece mesmo se ocultarem em proveito deste conjun-to de regras que surgem então como o essenci-al de uma moressenci-al. Porém pode suceder também que elas constituam o foco mais importante e mais ativo da moral e que seja em redor delas que se desenvolva a reflexão. As práticas de si tomam assim a forma de uma arte de si, relati-vamente independente de uma legislação mo-ral (Foucault, O cuidado com a verdade, p. 78).
Assim, pode-se compreender que em
Foucault há uma técnica de si, uma arte de si
mesmo e, porque não dizer, um cuidado de si
que não estão ligados às interdições da moral
(moral entendida apenas como o âmbito das
proi-bições). Pode-se falar aqui, então, em ética, isto
é, a liberdade de realizar-se a si mesmo enquanto
sujeito, produzindo a sua própria existência como
obra de arte para si mesmo e para os outros e,
mesmo, para a posteridade, como exemplo, não
a ser seguido, mas como referência a ser
pensa-da. Aqui, parece, Foucault indica uma possível
solução para um problema da sua noção de ética
do indivíduo: a acusação sempre retomada pelos
seus interlocutores de uma certa saída
individua-lista para o cuidado de si, entendido como um
egoísmo do pensamento foucaultiano. Com a
saí-da para a reciprocidade, ou seja, a amizade,
Foucault não só resolve este problema, mas
tam-bém indica para os vários grupos que constroem
um novo estilo de vida para si, um caminho para
a liberação.
Foucault distingue entre uma moral como
código e uma moral que pende para a ética. a
moral como código não é importante a prática da
subjetivação. Ao contrário, na ética o decisivo é a
subjetivação. O pensamento de Foucault deixa
claro que se trata de uma questão de ênfase, isto
é, o que interessa é destacar não os códigos
mo-rais, que de fato não mudam muito, mas as
técni-cas de subjetivação. De fato Foucault sabe que o
cristianismo tem uma "prática de si" e a descre e
qualificando-a como "hermenêutica do sujeito'
que é uma forma de governo de si mesmo.
Mesmo que não se possa falar de um
trata-do de ética em Foucault, contudo, se podem de
-tacar várias proposições éticas importantes nas
obras mais tardias. A primeira e fundamental é a
afirmação da liberdade como princípio ético.
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
rlib e r d a d e
rqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
é a c o n d iç ã o o n t o ló g ic a d a é t ic a , m a s a é t ic a é a f o r m a r e f le x iv a q u e a d o t a a lib e r d a d e(FOUCAULT, 1994, p. 11) Ou A é t ic a é a f o r m a
d e lib e r a d a q u e a s s u m e a lib e r d a d e . Este press
posto é importante não só pelo seu valor étic
intrínseco, mas também porque Foucault
respon-de a quem via em sua teoria das relações de
po-der um determinismo onde a liberdade brilha
pela sua ausência.
A ética converte-se no núcleo central d
filosofia, e tanto a primeira quanto a segunda sã
definidas como elucidação das técnicas Q::
subjetivação. A f ilo s o f ia éo c o n ju n t o d o s p r in c í p
os e as
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
p r á t i c a szyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
com as q u a i s c o n t a m o s e q u e p o-d e m o s c o l o c a r a d i s p o s i ç ã o d o s o u t r o s p a r a o c u
-p a r - n o s a d e q u a d a m e n t e d e n ó s m e s m o s o u d o
c u i d a d o d o s o u t r o s . (FOUCAULT, 1994, p. 61)
Foucault tinha criticado a moderna filosofia do
su-jeito, porém neste período ético vai falar e
escre-ver insistentemente sobre a subjetivação. Escreve:
O
s u j e i t o n ã oé
u m a s u b s t â n c i a . É u m a fo r m ae
e s s a fo r m a n ã o
é
s e m p r e a m e s m a . . . , o q u e i n t e r e s-sa é, e x a t a m e n t e , a c o n s t r u ç ã o h i s t ó r i c a d e s s a s fo r
-m a s d i fe r e n t e s d o s u j e i t o em r e l a ç ã o com
o
j o g o d a v e r d a d e (FOUCAULT, 1994) Em outraspala-vras, o sujeito da modernidade que Foucault
criti-cava era um sujeito já constituído, um sujeito
estático, agora, porém, trata-se do dinamismo pelo
qual o sujeito se constrói a si mesmo, quer dizer,
de um processo de subjetivação. Da i d é i a d e q u e
o
s u j e i t o n ã o n o sé
d a d o , p e n s o q u e sed e r i v a u m ac o n s e q ü ê n c i a p r á t i c a : t e m o s q u e n o s c r i a r c o m o
u m a o b r a d e a r t e (DREYFUS, 1990).
Foucault fala da substância da ética no
sen-tido daquilo que no ser do sujeito encontra-se
aberto a uma transformação histórica. E é a
liber-dade prática que nos convida a essa
transforma-ção.
É
a possibilidade de dar um novo impulso, omais vasto possível,
à
obra inacabada daliberda-de" (FOUCAULT, 1994, p. 213).
É,
comocomen-ta Iohn Rachjman, a liberdade c o m o m a n e i r a d e
e s c o l h e r u m a fo r m a d e s e r (RACHJMAN, en: 1990,
p. 213). A substância ética para os gregos são os
prazeres (acjlpoôtcna- aphrodisia), para o
cristia-nismo essa substância ética é o desejo. Foucault
explica essa substância ética amplamente:
o
indivíduo circunscreve a parte de si mesmoque constitui o objeto da prática moral; define sua postura em relação com o presente que se-gue, fixa-se certo modo de ser que valeria como realização moral de si próprio e para assim
fazê-10, age sobre si mesmo, se empenha em
conhe-cer-se, controla-se, experimenta-se, se aperfeiçoa, se transforma (Usage des plaisirs, p. 35).
o
"cuidado de si" é uma práticapermanen-te de toda a vida que permanen-tende a a s s e g u r a r o e x e r c í
-c i o c o n t í n u o d a l i b e r d a d e UAMES BERNAUER, p.
254). Isso é assim porque
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
A fi n a l i d a d e d e s s a é t i c aé, c e r t a m e n t e , a l i b e r d a d e (lbid, p. 266). Trata-se
de nos libertarmos das tecnologias de
desenvolvi-mento de si mesmo que nos são impostas para
acedermos à própria técnica de subjetivação, ao
próprio cuidado de si mesmo, ao próprio estilo
de vida.
O cuidado de si é uma atitude para consigo
mesmo, para com os outros e ainda uma forma
de relação com o mundo. Foucault estudou três
períodos, ou melhor, três formas de subjetivação:
a dos gregos, a dos estóicos, principalmente,
ro-manos e a do cristianismo. Para os gregos do
sé-culo IV a.c. o sujeito deve transformar-se para ter
acesso àverdade. Precisa de uma espécie de
con-versão. A v e r d a d e
é
a q u i l o q u e i l u m i n a ao s u j e i t oe
d á t r a n q ü i l i d a d e ao e s p í r i t o (FOUCAU LT, 1994,p. 38) Que transformações são necessárias para
termos acesso à verdade?
No diálogo platõnico Alcibíades, Sócrates
tenta transformar Alcibíades no sentido de aceder
ao governo de si mesmo. A necessidade de
ocu-par-se de si mesmo está ligada ao poder (modelo
grego). A verdade exige transformação de si
mes-mo. Alcibíades mostra debilidade ao submeter-se
aos prazeres e desejos. O modelo platõnico é o
seguinte: ocupo-me de mim mesmo para
gover-nar melhor a cidade. Ocupar-se de si mesmo
significa ocupar-se da própria alma. A alma se
serve do corpo. A alma é o sujeito que se serve do
corpo e da linguagem. A alma é o sujeito da ação.
É
necessário ocupar-se da alma e não só docor-po. O mestre serve de guia no cuidado de si
mes-mo. No modelo grego o ocupar-se de si mesmo
encontra-se referido sempre a uma classe
aristo-crática. Para Platão o conhecimento de si mesmo
encontra seu ápice no acesso à verdade. Trata-se,
também, para Platão de conhecer o divino que
existe em nós mesmos. O cuidado de si mesmo é
uma espécie de terapia. O o u t r o
é
i n d i s p e n s á v e ln a r e l a ç ã o c o n s i g o m e s m o (FOUCAULT, 1994,
p. 57). Na Retórica atuamos sobre os outros por
meio do discurso. Na filosofia trata-se da prática
de si mesmo e da disposição para que o outro
também cuide de si mesmo. O filósofo como guia
da
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
e x i s t ê n c i a . O c o n h e c i m e n t o de si mesmo con-duzrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
à
fi l o s o fi a . O c o n h e c i m e n t o de si mesmocon-duz
à
catarse, mas tambémà
práxis política.A "EVKpU'tE1U -enkrateia" é um princípio
que se aplica ao domínio de si mesmo. F o r m a
a t i v a d e d o m í n i o d e s i m e s m o , q u e p e r m i t e r e s i s
-t i r
ou
l u t a r ,e
g a r a n t i ro
d o m í n i o n o c a m p o d o sd e s e j o s ed o s p r a z e r e s (FOUCAULT, li, p. 62 trad.)
Trata-se da possibilidade de chegarmos a
domi-nar os próprios prazeres e desejos e não que
seja-mos dominados por eles.
É,
pois, um governo desi mesmo. Uma batalha de forças ao interior de
nós mesmos, na qual, porém, devemos vencer.
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Am a i s v e r g o n h o s a d a s d e r r o t a s ,
a
m a i s r u i m , d i zF o u c a u l t c i t a n d o
a
P I atão, c o n s i s t e em s e r m o s v e n c i d o s p o r n ó s m e s m o s (LEYES, I, p. 626). Overdadeiro homem não se deixa vencer.
Entre os gregos do século IV trata-se de
go-vernar-se a si mesmo para governar melhor os
ou-tros. O pai deve saber dominar-se para assim
governar a esposa, os filhos e os escravos. Da mes-ma formes-ma, quem governa a cidade deve saber go-vernar-se a si mesmo para poder governar os outros.
Este esquema encontra-se claramente exposto em
Aristóteles, particularmente, na Política. O
gover-no de si mesmo verifica-se a partir da. razão,
cons-titui uma espécie de prudência,
'crOCPPOffillVE-sofrosyne'. Este governo é uma soberania de si
mesmo e um exercício de liberdade diante dos
pra-zeres e desejos. O domínio de si mesmo constitui
o sujeito moral. T o d a u m a fo r m a d e c o n s t i t u i r - s e como s u j e i t o q u e t e n d e p a r a o c u i d a d o j u s t o , n e
-c e s s á r i o es u fi c i e n t e d e s e u c o r p o (FOUCAU LT, li, p. 102., trad.). O indivíduo configura sua subjetivi-dade com critérios de beleza, versubjetivi-dade e soberania.
Foucault denomina essa forma de viver como uma
"estética da existência". O domínio de si(Em J.LEÀE1.u
- epimeleia) aplica-se à relação com o cônjuge e
ao amor intermasculino.
Foucault refere que o caso de Platão,
mes-mo mantendo o modelo do domínio de si
mes-mo, contudo, acentua muito mais a austeridade,
a temperança, a abstinência, em favor da procura
pela verdade. O indivíduo não pode alcançar a
verdade senão por meio de um proceso moral de
domínio de si, de acese chegando ao amor
verda-deiro que é a sabedoria. Na G r é c i a , escreve
Foucault, dá-se uma ética da eleição, não da
obe-diência ubmi sa; é uma ética mais da forma do
que da norma; não é uma moral inscrita em um
código de proibições.
Passemo I agora, àquilo que Foucault
escre-ve sobre os estóicos na questão do governo de si
mesmo e àquilo que ele denomina tecnologias
do eu. Com os estóicos o cuidado de si
converte-se em uma finalidade em si mesma.
Autofinali-dade, atividade centrada em si mesmo. Entende-se
a filosofia como uma forma de espiritualidade.
Produz-se uma cultura do si mesmo. Trata-se de
libertar-se daquilo de que dependemos. No
estoicismo trata-se da auto-objetivação, no
cristi-anismo da transsubjetivação. Nos estóicos o
co-nhecimento da natureza era necessário para o
cuidado de si mesmo. Alguém não pode
conhe-cer-se a si mesmo se não tem um ponto de vista
sobre a natureza. Trata-se de recolocar-nos em um
mundo racional e tranqüilizador. Um mundo
como estrutura de causas e efeitos que devemos
captar primeiro se quisermos libertar-nos, pois,
essa libertação não é senão o reconhecimento da
necessidade desse encadeamento causal.
A ascese
(Aoxeoto-
askesys) é aconsidera-ção progressiva do eu; é o processo para uma
maior subjetivação. A alma virtuosa encontra-se
em comunicação com todo o universo. A alma
percorre todas as coisas do mundo.
A máxima do oráculo de Delfos
"conhecer-se a si mesmo" deve ir acompanhada de outra:
"ocupa-te de ti mesmo". E afirma Foucault: O
c o n h e c i m e n t o d e s i m e s m o éu n i c a m e n t e um c a s o p a r t i c u l a r d a p r e o c u p a ç ã o c o n s i g o m e s m o
(FOUCAULT, 1994).
Sêneca diz que se quisermos sair da
igno-rância é necessário o cuidado de si mesmo. :.
ignorância é ruim para nossa saúde. O pior
esta-do em que podemos encontrar-nos,
filosofica-mente, é um estado de estultícia. Essa estultíc
implica numa aceitação não crítica das represe
tações. Estulto é quem se dispersa no tempo
-não põe sua vontade em alguma finalidade
portante. Essa vontade volátil não pode ser livre.
Querer livremente é querer sem estar
determi-nado por representações ou inclinações. A
von-tade justa não tem outro objeto que a si mesma.
Agora bem, o estulto não se quer a si mesmo.
Sair da estultícia é colocar-se em atitude tal que
alguém chegue a gostar de si mesmo. "A
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
c o n s ti-t u iç ã o d e s i m e s m o em o b je t o , n a f in a lid a d e
absoluta e permanente da vontade, não pode
c o n s e g u ir - s e , m a s d o q u e p e la m e d ia ç ã o d o o u t r o " . (p. 60) O cuidado de si mesmo torna
ne-cessária a presença do outro. A filosofia é o guia
para atingir o governo de si mesmo.
A prática de si mesmo entra em relação com a prática social, diz Sêneca. Os estóicos falam em
conversão. A conversão consiste em libertar-se de
todas aquelas dependências que escravizam; nos
libertarmos de tudo aquilo que não controlamos.
Para além do conhecimento, o essencial é o
exer-cício ascético.
Sêneca distingue na filosofia a parte que se
refere ao ser humano, aquilo que diz respeito ao
agir na terra e, finalmente, aquilo que se refere
aos deuses. A razão humana é da mesma
nature-za que a divina. A razão nos descobre como
pon-to insignificante no universo. A razão revela a força
e a presença da natureza e nos mostrá. a
insignifi-cância. Esse conhecimento da Natureza é, pois,
de ajuda para o conhecimento de si, ajuda-nos a
afinar nosso olhar. A virtude é a contemplação do
todo. Não há um distanciamento da alma em
re-lação ao mundo, mas um saber ver no presente as
coisas do mundo. Não perder de vista o mundo
em que estamos.
Sêneca coloca a questão do quando e sob
quais condições devemos afastar-nos da política
para dedicar-nos ao cuidado de nós mesmos.
Sêneca insiste para que Lucilio deixe a política e
se ocupe de si. Epicteto, Sêneca, Marco Aurélio
insistem no cuidado de si mesmo como algo que
debe realizar-se ao longo de toda a vida e que
quanto mais cedo se começar melhor. Ainda
re-comenda Sêneca que o indivíduo anote todos seus
atos, que leve uma anotação cuidadosa sobre si
mesmo. Sêneca e Marco Aurélio escrevendo
car-tas para seus discípulos criam uma literatura
so-bre o cuidado de si.
Inclui-se, também, uma prática do exame
de consciência. Controlar nossas representações.
JIHGFEDCBA
A<JKEmcr -
(Askesis): domínio de si mesmo
atra-vés da aquisição e assimilação da verdade. A
askesis
dos estóicos tem dois elementos: medita-ção e exercício.A
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meditação da morte
é
o ápice desses
exer-cícios. Marco Aurélio situa-a como o ponto
cul-minante da moral, a grande prova da autonomia
do sujeito e do domínio do eu. Da mesma forma,
Sêneca escreve a Lucílio afirmando a
necessida-de necessida-de viver cada dia como si fosse o último.
O cuidado de si implica numa série
com-plexa de obrigações em função da alma. As cartas
de Sêneca exemplificam bem essas obrigações.
Em teoria o cuidado de si dirige-se à alma, mas
envolve o corpo numa infinidade de
preocupa-ções e de detalhes. Em Sêneca recomenda-se o
retiro ao campo, à vida rural, pois a natureza
tor-na propício o contato consigo mesmo. No
perío-do helenístico o cuidado de si não é, unicamente,
uma preocupação para se preparar para a
políti-ca senão que constitui uma preocupação geral.
Não se trata de preparar-se para a política, ao
contrário, recomenda-se o afastamento da
políti-ca para dedipolíti-car-se ao cuidado de si. Também não
se trata de uma preocupação só dos jovens, mas
uma arte de viver para todos e ao longo de toda
a vida. O cuidado de si é uma forma de " S e p r e
-p a r a r p a r a c e r t a r e a liz a ç ã o c o m p le t a d a v id a . . . E s s a r e a liz a ç ã o é c o m p le t a ju s t a m e n t e n o m o -m e n t ó a n t e r io r
à
m o r t e " (FOUCAULT, 1990, p.67). A velhice não é valorada negativamente, ao
contrário, ela é valorizada como proximidade da
realização pessoal. Sêneca usa uma linguagem
jurídica, dando a impressão de que o eu é juiz e
acusado ao mesmo tempo. O e x a m e d e s i r e p r e
-s e n t a a a q u is iç ã o d e um b e m . A s f a lt a s s ã o s ó b o a s in t e n ç õ e s q u e f ic a r a m s e m s e r e a liz a r . A r e g r a é um m é t o d o p a r a f a z e r a lg o c o r r e t a m e n -t e , s e m ju lg a r
o
q u e t e n h a a c o n t e c id o n o p a s s a d o .Para Sêneca trata-se da administração de si
mesmo. Não se trata de revelar a verdade
escon-iiiW .. ;
dida de um sujeito, mas de
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" le m b r a r u m a v e r d a-d e q u e f o i e s q u e c id a " . A lembrança das faltas
co-metidas tem como finalidade medir a diferença
que nos separa do êxito na arte de viver. Para os
estóicos, a arte acha-se nos
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ÀoyOl (logoi) - osensinamentos do maestro - e não numa verdade
secreta do eu. Na se trata, pois, do desvelar-se do
eu, mas da lembrança do que temos feito com
vistas àquilo que devemos ser. Askesis para o
es-tóico não é renúncia, mas domínio de si. Adquirir
uma verdade, uma verdade como ethos. O
indi-víduo deve considerar sua independência em
re-lação ao mundo externo.
Epicteto aconselha vigiar nossas
represen-tações. Para isso usa duas classes de exercícios:
os éticos e os sofísticos. Os sofísticos são
exer-cícios interrogativos: perguntas e respostas.
Po-rém, de tudo isso se deve tirar uma lição ética.
O exercício ético pode ser feito durante um
passeio, uma caminhada de manhã. Trata-se de
comprovar se nos conformamos com as regras.
P a r a E p ic t e t o
o
c o n t r o le d a s r e p r e s e n t a ç õ e s n ã o s ig n if ic a d e s v e la r s e n ã o le m b r a r os p r in c í p io s d e a ç ã oe,
p o r is s o , p e r c e b e r a t r a v é s d o e x a m e d e s i m e s m ose
g o v e r n a ma
p r ó p r ia v id a(FOUCAULT, 1990, p. 78).
Consideremos o importante texto de
Epicte-to que afirma:
NI. 1.De todas as coisas que existem, umas
de-pendem de nós e outras não. As que dede-pendem de nós são a opinião, o impulso, a inclinação e a aversão, em uma palavra, todos nossos atos. As coisas que não dependem de nós são o cor-po, os bens, a reputação, as dignidades, em uma palavra, tudo aquilo que não está contido em nossos atos.
2. As coisas que dependem de nós são livres por sua natureza, ninguém pode impedi-Ias e nada pode atrapalhá-Ias; as coisas que não dependem de nós são impotentes, servis, embaraçam-nos e são, totalmente, estranhas a nós.
3. Portanto, não esqueças, que se as coisas que nos escravizam por sua natureza as consideras
livres e tens como próprias as que são estranhas a nós, terás de te senti r de mãos atadas, farás reproches aos deuses e aos homens.
4. Pelo contrário, se consideras que somente é teu aquilo que te pertence e estranho aquilo que não te pertence, não recriminarás e nem culpa-rás ninguém, não faculpa-rás coisa alguma contra tua própria vontade, ninguém poderá te prejudicar, não terás inimigos, poís não estarás em condi-ções de receber dano algum.
5.Exercita-te, por conseguinte, em rebater,
aber-tamente, toda representação desagradável: t u e s
u m a r e p r e s e n t a ç ã o , e n ã o t o t a lm e n t e o q u e p a r e c e s s e r . Depois examina-a e submete-a às
regras que conheces e acima de tudo a esta:S e
p e r t e n c e aog r u p o d a s c o is a s q u e d e p e n d e m d e t i -
e se
é d a q u e la s q u e n ã o d e p e n d e m d e t i, t e m p r o n t a s e s t a s p a la v r a s 'N a d a t e n s av e r co-m ig o . (Epicteto, Enquiridium, I, 1-5).Não são as coisas que nos escravizam, mas
as falsas representações que fazemos das coisas.
Por isso, devemos poder distinguir com clareza até
onde chega nossa liberdade e quais são seus
limi-tes. Não fazemos mais do que obstaculizar nossa
felicidade quando confundimos o que depende de
nós com aquilo que está fora de nosso alcance.
Os estóicos também usavam como técnica
do cuidado de si a interpretação dos sonhos. Eram
bastante críticos e céticos com relação à
interpre-tação. Porém a interpretação dos sonhos era mui c
popular.
É
necessário ensinar as pessoas ainterpre-tar seus próprios sonhos. Cada um pode ser se
próprio intérprete. O livro mais famoso que resto
dessa época é o de Artemidoro: N A interpretação
dos sonhos". Ali é narrada a forma como algumas
pessoas interpretavam os sonhos como sendo u
mensagem dos deuses para o cuidado da saúde eê
cura das doenças. (Cf. Aelio Aristide).
A terceira forma de subjetivação é a do
cr's-tianismo. Há algumas referências em Foucau :
apesar de a obra dedicada a esse assunto, co
disse acima, não ter sido publicada. Para o cris'
anismo o cuidado de si era visto como uma
forr-de egoísmo. Por isso, em seu lugar pede a ren .
cia de si mesmo e a ética do altruísmo. A con
são cristã é uma ruptura dentro de si mesmo. A
salvação possibilita o acesso a si mesmo. No
cristianismo constrói-se um discurso que serve de
guia. O cristianismo
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i m p õ e o b r i g a ç õ e s e s t r i t a s d ev e r d a d e , d o g m a e c â n o n (FOUCAULT,
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1990, p.80). O acesso à verdade requer a pureza da alma.Santo Agostinho fala de procurar a verdade
interi-or de si mesmo. A
JIHGFEDCBA
exom ologese e a exagouresissão partes das técnicas de subjetivação do
cristia-nismo. A exomologese é o reconhecimento de si
mesmo como pecador. Na hermenêutica do
su-jeito é importante a tarefa de interpretação; ao
contrário, as tecnologias do eu próprias do
estoicismo não o eram. Os estóicos usavam
mé-todos mnemotécnicos e retóricos. No
cristianis-mo usa-se a auto-observação. N o c o m e ç o d a
é p o c a c r i s t ã . . . s e p r o d u z u m a m u d a n ç a i m p o r t a n t e
n o n í v e l d a c o n c e p ç ã o d o s u j e i t o
e
d a s t é c n i c a sd e c o n s t i t u i ç ã o d e s i m e s m o : i n a u g u r a - s e u m a
v o n t a d e d e s a b e r q u e a fe t a
o
p r ó p r i o e u n a sp r o fu n d e z a s em q u e e s t e s e m a n i fe s t a e a o b r i g a t o r i e d a d e d e q u e c a d a u m c o n h e ç a q u e e l e
é e o
q u e a c o n t e c e u d e n t r o d e s i . T r a t a - s e d e d e-c i fr a r o u r e c o n s t i t u i r a v e r d a d e d e s i m e s m o (Cit.
en LANCEROS, 1996, p.49).
É
uma verdade, comoescreve Santo Agostinho, que "mora no interior
de nós mesmos".
Tertuliano traduz exom ologesis como
p u b l i c a t i o s u i : reconhecer-se publicamente. Isso
significa saber-se e reconhecer-se como pecador.
Conhecer-se a si mesmo e reconhecer-se como
pecador. A exom ologesis
é
o r e c o n h e c i m e n t o d r a-m á t i c o d o e s t a t u t o d e p e n i t e n t e . Entre os estóicos
também se davam práticas de exame de
consci-ência, porém numa atividade privada e, às vezes,
dentro de uma d i s c r e t a i n t i m i d a d e c o m p a r t i d a .
No cristianismo, porém, é essencial o caráter
pú-blico e obrigatório da exom ologese. N o c r i s t i a
-n i s m o p r i m i t i v o . . .
a
c i d a d eé
t e s t e m u n h a d os o fr i m e n t o ,
a
v e r g o n h ae a
h u m i l h a ç ã o d e q u e ms e d e s c o b r e p e c a d o r . (LANCEROS, 1996, p. 51)
A exagoureusis é o exercício de
verbali-zação dos próprios pensamentos, atos e
inquieta-ções que se praticavam diante do superior, na
disciplina monacal. Implica no controle do
pen-samento e sua expressão verbal diante do superior.
Tudo deve ser expressado e nada deve
permane-cer oculto. Não basta nem o autoconhecimento e
nem o autocontrole, faz-se necessária, também, a
expressão externa da palabra. D e s c o b r i r a s e u
a b a d e m e d i a n t e u m a h u m i l d e
e
s i n c e r a c o n fi s s ã oo s m a u s p e n s a m e n t o s q u e l h e a s s a l t a m ,
e
a s fa l-t a s o c u l -t a s q u e t i v e r c o m e t i d o (San Benito, regia,
capo VII). Também aqui se trata de uma relação
entre o sujeito e a verdade; uma nova relação, ao
mesmo tempo, moral e epistêmica.
Escreve Foucault: E s t a t e c n o l o g i a e p i s t e m o
-l ó g i c a d o e u , o u e s t a t e c n o l o g i a d o e u o r i e n t a d a
p a r a a c o n s t a n t e v e r b a l i z a ç ã o e d e s c o b r i m e n t o d o s m a i s i m p e r c e p t í v e i s m o v i m e n t o s d o e u , a p a
-rece v i t o r i o s a d e p o i s d e v á r i o s s é c u l o s , e a i n d a
h o j e
é
d o m i n a n t e (Cit. LANCEROS, 1996, p. 54).Não existe um sujeito como fundamento positivo
inalterável, pelo contrário, temos que dizer que o
eu se correlaciona com uma determ i nada
tecnologia na qual ele se constitui. Não há um
sujeito, mas técnicas de subjetivação. Foucault em
seu primeiro volume da História da sexualidade
mostrou a persistência dessas técnicas de
verbalização não só na prática católica da
confis-são, acentuada com a contra-Reforma, mas
tam-bém na psicanálise. O divã do psicanalista
substitui o confessionário católico.
Conclusão
É
notório que a quase totalidade do escritopor Foucault acerca da ética da subjetivação é um
estudo histórico, especialmente dedicado aos
gre-gos e aos romanos. O que o próprio Foucault nos
diz sobre a ética pode ser condensado em
algu-mas proposições fundamentais, sem dúvida, mas
dificilmente suficientes para elaborar todo um
tra-tado de ética. Algumas dessas proposições são as
seguintes: 1). A filosofia tem a ética como núcleo
central. 2). A liberdade é o fundamento da ética.
3). A ética gira em torno das técnicas de
subjetivação. 4). A ética como cuidado de si
cons-tituiu-se numa estética da existência, como uma