• Nenhum resultado encontrado

A formação do analista: um sintoma da psicanálise

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "A formação do analista: um sintoma da psicanálise"

Copied!
207
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA

MÔNICA MARIA DE ANDRADE TORRES PORTUGAL

A FORMAÇÃO DO ANALISTA: UM SINTOMA DA PSICANÁLISE

FORTALEZA

(2)

MÔNICA MARIA DE ANDRADE TORRES PORTUGAL

A FORMAÇÃO DO ANALISTA: UM SINTOMA DA PSICANÁLISE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasi-leira da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do tí-tulo de Mestra em Educação. Área de concentração: Marxismo, Teoria Crítica e Filosofia da Educação.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Ferreira Chagas.

FORTALEZA

(3)

Biblioteca Universitária

Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

P886f Portugal, Mônica Maria de Andrade Torres.

A formação do analista : um sintoma da psicanálise / Mônica Maria de Andrade Torres Portugal. – 2017.

206 f.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Fortaleza, 2017.

Orientação: Prof. Dr. Eduardo Ferreira Chagas.

1. Formação do analista. 2. Sintoma-verdade. 3. Profissão impossível. 4. Discurso do capitalista. I. Título.

(4)

MÔNICA MARIA DE ANDRADE TORRES PORTUGAL

A FORMAÇÃO DO ANALISTA: UM SINTOMA DA PSICANÁLISE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestra em Educação. Área de concen-tração: Marxismo, Teoria Crítica e Filoso-fia da Educação.

Aprovada em: ____/____/______.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Ferreira Chagas (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_____________________________________________________________ Prof. Dr. Hildemar Luiz Rech

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_____________________________________________________________ Prof. Dr. Leonardo José Barreira Danziato

(5)
(6)

RESUMO

Este trabalho dissertativo se insere no campo da formação do analista, a qual, con-forme convencionado, fundamenta-se em três condições: análise pessoal, estudo da teoria e supervisão ou controle clínico. Contudo, essas três condições esbarram jus-tamente no que Freud asseverou acerca das três profissões impossíveis – analisar,

educar e governar. De modo efetivo, há demanda por formação, e essa, grosso

mo-do, vem se realizando a partir da lógica de uma profissão sob os auspícios de uma

instituição psicanalítica. A história do movimento psicanalítico, inicialmente com Freud e depois com Lacan, reflete as lutas em torno da concepção do ato de institu-ir, revelando as contradições emanadas do processo de formação do profissional analista. Trata-se de pesquisa imanente aos textos de Freud e Lacan, portanto uma pesquisa bibliográfica, cotejados com escritos de outros autores que trataram sobre os conflitos que cercam a questão da formação. O trajeto tem como lastro as elabo-rações de Lacan sobre o conceito de Escola e a teoria dos discursos, a partir da li-gação que ele estabeleceu entre o discurso do analista, do universitário e do mestre aos três impossíveis de Freud: analisar, educar e governar. Esse conceito foi desen-volvido para contemplar os diferentes laços sociais na fala do sujeito no dispositivo analítico e transposto para o campo da formação psicanalítica, considerando que

essa tem uma análise como conditio sine qua non. Lacan liga a noção de sintoma

em Freud a Marx e concebe que o sintoma é efeito do real. Além do sintoma, cate-gorias como tempo e dinheiro são somadas à discussão, pois são condições para uma análise. A categoria dinheiro é tratada a partir de Freud, com aportes de Marx e Simmel. Por um lado, a relação sintoma-saber-verdade transparece, sob o discurso do analista, a partir da extração de gozo no real, dimensão alinhada ao impossível, seguindo Lacan; por outro lado, a psicanálise padece do sintoma na formação do analista como uma profissão, pois se trata de um laço social impossível de ser geri-do sob o discurso geri-do capitalista, porquanto esse subsume o sujeito no objeto, como objeto de consumo. Essa incompatibilidade lógica transparece na prática como um permanente impasse: esse será o ponto essencial a ser tratado ao longo da presen-te pesquisa.

(7)

ABSTRACT

This dissertation is about the analyst training which, as agreed, is based on three conditions: candidate assessment, theory study, and clinical supervision or control. However, these three conditions encounter resistance under what Freud asserted about the three impossible tasks: to analyze, to educate, and to govern. Effectively there is demand for training and this, roughly speaking, is being carried out from the logic of a profession under the auspices of an institution. The history of the psycho-analytic movement with Freud, and then with Lacan, reflects the struggles to con-ceive the act of instituting; revealing the contradictions which emanate from profes-sional analyst training. This work is a research on the Freud and Lacan’s texts con-fronted with the writings of other authors who dealt with the conflicts that surround this subject matter of training. The path is paved by Lacan's concept of School and discourses, elaborated from the connection he established with the university profes-sor, the student, and the analyst’s discourse upon the three impossible tasks set forth by Freud. This concept was developed to contemplate the different social ties found in the subject's speech, analytically disposed and transposed to the field of training, since such training includes analysis as condition sine qua non. Lacan links the no-tion of symptom from Freud to Marx, which is seen as the only way the being con-firms his/her opposite and conceives that the symptom is an effect of the real. Be-sides the symptom, categories such as time and money are added to the investiga-tion, since they are conditions for an analysis. The money category is first conceived by Freud, with contributions from Marx and Simmel. The relation symptom-knowledge-truth comes under the analyst's discourse from the real, and according to Lacan, it is a dimension aligned with the impossible. On the other hand, psychoanal-ysis is defective regarding the symptom during the analyst’s training as a profession, since the social tie becomes impossible to be managed under the capitalist dis-course. This conflict will be the essential topic approached throughout the research.

(8)

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 8

2 A FORMAÇÃO DO ANALISTA: DA VERDADE DO SINTOMA AO SINTOMA DA VERDADE ... 19

2.1 Conflitos que rondam a verdade do sintoma - o inconsciente freudiano e o mestre sem mando ... 22

2.2 A experiência de Escola de Lacan: de um mestre sem mando a um mestre sem voz ... 52

2.3 A formação do psicanalista - um sintoma da verdade? ... 76

3 O CONCEITO DOS DISCURSOS EM LACAN E OS IMPOSSÍVEIS FREUDIANOS... 91

3.1 Os quatro discursos (mestre, histérico, analista e universitário) mais um (capitalista) ... 92

3.2 Analisar: uma profissão impossível porque o impossível é o real e este é o que não funciona, o que funciona é o mundo ... 110

3.3 Profissão do psicanalista: uma profissão advertida em relação ao dis-curso do universitário e ao disdis-curso do capitalista?... 131

4 UM SINTOMA DA PSICANÁLISE: TEMPO E DINHEIRO NA FORMAÇÃO DO ANALISTA ... 142

4.1 “Time is money”: uma equivalência mal dita ou o feitiço contra o feiticeiro .. 144

4.2 Simmel e Marx - tempo não é dinheiro ... 159

4.3 O sintoma da psicanálise na formação do analista ... 175

5 CONCLUSÃO ... 188

(9)

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende ser uma escrita “sobre” a teoria da psicanálise, sobre a formação do analista; isto é, trata-se de uma discussão teórica imanente aos textos de Freud e Lacan, os quais serão lidos de forma transversal, cotejados com escritos de outros autores que trataram a questão da formação. Não se trata, portan-to, de um texto “de” psicanálise, este “de” se diferencia por se relacionar à própria experiência de análise. Se o trabalho é sobre a formação do analista, o recorte pro-posto vai circunscrever os termos dessa formação sob o viés da doutrina psicanalíti-ca; será ela quem, neste caso, estará no divã.

Talvez essa distinção seja inócua, porquanto razoável supor estéril uma escrita sobre a formação do psicanalista a partir de posição externa a esse campo, disjunta à experiência de análise, revelando-se uma contradição de fundo. Isso ocor-re por dois motivos, ambos concernentes a Focor-reud e a Lacan, ainda que os termos sejam desse último. O primeiro, porque tal formação está relacionada às formações do inconsciente, portanto a uma análise, mesmo com o entendimento de que um analista só ocupe uma posição, e essa é efeito do que ouve de um analisante – o qual, por sua vez, produz um analista, tal qual ensinado pelas histéricas na clínica freudiana. Esse é possivelmente o nó górdio da questão: um analista é um efeito.

A formação do analista tem como pressuposto necessário e inescapável uma análise e depende do efeito advindo do que Lacan chamou “ato analítico”, con-forme desenvolvido no seminário que leva esse nome. Em termos teóricos, essa ló-gica pode se estranhar com os pressupostos conjugados à lóló-gica de uma profissão ou de uma vontade de “se tornar um analista”. O segundo motivo decorre do fato de que a universidade não seria, em tese, o lugar mais propício a discorrer sobre o te-ma, já que o universitário tem horror à psicanálise, conforme alertou Lacan no texto

“Radiofonia”1.

Todavia, referida posição também não é razoável, já que a psicanálise passa inexoravelmente pela letra de Freud e pelo que já foi teorizado depois dele; há um arcabouço teórico que pode ser lido como qualquer escrita pertencente a uma doutrina, objeto de uma exegese.

1 LACAN, J. Radiofonia. In: LACAN, J.

(10)

Tal nos parece ser a expectativa em relação a qualquer produção oriunda da estrutura do laço social da universidade, porquanto toda escrita, em tese, é in-terpretável, independentemente de termos ou não passado pela experiência a que faz jus determinada teorização. Nesses termos, indicamos que esta dissertação de mestrado se insere no rol de produções teóricas desenvolvidas pelo eixo de pesqui-sa Marxismo, Teoria Crítica e Filosofia da Educação, o qual contempla a linha de pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação (Filos) – do Programa de Pós-Gradua-ção em EducaPós-Gradua-ção Brasileira (PPGEB) da Universidade Federal do Ceará (UFC) – e tem como escopo mostrar que a formação do analista, circunscrita ao âmbito de uma profissão, sob os auspícios de uma determinada modalidade de institucionali-zação, é sintoma da psicanálise.

Toda escrita é interpretável, mas de antemão fica claro que isso não tem qualquer implicação em termos de se alcançar uma verdade em matéria de forma-ção do psicanalista, já que, seguindo Lacan, essa repousa no edifício do real –

uma das dimensões ou “dimansões” (dit mansions)2 que tomam lugar na

lingua-gem, em conjunção ao simbólico e ao imaginário. Ou, visto de outro modo, “não há

outra verdade que a castração”3, o que nos submete ao real da linguagem, cuja

produção é a do objeto pequeno “a”, da causa do desejo ou do “mais-gozar”.

Com efeito, trata-se de outra Coisa, propositadamente grafada com “C”

maiúsculo em homenagem à “das Ding” freudiana, e isso só para lembrar que o

re-corte aqui pretendido está definido em Lacan, mas a psicanálise é uma invenção freudiana, algo que nunca esteve distante do horizonte do mestre francês – em um dos derradeiros momentos de sua fala, como no encontro em Caracas em 1979,

La-can se disse freudiano4.

Investigar sobre a questão da formação do analista, após todas as elabo-rações de Lacan em resposta ao estado em que ele encontrou a prática psicanalítica depois de Freud, parece ser tarefa infrutífera, sobretudo passado o processo político resultante do afastamento de Lacan como analista didata, cujo resultado ele esco-lheu chamar excomunhão. Somam-se inúmeros trabalhos refletindo aspectos

2 LACAN, J.

Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

3

LACAN, J. L´insu que sait de l´une-bévue s´aile à mourre. Paris: Association Lacanienne

Interna-tionale. Publication hors commerce. 2014, p. 108. O título desse seminário é pura equivocação, por exemplo, l´une-bévue: l´Unbewusst, o inconsciente em alemão (idem, p. 9). Uma tradução possível,

por homofonia ou pelo equívoco é O insabido do inconsciente é o amor, ou o fracasso do inconscien-te é o amor.

4 LACAN, J.

Almanach de la dissolution. France: Navarin, 1986, p. 82. “C´est à vous d´être

(11)

sos acerca do posicionamento ético-político de ambos os autores relacionados à formação, ou à própria psicanálise; afinal, cabe aos analistas darem conta da inven-ção freudiana, investigando a causa dos embates que marcam a história do movi-mento psicanalítico; não se trata, portanto, de algo novo.

Contudo, esses conflitos refletem um impasse que exige um debate per-manente, ou uma constante análise, parafraseando Freud em relação ao caráter in-terminável de uma análise. Uma das razões para atualizar a reflexão sobre esse im-passe reside no caráter marginal da psicanálise, afinal, em se tratando do sujeito, ela tem que lidar com o imponderável, com o que está fora do sentido. Isso tem re-flexos nos laços sociais, sendo, muitas vezes, necessário implantar políticas de apa-ziguamento, algumas das quais com potencial destrutivo, tamanha a rejeição de seus fundamentos.

Sobre esses laços sociais, Lacan desenvolve uma ferramenta conceitual ligada à estrutura dos discursos, com a qual é possível detectar o que os suporta – o “mais-de-gozar”, noção estabelecida com o apoio de Marx a partir do conceito de “mais-valor”. O conceito dos discursos é fundamental para delimitar a posição do saber e da verdade na estrutura dos laços sociais e realiza a ligação entre o discur-so do mestre e o discurdiscur-so do capitalista, já que esse último foi determinado e com-plementado pelo primeiro.

Condescender em macular os fundamentos da psicanálise tem suas con-sequências, e elas são particularmente notadas a partir de períodos de expansão da psicanálise, vinculados necessariamente à profissionalização de sua prática. Assim foi com Freud após a Primeira Guerra Mundial, quando ocorreu a primeira grande difusão da psicanálise, repetindo-se depois na era de Lacan, sobretudo a partir de meados da década de 1960, quando da fundação de sua Escola e dos acontecimen-tos de maio de 1968 na França, período em que o mestre francês virou moda e fo-ram “democratizados” os caminhos para ingresso em sua Escola – a Escola Freudi-ana de Paris.

(12)

entrevis-ta. É notório o aumento de escolas de psicanálise – ou pelo menos em alusão a seu nome, na Internet, oferecendo garantias para uma profissão.

Podemos obstar e nos contrapor afirmando que muitos desses casos não correspondem ao campo da psicanálise. Isso é um fato. Quanto a isso, recorremos a Lacan quando aponta a ligação entre fato e sintoma. Contudo, tais fatos não podem ou não devem ser investigados separadamente, eles fazem parte do horizonte da psicanálise. Tanto que, enquanto isso, ou por causa disso, existe um debate que surge periodicamente sobre a regulamentação da prática psicanalítica no Brasil. A-demais, cresce a tendência de aproximação de analistas com a universidade; em suma, esses são sinais que impõem o retorno ao debate por conterem um ponto em comum – algo que não anda bem e insiste em retornar.

A questão da formação do analista revela a tensão presente na constata-ção de Freud – analisar dentre o rol das três profissões impossíveis, junto a educar e governar, aliado ao fato de que efetivamente há demanda por uma profissionaliza-ção no seio dessa formaprofissionaliza-ção. O presente texto dissertativo limita-se a apresentar a contradição em procurar enquadrar a prática psicanalítica como uma profissão, ao entender que a partir dessa perspectiva são estreitados os meios para essa prática se realizar, sem ser atingida pelos atributos pertinentes ao que rege a concepção de profissão no seio do capitalismo. Essa reflexão contou com o apoio do conceito dos

discursos em Lacan, conforme sua construção a partir dos seminários livro 16, De

um Outro ao outro5, livro 17, O avesso da psicanálise6, e livro 18, De um discurso que não fosse semblante7, O saber do psicanalista8, assim como a partir de

pontua-ções contidas no texto “Radiofonia”9.

O pressuposto é que, no contexto de domínio desse modo de produção, as profissões seguem uma determinada lógica operativa, inclusive quanto ao aspec-to da regulamentação, para fazer valer direiaspec-tos, deveres e atribuições dos profissio-nais. Sendo aceitável esse pressuposto, ele nos instiga a interrogar o modo como a psicanálise pode advogar em sua defesa ao se manter como exceção a qualquer normatização.

5 LACAN, J.

De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008b.

6 Idem.

O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992b.

7 Idem.

De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

8 Idem.

O saber do psicanalista. Recife: Centro de Estudos Freudianos, 1997.

(13)

Posto isso, categorias como tempo e dinheiro não podem ser negligenci-adas, ainda mais porque a psicanálise parece ser a única “profissão” que trabalha com a categoria do dinheiro como elemento necessário na formação, porque neces-sário numa análise. Isso é contemplado em seu corpo teórico – o pagamento da sessão é imperativo, em que pese às possibilidades da psicanálise no campo insti-tucional, com a adoção de terapias pontuais, ou com o tempo determinado, por e-xemplo. Problematizar a profissionalização da prática analítica implica resgatar prin-cípios ligados a uma forma de instituir que mantenha intacto os fundamentos da psi-canálise, sendo esse um caminho já consagrado nos escritos de Lacan que tratam do conceito de Escola.

Nesse sentido, a institucionalização está no cerne de tais embates e res-ponde pela concepção de psicanálise: trata-se de uma disciplina que se ocupa do

inconsciente, ou ela espelha, em alguns momentos de sua efetividade10, é dizer, em

determinadas formas como vem sendo constituída, um campo que lhe proporcione resistência, ou até mesmo a negue. Pode ser uma forma simplista ou maniqueísta de apresentar a questão: o bem com o inconsciente e o mal com o que lhe resiste. Todavia, tal apresentação surge como possibilidade de demonstrar uma irredutibili-dade: o real, a qual circunscreve a impossibilidade de inscrição da proporção ou ra-zão sexual.

As categorias real, simbólico e imaginário, como registros da fala, são tra-balhadas ao longo de todo o ensino de Lacan, acompanhando o avanço teórico fruto de sua clínica e de sua transmissão da psicanálise. O real é aquilo que não pode ser dito ou nomeado, ou aquilo que só existe (ex-iste) por fora do registro do simbólico,

situado como impossível ou “o estritamente impensável”11. Ele estabelece a ligação

do real com o sintoma12 e modifica o status da conjunção saber-verdade, concepção

crucial nesse trajeto expositivo.

Estendemos esse liame aos dois exemplos escolhidos para trabalhar a questão da profissão na formação dos analistas: os conflitos ligados aos aconteci-mentos em torno de Freud e dos pós-freudianos e aqueles ligados à Escola de

10 Efetividade aqui entendida como uma extensão da matriz hegeliana efetivo-racional, mas de uma

racionalidade específica do campo psicanalítico, a qual diz respeito à sua “[...] aptidão para inven-tar novos modelos explicativos quanto de sua capacidade permanente de reinterpreinven-tar os modelos antigos em função de uma experiência adquirida”. ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 130.

11 LACAN, J.

R.S.I. Paris: L’Association Freudienne Internationale, 2002b, p. 14.

(14)

can. Desse modo, ao fim e ao cabo, o real restou incólume como extração daquilo que se repete nessas experiências. Essa articulação em torno do que é conflitual

nas experiências sobre a formação contribuiu para a escolha do tema – A formação

do analista: um sintoma da psicanálise.

Para tratar o tema, foi necessário conjugar não só a concepção imanente

aos textos de Freud – sobretudo em “¿Pueden los legos ejercer el análisis?” (Podem

os leigos exercer a análise?)13 e “Análisis terminable e interminable” (Análise

termi-nável e intermitermi-nável)14 – e Lacan sobre a formação do analista – notadamente os

textos exarados no capítulo V da obra Outros escritos15 –, os quais também

con-templam o vínculo dessa formação com o escopo de uma profissão, com reflexos na institucionalização da prática analítica, como também percebê-la no contexto das experiências vivenciadas pelos dois autores.

Além disso, o percurso do sintoma se impõe como concepção-chave pre-sente ao longo da obra de ambos os autores e coincide com o próprio trajeto da psi-canálise, pois se trata do avanço teórico a partir da clínica do sujeito. Esse trajeto também é o da formação psicanalítica, pois consequência de uma análise. Portanto, a noção de sintoma foi transposta por indicar que, quando se trata dessa formação, há algo conflitante, “algo não anda bem”.

Tais exemplos, centrados em Freud e Lacan, serviram de lastro à luz do

entendimento de Agamben16 em relação à potência contida no paradigma, ao agir

neutralizando uma falsa divisão entre o geral e o particular. Com efeito, em seu inte-rior permanece a possibilidade de tratar e ampliar a problematização. Noutros termos,

o geral não seria negado pelo particular17, mas restaria nele. Assim, concebemos

que as experiências em torno dos dois autores clarificam o contexto da formação do analista de modo amplo e generalizado, pela possibilidade de mostrar, com Lacan, que “algo não anda bem”, revelado como sintoma, ainda que estejamos diante do

13 FREUD, S. ¿Pueden los legos ejercer el análisis? In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos Aires:

Amorrortu, 2006c. v. 20.

14 Idem. Análisis terminable e interminable. In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos Aires:

Amorror-tu, 2007a. v. 23.

15 LACAN, J.

Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003i.

16 COSTA, F. Entrevista com Giorgio Agamben.

Revista do Departamento de Psicologia, Niterói, v.

18, n. 1, p. 131-136, 2006.

17 Em Hegel, segundo leitura de Vittorio Hösle, “[...] o geral não é negado por seu contraconceito, o

(15)

inventor da psicanálise e deste que, em seu retorno à Freud, transformou-a num im-portante pilar de leitura da contemporaneidade.

O propósito dessa reflexão consiste em situar ou encaixar os três impos-síveis freudianos: analisar, educar e governar na tríplice aliança sob a qual se con-vencionou adotar como eixo na formação do analista: a análise do candidato, o es-tudo da teoria e a supervisão/controle clínico. Quanto a essa sobreposição,

segui-mos Annie Tardits18, ao indicar que a formação do analista é o impossível

enoda-mento das três profissões impossíveis em Freud.

Tal enodamento é alusivo à topologia da cadeia borromeana, ferramenta

utilizada por Lacan19 para dar conta das dimensões da fala – o simbólico, o

imaginá-rio e o real, conectados a partir de um furo no centro da cadeia, no qual se aloja o

objeto a. Nesse caso, trata-se de lidar com um campo de um impossível

encadea-mento sobreposto a outros impossíveis. Assumir essa analogia implica dizer que uma condição na formação se amarra às demais, de tal modo que, se uma for reti-rada da cadeia, as demais se soltam.

Logo, em tese, o campo da formação, aliado a um processo de profissio-nalização, implica ter como horizonte três condições operando em conjunto, numa condição de impossibilidade, caso aceitemos a articulação freudiana. Para o enten-dimento dessa articulação em torno das impossibilidades, empregamos a ferramenta conceitual ligada à estrutura dos discursos, pois Lacan estabeleceu a ligação de três dos seus discursos – o do mestre, do universitário e do analista – aos impossíveis freudianos, adicionando, inclusive, mais um impossível – fazer desejar – vinculado ao discurso da histérica.

Numa palavra, é no imbróglio, ou em suas dobras: formação-instituição- -profissão, onde se concentra o núcleo duro – o real do sintoma –, que se desdobra

no trajeto da investigação. Um sintoma, já dissemos, porque o seu percurso coincide com o da psicanálise, já que é a partir da clínica que essa noção vai adquirir novas roupagens, sobretudo em relação ao seu caráter dúplice – o qual, no caso de Lacan, passa pela metáfora, na via do simbólico, como adjunto ou contíguo a uma verdade e cujo sentido advém do real. É dizer, o sintoma vem do real. Esse aspecto é fulcral para o recorte pretendido ao seguir a letra de Lacan – apresentar o sintoma como valor de verdade, advindo do real.

18 TARDITS, A.

As formações do psicanalista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2011.

19 LACAN, J.

(16)

Ademais, o mestre francês afirma que o sintoma, em Freud, parte da leitura

de Marx. Nesse caso, apoiamo-nos na obra Manuscritos econômico-filosóficos20, com

a intenção de revelar que uma determinada modalidade de formação, sob a vertente da profissionalização, nega a psicanálise ou se converte em seu sintoma.

Ao nos atermos aos princípios norteadores das duas grandes pelejas re-feridas neste trabalho, constatamos que o problema reside em manter a formação

do analista aos moldes das formações do inconsciente21 – sintagma utilizado por

Lacan ao se referir à formação –, sem que a institucionalização avance quebrando a cadeia que lhe dá sustentação. Tal é o impasse presente na transmissão da experi-ência analítica, ao mostrar que a institucionalização com o intuito de dar suporte à profissão do psicanalista segue inquebrantável, tal qual uma repetição, seguindo

Freud22 na ligação do pulsional como algo que se repete no sintoma, daí a ligação

deste à dimensão do real.

Isso significa dizer que tanto as batalhas políticas em torno da concepção de formação em Freud – sobretudo a questão da análise leiga –, nas quais ele per-deu o mando em relação à política que seria implementada para a formação e a re-gulamentação da prática psicanalítica nos Estados Unidos da América (EUA) e In-glaterra, quanto a experiência de Escola de Lacan, com o emprego do arsenal teóri-co sobejamente trabalhado por ele, os quais fazem parte do trajeto expositivo desta investigação, como o conceito do tempo lógico, do desejo de analista, suas formula-ções sobre os dispositivos de Escola – o cartel e o passe –, revelaram ser hipossufi-cientes diante da tarefa, sobretudo esse último.

Importante entender que tais acontecimentos ligados à Escola de Lacan

surgem num contexto teórico em que um analista “só se autoriza de si mesmo”23,

ainda que o mestre francês tenha estendido essa autorização em relação aos

pa-res, ou seja, essa autorização deve ser compartilhada entre “uns outros”24 , no laço

social, nisso reside a importância de sua concepção de Escola. O dispositivo do passe surge para validar de algum modo esses uns outros. O problema é que esse fracassou na experiência lacaniana, tal fracasso pode ser o êxito do sintoma.

20 MARX, K.

Manuscritos econômico-filosóficos. Rio de Janeiro: Boitempo, 2010.

21 LACAN, J. Sobre a experiência do passe.

Revista Letra Freudiana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 0,

1995, p. 54-59.

22 FREUD, S. Más allá del principio de placer. In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos Aires:

Amor-rortu, 2007p. v. 18.

23 LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: LACAN, J.

Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003l.

24

(17)

O texto desdobra-se em três capítulos, sendo que no primeiro o objetivo foi apresentar uma breve digressão dos conflitos que cercam a formação do analista, com base na perspectiva do sintoma, com ênfase em sua ligação com a verdade. O roteiro serviu para avaliar as dificuldades encontradas por Freud em manter as ré-deas, sobretudo em relação à batalha política devido aos rumos que a psicanálise estava seguindo em sua implementação nos EUA e na Inglaterra.

Uma breve passagem pelo texto “¿Pueden los legos ejercer el análisis?

(A questão da análise leiga)25 foi decisiva na definição da posição política de

Freud. Os textos de Lacan sobre a Escola, já mencionados, serviram de baliza nos termos dessa experiência, além da leitura transversal de vários de seus

seminá-rios, notadamente os que abrangem o percurso de 1968 a 1972. O livro História da

psicanálise na França26, o qual tem como subtítulo “a batalha dos cem anos”,

a-brangendo o período de 1885 a 1985, de autoria da historiadora Elisabeth Roudi-nesco, foi também uma baliza nesse percurso cuja tônica é justamente centrada nessas batalhas que tencionam o movimento psicanalítico em torno do programa de formação dos futuros analistas.

Além desses, foram pontuadas algumas contribuições dos trabalhos so-bre formação, com arrimo em Moustapha Safouan, Jean-Paul Valaso-brega, Annie Tardits, Didier-Weill, Antonio Quinet, François Perrier, Catherine Millot e Slavoj Zi-zek, e sobre os discursos, com base em alguns elementos elucidados por François Balmès e Aurélio Souza.

Na breve digressão sobre os movimentos vinculados à formação do ana-lista sob o mando de Freud, foram apresentadas as condições do método analítico e a questão política, com a indicação que o “mando” de Freud teve vida curta, pois seus herdeiros conduziram os rumos da psicanálise em conluio com os ideais do “american way of life”. Foi nesse contexto desviante que Lacan iniciou sua batalha

teórico-política em seu retorno a Freud, levando-o ao rompimento com o

stablish-ment organizado em torno da International Psychoanalyse Association (IPA). A

psi-canálise agora tem dois mestres. Lacan funda sua Escola, porém a experiência tam-bém se revela um fracasso, tendo como consequência imediata a divisão no seio do lacanismo.

25 FREUD, S. ¿Pueden los legos ejercer el análisis? In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos

Ai-res: Amorrortu, 2006c. v. 20.

26 ROUDINESCO, E.

História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos. Rio de Janeiro:

(18)

No capítulo seguinte, trabalhamos o conceito dos discursos em Lacan e as profissões impossíveis: analisar, educar e governar, conforme texto freudiano

Análiseterminável e interminável27, já que o mestre francês declara que essas estão

contemplados no discurso do analista, do universitário e do mestre. No curso de su-as elaborações, ele acrescenta mais um discurso, o do capitalista, com um parado-xo, porquanto esse não faz laço social. O uso desse conceito nos permite uma via de acesso a demarcar as posições do saber e da verdade em relação à formação do analista, esclarecendo que justamente o que interessa ao discurso do analista é a

linha divisória entre esse saber e a verdade, segundo ele estabelece no seminário O

saber do psicanalista28.

A intenção, nesta transposição da lógica da estrutura dos discursos pre-sente no dispositivo analítico para a formação do analista – uma extrapolação, por-tanto – foi fazer um paralelo entre o real, extraído da estrutura do discurso, e o sin-toma. Nesse aspecto, podemos nos cercar da pergunta proferida por Lacan na

conferência “A terceira”: “a psicanálise é um sintoma?”29. Um sintoma do mal-estar

na civilização, ou, seguindo Lacan neste mesmo texto, um sintoma que vem do real.

A partir desse conceito, conjugado à percepção freudiana de que analisar é uma profissão impossível, e este, em Lacan, é da dimensão do real, resta que não há como fazer “funcionar” o real, pois o que funciona é o mundo. Posto isso, deparamo-nos com uma inversão, ou com o caminho invertido entre as condições para a profis-são do analista e as condições para uma análise. Nossa intenção foi mostrar que tal inversão está no cerne da negação sistemática da invenção freudiana, apontando a preocupação de diversos autores, como Catherine Millot, por exemplo, que acentua a fuga dos analistas para o ambiente da universidade, no que adicionamos a conside-ração de que a universidade é ponta de lança na formação de profissionais para atender à demanda do mercado de trabalho, ou seja, tendo como intuito uma profis-sionalização.

Há, contudo, quem defenda que o ambiente universitário proporciona as possibilidades de enfrentamento diante de questões levantadas pela ciência, assim como essa inserção poderia melhor responder às demandas sociais no espectro da

27 FREUD, 2007a. 28 LACAN, 1997.

29 Idem. La tercera. In: LACAN, J.

(19)

saúde pública, conforme, por exemplo, os trabalhos compilados por Heloisa Caldas

e Sonia Altoé no livro Psicanálise, universidade e sociedade30.

No último capítulo, discorremos sobre duas condições na análise, com reflexos na formação do analista: tempo e dinheiro. Foi demarcada a posição dessas

categorias no programa, com ênfase na equivalência “time is money”, como porta-

-bandeira no modo de produção capitalista. Nesse aspecto, parece que a psicanálise “morde o próprio rabo”, ou melhor, que o feitiço vira contra o feiticeiro.

Foram necessárias pinceladas de autores como Marx e Simmel para ilus-trar com mais cor o quadro sobre a categoria dinheiro, assim como foi aplicado um

verniz a partir dos trabalhos La psychanalyse et l‘argent (A psicanálise e o

dinhei-ro)31, de Reiss-Schimmel, e Dinheiro e psicanálise32, de Pierre Martin, para ressaltar

as cores e os cheiros relativos ao papel do dinheiro na análise e como consequência na formação dos analistas. Curiosamente esses dois títulos em francês são um o avesso do outro. Vale notar, quanto a isso, o enquadramento feito por Lacan em re-lação à psicanálise ao avesso, ao tratar sobre os discursos no seminário que leva o

título O avesso da psicanálise33, de 1969-1970, e o caminho invertido entre as

con-dições para a profissão do analista e as concon-dições para uma análise.

O debate é intenso e o impasse é persistente: a psicanálise padece do sintoma na formação do analista como uma profissão, pois se trata de um laço social impossível de ser gerido sob o discurso do capitalista, conflito crucial neste trajeto investigativo.

30 CALDAS, H.; ALTOÉ, S. (Org.).

Psicanálise, universidade e sociedade. Rio de Janeiro:

Compa-nhia de Freud, 2009.

31 REISS-SCHIMMEL, I.

La psychanalyse et l’argent. Paris: Odile Jacob, 1993.

32 MARTIN, P.

Dinheiro e psicanálise. Rio de Janeiro: Revinter, 1997.

(20)

2 A FORMAÇÃO DO ANALISTA: DA VERDADE DO SINTOMA AO SINTOMA DA

VERDADE

A formação do analista é tema de constante conflito na psicanálise. Freud e Lacan passaram por turbulentas batalhas na luta contra a resistência ao inconsci-ente, já que esse é a própria condição da análise na regência da formação. Neste capítulo, o destaque será para as duas concepções de formação, como paradigmas do impasse psicanalítico presente até os dias atuais. A primeira é reservada ao mo-do como a concebeu Freud, seguimo-do mo-do desvio de rota perpetramo-do pelos seus herdei-ros, conforme entende Lacan – logo, a leitura lacaniana transpassará a experiência freudiana; e a outra é reservada à própria experiência de Escola fundada pelo mes-tre francês.

A primeira seção deste capítulo versa sobre a modalidade de formação com Freud e destaca que o mestre perdeu o lugar de mando, pois concebera a ex-pansão da psicanálise na dependência de sua aceitação em outras fileiras. Para is-so, ele precisou flexibilizar e ponderar alguns aspectos ligados ao modo como a psi-canálise viria a se organizar. A institucionalização deu seu troco – a partir da implan-tação de regras contrárias à experiência psicanalítica, por exemplo –, e muitos de seus temores vieram à tona, mas aí já era tarde demais.

No texto “¿Pueden los legos ejercer el análisis?” (Podem os leigos

exer-cer a análise?)34, Freud defendeu o método que criou e esclareceu o modo como

aqueles que desejavam praticar a psicanálise deveriam realizar sua formação. Es-perneou, escreveu um pós-escrito interrogando as causas subjacentes à defesa da prática psicanalítica nos Estados Unidos da América (EUA), circunscrita aos médicos e como um apêndice da psiquiatria, porém não surtiu efeito – os danos já estavam em curso; e havia muito tempo.

A forma de organização da psicanálise, sob a responsabilidade da

Inter-national Psychoanalyse Association (IPA), modula a tensão presente entre a

novi-dade da invenção freudiana e a sua transmissão, constituindo a matriz do impasse na formação. A psicanálise tem origem num conflito revelado no sintoma histérico que fez falar as histéricas, e sua evolução doutrinal avança sob essa perspectiva. Enquanto o conflito se apresenta na noção de sintoma do sujeito neurótico,

34 FREUD, S. ¿Pueden los legos ejercer el análisis? In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos

(21)

dando num saber inconsciente a sua verdade, sob o viés institucional ele se revela como uma recusa do inconsciente freudiano. Essa rejeição recrudesce depois da inconcebível pulsão de morte, noção-chave para entender a mutação na doutrina a

partir do texto “Más allá del principio de placer” (Mais além do princípio do prazer)35,

ou a segunda tópica freudiana, com reflexos na concepção do real desenvolvida ao longo do ensino de Lacan.

A formação do analista, como aporte da doutrina freudiana, deve subsu-mir a prática do inconsciente – com a análise pessoal –, sua teoria; além disso, deve estabelecer as condições de controle ou supervisão clínica, de modo a servir de an-teparo àquele que vai exercer essa prática. Contudo, na experiência de instituição originária na IPA e no modo como se alastrou nos EUA – vinculada à prática da me-dicina –, a formação foi confundida com o ato de formar um profissional psicanalista. Isso resulta em algo que, segundo Freud, é da dimensão do impossível. Ele o

pro-clamou no texto Análise terminável e interminável36, ao pautar a existência de três

profissões impossíveis: educar, analisar e governar.

Freud leu o embate político em torno da análise leiga à luz de sua teoria do recalque. Na prática, a rejeição ao inconsciente na política institucional levou La-can ao retorno à Freud e foi suficiente para deflagrar a mais determinante batalha no seio da psicanálise – o rompimento de Lacan. A psicanálise agora tem dois mestres.

A obra História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos37 foi crucial nesse

trajeto, por mostrar os conflitos na institucionalização; além dela, os livros Jacques

Lacan e a questão da formação dos analistas38, de Moustapha Safouan; A formação do psicanalista39, de Jean-Paul Valabrega; e Sobre a história da formação dos ana-listas40, organizado por Marco Antonio Coutinho Jorge, também foram importantes

para demarcar a posição de pessoas próximas a Freud e a Lacan no contexto da formação do psicanalista.

35 FREUD, S. Más allá del principio de placer. In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos Aires:

Amor-rortu, 2007p. v. 18.

36 Idem. Análisis terminable e interminable. In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos Aires:

Amorror-tu, 2007a. v. 23.

37 ROUDINESCO, E.

História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1989.

38 SAFOUAN, M.

Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas. Porto Alegre: Artes

Médi-cas, 1985.

39 VALABREGA, J.-P.

A formação do psicanalista. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

40 JORGE, M. A. C. (Org.).

(22)

Lacan dedicou seu ensino à transmissão da psicanálise. Para isso, elabo-rou noções e conceitos indicativos do modo como ele pensava ser a formação de um psicanalista, adensada a partir do sintagma “formações do inconsciente”, ou di-zer, a formação do psicanalista está ligada a uma análise, exatamente como

pauta-da em Freud. Contudo, Lacan procurou pauta-dar rigor lógico a essa condição princeps na

formação e o fez a partir da noção “desejo de analista”, conjugada à noção de ato analítico, ambas com destaque em nossa reflexão, por se tratarem de noções cruci-ais na concepção lacaniana sobre o que está em jogo nessa formação e na própria

psicanálise, consoante elaborado n’Os quatro conceitos fundamentais da

psicanáli-se41, em 1964 – ano da chamada “excomunhão” de Lacan como analista didata da

IPA, sendo, pois, impedido de dar continuidade a seu seminário no Hospital Saint’Anne; assim como marco de fundação de sua Escola (Escola Freudiana de

Paris) – e n’O ato psicanalítico42.

Os textos reunidos no capítulo V da obra Outros escritos43 representam o

fio condutor para entender sobre a concepção de Escola em Lacan, sobretudo o

es-crito “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”44. No

en-tanto, o arsenal teórico desenvolvido por Lacan e o testemunho de sua transmissão não foram suficientes para evitar o fracasso de sua experiência de Escola, notada-mente em relação aos acontecimentos relacionados ao dispositivo do passe – tes-temunho da passagem da condição de analisante a analista. A segunda seção deste capítulo situa tal fracasso como uma repetição – “algo não funcionou”, segundo o próprio depoimento de Lacan.

Resta tirar as consequências dessa experiência, seguindo encaminha-mentos do mestre francês, principalmente em relação ao sintoma, como “algo que não anda bem”. Isso significa um sinal do real. A última seção objetiva fechar o cir-cuito do sintoma em termos lacanianos, ou seja, nessa ligação com o real, articulan-do-o à formação do analista, ao interrogar a existência de um sintoma na relação saber-verdade-real.

41 LACAN, J.

Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979b.

42 Idem.

L´Acte psychanalytique. L´Association Freudienne Internationale, Publication hors

com-merce, Paris, 2001a.

43 Idem.

Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003i.

(23)

2.1 Conflitos que rondam a verdade do sintoma – o inconsciente freudiano e o

mestre sem mando

Antes de situarmos o tema da formação na experiência freudiana, cumpre

esclarecermos o efeito Lacan ao levar a linguística e o estruturalismo45 ao coração

da doutrina psicanalítica para embasar o enfrentamento dos desvios da psicanálise; e o faremos a partir de alguns de seus aforismos: a verdade fala, e “isso” deve ser

radicalizado ao pé da letra, pois “Isso fala a propósito do inconsciente”46; que “[...]

haja inconsciente quer dizer que há saber sem sujeito”47.

Esses aforismos de Lacan demarcam a forma como ele releu as leis do

inconsciente freudiano, a condensação (Verdichtung) e o deslocamento (

Verschie-bung), atualizados como operação de significantes, cujos efeitos são a metáfora, lida

como sintoma, e a metonímia, lida como desejo. Tais leis estão presentes na obra “La interpretación de los sueños” (A interpretação dos sonhos)48, a qual, seguindo

Lacan, refere-se apenas à letra do discurso, mostrando que a linguagem é a

condi-ção do inconsciente ou que o inconsciente é toda a estrutura da linguagem49. É

nis-so que Lacan vai dedicar todo seu ensino.

A verdade que fala está relacionada à lógica do significante, o qual con-duz a história do sujeito, ou, como diz Lacan, “[...] o significante é o vestígio do

sujei-to no curso do mundo”50, tendo como pano de fundo a relação saber-inconsciente e

45 Consoante Lacan, a linguística pode servir-nos de guia neste ponto. (LACAN, J. O tempo lógico e

a asserção de certeza antecipada. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998e).

Ele se apropria de alguns elementos da linguística, subvertendo-os, aliás essa se tornou uma prá-tica usual em relação a noções e conceitos emprestados de outros campos. Saussure, o fundador da linguística, entendia que o signo comportava a correspondência entre a dimensão do significan-te e do significado, numa relação de arbítrio; para ele, o signo linguístico “[...] une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e a imagem acústica” (SAUSSURE, F. Curso de linguística geral.

São Paulo: Cultrix, 2006, p. 80). Lacan subverte essa correspondência e elabora a teoria do signi-ficante, postulando que esse não depende do significado. Ele traduz esse pensamento no algorit-mo S/s, sendo “S” o significante e “s” o significado; a barra indica a prevalência do significante so-bre o significado, ou, como ele esclarece, “O significante como tal não se refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, a um modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como li-ame” (LACAN, J. Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 43).

46 Idem, 2001a, p. 47. 47 Idem, ibidem, p. 310.

48 FREUD, S. La interpretación de los sueños. In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos Aires:

Amo-rrortu, 2007o. v. 4-5.

49 LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, J.

Escritos.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998b, p. 498.

50 Idem.

(24)

verdade estabelecida no sintoma, revelando a letra de Freud impressa por Lacan a

partir das cores da linguística de Saussure e Jakobson51.

Os elementos básicos do construto do mestre genebrino – o significante e o significado – ressurgem de forma invertida nas elaborações lacanianas, e o

signifi-cante passa a ser o que representa o sujeito para outro signifisignifi-cante, ou o sujeito é a

priori habitado, invadido, colonizado pela linguagem. Mas o significante não

repre-senta nada, e também esse significante não reprerepre-senta o sujeito, ou seja, não há um significante que possa propor a solução primeira para o sujeito – há sempre Outro, que é a linguagem, o campo do simbólico, Deus, um pai –, como Lei, mãe, etc. Um sujeito é sempre posicionado em relação a esse Outro, dividido ou barrado pelo

tra-ço do significante52, daí por que sua notação em Lacan é

$

.

Logo no início da série de seminários oficiais que vão marcar o ensino de

Lacan a partir dos anos 1953-195453, no seminário intitulado Os escritos técnicos de

Freud54, fica patente que a psicanálise encerra uma experiência do discurso, o que

se contrapõe à perspectiva da clínica analítica segundo a concepção defendida pelos herdeiros de Freud, ao situar o procedimento analítico como a oposição entre análise do material e análise das resistências. Os seguidores de Freud “[...] constataram que seu saber fechava o inconsciente, ao invés de abri-lo”, daí “[...] centraram sua técnica

na análise dessa resistência”55. Lacan vai apontar o cerne desse erro relacionado à

noção de transferência no seminário Os quatro conceitos fundamentais da

psicanáli-se56, proferido em 1964, conforme veremos na próxima seção.

A interpretação desses seguidores de Freud concebe uma relação dual na análise, como se fosse uma prática intersubjetiva totalmente endereçada aos eus – do analista e do analisante: “Só nos endereçamos ao eu, só temos comunicação

com o eu, tudo deve passar pelo eu”57, resume Lacan em relação ao que escreveu

Anna Freud e outros pós freudianos. Nesse caso, conforme ele explica, esses se-guidores esqueceram as outras instâncias, o “supereu” e o “isso”. Essa forma de pensar a análise tem efeitos de natureza prática no campo da formação, já que um

51 LACAN, J. A psicanálise verdadeira, e a falsa. In: LACAN, J.

Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 2003a.

52 Idem, 2005a.

53 Lacan pronunciou seminários sobre os casos clínicos de Freud nos anos de 1951-1952 em sua

residência.

54 LACAN, J.

Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979a.

55 SAFOUAN, M.

A transferência e o desejo do analista. Campinas: Papirus, 1991, p. 131.

(25)

critério para seu termo é a identificação ao analista. Para Lacan, as categorias do eu forte e do eu fraco utilizadas por Anna Freud “[...] supõem uma posição de

reeduca-ção prévia”58 – nada mais distante da prática analítica.

Lacan clama pela leitura de Freud e expressa claramente que a oposição que se trata é entre a análise do discurso e a análise do eu, nesta presentes todas as características envolvendo o eu, aí incluídas suas defesas. Para explicar essas diferenças, ele vai empregar o que chama de sistema de referências – o simbólico, o imaginário e o real – relacionando inicialmente esses registros ao pai.

O ensino de Lacan é pautado pelo que ele chamará um retorno a Freud59,

identificando posteriormente esse retorno à luz do que será explicado por Foucault60

na conferência de 22 de fevereiro de 1969, portanto não se trata somente de uma exegese de seus textos, mas de uma refacção do percurso da experiência original do inventor da psicanálise, elaborando novas conexões e reinterpretando Freud com Lacan com base no estruturalismo, na filosofia, na topologia, etc., enfim retomando e inventando noções, criando novos conceitos fundamentais da psicanálise, inclusive o de inconsciente. Em suma, ele revela a letra freudiana com Freud, mas além dele.

A tarefa é empreendida tendo como matriz operadora, em toda a evolu-ção de seu ensino, esses três registros, que inicialmente ele situa como um sistema

de referências: o simbólico, o imaginário e o real61. Em poucas palavras, o simbólico

é da ordem do significante, portanto é o que faz a inscrição na linguagem62, trata-se

de uma função autônoma no espectro do humano; o imaginário opera como função do eu, a partir da imagem do corpo, “E é aí que a imagem do corpo dá ao sujeito a

primeira forma que lhe permite situar o que é e o que não é do eu”63, é também o

que suporta a produção de sentido, conforme Lacan vai esclarecer mais tarde no

58 Idem, ibidem, p. 83.

59 O alcance desse retorno foi explicado pela conferência

O que é um autor?, de Foucault, proferida

em 22 de fevereiro de 1969, em relação ao que o filósofo diz de Marx e Freud como instauradores de uma discursividade, ou seja, Freud tornou possível um certo número de diferenças em relação aos seus textos, aos seus conceitos, a suas hipóteses, que dizem todas respeito ao próprio dis-curso psicanalítico.

60 FOUCAULT, M. O que é um autor? In: FOUCAULT, M.

Ditos & ensaios III. Rio de Janeiro:

Foren-se Universitária, 2009.

61 Na conferência

O simbólico, o imaginário e o real, de 8 de julho de 1953, proferida na Société

Française de Psychanalyse, Lacan apresenta esses registros como essenciais ao humano e os

re-laciona à fala na clínica analítica. O real não é a realidade, mas um registro que surge a partir do imaginário ou do simbólico. No seminário de 1953-1954, ele chama os registros de sistema de re-ferências e esclarece que: “Sem esses três sistemas de rere-ferências, não é possível compreender a técnica e a experiência freudianas” (LACAN, 1979a, p. 89).

(26)

seminário de 1974-1975, o R.S.I64, neste ponto, podemos adiantar que uma análise

visa justamente à redução do sentido; por último, o real é o que resiste à

simboliza-ção65, ou o que retorna sempre ao mesmo lugar; é o estritamente impensável66.

Essa diferença vai ressoar no texto “Situação da psicanálise e formação

do analista em 1956”67, em que ele pontua desvios da doutrina freudiana e seus

re-flexos na formação dos analistas, corroborando o que já tinha sido alertado nos rela-tórios de Bernfeld e Balint, conforme veremos a seguir por intermédio do texto de

Safouan68.

Retomamos a experiência freudiana: a fala da histérica, a de origem no efeito chamado psicanálise, deslocou o lugar do saber, pois o quadro parte de uma contradição: a psicanálise nasceu com um médico, portanto, no início, há primeiro um lugar reservado ao saber predefinido pela sua própria formação médica; segun-do, uma clínica e como toda clínica vislumbra a cura. Porém, essa clínica, a

freudia-na, distingue-se sob a égide de uma fala, a do analisante69 – a talking cure, o

trata-mento pela fala –, e não a do médico; afastando, desse modo, a sistemática do sa-ber aliada à cura médica. Nessa escuta, trata-se de pôr em circulação a realidade psíquica ou a precipitação de uma outra positividade em relação ao saber.

O deslocamento do lugar do saber é de origem e nele será estabelecida a conexão com o inconsciente e a verdade no sintoma, como expressa Lacan: “É a verdade do que esse desejo foi em sua história que o sujeito grita através de seu

sintoma,”70. O significante conduz essa história tendo como pano de fundo a relação

saber inconsciente-verdade expressa no sintoma. De imediato, podemos afirmar que o sintoma traduz o próprio percurso teórico da psicanálise, porque se trata de seu percurso no sujeito, ao estabelecer essa relação com a verdade, logo o campo da formação é inseparável do percurso original do sujeito.

A concepção de sintoma na psicanálise está imersa no desenvolvimento da doutrina psicanalítica, refere-se à clínica na letra de Freud e depois à clínica la-caniana – corte estabelecido nesta investigação. O sintoma é uma formação do

in-consciente, como os sonhos, os atos falhos e os chistes, o que significa, grosso

64 Idem.

R.S.I. Paris: L’Association Freudienne Internationale, 2002b, p.15.

65 Idem, 1979b, p.82. 66 Idem.

Le désir et son interprétation. Paris: L’Association Freudienne Internationale, 2010b.

67 Idem. Situação da psicanálise e formação do analista em 1956. In: LACAN, J.

Escritos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1998f.

68 SAFOUAN, 1985.

(27)

do, haver uma mensagem relacionada ao sexual a ser decriptada, ou dizer, um gozo

a ser decriptado no sintoma:

Com o estabelecimento da neurose, isso, o corpo, fala: o gozo desterrado volta por seus foros, demanda um interlocutor, dirige-se a um saber que fal-ta para que suas inscrições possam ser decifradas pelo único desfiladeiro possível, a palavra. Essa é a doutrina freudiana do sintoma. A fórmula con-sagrada e reiterada várias vezes por Freud para definir o sintoma é ‘satisfa-ção sexual substitutiva’.71

Se há algo a ser decriptado ou interpretado, o lugar onde isso ocorre vai ser determinante em relação ao avanço da doutrina psicanalítica, ou seja, há um analista que possui a chave dessa decriptação ou ela está no sujeito? Lacan vai responder a isso ao longo de seu ensino, a ponto, inclusive, de radicalizar ao

conce-ber o sintoma como um sinthome72, ou uma invenção, um “saber-fazer”.

Em termos gerais, a clínica freudiana está circunscrita ao neurótico, e a experiência freudiana com a clínica da histérica vai fornecer os elementos de base para a construção das concepções de sintoma incorporadas à doutrina, ainda que Freud também tenha tratado das particularidades do sintoma em relação ao psicóti-co – optamos pela referência sempre ao sujeito, e não à nosologia empregada. Por-tanto, o sintoma será tomado de acordo com as especificidades clínicas – há um sintoma histérico, por exemplo, multifacetado, além de ser sobredeterminado; há muitas causas agindo num mesmo sintoma, conforme indicado por Freud nos

“Fra-gmento da análise de um caso de histeria”, o caso Dora73.

O sintoma concerne à libido, sendo quase sempre uma formação de compromisso que ocorre por conta do conflito em diferentes instâncias psíquicas com vistas ao que foi recalcado. Tal acordo tem como resultado algo irracional, ou o

equivalente a um erro lógico74, esclarece Freud em carta a Fliess. Nele se conjuga a

realização de um desejo (sexual), cujo funcionamento pode estar ligado a uma

puni-ção, devido, por exemplo, a uma pulsão maléfica75, isso em relação à histérica. O

sintoma determina uma satisfação sexual, ou melhor, trata-se de satisfazer uma

71 BRAUSTEIN, N.

Gozo. São Paulo: Escuta, 2007, p. 25. O que é decriptado é o gozo. Para melhor

entendimento do alcance dessa afirmação, recomendamos este livro de Néstor Braunstein, segu-ramente o melhor e mais abrangente trabalho sobre o gozo em Freud e Lacan.

72

Sinthome, termo empregado por Lacan no seminário que leva o mesmo nome, em relação a James

Joyce, no qual mostra a ligação do sinthome como um saber-fazer, uma invenção do sujeito.

73 FREUD, S. Fragmento de análisis de un caso de histeria. In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos

Aires: Amorrortu, 2007m. v. 7.

74 MASSON, J.

A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess: 1887-1904. Rio

de Janeiro: Imago, 1986.

(28)

são, ou simplesmente corresponde a uma fantasia sexual; o caso Dora é exemplar nesse aspecto. Ele revela algo que não anda bem para o sujeito; se ele determina uma satisfação sexual, significa que sua verdade é a do sexual, ou dizer, há um sa-ber inconsciente que o concerne.

No “Breve informe sobre el psicoanálisis” (Breve informe sobre a

psicaná-lise)76, Freud resume elementos acerca da formação dos sintomas; no texto “

Inhibi-ción, síntoma y angustia” (Inibição, sintoma e angústia)77, ele retoma algumas

no-ções que foram determinantes na evolução dessa noção na clínica, alterando alguns pontos tratados anteriormente na teoria, ao ressaltar o caráter substitutivo do sinto-ma, segundo o qual Lacan vai discorrer sobre sua ligação com a metáfora, tomando

de empréstimo elementos da linguística em Jakobson78. O texto freudiano de

1925-192679 anuncia que os sintomas são gerados para evitar situações de perigo

assina-ladas pelo desenvolvimento da angústia, em que se apresenta uma experiência de

desamparo, a Hilflosigkeit, quando é emitido um sinal de gravidade que atinge o eu,

com repercussões perigosas. Afinal, é nesse limite que o sujeito pode perceber que há algo que chegou ao ponto do insuportável, algo semelhante à sensação de estra-nhamento familiar ou advinda das próprias entranhas – Freud empregou o termo

Unheimlich para dar conta desse estado. Cabe adiantar e

esclarecer que, a partir do texto freudiano de 1925, Lacan faz entrar em cena ele-mentos que vão consolidar a noção de real e da forma como cada um reage diante

do sinal de angústia – afeto do eu por excelência. No seminário A angústia80, de

1962-1963, ele arremata sua formulação sobre o que diz constituir sua derradeira invenção – o objeto “a”, concebido neste seminário como objeto causa do desejo,

conceito que nos interessa neste trabalho, pela posição de semblante de objeto “a”

que o analista ocupa no dispositivo.

Em “O mal-estar na cultura”, Freud resume o sintoma nas neuroses como

“[...] essencialmente satisfações substitutivas de desejos sexuais irrealizados”81. Em

76 FREUD, S. Breve informe sobre el psicoanálisis. In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos Aires:

Amorrortu, 2007b. v. 19.

77 Idem. Inhibición, síntoma y angustia. In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu,

2006a. v. 20.

78 Lacan vai interpretar os processos da metáfora e da metonímia descritos por Jakobson, opondo-se

ao linguista russo ao defender que não existe metáfora sem metonímia, e vice-versa. (LACAN, J.

As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999).

79 FREUD, opus citatum. 80 LACAN, 2005a.

81 FREUD, S. El malestar en la cultura. In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu,

(29)

“Moisés e a religião monoteísta”82, o sintoma é o retorno do recalcado, mas

total-mente deformado em relação ao original. Passa, então, a uma análise da formação do sintoma social, em analogia ao processo do sujeito em análise, ou seja, ele con-cebe uma equivalência entre as duas instâncias em seus respectivos processos de formação – as primeiras impressões num sujeito correspondem às primeiras vivên-cias da humanidade.

Para entendermos esse ponto, cabe destacar a noção de

sobredetermi-nação (uberdeterminierung), inserida também no construto do campo social, ou seja,

cada acontecimento – cada fato – vai repercutir na história com a multiplicidade de causas de cada evento. Há impressões no sujeito, assim como no segmento social, que são determinantes, mas o sujeito não sabe delas – só vai desconfiar da

existên-cia delas por seus efeitos. Essas impressões são marcas de gozo83, marcas

situa-das Além do princípio do prazer – nome do texto freudiano de 1920 que marcará sua

segunda tópica84.

A marca de gozo é um dos pontos ressaltados por Lacan no seminário De

um Outro ao outro85, em seu entendimento de que o sintoma em Freud parte de

Marx, ou seja, do modo como este revelou o funcionamento do mais-valor na lógica de funcionamento do regime de produção capitalista. Essa marca é testemunho do real, ou do sintoma como efeito do simbólico no real, ao atuar como signo de alguma

coisa que não anda bem neste86. É o que veremos a seguir em sua ligação com a

verdade e como tal é o que nos interessa em relação à concepção de sintoma.

Freud liga a formação do analista a uma análise, ou melhor, para ele essa formação depende da firme convicção do inconsciente. Por conta disso, ela se cons-titui reflexo e, ao mesmo tempo, atualização da tensão constante que tomou lugar desde a origem da psicanálise em relação ao dilema presente ao se tentar a trans-missão do saber inconsciente-verdade, porquanto essa, em tese, só é possível com a própria experiência de análise, passada a cada sujeito de modo singular. Essa tensão revela o cerne do que se constitui o sintoma nesse campo.

82 Idem. Moisés y la religión monoteísta. In: FREUD, S.

Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu,

2007r. v. 23.

83 BRAUNSTEIN, 2007.

84 FREUD, Más allá del principio de placer. In: FREUD.

Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu,

2007p.

85

LACAN, 2008b.

(30)

Foram convencionadas três condições para a formação – a análise, a a-preensão teórica e a supervisão ou controle clínico –, mas a primeira condição foi cercada de regras que efetivamente a afastavam da autenticidade da proposta freu-diana, conforme veremos ao longo deste texto. Essa tensão vai determinar as diver-sas concepções que modulam a forma como a psicanálise vem se constituindo até o presente, mostrando a correlação de forças no seio do movimento psicanalítico e escancarando suas contradições.

O inventor da psicanálise tinha conhecimento que estava lidando com um saber leigo ocupado por algo diferente da pessoa do médico – no caso, Dr. Sigmund Freud – e, ao mesmo tempo, conhecia a necessidade de construir uma teoria com o emprego de saberes diversos para traduzir os efeitos desse algo cujos reflexos eram perceptíveis em sua clínica.

Freud estabeleceu suas pesquisas e delimitou noções e campos concei-tuais alicerçando-se em vários campos de saberes, ora científicos, ora leigos, sendo que tais noções e conceitos foram forjados a partir de empréstimos feitos de outras disciplinas, muitas vezes foi necessário subvertê-los, afinal o novo na psicanálise era devastador. Isso o deixava numa “solidão teórica” sem precedentes, como prescre-veu Althusser:

Pois, quando ele quis pensar, ou seja, exprimir, sob a forma de um sistema rigoroso de conceitos abstratos, a descoberta extraordinária com a qual de-parava, a cada dia, nos encontros com sua prática, foi um trabalho vão pro-curar precedentes teóricos: ele quase não achou pais na teoria. Teve de [...] ser ele mesmo o seu próprio pai: construir, com suas mãos de artesão, o espaço teórico em que pudesse situar sua descoberta.87

Desse modo, o espectro do qual a psicanálise lançou mão para a cons-trução do radicalmente novo é vasto. Ela partilha desde o campo de abrangência das ciências médico-biológicas, da psicologia, da física – sobretudo a termodinâmica –, até o campo da tragédia, da poesia, “[...] [d]a história da civilização, [d]a mitologia,

[d]a psicologia da religião e [d]a ciência da literatura”88, enfim, de um variado bloco

de realizações da civilização, num intrincado nunca antes visto. Freud clarifica o fato de a clínica poder demonstrar a conjunção entre o inconsciente e as produções da cultura, preocupando-se, todavia, em defender que a psicanálise é maior que uma

87 ALTHUSSER, L.

Freud e Lacan – Marx e Freud. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 52.

(31)

terapêutica. Esse ponto é de extrema relevância e terá repercussão direta na política institucional voltada à formação do analista.

A razão desse largo espectro na fundamentação teórica da psicanálise é a própria linguagem: “é com o aparecimento da linguagem que emerge a dimensão

da verdade”89, diz Lacan, sendo ela sua ferramenta mor, afinal se trata de uma

talking cure, uma fala relacionada às construções singulares de cada sujeito, que em

seu bojo traz elementos de sua herança familiar e cultural.

Para Didier-Weill, a concepção de Lacan sobre a formação parte

justa-mente da noção “sujeito do inconsciente”90, com a qual ele vai enfrentar o dilema da

transmissão saber inconsciente-verdade. Nesse caso, trata-se do caráter disruptivo entre essa formação e a experiência de análise. O modelo em voga não se constitu-ía um meio de diminuir a distância entre a experiência de análise e a sua transmis-são na formação do analista; antes, o contrário, acomodou-se em regras burocráti-cas que só acirrou esse dilema.

Esse enfrentamento é a resposta em face das práticas convencionadas e adotadas pelos seguidores de Freud na instituição que ele fundou, a IPA, percebidas pelo mestre francês como um afastamento do rigor ético defendido pelo inventor da psicanálise. Lacan vai apoiar sua transmissão sob a perspectiva de um movimento contínuo, segundo modelo da faixa de Moebius, ou seja, uma superfície unilateral, onde interior e exterior estão em continuidade. Esse movimento atenderá pelo nome de psicanálise em “intensão” – vinculado à experiência de análise como intensa – e psicanálise em “extensão” – relacionada ao ensino e à transmissão, cujo ápice se

localiza em suas elaborações sobre o passe, como o derradeiro esforço de Lacan91

para diminuir tal caráter disruptivo.

Entendemos que o uso da faixa de Moebius traduz Freud nos termos da

“Análise terminável e interminável”92, pois o analista ocupa um lugar, pelo qual, além

de responder por sua experiência, a intensão, ele deve ser capaz de fazer sua transmissão via ensino e ser capaz também de realizar a supervisão de outros. Nu-ma palavra, entendemos que a concepção freudiana, além de indicar a necessidade de o analista estar atento a seus próprios conflitos pulsionais e retomar sua análise,

89 LACAN, 1998b, p. 529.

90 DIDIER-WEILL, A. A questão da formação do psicanalista para Lacan. In: JORGE, M. A. C. (Org.).

Lacan e a formação do psicanalista. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006, p. 16.

Referências

Documentos relacionados

Concluímos que o tempo dedicado aos estudos das ideias psicanalíticas é consideravelmente curto, não sendo possível desenvolver o conteúdo previsto; que a psicanálise

As mudanças que se observam no mundo contemporâneo são de tal modo profundas, que inauguram a necessidade de repensar alguns dos nossos pressupostos teóricos para manter

Em geral, a fauna cavern´ıcola de S˜ ao Desid´ erio apresen- tou - se extremamente relevante, com registro de v´ arios trogl´ obios, v´ arias esp´ ecies novas para a ciˆ encia,

1 — Os apoios são concedidos pela Câmara Municipal da Guarda às IPSS legalmente cons- tituídas de acordo com o estipulado no n.º 3, do artigo 2.º do presente Regulamento... 2 —

Portanto, tendo em vista esse grande desafio que a tecnologia impõe às estratégias de preservação digital, e devido à complexidade e à especifi- cidade do documento

A vida, para estas autoras, tornou-se mais “individual” numa época que o Martin Albrow (1997. In: The global age. Stadford: Standford Univ. Press apud CALHEIROS e PAIVA, 2001)

Convido a comunidade jurídica a refletir sobre a possibilidade, descartada no passado, mas que poderia ser de grande valia nesse momento peculiar de pande- mia: a inclusão

Porém, Aristóteles não pode exigir que o adversário diga que algo é ou que algo não é (e não ambos), ou seja, que ele forneça uma proposição, pois nesse caso, o adversário