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Dissertação - Ana Carolina de Godoy

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Academic year: 2021

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O FEMININO E O MASCULINO NA FORMAÇÃO DISCURSIVA DA

GASTRONOMIA: EFEITOS DE MEMÓRIA E IDEOLOGIA

Ana Carolina de Godoy

GUARAPUAVA

2017

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O FEMININO E O MASCULINO NA FORMAÇÃO DISCURSIVA DA

GASTRONOMIA: EFEITOS DE MEMÓRIA E IDEOLOGIA

Dissertação apresentada por ANA CAROLINA DE GODOY ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Estadual do Centro-oeste UNICENTRO, como um dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Profª. Drª. Maria Cleci Venturini.

GUARAPUAVA

2017

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G589f O feminino e o masculino na formação discursiva da Gastronomia: efeitos de memória e ideologia / Ana Carolina de Godoy.– Guarapuava:

Unicentro, 2017. x, 130 f.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual do Centro-Oeste,

Programa de Pós-Graduação em Letras; área de concentração: Interfaces entre Língua e Literatura.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Cleci Venturini;

Banca examinadora: Prof. Dr. Alexandre Sebastião Ferrari Soares, Profa. Dra. Níncia Cecília Borges Teixeira.

Bibliografia

1. Discurso. 2. Sujeito. 3. Memória. 4. Ideologia. 5. Gastronomia. 6. Masculino. 7. Feminino. I. Título. II. Programa de Pós-Graduação em Letras. CDD 20. ed. 401.4108

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Ao meu pai, meu amigo. À minha mãe.

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AGRADECIMENTOS

À Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO, pelo ensino público e de qualidade. E que assim continue a ser.

À minha orientadora, Professora Dra. Maria Cleci Venturini, pela confiança e dedicação com que orientou meu trabalho. Também por compartilhar seus conhecimentos, seus livros, o café, a casa e a família.

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Unicentro. À CAPES, pelos dezoito meses de bolsa.

À banca examinadora, composta pela Professora Dra. Nincia Cecilia Ribas Borges Teixeira e pelo Professor Dr. Alexandre Sebastião Ferreira Soares, pela disposição, atenção e generosidade com que avaliaram esse trabalho.

Ao William, meu amor... Tanto penso em dizer, as palavras não cabem em poucas linhas... Pelos dez anos de nossa grande história regida pelo amor e companheirismo que guiam os laços que nos unem. Te amo.

Ao meu pai, amigo dessa vida, e de outas também. Meu outro amor. À minha mãe. Obrigada.

A todos os familiares que acreditam e torcem por mim ao longo de minha trajetória. Aos amigos, poucos e bons, que me deram suporte quando precisei, que entenderam minha ausência e que vivem junto a mim.

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Aos Professores do Departamento de Letras da Unicentro, sempre tão atuantes no compromisso com a formação não só de futuros docentes, mas também de cidadãos.

A todas as Professoras e Professores que fizeram parte da minha trajetória, desde a pré-escola até o Mestrado, todos são importantes para a formação cidadã de qualquer sujeito.

Aos colegas da turma de Mestrado, Débora, Paula, Sandy, Anacir, Scheyla e a todos que caminharam juntos nesses dois curtos anos.

Ao grupo de pesquisa “Estudos do texto e do discurso: entrelaçamentos teóricos e analíticos”, liderado pelas Professoras Dra. Maria Cleci Venturini e Professora Dra. Gesualda Rasia, da UFPR, que não mediram esforços para fazer acontecer e discutir os pressupostos da Análise de Discurso. Essas discussões foram essenciais para o desenvolvimento desse trabalho.

Aos Professores do curso de Tecnologia em Gastronomia, da Faculdade Guairacá, pelas experiências conjuntas e por provocarem em mim a curiosidade por essa pesquisa. Obrigada a todos, em especial ao Leandro e à Taiana.

A todos os profissionais da Gastronomia, mulheres e homens, pela coragem e competência com que exercem a profissão de servir, de alimentar, de encantar. Uma das profissões que há mais tempo atua em nosso imaginário, ressignificando suas práticas, seus sentidos e seus sujeitos, sem deixar de cumprir a essência à qual se propõe.

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Uma vez que a linguagem não é tradução de um texto já formulado, mas se inventa a partir da experiência indistinta, toda palavra é sempre apenas ‘maneira de falar’: poderia haver uma outra. É por isso que o escritor detesta ser ‘tomado ao pé da letra’, ou seja, preso, imobilizado, amordaçado pelas palavras escritas. Elas paralisam meu pensamento, quando na verdade ele nunca para.

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GODOY, Ana Carolina. O feminino e o masculino na formação discursiva da Gastronomia: efeitos de memória e ideologia. 130f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO. Orientadora: Maria Cleci Venturini. Guarapuava, 2017.

RESUMO

O objeto de análise desta pesquisa é o discurso da Gastronomia, significado como um fenômeno social, histórico e antropológico em torno dos sujeitos que atuam na área, inscrevendo-se na formação discursiva da gastronomia e constituindo-se por uma mesma posição-sujeito. Apesar disso, no discurso que circulou na mídia sobre esses sujeitos, instauram-se diferentes efeitos de sentidos pelo imaginário e pelo simbólico. Filiamo-nos à Análise de Discurso e, ancorados nessa teoria, analisamos o nosso recorte pelo viés da memória e da ideologia. Com o objetivo de verificar que memórias e discursos sustentam e naturalizam o imaginário do sujeito-feminino e do sujeito-masculino na cozinha, quando ocupam o lugar discursivo de liderança. A questão de pesquisa que agrupa e reordena as discussões é: “Que memórias e discursos sustentam o simulacro, segundo o qual, a cozinha e as práticas advindas dela são próprias do universo feminino, e que o masculino, nesse mesmo lugar, rompe com a estabilidade e instaura um acontecimento, se não discursivo, pelo menos enunciativo?” As análises realizadas permitem dizer que os discursos sobre os sujeitos-femininos na Gastronomia sinalizam que esses sujeitos, estando na cozinha, estão no lugar que é próprio deles, constituindo, nos discursos, evidências de homogeneidade, de repetição linear e de estabilização. Já os sujeitos-masculinos, nesse mesmo lugar e posição, instauram a novidade e efeitos discursivos de ruptura, de acontecimento, de deslinearização em discursos formulados e em circulação no meio gastronômico. O corpus de pesquisa se constitui de discursos que circulam em revistas especializadas da área e controlam os sentidos, os quais reproduzem ou transformam a formação social, pela repetição ou pela ruptura em discursos efetivamente produzidos. Com vistas a cercar nosso objeto e a atender aos objetivos propostos, mobilizamos os dispositivos teórico-analíticos da AD, mais especificamente, o interdiscurso, as memórias que retornam, ressoam e produzem efeitos de sentido que rompem, ou não, com a linearidade estabelecida. Na pesquisa, destacamos a memória discursiva diferenciando-a do interdiscurso e aproximando-a da formação discursiva da Gastronomia. Nessa FD, os sujeitos-femininos e os sujeitos-masculinos ocupam a mesma posição-sujeito, mas instauram a contradição, tendo em vista o funcionamento de mais de uma posição-sujeito. Os efeitos de homogeneidade, nesse discurso, decorrem do trabalho da ideologia e da historicidade que continua a determinar os lugares que são das mulheres e os lugares que são dos homens, determinando o que cada um pode/deve fazer ou o contrário, de acordo com as condições sócio-históricos de cada discurso em relação ao sujeito.

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GODOY, Ana Carolina. Feminine and masculine in the discursive formation of Gastronomy: memory and ideology effects. 130f. Theses (Master of Letters) – Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO. Supervisor: Maria Cleci Venturini. Guarapuava, 2017.

ABSTRACT

 

 

This thesis intends to analyses the discourse of the Gastronomy, that means as a social, anthropological and historical phenomenon, around subjects who works in this area, subscribing in gastronomy discursive formation and constituting by the same subject-position. Despite of this, in the discourse about these subjects that circulated on media, different sense effects are established by imaginary and by the symbolic. We think with the Discourse Analyses and we analyze our text by the memory and ideology. Our goal is to verify which memories and discourses support and make natural the imaginary about feminine-subject and masculine-subject in the cuisine, when they are on the leadership discursive position. Our research question is: “Which memories and discourses supporting the simulacrum by which the cuisine, and its works, are natural for the women, and the men, in the same place, breaks stability and installs an discursive event, or at least, enunciative?” Analyses allow us to affirm that discourses about feminine-subjects in Gastronomy show that when these subjects are on cuisine, they are on their natural place, making homogeneity, linear repetition and stabilization evidences in discourses. On the other hand, the masculine-subjects, in the same place and position, install the newness and break effects in discourses formulated and in circulation in the Gastronomy. The corpus of our research is built by discourses that circulated in specialized magazines that control the sense, which reproduces and transform the social formation, by the repetition or by rupture in reproduced discourses. In order to attending our goals, we use the theoretical field of Discourse Analyses, specifically, memories that return, resonate and produce sense effects that break, or not, the established linearity. In this research, we highlight the discursive memory making it different of interdiscourse and approaching this to the discursive formation of Gastronomy. In this discursive formation, feminine and masculine subjects occupy the same subject-position, but they install the contradiction, in view of the operation of more than one subject-position. Homogeneity effects, in this discourses, result of ideology work and historicity that continues to determinate the women’s place and the men’s place, determining what each one can/must to do or not, according with the socio-historical of each discourse in relation to the subject.

Key words: Discourse; subject; memory; ideology.

 

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SUMÁRIO

 

INTRODUÇÃO ... 11

CAPÍTULO I ANÁLISE DE DISCURSO: DISCIPLINA DE ENTREMEIO ... 16

1.1DISPOSITIVO TEÓRICO-METODOLÓGICO: A CONSTITUIÇÃO DO ARQUIVO E DO CORPUS . 21 1.2 DISPOSITIVO TEÓRICO-ANALÍTICO ... 24

1.2.1 Forma-sujeito: transformações e permanências ... 25

1.2.2 Ideologia, sujeito, identificações ... 28

1.2.3 Memória: articulações e funcionamentos ... 36

1.2.4 Texto-imagem e Enunciado-imagem ... 42

CAPÍTULO II GASTRONOMIA, HISTÓRIA E GÊNERO ... 46

2.1 CULINÁRIA VERSUS GASTRONOMIA ... 47

2.1.1 A profissão Chef de cuisine ... 50

2.2 REFLEXÕES SOBRE O GÊNERO: MULHERES, FEMINILIDADE E A CONSTRUÇÃO DA MASCULINIDADE ... 61

2.2.1 Estudos sobre a masculinidade ... 63

2.2.2 Masculinidades: hegemônica, subordinada, marginalizada e cúmplice .. 65

2.2.3 Constituição da masculinidade e da feminilidade ... 68

GRUPO I:“IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO-MULHER: REGULARIDADES E EQUÍVOCOS” ... 70

GRUPO II:“SUJEITOS-MASCULINOS: REPRESENTAÇÃO DE FORÇA, SUCESSO FINANCEIRO E COMPETÊNCIA” ... 78

CAPÍTULO III DA CULPA À FESTA: O CORPO EM DESTAQUE ... 99

3.1 O PERCURSO DO PENSAMENTO SOBRE O CORPO ... 100

3.2 CONCEITOS PSICANALÍTICOS ... 104

GRUPO III:“COZINHA E NACIONALIDADES” ... 108

GRUPO IV:“O CORPO EM DISCURSO E A GASTRONOMIA” ... 114

EFEITOS DE FECHAMENTO ... 118

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INTRODUÇÃO

A mesa é um lugar de prazer: esta descoberta já é bem antiga, mas conserva sua verdade e seu segredo, pois comer é sempre bem mais que comer. (DE CERTEAU, 1996, p. 267)

São os homens que figuram nas colunas gastronômicas dos grandes jornais, dirigem os guias anuais que fazem a classificação dos restaurantes, que compõem os diversos júris de degustação. [...] os postos de autoridade e de legitimação social cabem por direito de nascença aos homens. Às mulheres, ao contrário, cabem as tarefas monótonas de execução, as ocupações subalternas ou o trabalho de casa que sequer é contabilizável. (DE CERTEAU, 1996, p. 291-292)

Não por acaso, iniciamos nosso texto com duas epígrafes de De Certeau, retiradas da obra A Invenção do Cotidiano – 2. Morar, Cozinhar, em que ele pensa o cotidiano. Esse ‘pensar’ vem ao encontro do que se discute, nessa dissertação, em relação à culinária e à gastronomia, mais especificamente, o lugar do sujeito-feminino e do masculino, nesse campo, dando visibilidade que ‘comer é bem mais que comer’. Isso permite referir que, historicamente, homens e mulheres estão em lugares opostos, notadamente quando a abordagem incide sobre a Gastronomia, que é o comer acrescido do prazer, do sentir, enfim do vivenciar e, também de embelezar ‘o de comer’.

A Gastronomia contemporânea tem despertado a atenção dos sujeitos da formação social, especialmente, na última década, não só por sua capacidade de reinventar e criar produtos e sabores, mas também, porque esses discursos resultam da relação entre memória, ideologia e história. Os sujeitos inscrevem-se em formações discursivas que determinam as práticas sociais e, em nosso corpus, as representações imaginárias dos sujeitos em relação ao gênero na Gastronomia. Essa inscrição naturaliza as práticas que valorizam os sujeitos-masculinos em relação à profissão e destacam, nos sujeitos-femininos, a beleza no/do espaço em que desempenham a função gastronômica, como se a mulher não pudesse ser profissional sem ser sempre bela, caprichosa e preocupada com a beleza do que a cerca. Ressoa, nesse discurso, portanto, o culto à beleza, fazendo retornar

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memórias e outros discursos, pelos quais, como diz De Certeau (1996) à mulher historicamente cabe repetir, mas não criar.

Outro ponto relevante, em relação à Gastronomia, é o destaque que a mídia especializada, mais especificamente revistas que circularam entre dois mil e oito e dois mil e dezesseis, vem dando aos sujeitos-masculinos que atuam como profissionais da área. Esses sujeitos, alçados ao posto de celebridades, estão cada vez mais expostos e submetidos a efeitos de sentidos e a imaginários construídos pela imprensa dominante em torno desses sujeitos e da Gastronomia. É a partir da exposição deles que desenvolvemos nossas análises, tendo em vista a circulação de efeitos de sentido que, ora naturalizam, ora rompem com a estabilidade social até então estabelecida.

O escopo teórico a partir do qual “olhamos” e “analisamos” esse objeto de pesquisa é o da Análise de Discurso, fundada por Michel Pêcheux e ressignificada, no Brasil, por Orlandi e pelos pesquisadores que com ela desenvolvem pesquisas. Tendo em vista tal filiação teórica, tomamos a Gastronomia como prática social pela qual ressoam memórias e discursos que significam os sujeitos e a formação social. Inscrevemos os sujeitos-profissionais dessa área em formações discursivas, tomando essa noção a partir de Pêcheux (2014), que destaca que os sujeitos ocupam determinadas posições, inscrevem-se em FD´s, as quais não possuem fronteiras. Isso foi discutido por Pêcheux em sua revisão teórica e por outros pesquisadores, sinalizando que os sujeitos podem ocupar mais de uma posição-sujeito nas FD´s, tendo em vista os modos de identificação, que destacaremos no interior do trabalho.

Pêcheux (2014) destacou o desdobramento constitutivo do sujeito em locutor, como o que assume a responsabilidade pelo dizer (o sujeito da enunciação) e em Sujeito universal como o que responde pela universalidade, o sempre já-aí da interpelação (ou Sujeito da Ciência ou Sujeito com ‘S’ maiúsculo). Nesse funcionamento, o sujeito assume diferentes modalidades de identificação: a do bom sujeito (sobreposição entre o sujeito da enunciação e a forma-sujeito), a do mau sujeito (aquele que se distancia e assume posição-sujeito mais critica, mas não rompe com a FD). A terceira modalidade é a desidentificação em que o sujeito rompe com uma FD e inscreve-se em outra. Trabalharemos o desdobramento do sujeito e as modalidades de identificação na parte teórica, trazendo reflexões de Freda Indursky e Pêcheux e, também, de Denise Maldidier.

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O foco da pesquisa é o discurso sobre a Gastronomia como profissão, recortando os sujeitos profissionais dessa área. A constituição do arquivo mostrou que os sujeitos-femininos e os sujeitos-masculinos são representados, na ordem do imaginário, de formas distintas, no discurso que vem de revistas especializadas, vimos isso como uma regularidade. A mídia como lugar de circulação tem mostrado outras regularidades, dentre elas as diferentes representações imaginárias e discursivas entre sujeitos-femininos e sujeitos-masculinos que ocupam a posição-sujeito de liderança na formação discursiva dos profissionais da Gastronomia.

Um dos efeitos de sentido em circulação é que os sujeitos-masculinos, nessa posição-sujeito, parecem escapar do cotidiano e os sujeitos-femininos não. A consequência disso é que as mulheres, nesse lugar, perdem visibilidade, porque pelo discurso se constituem efeitos de naturalidade, dados pelas evidências que instauram o simulacro, segundo o qual elas simplesmente ocupam a posição-sujeito própria do feminino. Duas evidências sustentam esse simulacro: o “como se” esse fosse o habitat natural do sujeito-feminino, cabendo a elas “cozinhar” e “criar”, e o “como se” o sujeito-masculino, nessa posição-sujeito, rompesse com a estabilidade social por estar no lugar do outro e, com isso, produzisse um acontecimento enunciativo, porque movimenta fortemente os saberes de uma formação discursiva1.

Diante da Gastronomia como objeto discursivo e do recorte acerca dos sujeitos-masculinos e dos sujeitos-femininos em torno da posição-sujeito de liderança, a questão que buscamos responder é: “Que memórias e discursos sustentam o simulacro, segundo o qual a cozinha e as práticas advindas dela são próprias do universo feminino, e que o masculino, nesse mesmo lugar, rompe com a estabilidade e instaura um acontecimento, se não discursivo, pelo menos enunciativo?” Para responder a essa questão, buscamos resgatar no percurso histórico da Gastronomia a posição-sujeito ocupada pelos sujeitos femininos e masculinos, com vistas a ressignificar essa prática, historicizando-a, pois do nosso lugar teórico, interessam os efeitos de sentido de práticas sócio discursivas e não os seus conteúdos e resultados. Vale destacar que a História, na perspectiva discursiva, vai significar pelos efeitos de sentidos que constitui e pelos domínios de memória que faz irromper e trabalhar no discurso em circulação.

                                                                                                               

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Diante disso, o objetivo geral dessa pesquisa é verificar que memórias e discursos sustentam e naturalizam o imaginário do feminino e do sujeito-masculino na cozinha, ocupando o lugar discursivo2 de liderança. Desse objetivo derivam os objetivos específicos que são:

1) revisitar a Análise do Discurso, enquanto teoria, com vistas a discutir os conceitos que fazem parte desse edifício teórico, mobilizado nas análises em torno dos recortes que constituem o corpus analítico;

2) discutir a construção do arquivo e dos critérios que resultaram na construção do corpus;

3) retomar a história da Gastronomia com vistas a verificar como essa história ressoa no discurso em torno dos sujeitos-femininos e masculinos na cozinha, destacando a representação do sujeito-feminino e do sujeito-masculino nas materialidades constitutivas do corpus, com vistas a colocar em suspenso efeitos de sentidos em torno de evidências que sinalizam para a dominação e para o exercício de poder;

4) recuperar a relação historicamente construída do sujeito com o seu corpo e do funcionamento do corpo como linguagem no discurso da Gastronomia na relação sujeito-feminino e sujeito-masculino;

5) analisar materialidades, colocando como critério de análise do corpo e o funcionamento da ideologia que sustenta o imaginário do feminino e do masculino na gastronomia.

A dissertação tem a seguinte estrutura:

No capítulo I, trazemos as noções pertinentes a nosso campo teórico: a Análise de Discurso de vertente pêcheuxtiana. Abordamos, nesse capítulo, os dispositivos teórico-metodológicos com vistas à construção de dispositivos analíticos. Descrevemos e discutimos a constituição do arquivo e do corpus de pesquisa, a ideologia enquanto constitutiva do sujeito, os processos de identificação, a memória e o interdiscurso e, por fim, o texto-imagem, pela noção enunciado-imagem. Para tanto, mobilizamos autores como Louis Althusser (1978, 2008), Michel Pêcheux (2012, 2014, 2015) e Eni Orlandi (2012, 2015), essenciais para o                                                                                                                

2 Dornelles (2005) diferencia lugar social e lugar discursivo, sendo que a primeira noção relaciona-se às práticas sociais e, a segunda, a posições-sujeito diferenciadas, em que ocorre, de acordo com a autora o consenso produzido pelo conjunto de formações discursivas. Assim, tanto o sujeito-feminino, quanto o masculino ocupam o mesmo lugar: a cozinha, mas o lugar discursivo, refere à ideologia e às memórias que configuram esse lugar, legitimando os sujeitos neles, significando, portanto, no discurso.

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desenvolvimento de nossa teoria, além de pesquisadoras(es) brasileiras(os) que atuam incansavelmente para o desenvolvimento da Análise de Discurso no Brasil, como Maria Cleci Venturini (2009, 2014, 2015), Freda Indursky (2000, 2005), Verli Petri (2013), Vanise Medeiros, Alexandre Ferrari (2012) e Ana Zandwais (2009).

Em seguida, no capítulo II, traçamos um breve percurso da história da Gastronomia, diferenciando-a da culinária, voltando nosso olhar para o percurso do sujeito-feminino e do sujeito-masculino dentro dessa história, que significa, na Análise de Discurso, como historicidade. Dessa maneira, buscamos encontrar no fio da História as memórias que provocam efeitos de sentido, na atualidade, em torno do discurso que delega ao homem a posição de superior em relação à mulher enquanto chef de cozinha, visto que ocupam a mesma posição-sujeito dentro da formação discursiva da Gastronomia.

Para sustentar nossas análises, entendemos ser necessária a abordagem acerca dos estudos de gênero. Por isso, mobilizamos tais dispositivos teórico-analíticos e demos especial destaque à construção da masculinidade e seus efeitos no recorte que aqui propomos. Para embasar esse capítulo, chamamos autores que refletem acerca da história da Gastronomia, como Ariovaldo Franco (2010), Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (2008). Para os estudos de gênero, trazemos Raewyn Connell (1995, 2005, 2015), Linda Nicholson (2000), Karen Giffin (1994), Michael Kimmel (1986), Pierre Bourdieu (2014), Debora Freitas (2015), entre outros que estudam as relações constitutivas da identidade e sexualidade humana.

Por fim, no capítulo III, trazemos à discussão o corpo, enquanto materialidade significante. Iniciamos o capítulo estudando o percurso do pensamento ocidental acerca do corpo. Passamos, em seguida, aos conceitos psicanalíticos em relação ao corpo, sua relação com o imaginário, o simbólico e o real. Para este capítulo, conversamos com Jacques Lacan (2008, 2009), Luciana Vinhas (2015), Maria Cristina Leandro Ferreira (2011) e Francisco Ferreira (2006).

A partir do edifício teórico construído ao longo dos capítulos, desenvolvemos esse trabalho a partir do lugar de onde olhamos, o da pesquisa acadêmica, podendo diferir de análises oriundas de outras posições e formações. Em virtude disso, destacamos que as análises encaminham para a reprodução do imaginário em torno das mulheres na cozinha. Entretanto, circulam dizeres com vistas a ressignificar os sentidos em torno dos sujeitos-femininos na Gastronomia, produzindo memórias que, esperamos, serão retomadas e ressignificadas em um futuro próximo.

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CAPÍTULO I

ANÁLISE DE DISCURSO: DISCIPLINA DE ENTREMEIO

O sentido não para; ele muda de caminho. (ORLANDI, 2007c, p. 13)

A Análise de Discurso de linha francesa foi desenvolvida por Michel Pêcheux e ressignificada, no Brasil, por Eni Orlandi, o que demanda destacar os deslocamentos e transformações realizadas na teoria. Em nossa pesquisa, centramo-nos na designação Análise de Discurso e não Análise do Discurso. Orlandi (2015) teoriza essa diferença e afirma que, no Brasil, os pesquisadores da área tendem a utilizar de para abranger o discurso como um todo, em suas diferentes formas, verbal e não-verbal, ao passo que o do parece nos condicionar a um único discurso, específico.

Orlandi (2015, p. 16), destaca que a Análise de Discurso trabalha “com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentido, enquanto parte de suas vidas”, a partir das diferentes posições-sujeitos que assume. A AD considera o “homem e sua história, [...] os processos e as condições de produção da linguagem, pela análise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam” (ORLANDI, 2015, p. 16). Isso faz com que o analista de discurso relacione a linguagem à sua exterioridade, caracterizando a AD em uma posição de resistência na ciência.

Ainda segundo Orlandi (2015, p. 20), esse campo teórico trabalha nos limites entre três disciplinas: a Psicanálise, Linguística e Marxismo, mas não pratica a interdisciplinaridade, pois isto seria utilizar-se delas como instrumento, ela

[...] interroga a Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a

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ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele.

Pêcheux e Fuchs (1997) concebem o quadro epistemológico da AD como constituído, também, por três áreas, entretanto, a Psicanálise, para os autores, atravessa e articula as três regiões do conhecimento, a saber

1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias;

2. a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo;

3. a teoria dos discursos, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos (PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p. 163-164).

Trata-se, portanto de uma disciplina de entremeio. Isso significa que ela é uma “disciplina não positiva, ou seja, não acumula conhecimentos meramente, mas discute seus pressupostos continuamente”, (ORLANDI, 2012, p. 23), atuando no campo da contradição entre disciplinas. A partir disso se pode dizer, também, que a Análise de Discurso possui um método de pesquisa que difere das disciplinas positivistas, tanto no que tange à metodologia, como no modo de conceber os sentidos, o sujeito, a história e o social.

Para a AD, “o sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou uma proposição por uma outra palavra, uma outra expressão ou proposição” (PÊCHEUX, 2014, p. 237, grifo do autor), remetendo à noção de metáfora, tão cara aos analistas de discurso. Para o autor, o sentido não reside na literalidade do signo linguístico, pois é o “efeito de uma relação no elemento do Significante” (p. 239), característica denominada por Lacan de metáfora, e é por meio dessa transferência que as palavras, os elementos significantes, passam a ser revestidos de sentido. Nesse campo disciplinar, o sentido não é fixado na “essência das palavras” (ORLANDI, 2012, p. 27) e também não é qualquer um, pois, para haver sentido, deve haver determinação histórica. Segundo Venturini (2009b, p. 234), “do lugar de onde olhamos o discurso, dizemos que na ordem do imaginário as palavras ‘falam sob outras palavras’” e remetem ao interdiscurso para significar na atualidade.

Os sujeitos, nessa perspectiva, estruturam-se na “distinção entre as duas figuras articuladas do sujeito ideológico, sob a forma da identificação-unificação do

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universal, de outro” (PÊCHEUX, 2014, p. 123, grifo do autor), o que faz entender que

o sujeito é constituído a partir de sua relação com o Outro, com a exterioridade que o interpela, ou seja, a ideologia. Trabalharemos melhor a noção de sujeito para a AD no tópico seguinte, em que apresentamos um breve panorama acerca da ideologia para nosso campo teórico.

Na Análise de Discurso, o social é constitutivo, diferentemente de outras teorias, como a sociolinguística, que admite o social no interior na linguística, atuando de maneira correlata. De acordo com Orlandi (2012, p. 27), “não há uma correlação entre a estrutura da língua e a sociedade, pois o que há é uma construção conjunta do social e do linguístico”. O discurso é, assim, definido pelo social, a partir de materialidades linguísticas e de processos discursivos, tornando-se produto da contradição em uma disciplina de entremeio.

Sobre a metodologia própria da Análise de Discurso, Orlandi (2015) reflete que a AD busca compreender como o simbólico significa, explicitando como a materialidade significante instaura gestos de interpretação entre sujeito e sentido. A interpretação se dá quando há mobilização de conceitos por parte do analista, norteado por suas indagações, pois são elas que farão com que diferentes analistas, ou o mesmo analista, mobilizem, também, diferentes conceitos. Para a autora, mesmo o dispositivo teórico sendo o mesmo, os gestos interpretativos variam, tendo em vista que o corpus, constituído pelos recortes realizados no arquivo a partir das regularidades, é que demanda que sejam mobilizadas determinadas noções e não outras.

O analista busca os efeitos de sentido a partir dos processos que instauram a discursividade, isto é, conforme Orlandi (2012a, p. 38) a supressão da exterioridade como ‘o fora’ da linguagem para que ela possa intervir na textualidade pelo funcionamento do interdiscurso. O recorte é, desse modo, um primeiro gesto

analítico do sujeito-analista, podendo-se dizer, então, que esse gesto está intrinsecamente relacionado ao sujeito, à sua inscrição em formações discursivas e ao inconsciente que também fala quando ele fala. O dispositivo analítico depende, também, da “questão posta pelo analista, a natureza do material que analisa e a finalidade da análise” (ORLANDI, 2015, p. 25).

Orlandi (2012b, p. 51) afirma, com base em Pêcheux, que a análise de uma materialidade acontece em três momentos: “parte-se da superfície linguística, passa-se ao objeto discursivo e deste para o processo discursivo” (p. 51). Trata-passa-se de um

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processo crescente relacionado aos esquecimentos. Assim, priorizamos o chamado esquecimento nº 2, da instância da enunciação. Este é o primeiro movimento, ou seja, aquele em que é feita a passagem de uma superfície linguística para um objeto discursivo. Disso demanda dizer que, dentro de uma formação discursiva, determinadas palavras e dizeres só podem ser aqueles e não outros. Já no segundo momento, em que ocorre a passagem do objeto discursivo para o processo discursivo, há o confronto com a ideologia, fazendo funcionar o esquecimento ideológico, em que o sujeito se vê como a origem do dizer. Em outras palavras

O primeiro momento, fundamental para a análise, nos põe em contato direto com a paráfrase. O analista passa da materialidade linguística para o objeto discursivo porque faz o gesto mínimo que é o de inserir o dizer no domínio da paráfrase, ou seja, estabelece a relação do dizer com outros dizeres. [...]. Se a operação parafrástica é que permite o primeiro passo, a continuidade só pode se dar pela introdução de um novo procedimento analítico que é aquele em que se apreende a metáfora (transferência). Ela permite observarem-se os deslizamentos, as derivas, que, dando visibilidade à historicidade, permitem compreender o trabalho da ideologia (ORLANDI, 2012b, p. 51).

Nessa perspectiva teórica, o gesto de interpretação, na Análise de Discurso, realiza o seguinte percurso: relaciona o texto ao discurso, o discurso às FD’s e as FD’s à ideologia, permitindo ao analista e ao leitor, posteriormente, “acompanhar o trajeto em que se estabelecem os sentidos e os sujeitos pela inscrição da língua na história” (ORLANDI, 2012b, p. 51). Diante disso, é importante destacar que o objeto é analisado a partir de um texto ou de sequências discursivas que são recortadas de acordo com a relevância no discurso em análise e atendem à necessidade de argumentar e contribuir para a análise do corpus.

Partindo desse primeiro gesto, entramos, efetivamente, nos dispositivos teóricos-analíticos da Análise de Discurso. O dispositivo teórico parte da teoria mobilizada para as análises, a qual funciona no entremeio de outras disciplinas, como a História, Sociologia, Antropologia. Já o dispositivo analítico é construído pelo analista dentro de sua linha de pesquisa e leva em conta, segundo Orlandi (2012b, p. 52)

[...] a questão que ele formulou, o material coletado (superfície linguística), a maneira como foi construído o objeto discursivo a partir do corpus constituído, a delimitação e montagem do material de análise, as noções que vão ser mobilizadas, orientadas pela pergunta que faz o analista na compreensão de seu objeto de estudos, em vista de sua finalidade.

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Com base nas condições enumeradas por Orlandi (2012b), há o gesto de interpretação do analista, materializado em sua escrita, determinando por meio do dispositivo analítico as noções que dão suporte e ancoram as análises. É por meio desse dispositivo que os resultados serão formulados em um constante movimento de análise e retorno à teoria, descrição e interpretação, similar ao movimento pendular. É importante salientar que diferentes olhares, partindo de diferentes campos teóricos podem produzir, também, diferentes interpretações, pois se deve levar em conta o dispositivo analítico mobilizado.

Petri (2013) destaca que o movimento pendular é imperfeito e imprevisível, já que, ao transitar entre teoria e análise, o pêndulo perpassa “de diferentes maneiras os elementos constitutivos do corpus, com suas opacidades, com suas resistências, com suas porosidades, com sua densidade, com sua incompletude constitutiva” (p. 47). Assim, para a autora, há uma posição inicial de análise, mas não há “garantia de chegada”.

O analista de discurso, portanto, utiliza-se do dispositivo analítico da teoria, realiza o movimento pendular, isto é, faz o movimento de ida ao corpus e de retorno à teoria (e vice-versa), tendo em vista que o trabalho analítico se dá entre a descrição e a interpretação. Com isso, organiza a interpretações em forma de análise, a qual pode ou não, dar consistência à sua escrita voltada ao interlocutor, que como sujeito, é igualmente interpelado pela ideologia e atravessado pelo inconsciente e realiza suas próprias interpretações.

Esse campo disciplinar busca pelos mecanismos da interpretação como parte de um processo de significação, isto é, a AD não procura um sentido verdadeiro, único de interpretação. Trabalha com método, com dispositivo teórico e analítico, com gestos de interpretação constituintes do texto e que se fazem compreensíveis ao analista por meio dos dispositivos teóricos e analíticos. Em outras palavras, “a Análise de Discurso não interpreta os textos que analisa, mas sim os resultados da análise de que esses textos constituem o corpus” (ORLANDI, 2012b, p. 32).

Ao tomar discursivamente a linguagem, a pesquisadora afirma ser difícil traçar limites entre paráfrase e polissemia. Por paráfrase, entende a repetição do que vem como memória, como interdiscurso, considerando que em todo dizer há algo que se mantém, que retorna aos mesmos espaços de constituição. Podemos dizer que, por meio dos processos parafrásticos, produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. No entanto, mesmo as palavras sendo

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outras, o sentido não se mantém, tendo em vista que as palavras, ainda segundo Orlandi (2015), não são indiferentes aos sentidos.

As paráfrases instauram redes de sentido, que se estruturam pelo que se repete. A polissemia, entretanto, desloca, rompe os processos de significação, joga com o equívoco. A autora, em relação a isso, destaca que “se o real da língua não fosse sujeito a falha e o real da história não fosse passível de ruptura, não haveria transformação, não haveria movimento possível, nem dos sujeitos nem dos sentidos”. (ORLANDI, 2015, p. 37).

Esses pressupostos referendam que “a incompletude é a condição da linguagem”, ou seja, nem sujeitos, nem sentidos, nem discursos “estão prontos ou acabados”, estão sempre em construção por meio de um movimento constante do simbólico e da história.

1.1 Dispositivo teórico-metodológico: a constituição do arquivo e do

corpus

As materialidades que estruturam o corpus de nossa pesquisa foram recortadas da mídia especializada em Gastronomia. Mais especificamente, de capas de revistas, doravante denominadas “texto-imagem” (VENTURINI, 2012, p. 144), que funcionam a partir de enunciado-imagem, como espaço interdiscursivo. Isso porque, uma mesma imagem quando passa a funcionar em outro espaço, pode significar diferentemente pelo funcionamento da memória.

O corpus constitui-se de revistas da Gastronomia que circularam entre 2008 e 2016. O critério de delimitação temporal deve-se ao fato de que, por volta do início da década de 2000, a Gastronomia passou a ter visibilidade como prática sócio-histórica e os sujeitos-masculinos, na posição-sujeito de liderança, rompem a estabilidade ao serem valorizados por estarem na cozinha, enquanto que os sujeitos-femininos, na mesma posição, foram naturalizados no ambiente, dando destaque aos primeiros.

Inicialmente, havíamos selecionado oito textos-imagens de duas determinadas revistas, sendo cinco textos-imagens com representações dos sujeitos-masculinos e três com representações dos sujeitos-femininos. Porém, enquanto buscávamos materialidades para análise, deparamo-nos com

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textos-imagens de outras publicações da área, e até mesmo de outras áreas, que nos despertaram a atenção, o quê nos permitiu construir um arquivo com vinte e seis materialidades. Percebemos que as revistas especializadas representavam os sujeitos-femininos de maneira muito semelhante, por isso ampliamos nosso corpus discursivo para treze materialidades retiradas de cinco revistas.

Vimos que o discurso dado pelos textos-imagem sinaliza para a repetição, a qual entendemos como memória constituída por redes parafrásticas, o que foi determinante na constituição de nosso arquivo. Dentre as regularidades, destacamos os sujeitos-masculinos descritos como “reis” e “mestres”, além das representações imaginárias que encaminham para a virilidade e para a dominação. Já a representação imaginária dos sujeitos-femininos é menos recorrente e em menor número e a construção desses sujeitos, na maioria das vezes, ocorre por meio de adjetivos que reforçam sentidos ligados à beleza. A partir do arquivo, construímos nosso corpus, observando as regularidades encontradas nas representações dos sujeitos masculino e feminino, tendo como fio condutor o gênero.

Como dissemos, recortamos treze materialidades retiradas de cinco revistas especializadas disponíveis na rede mundial de computadores. Para realizar nossas análises, dividimos as materialidades em quatro grandes grupos levando em consideração as regularidades nelas encontradas. Os grupos foram alicerçados da seguinte maneira:

I) “Imaginário e representações do sujeito-mulher: regularidades e equívocos”. Nesse primeiro grupo, destacamos as materialidades que trazem os sujeitos-femininos, enquanto objeto de análise, permeada por discursos e imaginários que instauram efeitos de sentido, pelos quais ressoam memórias ligadas à normalização do sujeito-feminino no ambiente da cozinha. Encontramos respaldo teórico na própria História Geral, escrita por e para os homens, silenciando vozes femininas; adentramos no campo dos estudos de gênero para trazer à tona a construção social da masculinidade e da feminilidade; e costuramos nossas análises por meio do escopo teórico da AD.

II) “Sujeitos-masculinos: representação de força, sucesso financeiro e competência”. Nesse segundo grupo, o maior de todos devido à significativa quantidade de materialidades que apresentam homens enquanto objeto de análise, vemos regularidades que reforçam o imaginário relacionado à virilidade, ao poder e

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ao sucesso. Buscamos a história do homem na formação da gastronomia, o que não é difícil encontrar, já que, como dissemos, “a história é deles”; entrelaçamos com os recentes estudos acerca da virilidade; e amarramos, mais uma vez, com os pressupostos da AD.

III) “Cozinha e nacionalidades”. No terceiro grupo, trazemos materialidades que representam o chef estrangeiro na formação brasileira. Nesse grupo, representados, mais uma vez, por homens, vemos como memória e imaginário trabalham na constituição do estrangeiro no Brasil, por ora, valorizados. Voltamos à história da Gastronomia no Brasil e vemos a chegada dos chefs estrangeiros no país e os sentidos que a eles foram atribuídos; não deixamos de seguir o viés do gênero; e trabalhamos com a AD.

IV) “O corpo em discurso e a Gastronomia”. Por fim, no quarto e último grupo, apresentamos materialidades que jogam com o corpo feminino e masculino, reforçando ou não, a naturalização da mulher no espaço da cozinha. Nesse grupo, percebemos como o corpo é relacionado aos alimentos e quais efeitos as representações pesquisadas provocam no sujeito leitor. Buscamos estudos acerca do corpo na Filosofia, na Psicanálise, no discurso religioso e no campo teórico da AD para compreendermos como o corpo é entendido na contemporaneidade.

As revistas selecionadas circulam no meio gastronômico brasileiro, algumas nacionalmente, como a revista Go Where Gastronomia, Go Where Vinhos e a revista

Adega, enquanto outras ficam mais restritas ao eixo Rio-São paulo, porém sem

deixar de ter alcance nacional dentro do nicho de mercado a que se destinam. São elas: revista Eatin’ Out e revista Caviar. Consideramos necessário explicar nossa escolha por essas revistas e não por outras mais conhecidas, como, por exemplo, a revista Gula, referência nesse meio, e as revistas Menu e Prazeres da Mesa.

Os critérios para constituição do corpus de pesquisa foram: i) capas de revistas;

ii) que contivessem pessoas;

iii) ou sequências discursivas que nos permitissem efetivar as análises. Encontramos, nas revistas selecionadas, elementos passíveis de análise. Já nas demais revistas, embora tenhamos efetuado extensa pesquisa em edições anteriores, raras vezes encontramos pessoas na capa ou elementos suficientes que passassem pelo filtro do gênero e nos permitissem análise. Essas revistas voltam

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seus olhares ao verdadeiro protagonista do meio gastronômico: o alimento transformado em arte, conceito e cultura.

A ampliação do corpus aliada ao intervalo temporal em que nossas materialidades estão inseridas nos proporcionou mais um enfoque de pesquisa que desenvolvemos em nossas análises: pudemos verificar como se davam as representações dos sujeitos há cerca de dez anos e como se dão essas representações na atualidade, o que nos permite obter elementos que evidenciem, ou não, a construção e permanência dos efeitos de sentido que consolidam o simulacro e o acontecimento sócio-histórico que aqui investigamos.

Por fim, reiteramos a partir de Orlandi (2001), que a Análise de Discurso não possui um modelo fechado e estanque de análises. Dispõe de dispositivos, teórico e analítico que auxiliam o analista de discurso a fornecer ao leitor meios para que o próprio leitor compreenda os discursos que o cercam, em um movimento constante de leitura e interpretação, como um pêndulo. Isso porque a Análise de Discurso atua no entremeio de diferentes domínios, buscando por lacunas e falhas deixadas por essas áreas, problematizando-as, enfatizando os processos ao invés dos resultados e discutindo os efeitos de sentido que permeiam os discursos.

1.2 Dispositivo teórico-analítico

O dispositivo teórico-analítico se constitui a partir do corpus, pois é ele que de certa forma ‘reclama’ determinados conceitos pelos quais se pode analisar o que escapa às regularidades do discurso. Assim, mobilizamos a ideologia, que reclama noções como: sujeito, interpelação, desdobramentos do sujeito, modalidades de identificação, formação discursiva. Vale destacar que precisamos dar atenção especial à memória, tendo em vista que buscamos saber que discursos retornam no discurso sobre a gastronomia e que memórias sustentam esse discurso.

Com isso, o ponto de partida é sempre Pêcheux e, no Brasil, Orlandi, do que demanda a abordagem de noções como interdiscurso, memória discursiva em relação à formação discursiva. Além disso, lançamos mão do conceito enunciado-imagem, tendo em conta o funcionamento dos textos-imagens pela memória.

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1.2.1 Forma-sujeito: transformações e permanências

Nesse tópico, abordamos a transição entre o discurso da formação ideológica religiosa dominante, especificamente o discurso da formação discursiva católica e sua forma-sujeito religiosa, para a passagem para o discurso da formação ideológica capitalista, funcionando na formação discursiva jurídica em que se constitui a forma-sujeito de direito. Tal transição, de acordo com Pêcheux (2015), pode ser interpretada como um acontecimento discursivo. Aracy Ernst (1991, p. 17) afirma que

[...] a emergência do sujeito de direito responsável por suas ações, ao qual a história foi atribuindo direitos e deveres, está diretamente vinculada à emergência do Estado, pois com o enfraquecimento do poder religioso frente ao poder do Estado, instaura-se uma política de subjetividade. Assim, o sujeito religioso, totalmente submisso à ideologia cristã, cedeu lugar ao sujeito-de-direito, imposto pelas modificações econômicas do século XIII – passou-se de uma economia rural de subsistência a uma economia rural e urbana – que trouxeram em seu bojo a idéia [sic] de lucro. O comércio sedentarizou-se, ocorreu o progresso da instrução e da composição escrita com o consequente avanço do aparelho jurídico, uma vez que os artesãos, mercadores e camponeses começaram a reivindicar seus direitos e liberdade. Todavia, a ideologia jurídica, que se estabeleceu, instalou uma ambiguidade no sujeito, pois, concomitantemente, percebe-se, ele, como ser único, senhor e responsável e é percebido como parte de uma massa uniforme de sujeitos assujeitados, que se iludem achando que são iguais.

Orlandi (1990) afirma que o homem da Idade Média era submetido à Igreja por meio do amor a Deus e que, com o surgimento da formação capitalista pós Revolução Francesa, esse Deus é substituído pelo amor à pátria e ao dever do cidadão. Nesse sentido, as ideias acerca do corpo também são, inicialmente, submetidas ao discurso religioso, as quais com o início do capitalismo passaram por significativas transformações.

Há, no discurso religioso uma espécie de discurso fundador (ORLANDI, 2001), em que um ser superior, Deus, criou o céu, a Terra, o mundo, os seres vivos, o homem, e a partir dele a mulher, à imagem e semelhança desse ser superior. Dessa forma, utilizando o processo de dedução, entendemos que se homem foi criado “à imagem e semelhança”, então Deus é habitante de um corpo humano, que é aquilo que vemos no outro. Essa seria a primeira referência feita ao corpo no discurso da formação discursiva católica, dentro da formação ideológica religiosa.

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Em outro momento do discurso religioso, a mulher é “criada” a partir de uma costela do homem. Sobre essa ocorrência, Rosely Machado (2006, p. 10, grifo da autora) afirma que

[...] ao perceber Adão solitário por não encontrar um par entre os animais, Deus forma de sua costela uma criatura viva diferente: a mulher. Então, eis que temos a instauração do diferente na figura de Eva: do um, do mesmo

surgiu o outro, o diferente.

Além disso, ainda segundo a autora, é a mulher, por meio de sua desobediência, quem induz o homem ao pecado e à consequente expulsão do paraíso criado por Deus. Essa passagem dá visibilidade ao modo como o discurso de dominação do homem em relação à mulher é parte da constituição da ordem social, pois o discurso religioso, embora suprimido pelo discurso jurídico, ainda tem seus saberes naturalizados. Assim, discursos relacionados à superioridade masculina e à submissão feminina são formulados, circulam, são repetidos e produzem o “efeito de memória” (INDURSKY, 2003), em que os sentidos são atualizados e ressignificados na formação social.

Avançando um pouco no tempo, podemos ver que a transição do discurso religioso para o discurso jurídico encontra precedentes no século X, pois, como citado acima, em Ernst (1991), o poder da Igreja foi enfraquecido com a transição de uma economia de subsistência para uma economia com ideia central ancorada no lucro. Segundo Claudine Haroche (1992), as relações sociais, a partir desse novo modelo econômico, foram ressignificadas, pois uma nova classe trabalhadora bradava por igualdade de direitos, fundamentando o aparelho jurídico que formou o sujeito-de-direito, aquele que é responsável por seus atos, com direitos e deveres.

É válido observar que a forma-sujeito deixa de ser submetida à lei divina e passa a submeter-se à lei dos homens, criando a ilusão de autonomia do sujeito. Ainda segundo Haroche (1992), a transição da sujeito religiosa para a forma-sujeito jurídica trouxe importantes questionamentos quanto ao poder da Igreja. Destacamos a contradição entre fé e razão, entre a origem divina e humana dos saberes. No discurso religioso da Idade Média, tais questionamentos eram inexistentes, pois só havia uma forma de sujeição, a religiosa e, consequentemente, não havia contradição entre sujeito e saberes. Já no discurso jurídico, o sujeito

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acredita em sua autonomia, em sua racionalidade, sendo, portanto, capaz de contestar saberes anteriormente naturalizados.

Sobre a forma-sujeito jurídica, Orlandi (2007b, p. 14) diz que “não se trata de questionar, mas de entender para se submeter”. Tal forma-sujeito, e seu consequente assujeitamento, estabelece uma relação entre o direito e o saber, pois “o direito ao saber, à inteligibilidade, à curiosidade, à abertura, em resumo, todos nascidos da troca e da expansão econômica” (HAROCHE, 1992, p. 84).

Louis Althusser (2008, p. 270) sinaliza que a Revolução Francesa tinha como um de seus objetivos a “transferência do poder de Estado da aristocracia feudal para a burguesia capitalista-comercial”, além do ataque à Igreja enquanto Aparelho Ideológico de Estado3. A partir disso, houve a “constituição civil do clero, a confiscação dos bens da Igreja e a criação de novos aparelhos ideológicos de Estado para substituir o aparelho ideológico de Estado religioso no desempenho de seu papel dominante”, ainda de acordo com Althusser (2008, p. 270). Como resultado, os sujeitos, inconscientemente, mudaram a interpretação da formação social, pois o teocentrismo foi deixado de lado, dando lugar ao logocentrismo.

Orlandi (2007b) referenda que a forma-sujeito jurídica é constituída por um equívoco, pois o sujeito é interpelado pela ideologia capitalista e crê possuir autonomia, unicidade e liberdade. Esse sujeito é ao mesmo tempo individuado pelo Estado e por uma memória, à qual não tem acesso, sendo, portanto, determinado pela formação social e pela história.

Neste tópico, abordamos a transição da sujeito religiosa para a forma-sujeito jurídica, que é a forma-forma-sujeito da contemporaneidade. Em meio ao conceitos abordados, tratamos brevemente do corpo na concepção religiosa, resgatando memórias bíblicas que significam o corpo feminino como proveniente, dependente do corpo masculino para existir4. Vemos, assim, a formulação e a circulação de discursos de dominação e de subordinação do corpo feminino, tratado como complemento do corpo masculino. Tal apontamento vai de encontro ao nosso objeto de estudo, visto que, em nossas materialidades, há a objetificação do corpo feminino, pois, na mesma posição-sujeito, o feminino é disposto a serviço do

                                                                                                               

3 Trabalharemos os Aparelhos Ideológicos de Estado no tópico “Ideologia, sujeito, identificações”.

4 Voltaremos a tratar do corpo, focando as concepções filosóficas e discursivas, no capítulo 3, tendo em vista que o corpus demanda maior aprofundamento.

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homem, enquanto o masculino é valorizado por suas capacidades subjetivas e objetivas.

1.2.2 Ideologia, sujeito, identificações

Por meio da dialética, em que o conhecimento se transforma em prática que, por sua vez, modifica o conhecimento, é que Pêcheux (2010), ancorado em Althusser, concebe e teoriza a Análise de Discurso. Ao reler Marx, Althusser entendeu que teoria e prática eram indissociáveis e que a ciência nada mais é que uma prática política. Dessa maneira, intervenções práticas provocam reflexões teóricas e é esse o trabalho da AD, trazer a teoria às práticas por meio de questionamentos sobre os processos de naturalização de sentidos, instaurando e promovendo a ruptura e deslocamentos no eixo das repetições dos dizeres

Com Althusser (1978) há destaque para a importância da Psicanálise e do Materialismo Histórico para a AD. Segundo o autor, essas teorias, já ditas científicas, ocupam espaços, entremeios até então destinados às ideias da ideologia burguesa e, dessa maneira, provoca, instiga o aparelho linguístico na busca de contradições que constituam os processos de significação.

Entretanto, apesar do caráter questionador e resistente da AD, há grande dificuldade em não se submeter a mecanismos de controle instaurados por meio de superestruturas jurídico-político-ideológica. Isso devido ao assujeitamento à ideologia e ao atravessamento do inconsciente. Sobre esse aspecto, Althusser (2008) retoma Freud e afirma que assim como o inconsciente, “a” ideologia, de forma geral, não tem história: ela é eterna, onipresente, e “as” ideologias têm, cada uma, sua própria história determinada pela luta de classes. Ele diz, ainda, que não há ideologia dominante. Há ideologias funcionando dentro de uma mesma formação discursiva, instaurando o que Zandwais (2008) chama de contradição.  

Na AD, esse processo é designado de formação discursiva (FD), sobre o qual Pêcheux (2014, p. 26) afirma

Parece ser crucial afastar a ideia, tanto sedutora quanto falsa, de que as ideologias dominadas, por não serem o simples reflexo inverso da ideologia dominante, constituiriam espécies de germes independentes: elas nascem no lugar mesmo da dominação ideológica na forma dessas múltiplas falhas e resistências, cujo estudo discursivo concreto supõe abranger o efeito do

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real histórico que, no interdiscurso, funciona como a causalidade heterogênea e, ao mesmo, tempo, o efeito do real sintático, que condiciona a estrutura internamente contraditória da sequência intradiscursiva.

Podemos, assim, verificar como ocorrem os processos de significação atuantes nos processos de subjetivação, em que é essencial a presença do outro dentro do um, em termos de ideologias, pois essa presença evita a total repressão e, consequentemente, evita a possibilidade de revoluções dentro do um.

Pêcheux (2014) traz a noção de interpelação ideológica, em que a inscrição em determinada FD ocorre de maneira inconsciente e se dá por meio da infraestrutura, isto é, da instância econômica e social, ao passo que o esquecimento dessa inscrição se dá por meio da superestrutura, da instância jurídico-política-ideológica. Em outras palavras, “o EGO, isto é, o imaginário no sujeito [...], não pode reconhecer sua subordinação, seu assujeitamento ao Outro, ou ao Sujeito, já que essa subordinação-assujeitamento se realiza precisamente no sujeito sob a forma

da autonomia” (PÊCHEUX, 2014, p. 149, grifo do autor).

Retomando o pensamento de Althusser, o indivíduo se transforma em sujeito por meio de um processo de interpelação ideológica, de sujeição à História, em que o homem não é onipotente, a fonte de seu saber. A ideologia está, assim, intrinsicamente relacionada à subjetividade, que Pêcheux (2014) designa de subjetividade não-subjetiva, em que o sujeito tem ilusão de autonomia. Duas teses de Althusser corroboram com essa afirmação: (a) só há prática por meio de e sob uma ideologia e (b) só há ideologia pelo e para o sujeito. Partindo dessas teses, há a formulação central de ideologia para Althusser: a ideologia interpela os indivíduos

enquanto sujeitos.

Maldidier, Normand e Robin (1972, p. 131) afirmam que as ideologias

[...] são forças sociais em luta: sistemas e subsistemas, comportamentos, fantasmas e imaginários sociais enquanto práticas inscritas nas realidades materiais, nas quais algumas pessoas podem servir mais que outras aos mecanismos da reprodução do assujeitamento ideológico.

Althusser dá suporte à ideologia, sinalizando que ela transita do mundo idealista para a existência materialista. Para ele a ideologia é a condição de existência dos sujeitos. Com o desenvolvimento do pensamento de Althusser de que

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a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos, o caminho é aberto para Pêcheux desenvolver o exame de evidência do sujeito e do sentido, propondo, assim, uma abordagem materialista do discurso.

Porém, apesar da interpelação ideológica do indivíduo enquanto sujeito, a ideologia não possui caráter negativo, pois não é compreendida enquanto representação deformadora da realidade. Para Althusser (2008), a ideologia faz parte das relações imaginárias com as relações reais sob as quais vivem os indivíduos, que interpelados em sujeitos, reconhecem suas “identidades”.

O sujeito tem sua “identidade” constituída por meio da interpelação ideológica e esse processo é plenamente realizado quando o sujeito passa a falar do lugar do “eu”. Entretanto, apesar do sujeito ideológico ser vinculado ao sujeito de direito (PÊCHEUX, 2014), sabemos que, em AD, essa “identidade” é passível de falhas, visto que o sujeito pratica a identificação em determinadas formações discursivas, e essas identificações deslizam, em virtude das identificações submetidas às condições de produção dos sujeitos.

Para entender melhor o processo de interpelação ideológica, sentimos a necessidade de abordar a estrutura social e os Aparelhos de Estado. Para Althusser (1978), a estrutura social é sustentada pela infraestrutura – a base econômica – e pela superestrutura – instâncias ideológica e jurídico-política. A hierarquia da estrutura social depende das condições históricas e dos lugares que ocupam no modo de produção as instâncias ideológica e jurídico-política. Essas instâncias constituem a superestrutura da estrutura social (DOSSE, 2007). Já na infraestrutura, a instância econômica, Althusser traz à tona os agentes de produção – a força de trabalho –, os instrumentos de produção, o objeto de trabalho e os detentores dos meios de produção, que reproduzem, ambos, força de trabalho e detentores dos meios de produção, o discurso ideológico dominante.

Ainda dentro do pensamento de Althusser (1978), há o processo de produção e reprodução das relações de produção. De um lado, está o Aparelho Ideológico de Estado (AIE), caracterizado por seu mecanismo ideológico de controle por meio de instituições públicas e privadas, responsáveis por transformar os indivíduos em sujeitos e, assim, regulá-los; e, de outro, o Aparelho Repressivo de Estado (ARE), que funciona por meio da violência, da repressão, inclusive física. O ARE define o Estado como “força de execução e de intervenção repressora” (ALTHUSSER, 2008, p. 260), em que estão inscritas práticas jurídicas, polícia, prisões, forças armadas,

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tribunais, o governo, a administração e o chefe de Estado. Courtine (2009) afirma que os aparelhos de Estado, AIE e ARE, asseguram o processo de reprodução das relações de produção.

Desse modo, fica evidente a intenção dos AIE e ARE de manter a reprodução de valores, seja ideologicamente ou repressivamente. Althusser (2008) afirma que as condições de funcionamento da infraestrutura são mantidas pela superestrutura, ou seja, esta reproduz valores produzidos por aquela.

Partindo desses pressupostos althusserianos, Pêcheux (2014) faz seus deslocamentos e considerações para atender ao campo teórico da AD. Pêcheux e Fuchs (1997) afirmam que o segmento do materialismo histórico importante para a AD é a ligação da superestrutura ideológica com o modo de produção capitalista, fator caracterizante da sociedade contemporânea. Outro ponto bastante relevante na teoria pêcheuxtiana consiste na materialidade linguística, enquanto elemento constituinte do processo de interpelação ideológica. Para Pêcheux (2014), as ideologias escapam à categoria de ideias e se inserem no mundo como forças materiais, pois, segundo o teórico, as ideologias constituem o sujeito e não têm origem nele. Orlandi (2007a) corrobora com Pêcheux ao afirmar que há a formação da forma-sujeito histórica quando o indivíduo é interpelado pela ideologia ao inscrever-se na língua.

Nessa direção, Pêcheux (2014) diz que os AIE são o lugar de realização da ideologia dominante e, ao mesmo tempo, o lugar e as condições das transformações das relações de produção. Contraditoriamente, são o lugar de reprodução e transformação devido à falha na infraestrutura, fato que culmina nas noções de

formação ideológica e formação discursiva (FD), pois são as FD’s que representam

a divisão da ideologia, permitindo o funcionamento da contradição na estrutura social. Nesse sentido, as formações ideológicas organizam as ideologias em formações discursivas, e estas, por sua vez, permanecem em constante relação conflituosa.

O imaginário, no entanto, é um efeito de evidência produzido pela ideologia dominante de determinada FD, ou seja, as representações, as formações

imaginárias dos sujeitos quanto a si mesmos e quanto aos outros resultam do

processo de interpelação ideológica por meio das formações ideológicas e das formações discursivas. Para Orlandi (2012, p. 30) as formações imaginárias “se constituem a partir das relações sociais que funcionam no discurso [...] Há em toda

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língua mecanismos de projeção para que se constitua essa relação entre a situação [...] e a posição dos sujeitos”.

Tais formações, segundo Courtine (2009, p. 49), “designam o lugar que o remetente e o destinatário atribuem a si e ao outro” e são determinadas pelo trabalho conjunto das formações imaginárias e das formações discursivas, Ernst (2007), destaca que o imaginário é forjado historicamente. Entretanto, Pêcheux (2014) traz a noção de falhas nos processos de identificação, o que afeta o trabalho das formações imaginárias, pois surgem diferentes representações além das esperadas, pois “as evidências imaginárias materializam-se no simbólico, que, por sua vez, é incompleto devido ao real; são nas lacunas da estrutura que deslocamentos de sentidos emergem e novas imagens surgem” (SILVA, 2012, p. 73).

A ideologia, para Pêcheux, articula-se com a economia e tem existência material. Por essa razão, se coloca no entremeio da relação entre o sujeito e suas condições, determinando os processos de subjetivação, e ganham existência pela atuação dos Aparelhos de Estado. Dessa maneira, Pêcheux (2014) afirma que as ideologias são feitas de práticas, não sendo, portanto, ideias sobre a inversão da realidade.

A interpelação ideológica promove dois efeitos de evidência constitutivos do sujeito, a saber: (a) esquecimento número 1, em que o sujeito se coloca como a fonte do dizer, sem, de fato, o ser; e (b) esquecimento número 2, em que o sujeito acredita que seu dizer só pode ser dito daquela maneira, e não de outra, pois “todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e sequências que nela se encontram em relação de paráfrase” (PÊCHEUX, 2014, p. 161).

Michel Pêcheux (2014) reformulou seu conceito de formação discursiva ao longo de seus estudos acerca da AD. Inicialmente, as FD’s foram concebidas como regiões do interdiscurso e entendidas como blocos fechados antagônicos, diretamente relacionados à ideia de interpelação ideológica plena, sem falhas, em que o sujeito permanecia plenamente assujeitado e sem caráter questionador. Entretanto, os aprofundamentos no percurso teórico-analítico da AD provocaram desdobramentos na concepção de FD, que entende-se, hoje, não possuir uma região do interdiscurso, mas sim organizar regularidades, calcadas em falhas, nos processos discursivos, o que confere à FD um efeito de “fechamento” da ordem do

Referências

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