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Masculinidades: hegemônica, subordinada, marginalizada e cúmplice

No documento Dissertação - Ana Carolina de Godoy (páginas 66-69)

2.2 R EFLEXÕES SOBRE O GÊNERO : MULHERES , FEMINILIDADE E A CONSTRUÇÃO

2.2.2 Masculinidades: hegemônica, subordinada, marginalizada e cúmplice

Os estudos envolvendo os homens e suas masculinidades são decorrentes de uma série de críticas, principalmente do feminismo, dos estudos gays e queer11, e de debates sobre relações de gênero. Referem-se, portanto, a essa gama de                                                                                                                

9 “Two fixed, static and mutually exclusive role containers”.

10 Tradução de gendered, palavra amplamente utilizada por Connell e pesquisadores de gênero. Utilizamos a definição “generificada/o” proposta pela tradutora da terceira edição de “Gênero: uma perspectiva global” (CONNELL; PEARSE, 2015) que, segundo a tradutora, indica “que uma pessoa, grupo, espaço etc. foi tocado ou passou pela rede de processos inclusos nas dinâmicas de gênero” (p. 18).

11 A teoria queer critica identidades fixas e binárias, heteronormativas, e provocou um boom nos estudos sobre lésbicas e gays cheios de sujeitos que falam e escrevem coisas a respeito de suas próprias vidas (CONNELL; PEARSE, 2015).

estudos que abordam criticamente os homens no contexto das relações de poder generificadas (HEARN, 2004).

No campo de estudos de gênero, o termo mais conhecido e utilizado para estudos acerca das masculinidades é masculinidade hegemônica, proposto por Connell (1985) ao dar visibilidade a esses estudos, os quais se tornaram necessários, tendo em conta os estudos feministas até então existentes. Segundo Connell e Messerschmidt (2005), o conceito de masculinidade hegemônica foi inicialmente proposto em relatórios de estudos empíricos sobre desigualdade social em escolas de ensino médio e em um debate sobre o papel dos homens na política trabalhista, ambos na Austrália. O projeto desenvolvido na escola forneceu evidências empíricas de múltiplas hierarquias, tanto em relação a gênero quanto a classes, entrelaçadas com projetos ativos de construção de gênero.

Esses princípios foram compilados em um artigo, “Por uma nova sociologia da masculinidade”12 (CARRIGAN; CONNELL; LEE, 1985, tradução nossa), que objetivamente criticou a literatura do “papel masculino” e propôs um modelo de múltiplas masculinidades e relações de poder. Por sua vez, tal modelo foi integrado a uma teoria sociológica sistemática de gênero. A partir daí, a “masculinidade hegemônica e feminilidade enfatizada”, em Gender and Power13, tornou-se a fonte mais conhecida sobre o conceito de masculinidade hegemônica (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2005).

Cabe ressaltar que o conceito de “hegemonia”, utilizado por Connell em “masculinidade hegemônica” é de cunho gramsciano com raízes marxistas, trazendo a dominação ideológica para o centro da discussão acerca de masculinidade e feminilidade. Connell refere-se a uma dinâmica cultural em que um grupo de pessoas afirma e sustenta a posição de liderança da formação social, que é estabelecida e mantida quando há uma correspondência entre o ideal cultural da hegemonia e o poder institucional. Hegemonia, portanto, é bem sucedida quando encarna e exerce o poder e autoridade. Pode ser intergeracional e, como tal, implica a exigência e existência de estruturas sociais e interações para a produção de uma posição dominante. A qualquer momento, a masculinidade hegemônica é elevada

                                                                                                               

12 “Towards a New Sociology of Masculinity”.

13 Connell, 1987. Optamos por manter o título original no texto por esta ser uma obra de grande importância e bastante citada nos estudos de gênero. Tradução livre: “Gênero e Poder”.

sobre as feminilidades e todas as outras masculinidades, legitimando o patriarcado e atribuindo aos homens a posição dominante (PITT; FOX, 2012).

O conceito de masculinidade hegemônica também foi influenciado pela psicanálise. Freud produziu as primeiras biografias analíticas masculinas e mostrou, no caso do “homem lobo”, como a personalidade adulta era um sistema sob tensão,

com contracorrentes reprimidas, mas não apagadas (CONNELL;

MESSERSCHMIDT, 2005). Na década de 1960, o conceito de “identidade de gênero” foi popularizado e variações no desenvolvimento de meninos foram mapeadas, especialmente aquelas ligadas à transexualidade. Ainda segundo as autoras, outros estudos englobando o leque de possibilidades no desenvolvimento do gênero, além da tensão e contradição dentro das masculinidades convencionais, foram desenvolvidos.

Enquanto a hegemonia refere-se à dominância cultural na formação social como um todo, dentro do quadro da ordem global do gênero existem relações específicas de dominação e subordinação entre grupos de homens. Na Austrália, segundo Susan Pitt e Cristopher Fox (2012), a posição exaltada que homens heterossexuais têm sobre homens homossexuais é um exemplo dessa dicotomia. Homens gays eram subordinados aos heterossexuais por uma matriz de práticas que posicionavam as masculinidades gays na parte inferior da hierarquia masculina. Geralmente, no interior das masculinidades subordinadas há uma indefinição simbólica dos limites com o feminino.

Culturas patriarcais interpretam os homens gays de maneira muito simples e rasa, pois, para essas culturas, homens gays carecem de masculinidade e são facilmente associados ao feminino, já que os opostos se atraem, e se um homem é atraído pelo masculino, então, certamente deve ser feminino de alguma forma, se não no corpo, então na mente. A homossexualidade, na ideologia patriarcal, é a junção de tudo o que não faz parte da masculinidade hegemônica e heteronormativa, é a ligação com o feminino, com o que não é masculino.

A subordinação refere-se a relações internas para a ordem do gênero. Já as

masculinidades marginalizadas são construídas, através do cruzamento de

estruturas sociais externas, tais como etnicidade e classes sociais. Essas estruturas, segundo Connell (1985), tornam-se parte integrante da dinâmica entre masculinidades. A marginalização é sempre relativa à autoridade hegemônica do grupo dominante. Connell (1985) cita como exemplo a masculinidade hegemônica

das classes médias anglo-australianas, mas podemos facilmente deslocar para nossa realidade brasileira.

No Brasil, assim como em grande parte do mundo, o exemplo de masculinidade hegemônica é o homem branco, de classe média e heterossexual. Tomando como base esse modelo, interpretamos que qualquer homem que fuja a tal padrão está, automaticamente, foram dos limites da masculinidade hegemônica, ou seja, está à margem da heteronormatividade e das estruturas sociais que definem a hegemonia local.

Há, também, a masculinidade cúmplice, em que o homem não se identifica plenamente com a masculinidade hegemônica, mas é beneficiado por ela. Assim, como a masculinidade subordinada, a cúmplice também se relaciona com a ordem interna do gênero. Definições normativas e idealizadas enfrentam o problema de que não há muitos homens realmente conhecedores dessas normas. A relação entre a masculinidade cúmplice e a hegemônica é uma forma de mostrar como um grande número de homens tem ligação com o conceito hegemônico sem personificar tal característica, pois permite que estes homens sejam beneficiados com os frutos do patriarcado sem os riscos associados ao mesmo (CONNELL, 1985).

Homens e mulheres apresentam extensas interações de compromisso ao longo da vida. Eles são alimentados por mulheres desde o nascimento e envolvem- se com elas em casamentos e relações parentais, podendo, inclusive ser gerenciados por elas. No entanto, apesar da aparente igualdade que ressoa pelo compromisso, os homens ainda são beneficiados com os dividendos do patriarcado. Conell (1985) sinaliza que as mulheres recebem menos pelas mesmas funções e os homens são beneficiados pelo trabalho não remunerado realizados por elas, destacando-se o trabalho doméstico e o desfrute de liberdades sexuais consideradas inadequadas para mulheres.

No documento Dissertação - Ana Carolina de Godoy (páginas 66-69)

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