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Gesamtkunstwerk. A utopia de Wagner.

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O Idealismo Romântico

15

Apolíneo e Dionisíaco

25

A Obra de arte do futuro

45

A Arquitectura de Wagner

59

Bayreuth Festspielhaus

parte ii arquitectura como totalidade

77 Arquitectura e Arte 109 Arquitectura e Sociedade 135 Arquitectura e Indivíduo

parte iii considerações finais

165 Considerações finais 183 Bibliografia 187 Índice de imagens

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A Gesamtkunstwerk, ou obra de arte total, tem as suas raízes ideológicas no Romantismo novecentista e, desde então, tem vindo a ser um conceito recorrente na prática artística moderna e, posteriormente, pós-moderna. Traduz-se, essencialmente, na procura de uma «verdade» da arte decorrente dos seus modos de integração ou imersão, e que segundo um princípio de totalidade estética, assevera, de igual forma, a ideia de uma complementaridade necessária entre a arte e a vida, entre a arte e a própria sociedade: a ideia da Gesamtkunstwerk é, então, simultaneamente artística, social, política e, sobretudo, moral.

Richard Wagner representa a apropriação histórica mais signifi cativa desta ideia, sendo que, em A arte e a revolução e A obra de arte do

futuro, enuncia os princípios da sua obra de

arte total que, na perspectiva do compositor, tinha a sua mais perfeita realização no drama

musical. Música, dança, poesia, pintura,

escultura e a própria arquitectura celebram a reunifi cação das modalidades artísticas, a qual decorre de modelos anacrónicos do passado, nomeadamente da Antiguidade. O ideal de futuro wagneriano ambicionava, assim, reinstaurar a cultura trágica dos helénicos, reinterpretando-a sob a forma do drama enquanto fórmula estética de

Th e Gesamtkunstwerk, or the total artwork, has its ideological roots in nineteenth-century Romanticism and since then has become a recurring concept in the modern artistic practice and later postmodernism. Th is means, essentially, a search of a true art, arising from its modes of integration or immersion, and that according to a principle of aesthetic totality asserts, similarly, the idea of a necessary complementarity between art and life, between art and society : the idea of the Gesamtkunstwerk is then simultaneously artistic, social, political and, above all, moral. Richard Wagner is the most signifi cant historical appropriation of this idea, and in

Art and Revolution and Th e Artwork of the Future, he sets out the principles of his total

work of art that, in view of the composer, had its most perfect realization in the musical

drama. Music, dance, poetry, painting,

sculpture and architecture itself celebrate the reunifi cation of artistic modalities, which stems from anachronistic models of the past, especially of Antiquity. Th us, the wagnerian ambition for the future reinstates the culture of the Greek tragedy, reinterpreting it in the form of drama as aesthetic whole. Th e Wagnerian criticism would focus heavily on the modern state and on the regulations of the new bourgeois society; Wagner

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totalidade sensorial. A crítica wagneriana viria a incidir fortemente sobre o Estado moderno e as instâncias normativas da nova sociedade burguesa; Wagner procurava, assim, estabelecer uma via de futuro para a arte e para a sociedade moderna, depositando, na comunidade dos homens do futuro, uma esperança utopista, imediatamente determinada pela ideia de «totalidade» em todas as dimensões da vida.

A Arquitectura contemporânea apresenta uma crise ideológica ou, se quisermos, ontológica; o distanciamento da arquitectura para com o indivíduo, em função de poderes externos e abstractos que passaram a regular a sua prática, não respeita à natureza essencial da própria disciplina. A arte do espaço pode promover um ideal estético que contemple todas as suas oposições, todos os seus paradoxos; em suma, um princípio de totalidade em todas as dimensões da prática arquitectónica. O indivíduo e a colectividade, o espaço ideal e o espaço real, a busca incessante da beleza e da harmonia entre o mundo natural e o mundo construído, podem surgir de um novo projecto de reunifi cação das artes, sob a alçada de uma Arquitectura, em estreita correspondência com o seu objecto primordial: a fi guração concreta de uma colectividade e da ordem propriamente humana no mundo.

sought, thereby, to lay a path for the future of art and modern society, depositing, in the community of the men of the future, a utopian hope, immediately determined by the idea of wholeness in all dimensions of life. Architecture features a contemporary ideological crisis or, if you will, ontological; the distance between architecture and the individual, as a function of external and abstract powers which now regulate the practice, does not comply with the essential nature of the discipline itself. Th e art of space can foster an aesthetic ideal that includes all its oppositions, all its paradoxes, in short, a principle of wholeness in all aspects of architectural practice. Th e individual and the community, the ideal space and the real space, the relentless pursuit of beauty and harmony between the natural world and the constructed one, can arise from a new project of reunifi cation of the arts “under the wings of

a great architecture”, in close correspondence

with its primary subject: the actual fi guration of a community and a properly human order in the world.

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A primeira recordação que tenho de Wagner1 remonta à minha infância e apresenta-se na

forma de um fugaz e intenso retalho de tempo, em que me permiti escutar uma grandiosa e heróica melodia. Escusado será dizer que depressa interrompi, deliberadamente, esse momento por pura incompreensão do que estaria, ali, a ser dito ou orquestrado, embora recorde uma afl ição palpitante e todo um aparato nervoso que, reconheço agora, me havia sido imposto. Foi este o momento em que ouvi, pela primeira vez, dois ou três

compassos do acto terceiro da sua tão aclamada e controversa Die Wälkure. 2

Encontro-me, neste momento, passado um aparente intervalo de eternidade, revisitando afl ições de que me senti.

Não querendo maçar mais o leitor com tão desinteressantes pessoalidades, avancemos para o tema deste ensaio cujo título, em aparência, pouco ou nada deve à arquitectura enquanto disciplina e temática primeira do meu percurso académico. Parecerá, porventura, impertinente assumir a utopia de Richard Wagner enquanto tema central de todo este esforço intelectual, tendo em conta a minha condição de aspirante a arquitecto, ou ainda, o precário conhecimento de que disponho no domínio da música; uma outra agravante, aqui, será o enorme problema musical-fi losófi co que a œuvre wagneriana pressupõe — que mantém, ainda hoje, uma acesa discussão no seio de críticos, músicos e fi lósofos — e cuja resolução não ousaria levar a cabo, por via de uma profunda consciência das limitações que me são próprias e de uma imperativa defi nição dos contornos e objectos que este breve estudo deve respeitar. Porém, seria redundante a tentativa de tratar o legado do compositor alemão sem atender ao papel inequivocamente singular que este representa para a arte e fi losofi a contemporâneas. Assim, adoptando

1 Ao longo desta dissertação o apelido Wagner será recorrentemente utilizado em referência ao

compositor alemão Wilhelm Richard Wagner.

2 Die Wälkure é uma ópera de Wagner, parte integrante da sua tetralogia Der Ring des Nibelungen.

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ideias que me são alheias, procuro, no domínio da fi losofi a e da estética, desconstruir e clarifi car alguns dos temas que compõem a obra wagneriana e, ao mesmo tempo, desmistifi car, para efeitos desta dissertação, a cerrada neblina que envolve o programa idealista de Wagner e a sua concepção de obra de arte total. Por outras palavras — e tendo por referência Alain Badiou —, o problema musical e fi losófi co que representa Richard Wagner resulta da conjunção de dois ciclos. O primeiro é um ciclo genealógico, cuja questão é inteiramente intra-fi losófi ca ou intra-estética, e que respeita à forma como o caso Wagner foi sendo construído, uma vez que não deriva directamente da sua obra, mas das ambíguas asserções que a mesma suscitou. O outro apresenta-se enquanto ciclo ideológico-político, necessariamente mais desgastado, marcado pela esteticização política que ele pressupõe, e ainda, pela correlação entre Wagner e as fundações do nacional-socialismo. A implicação de Wagner na questão antissemita é, seguramente, a principal crítica que ofusca a sua importância para a contemporaneidade e aquela que conduz a uma alienação generalizada relativa à sua música e produção teórica. Porém,

considerando que “uma obra de arte não é um acto político mesmo que ela não seja

totalmente estranha à ideologia”3, e que a morte de Wagner antecede em largos anos a

proliferação da epidemia nazi, não será irresponsável considerá-lo culpado da culpa de outros? Ou pior, invalidar o seu contributo para a história da música e da arte em geral por meio de tão tortuosas associações?

Com efeito, a imagem pública de Wagner tem vindo a ser sedimentada por conotações negativas e perniciosas, por vezes, completamente gratuitas. O opróbrio lançado ao compositor pela eterna martirização da questão semita, é uma condicionante que afasta qualquer tentativa de racionalização ou aproximação relativa ao seu legado.

Depressa nos apercebemos das difi culdades inerentes ao estudo da questão wagneriana, sobretudo no que respeita à defi nição daquilo que é, para todos os efeitos, o ponto focal da nossa dissertação: a Gesamtkunstwerk, ou obra de arte total. Se, por um lado, este estudo não pretende fundar uma outra posição pro-wagneriana, por outro, a fi gura de Wagner é de tal modo incontornável que a necessidade de a compreender — ainda que por meio de um certo fascínio ingénuo que me é intrínseco —, revela-se um processo fundamental na ambição de atingir um sentido plausível na aplicação deste conceito —

Gesamtkunswerk.

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Antes de qualquer aproximação ao signifi cado de obra de arte total, é fundamental ter presente que defi nir, com exactidão, este conceito não é tarefa exequível, sendo que estaríamos a negligenciar os fundamentos das inúmeras apropriações desta ideia, desde as suas origens no Idealismo Romântico ao papel infl uente que teve na posterior construção teórica modernista. Com efeito, a natureza deste conceito deriva de uma lógica intercambiável, inerente a uma constante transgressão de géneros e, porventura, a uma dissolvência de barreiras artísticas. Assim, apenas se vislumbra possível a enunciação dos seus contornos teóricos com base na análise de diferentes perspectivas historicistas, de modo a inferir daí as signifi cações que lhe são intrínsecas; a sua real importância na génese da arte moderna e, em última instância, a sua pertinência no delineamento de novos horizontes para a prática artística contemporânea.

Desde logo, impõe-se uma questão primordial: porquê elaborar um estudo acerca de uma utopia que foi revista vezes sem conta pelo espírito moderno e, posteriormente, pelo pós-modernismo? E, consequentemente, qual a pertinência dessa discussão nos dias de hoje? A obra de arte total e os seus pressupostos têm permanecido uma utopia desde Wagner, e apesar de existirem exemplos posteriores — tais como, o Expressionismo Alemão, o

De Stijl ou o Dadaísmo — que herdaram, por afi nidade, um espírito revolucionário e

social, claramente demarcado nas linhas gerais que Wagner defi niu para a obra de arte do futuro, a verdade é que a multiplicidade de dimensões em que Wagner manobra os seus parâmetros artísticos impedem uma conotação teológico-política redutora. O mesmo será dizer que o compositor não encerra em si mesmo as possibilidades imensas de tal concepção visionária, sendo imperativo uma análise cuidada e descomprometida da œuvre wagneriana de modo a tirar ilações para uma prática artística de futuro. A pertinência deste trabalho entende-se, precisamente, pela sua actualidade. Tendo presente a interdisciplinaridade que a utopia wagneriana pressupõe e, por outro lado, a

procura que a verdade artística coloca aos fundamentos humanos4 e sociais, podemos

identifi car claramente uma problemática que descreve um conjunto de fenómenos inerentes à prática artística contemporânea. A obra de arte total procura uma correlação

4 Richard Wagner descreve a obra de arte total, exaltando o diálogo harmonioso entre todos os seus

domínios, enquanto único modo de atingir, incondicionalmente, o retrato absoluto de uma natureza humana aperfeiçoada. Deste modo, apenas uma obra de arte que apele a todos os sentidos, é capaz de oferecer um completo entendimento da essência humana.

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entre as tradicionais formas de arte e outras concepções emergentes, adoptando uma postura crítica que entende um tempo de heterogeneidades e possibilidades múltiplas, consequentes de uma evolução tecnológica desmedida e de uma ausência de barreiras, próprias de uma sociedade global. Segundo Richard Wagner o papel da arte é o de criar uma nova mitologia: a arte enquanto expressão mais pura e verdadeira do homem, deve, em última instância, proporcionar à humanidade uma autoconsciência de si própria. Será, então, possível comprovar que o modelo enunciado em A obra de arte do futuro poderia, hoje, mais do que nunca, ser uma realidade e não uma utopia?

A tarefa a que me proponho assenta num entendimento geral do conceito de Gesamtkunstwerk — sem ter, aqui, qualquer ambição de um estudo exaustivo, que seria improdutivo nos parâmetros em que se desenvolve esta dissertação —, mantendo uma constante referência ao legado teórico de Wagner que, para todos os efeitos, se impõe enquanto formulação histórica de maior relevância desta ideia.

A interpretação da arquitectura como totalidade é o objectivo último deste ensaio, sendo que, para tal, procurarei defi ni-la enquanto disciplina artística, pela análise das dimensões essenciais que condicionam a sua multidisciplinaridade, assim como, o campo afecto à sua prática. Primeiramente, procurarei interpretar a crítica wagneriana à arquitectura novecentista e ao Estado moderno, considerando, de forma análoga, o teatro de Bayreuth, o qual se constitui um exemplo inaudito da apropriação wagneriana da arquitectura, no âmbito da apresentação da sua obra de arte total: o drama musical. O segundo momento desta exposição vislumbra a relação primordial que a arquitectura estabelece com a arte, com a sociedade e, em particular, com o indivíduo. A estas relações de força e interdependência, estabelecemos uma correspondência directa com os fenómenos de «totalidade» observados no empreendimento wagneriano, no sentido de procurar interpretar um ideal «total» em arquitectura, quer enquanto disciplina

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conceptual, quer enquanto realidade construída, ou seja, como ordem humana e

apolínea no mundo. O conceito de «totalidade» assenta assim numa série de antinomias

e oposições ontológicas que, em última análise, podem ajudar-nos a desconstruir o paradoxo primordial da arquitectura, através da inversão dos fenómenos de disjunção que, segundo Wagner, devem ser superados de modo a devolver a prática artística à vida e à sua natureza essencialmente colectiva.

Por fi m, faremos uma aproximação à realidade contemporânea de modo a perceber as razões do distanciamento entre a arquitectura e o indivíduo, e, ao mesmo tempo, compreender as possibilidades que o legado de Wagner podem induzir na prática concreta do artista e/ou arquitecto na fi guração sensível da ordem humana no mundo.

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O Idealismo Romântico

1

Numa primeira abordagem ao projecto artístico de Wagner, interessa inferir algumas

proposições fundamentais do idealismo alemão e observar os traços «romanticistas», facilmente reconhecíveis na œuvre wagneriana, para delinear a base moral e, se quisermos, ontológica, sobre a qual Wagner concebeu uma interpretação própria da

Gesamtkunstwerk, a qual viria a dar origem à sua proposta de obra de arte do futuro.

O movimento romântico1 entende-se, parcialmente, numa posição reaccionária à

revolução industrial, instaurando em simultâneo a revolta face à aristocracia social e à normalização política da era iluminista, rejeitando, sobretudo, a sua matriz científi ca assente na racionalização da natureza. Este espírito contestatário dos modos de uma sociedade que perde, gradualmente, o contacto com a sua verdadeira condição humana,

opunha-se, em essência, à tradição socrática2, que defi ne todo o pensamento ocidental

até meados do século XVIII.

Segundo Isaiah Berlin3, o Romantismo ataca gravemente os fundamentos de que

a virtude é conhecimento, ou seja, de que existe um mecanismo de compreensão da realidade, o qual torna possível ao homem saber de que modo orientar a sua acção. Esta asserção, à qual os românticos se vão opor veementemente, é defi nida por uma pretensa compreensão geral dos fenómenos, associada à formulação de um determinado

1 Isaiah Berlin afirmara, a respeito do Romantismo: “The greatest single shift in the consciousness of

the West that has occurred.” in conferência The roots of romanticism, D.C. National Gallery of art, Washington, 1965.

2 Relativa à filosofia ou método de Sócrates, que instaura o método indutivo e a concepção do

conhecimento ou introspecção enquanto fundamento de virtude. Pressupõe o processo da lógica e da dialéctica, ou seja, um diálogo que encontra o seu objecto na expressão consistente e clara de algo implícito a todo o ser racional. No fundo, o processo da ciência (socratismo científico).

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tipo de conhecimento, segundo o qual, devemos adaptar e, acima de tudo, doutrinar a existência humana.

“Th e romantic art is (...) a perpetual becoming without ever attaining to perfection. Nothing can plumb its depths (...) it alone is infi nite, alone free; its fi rst law is the will of the creator, the will of the creator that knows no law.” 4

O movimento romântico procura refutar a génese do conhecimento, sublinhando sobretudo a carência de um diálogo prolífero entre o indivíduo e o seu meio —

o seu universo natural5 — por sua vez, entendido numa dimensão metafísica,

fundamentalmente distante do socratismo científi co e dos modos de regulação da civilização moderna.

O renovado interesse no homem comum revela uma crença na bondade natural do ser humano, que vem sendo ostracizada por mecanismos do seu próprio arbítrio. Esta inadequação da humanidade para com a sua virtude essencial, aparente em todos os domínios da vida social, questiona a autenticidade das ideias e da sua objectualidade, ou seja, deve ser entendida, aqui, enquanto manifesto falhanço dos processos da ciência e da razão. A tese romântica é, em aparência, simples e pode ser expressa no preceito de que a realização individual é ditada pelos imperativos interiores à natureza humana. Para o efeito, o único modo de validação do conhecimento é intrínseco à força dos sentidos, das emoções e dos sentimentos; ou ainda, por via da intuição, em detrimento da dedução (analítica). O texto Th e oldest system program of german idealism6 manifesta

4 Kritische Friedrich-Schlegel-Ausgabe, ed. Ernst Behler, vol. 2, ed. Hans Eichner, Munich, 1967, p.

183, citado por ISAIAH BERLIN na conferência The roots of romanticism, D.C. National Gallery of art,

Washington, 1965.

5 Natureza própria do indivíduo celebrada na ênfase atribuída à imaginação subjectiva do artista. 6 Das Älteste Systemprogramm des deutschen Idealismus é o título de um manuscrito datado de

1796-97 e descoberto por Franz Rosenzweig em 1913; a sua autoria foi atribuída a Hegel, sendo que esta conotação provocou bastante cepticismo no seio de muitos investigadores hegelianos. Outras hipóteses de autoria seriam Hölderlin ou Schelling. Independentemente desta atribuição, este fragmento é sobrevalorizado como primigénio programa do idealismo alemão pela sua significação enquanto proposta, de intuito pedagógico, para transformação cultural de um povo; ou ainda, por uma demarcada veia de modernidade, na sua exigência e demanda de autonomia e resistência contra a fragmentação cultural, Cf. G.W.F.HEGEL, [Monoteísmo da Razão-Politeísmo da Arte] - O

mais antigo Programa Sistemático do Idealismo Alemão. Covilhã, Universidade da Beira Interior-Lusofonia: press, trad. Artur Morão, 2009, p.8.

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esta vontade de mudança radical pelo apelo à liberdade, pela clara oposição ao Estado, ao sistema eclesiástico e à própria tradição. Nele, sublinha-se ainda, “a noção do Eu

criador como ser auto consciente que se contrapõe à natureza (…) e o papel do homem enquanto mundifi cador que tenta instaurar a unidade da vida em todas as suas zonas e dimensões.” 7 O pensamento idealista apropria-se desta ideia latente “ de que o acto

supremo da razão, o qual inclui em si todas as ideias, é um acto estético; e que verdade e bondade só na beleza estão irmanadas.” Identifi camos aqui uma síntese estética em que

a arte é, em si mesma, sintomática de uma kátharsis8 social relativa à razão e à moral.

O sentido de uma ordem universal valida, de igual forma, a procura melancólica de um plano de imersão sensível, que pela veia poética, entende, em última instância, a subversão do isolamento do artista e a unifi cação de todas as artes.

O espírito romântico manifesta, de um modo geral, a exaltação do Sublime,9

experimentado apenas na conexão com a natureza. Tomando por base a exposição crítica de Isaiah Berlin, podemos elucidar esta relação que constitui de igual forma o contra-argumento romântico. Fundamentalmente, é-nos sugerida a ideia de que o universo não foi criado como um simples conjunto de factos ou mero padrão de eventos mas sim como um processo de perpétua auto-criação e auto-regeneração, tomado por uma força que subverte qualquer esforço humano no sentido de o contaminar, por via da razão e do arbítrio; a qual pode ainda ser entendida como adversa ao próprio homem. A essência do conhecimento é encontrada, não na assunção manifesta de um entendimento das coisas em si mesmas, mas na identifi cação, por parte do indivíduo, desse vasto processo

7 Ibidem, p.8.

8 Kátharsis, -eós, (catarse) entendido aqui no sentido aristotélico de uma «purificação» sentida pelos

espectadores durante e após uma representação dramática.

9 Kant define a experiência do sublime com a Natureza, na medida em que o homem estabelece uma

determinada relação com a mesma: essa Natureza que nos ameaça e aterroriza pela grandiosidade que se impõe ante as nossas limitações. O sublime na Natureza só existe no homem e para ele mesmo, sendo que esta relação pressupõe que o sujeito, em lugar de se sentir sobrecarregado, seja absorvido pelo objecto; na medida em que seja capaz de manter um distanciamento consciente em relação ao mesmo, contemplando-o e tornando-o parte integrante de uma mesma experiência estética. Esta é, em suma, a manifestação mais própria da arte, esta relação harmoniosa com a natureza, que se eleva além dos nossos limites, arrebata-nos pela sua grandiosidade e infinitude. Porém, nesta relação nada estremece e tudo na Natureza nos funde com o seu objecto. O sublime é, então, informal e espiritual. Cf. IMMANUEL KANT, Crítica da Faculdade do Juízo, 1ª ed., Porto: série

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auto-criativo e auto-organizacional, na deliberada conivência com ele, sem presumir, no entanto, uma compreensão do mesmo. Esta posição distancia-se do próprio processo, na medida em que não há o conhecedor e o conhecido; não há um sujeito e um objecto, existindo apenas a experiência subjectiva. Deste modo, temos a celebração do indivíduo e do seu processo criativo, ou seja, a legitimação da imaginação individual enquanto autoridade subjectiva (premissa fundamental da modernidade).

Considera-se que o acto criador é inerente à natureza humana e à sua condição primordial, geradora de valores, fi ns e objectivos. De igual forma, o homem deve criar a partir do «nada» sem fazer corresponder à obra de arte qualquer tipo de estrutura, preceito ou processo forçado. Por conseguinte, o núcleo do processo deve assentar na mais pura invenção, nos gestos mais espontâneos da manifestação inconsciente ou, em última análise, na aclamada subjectividade do indivíduo. Este princípio reafi rma a convicção freudiana de que o universo interior do indivíduo e a manifestação da vontade própria será sempre diferente daquele(a) que corresponde a outrém.

Isto signifi ca que a experiência do sublime, uma vez encontrada na ordem natural do universo, permite ao indivíduo aspirar a uma mesma sensibilidade ou força criativa, cuja possibilidade se pode constatar fora dele; no fundo, trata-se de encontrar em si os mesmos mecanismos de auto-organização e de auto-criação próprios da Natureza. A génese revolucionária do pensamento romântico irá encontrar no espírito wagneriano a fertilidade necessária ao desenvolvimento do seu ideal. O compositor assume na sua autobiografi a, o tédio que lhe inspira a tradição fi losófi ca ocidental: “as minhas primeiras

tentativas com a fi losofi a foram um fracasso completo. Nenhum dos professores de Leipzig havia conseguido prender a minha atenção com as suas aulas sobre os fundamentos da fi losofi a e sobre lógica.” 10 Mais tarde, Wagner, prosseguindo um impulso de necessidade,

procura na reconciliação com a fi losofi a um sentido para a sua condição de artista e para a própria arte, que carecia, ainda, de um estímulo teórico com o qual se

10 RICHARD WAGNER, Mein Leben (A minha Vida), vol. II, 2ª ed., Verlag F. Bruckmann, Munique 1915,

pp. 383, citado por José M. Justo no posfácio O tempo e o anel (Wagner, Feuerbach e o Futuro) in RICHARD WAGNER, A obra de arte do futuro, p. 255.

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confrontasse. É em leituras como Schelling11 ou Hegel12 que inicia estudos de natureza

mais historicista, porém, apenas em Ludwig Feuerbach13 encontrará esse estímulo tão

ambicionado, que viria a despertar-lhe um profundo interesse, quer pelo pendor trágico, quer pela tendência social-radical inerentes ao pensamento do fi lósofo alemão.

Contudo, importa, primeiramente, enunciar os pressupostos hegelianos para um entendimento cronológico do impacto idealista em Wagner. A síntese especulativa de Hegel trata a estética enquanto parte integral de uma grande sinfonia metafísica. A fi nalidade da arte é assim entendida, não apenas enquanto objecto último de prazer, mas como um meio de demonstrar, na esfera humana do sensível, a essência do divino, a qual em Hegel se refere a algo puramente racional e inteligível. A proposição hegeliana é a de que a obra de arte verdadeiramente bela manifesta essa transcendência da fi nitude humana, por meio de uma dinâmica racional e auto-consciente intrínseca ao próprio

universo. O contra-argumento romântico14 aqui implícito é o de que esta mediação

é possível apenas no recurso à percepção, e não por meio de uma síntese meramente conceptual. Desta forma, a beleza — manifestada corporeamente na obra de arte — é a apresentação perceptual do Absoluto, ou seja, da esfera divina e, como tal, ininteligível ao pensamento puramente conceptual e abstracto.

No entanto, reconhecemos em Hegel a primazia da fi losofi a e da razão relativamente à arte e aos seus modos perceptuais. A sua tese defi ne claramente a racionalidade auto-consciente enquanto força motriz do universo, tal como o ser humano é o princípio racional que dá força e movimento à matéria que o constitui. Podemos, então, inferir que a essência divina, em Hegel, — apesar da mediação activa da percepção artística — continua a ser refém do ente racional, não passando, portanto, de uma propriedade do pensamento. Da mesma forma, a indução do desenvolvimento cultural humano, que o fi lósofo propõe, coloca a expressão artística no patamar primordial, porém, na

11 FRIEDRICH WILHELM JOSEPHVON SCHELLING (1775-1854), filósofo e uma das figuras incontornáveis

do Idealismo alemão.

12 GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL (1770-1831), filósofo, considerado como a figura central

do Idealismo alemão. O espírito revolucionário do seu Idealismo absoluto torna-o referência fundamental do período pós-kantiano.

13 LUDWIG ANDREAS FEUERBACH (1804-1872), filósofo alemão, discípulo de Hegel e principal influência

de Richard Wagner na fundamentação ontológica de A obra de arte do futuro.

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sombra da religião e da fi losofi a, que considera a mais adequada expressão do Absoluto, pela sua actividade puramente discursiva e conceptual. A respeito da teoria hegeliana do

Absoluto, Wagner escreve:

“Quanto mais incompreensíveis me pareciam muitas das frases da síntese especulativa daquele poderoso espírito, espantosamente famoso, que me era elogiado como sendo a pedra de fecho da abóbada do conhecimento fi losófi co15, tanto mais me sentia estimulado

para ir até ao fundo do problema do «absoluto» e do que com ele se relacionasse.” 16

Tomado por essa linha de pensamento, é com alguma naturalidade que o compositor se deixa embeber no espírito feuerbachiano, cuja ousadia e vigor encontraram em Wagner um ávido entusiasta. Ludwig Feuerbach era, para ele, “um representante da libertação

radical e incondicional do indivíduo relativamente à pressão das concepções inibidoras próprias da fé na autoridade.” Por outro lado, como afi rma: “aquilo que, na realidade me determinara a atribuir a Feuerbach uma signifi cação que me era importante fora a decisão com que ele se distanciara do seu originário mestre, Hegel: designadamente a de que a melhor fi losofi a era não ter fi losofi a nenhuma (…); e de que, em segundo lugar, só é real o que os sentidos percebem.”17

15 Na sua teoria de desenvolvimento cultural, na qual Hegel identifica um processo de maduração

do ser humano e da civilização, — mediante três expressões primordiais: arte, religião e filosofia — está implícito um princípio de refinamento contínuo da capacidade de expressão do espírito humano; sendo que, todo esse processo pressupõe um culminar, ou seja, o momento em que o espírito se reveja no seu ponto máximo e absoluto, em que a totalidade se encontre perfeitamente racionalizada e auto-consciente. Esta ideia de fim, que Hegel de forma ególatra atribui à sua obra maior — Fenomenologia do Espírito, enquanto expressão máxima do pensamento filosófico —, enuncia, de igual forma, o fim da arte enquanto manifestação do espírito absoluto. Esta teoria encontra sentido na impossibilidade de uma compreensão mais estreita do ser humano relativa a si próprio, uma vez que o conhecimento do espírito atingiu já o seu estádio mais elevado. No entanto, devemos relativizar esta assunção de Hegel, na precisa medida em que é possível um incessante refinamento do conhecimento, fiel à complexidade do espírito humano e, como tal, capaz de se regenerar e configurar novos padrões do fenómeno estético; por outro lado, encontramos em Kant, um sistema alternativo que enuncia a total autonomia das questões cognitivas inerentes a este processo, revelando uma posição menos radical e, porventura, mais assertiva. Cf. G.W.F. HEGEL,

Fenomenologia do Espírito, vol. 1 e 2. Petrópolis: Vozes, 1988.

16 RICHARD WAGNER, Mein Leben (A minha Vida), vol. II, 2ª ed., Verlag F. Bruckmann, Munique 1915,

pp. 383 e ss., citado por José M. Justo in RICHARD WAGNER, A obra de arte do futuro, p. 255.

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Deste modo, Wagner acaba por fazer coincidir a sua apetência por uma fundamentação fi losófi ca, precisamente, na teoria que declara o valor nulo da fi losofi a. Feuerbach

manifesta, de forma clara, um distanciamento face à herança hegeliana18, ou seja, ao

idealismo absoluto do pensamento especulativo — que, de forma análoga, incorpora, segundo ele, uma outra forma do «absolutismo» teológico do passado. Esta negação da fi losofi a especulativa introduz, então, um novo programa que reconhece e eleva o «concreto» a objecto da fi losofi a.

“O fi lósofo tem que acolher no texto da fi losofi a aquilo que no homem não fi losofa, aquilo que pelo contrário é contra a fi losofi a, o que se opõe ao pensamento abstracto, ou seja, aquilo que em Hegel é somente remetido para nota de rodapé. Só assim a fi losofi a passa a ser um poder universal, sem oposto, irrefutável e irresistível. A fi losofi a tem, pois, que começar, não partindo de si mesma, mas sim da sua antítese, da não-fi losofi a. Esta essência em nós, distinta do pensar, não-fi losófi ca, absolutamente anti-escolástica, é o princípio do sensualismo.” 19

18 “O idealismo absoluto que não é outra coisa senão a realização do entendimento divino do teísmo

leibniziano, o entendimento puro sistematicamente levado a cabo, que todas as coisas destitui da respectiva sensibilidade, delas fazendo puros entes do entendimento, coisas do pensamento, e que, sem acometimento de nada que lhe seja estranho, apenas de si mesmo se ocupa, enquanto essência de todos os entes.” LUDWIG FEUERBACH, Op. Cit., 37: § 10, in L. FEUERBACH, Entwürfe zu einer Neuen

Philosophie, org. de W. Jaeschke e W. Schuffenhauer, Felix Meiner Verlag, Hamburg, 1996, citado por José M. Justo, Op. Cit., p.242.

19 LUDWIG FEUERBACH, Vorläufige Thesen zur Reformation der Philosophie, reed. 1842, in LUDWIG

FEUERBACH, Entwürfe zu einer Neuen Philosophie, org. de W. Jaeschke e W. Schuffenhauer, Felix

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Esta citação contém, implícitos, conceitos — em particular a experiência do sensível20,

ou seja, do sensualismo — que vão delinear o período teórico wagneriano de Zurique21,

nomeadamente A obra de arte do futuro, de assumida inspiração feuerbachiana. Esta é, seguramente, a produção teórica de Wagner que se reveste de maior importância para a defi nição dos contornos da obra de arte total, sendo que, a compreensão da intrincada recepção wagneriana de Feuerbach se revela imperativa para o entendimento dos fundamentos ontológicos presentes na sua produção crítica.

A ideia subjacente de que “a única imortalidade verdadeira só pode encontrar-se ou no feito

sublime, ou na obra de arte animada pelo espírito” captou, em defi nitivo, a atenção do

compositor. No fundo, a negação do pensamento abstracto da fi losofi a, pela exaltação dos sentidos, enquanto essência da percepção estética, valida produtivamente a tarefa a que Wagner se havia proposto: a “concepção de uma obra de arte capaz de tudo abranger

e de ser apreensível pela mais elementar sensação, puramente humana (…)”, ou ainda, a

apresentação do drama como “obra de arte do futuro capaz de dar realização a toda a

intenção artística.” 22

Deste modo, partindo de uma afi rmada insatisfação pelo carácter unilateral e separativo do espírito hegeliano, Wagner propõe uma refl exão acerca do processo de desarmonia e cisão artísticas, percorrendo a linha temporal que tem início no idolatrado modelo grego até à conjuntura do Estado moderno. O intuito de A obra de arte do futuro, com especial ênfase na dedicatória dirigida a Feuerbach, não é, de todo, ingénuo. Apesar do carácter

20 Em Fundamentos da filosofia do futuro (1843), Feuerbach elucida esta perspectiva afirmando

que “o real, na sua realidade ou, enquanto real, é o real enquanto objecto do sentido, é o sensível. Verdade, realidade, sensibilidade são idênticas. Só um ente sensível é um ente verdadeiro, real, só a sensibilidade é verdade e realidade. Só através dos sentidos um objecto é dado, no verdadeiro sentido. (…) Objecto dos sentidos não são apenas as ‘coisas’ exteriores (…), mas também o interior, não apenas a carne, mas também o espírito, não apenas a coisa, mas também o eu. Tudo é, pois, sensivelmente percepcionável (…)”, citado por José M. Justo, Op. Cit., p.240.

21 Período que se segue ao ano revolucionário de 1848, em particular à revolução de Dresden (Maio

de 1849), na qual Wagner participou de forma activa ao lado Mikhail Bakunine. Depois destes eventos é forçado ao exílio na Suíça, onde viria a desenvolver o que muitos consideram o seu período teórico de maior relevância, redigindo, entre outros, A Arte e a Revolução (1849), A Obra de Arte do Futuro (1849), Ópera e Drama (1851) e Uma Comunicação aos Meus Amigos (1851). Salientam-se, assim, estes quatro textos, que viriam a ficar conhecidos como os «ensaios de Zurique».

22 RICHARD WAGNER, Mein Leben (A minha Vida), vol. II, 2ª ed., Verlag F. Bruckmann, Munique,

(27)

ambíguo da sua exposição, na qual Wagner afi rma que o destinatário preferencial da sua obra é o «homem-artista» e, como tal, aquele que não pensa, dedica-o, enfaticamente, a Feuerbach, ao fi lósofo, no sentido de invocar uma infl uência mútua — por outras palavras, desejando estabelecer uma noção de complementaridade e dependência entre arte e fi losofi a, ideia, aliás, implícita na tese idealista pós-hegeliana. O compositor não admite, em circunstância alguma, que a refl exão que desencadeia em torno da ordem artística universal — se é que podemos apelidá-la desta forma —, deriva ou coincide com a perspectiva de Feuerbach; subentendendo-se, aqui, que uma refl exão acerca da arte não poderia representar uma mera aplicação de um dado objecto ou metodologia abstracta. A proposta latente indica, então, ao «homem-fi lósofo», a revisão do seu

pensamento23, à luz do entendimento do «homem-artista», atendendo que, nas palavras

próprias de Feuerbach, apenas no acolhimento da não-fi losofi a o pensamento fi losófi co pode tornar-se um poder irrefutável. Ora, é precisamente este o ponto da validação

argumentativa24 de Wagner, aquele que permite auferir o direito de reivindicação, por

parte do artista, da legitimidade da sua visão, da sua necessidade interna acerca da reunifi cação das artes e da centralidade da própria arte enquanto processo comunitário de construção do futuro.

Esclarecida a génese da cumplicidade wagneriana para com a nova fi losofi a de Feuerbach — e a correlativa rejeição da abstracção hegeliana —, impõe-se a defi nição das posições críticas, consonantes em ambos os autores, de modo a inferir a importância desta relação teórica na formulação da Gesamtkunstwerk de Wagner.

O primeiro fundamento feuerbachiano, articulado na recepção wagneriana prende-se,

assim, com a crítica do afastamento do logos25 puro — ou ainda, da essência divina —

do domínio sensível. O essencial, em Wagner, é a ideia de que o corpo é o lugar próprio

23 Por pensamento do homem filósofo, considere-se a realização prática desse mesmo pensamento,

neste caso, tida na obra de Feuerbach: Grundsätze der Philosophie der Zukunft (Fundamentos da filosofia do futuro) de 1843.

24 “Aquilo que, do ponto de vista da história da filosofia, é inegavelmente mais interessante é sobretudo

o facto de Wagner pressentir que o centro dinâmico da «filosofia» — como aliás de todo o pensar — poderá ser a «arte». Com uma condição fundamental: a de que a «arte» seja arte unificada, o que, (…) só pode acontecer com base na natureza radicalmente performativa das artes.” José M. Justo in RICHARD WAGNER, Op. cit, p.229.

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da verdade e da imediaticidade pela qual se alcança uma experiência estética (que nada deve ao arbítrio). No seguimento desta ideia, encontramos outro ponto que diz respeito à estreita afi nidade existente entre sentimento e sensação, atendendo, sobretudo, ao facto de que “tudo é sensivelmente percepcionável, designadamente a interioridade.” O último tópico — que me parece adquirir maior relevância — declara a visão de integralidade do ser humano, tanto individual quanto comunitária. Este princípio diz respeito ao carácter necessariamente comunitário e intersubjectivo da existência humana e, como tal, da sensibilidade e da verdade. Feuerbach afi rma que o idealismo falha, peremptoriamente, ao procurar no ente isolado a origem das ideias, sendo que “solidão é

fi nitude e limitação, comunidade é liberdade e infi nitude.” 26 De igual modo, encontramos

no fi lósofo uma profunda asseveração acerca da dualidade humana entre «pensar» e «viver»; ou seja, ele estabelece um princípio fundamental de correspondência entre aquilo que é o objecto da razão e aquilo que é o objecto da sensação e/ou sentimento. Este acabará por ser um argumento de discordância na interpretação wagneriana do fi lósofo, relacionada, também, com a adesão tardia do compositor ao pensamento de Schopenhauer (esta é uma discussão que procurarei desenvolver num momento posterior). Porém, o que mais importa conservar da tese feuerbachiana, designadamente no sentido antropológico de integralidade, é a signifi cação que Wagner infere a partir dela, nomeadamente no sujeito colectivo da arte e de futuro, assim como no carácter unifi cado da obra de arte total, ou Gesamtkunstwerk.

26 Cf. LUDWIG FEUERBACH, Entwürfe zu einer Neuen Philosophie, org. de W. Jaeschke e W.

Schuffenhauer, Felix Meiner Verlag, Hamburg, 1996, § 62, citado por José M. Justo, Op. Cit., p.224.

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(30)
(31)

2

Apolíneo e Dionisíaco

O Nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzsche, apresenta-nos um entendimento metafísico da existência, de predisposição essencialmente contramoral. Quer isto dizer que a sua tese assenta na proposição de que apenas pelo “ fenómeno estético se vê legitimada

a existência do mundo”, sendo a arte postulada como a “actividade propriamente metafísica do ser humano.” 1

A estética wagneriana precede e condiciona a priori o esforço do jovem fi lólogo, que aquando da escrita da obra se via envolto nas teias da infl uência hipnotizante do mestre

de Bayreuth.2 Não surpreende, portanto, o tom arrojado de tão delicado assunto, cujo

tratamento podemos apelidar de doutrinário, no sentido de impor como fundamentação ontológica o drama wagneriano.

A demanda «imoral» de Nietzsche encontra, portanto, na totalidade do signifi cado estético e metafísico que designa os termos apolíneo e dionisíaco, a sua motivação e o seu alento, no sentido de compreender a necessidade da Tragédia na cultura Grega e,

1 Nietzsche declara, no seu posfácio tardio, a anunciação de “um pessimismo «para além do bem e do

mal», […] uma filosofia que ousa colocar a própria moral no mundo do fenómeno, fazendo-a descer não apenas para o meio dos «fenómenos» (no sentido do terminus technicus idealista) mas para o meio das «ilusões», enquanto aparência, alucinação, erro, interpretação, arranjo, arte.”

2 Giuliano Campioni enfatiza a particular correlação entre o ensaio de Nietzsche e a produção

teórica de Wagner, nomeadamente Beethoven (1870) que exalta o génio de Beethoven, inserindo-o no movimento de defesa da afirmação cultural e política alemã. “O projecto nietzschiano desta fase está completamente ligado ao Wagner do Beethoven [...]. Todo o projeto de O nascimento da tragédia aponta na direcção de um renascimento de uma cultura orgânica (de acentuado carácter hierárquico) sobre a base estética afinada com a potência do encanto onírico visionário suscitado do génio musical, segundo a tese do Beethoven de Wagner [...]. O dionisíaco de Nietzsche contém, no centro, o tema da autonomia mágica da música do Beethoven.” Cf. GIULIANO CAMPIONI, “Wagner

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2.1 Dioniso. Reprodução romana de um modelo grego. séc.II a.C. 2.2 Apolo. Reprodução romana de um modelo grego em bronze. 330-320 a.C.

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consequentemente, clarifi car a génese mitológica do drama operático de Wagner. Este último é tido por Nietzsche como a mais elevada possibilidade de redenção artística do seu tempo, ao promover o regresso do espírito alemão ao plano originário da verdadeira cultura — podendo este renunciar à sua então presente condição apátrida — , tomando o caminho indiciado nas suas mais iluminadas realizações, nomeadamente pela retórica de Kant e Schopenhauer, ou pela música de Bach e Beethoven. Completar-se-ia assim, na perspectiva nietzschiana, o ciclo temporal — proposto como tal por Wagner — que traria de novo à luz da consciência o herdo musical dos helénicos e a realização da cultura apolíneo-dionisíaca pelo mito trágico: o renascimento da Tragédia.

Vislumbrado o complexo enquadramento deste ensaio consideremos agora a sua celebrada antítese, a de Apolo e Dioniso [fi g. 2.1 e 2.2], que somente na tragédia encontra o

seu conforto, ou melhor dizendo, a sua total plenitude e harmonia. Nietzsche apresenta-nos duas forças mitológicas que caracterizam não apenas a experiência cultural dos gregos, como também a própria natureza, na medida em que a essência humana e a do próprio universo podem ser entendidas segundo a manifestação isolada desses poderes artísticos, ou idealmente, pela manifestação simultânea de ambos, consagrada na

tragédia ática3 — como se deste acasalamento decorrente da vontade helénica, surgisse

a mais perfeita obra de arte, tanto apolínea quanto dionisíaca.

3 Termo que designa a tragédia grega, e em particular o seu apogeu em Atenas, Atica século V

a. C.. A tragédia ática é um dos géneros teatrais originário na Grécia Antiga, correspondendo a uma síntese ideal da religião e cultura gregas. O que faz com que a arte trágica dos gregos possa representar o papel de um ideal, é o facto de ela parecer estar entrelaçada com o viver social, com o mito e com a religião gregos: “A tragédia grega é para Wagner o paradigma de uma arte que, representando, faz, efectua, produz a própria unidade social e conceptual do viver grego”, o que, em última instância, significa a centralidade da arte na vida colectiva dos gregos. Cf. RICHARD WAGNER,

(34)

Aproximemo-nos então do conhecimento desse génio criativo apolíneo-dionisíaco e da sua obra de arte, pelo entendimento, ainda que intuitivo, das suas origens díspares e

daquela misteriosa unidade que aparenta desvendar o íntimo da visão artística4 dos

gregos, que orienta todo o empreendimento wagneriano, no sentido de reacender a fl ama originária de toda arte.

A esta oposição essencial, associamos as divindades de Apolo e Dioniso, enquanto metáforas — e não conceitos — de mundos artísticos separados: o do sonho e o do

êxtase. Nesses mundos são-nos sugeridas duas vontades que distam de si mesmas na

origem e nos objectivos, reivindicando, como suas, tanto as formas artísticas da imagem — intrínsecas ao sonho apolíneo —, como, diametralmente, a arte da música e da dança enquanto expressão imediata do elemento dionisíaco.

Apolo é a força criadora de formas individuais, sinónimo da bela aparência do sonho

que constitui o subsolo comum a todo o ser humano; ele é a divindade da luz, o sol que ilumina o mundo interior da fantasia, que confi gura o entorno de imagens ilusórias, ou seja, as belas e prazerosas criações com as quais nos deleitamos e damos conta da alegre necessidade individual da experiência onírica. As imagens que nos falam, designadamente no sonho, constituem a capacidade de entendimento do artista apolíneo que a partir delas interpreta a vida. Porém, desse mundo onírico frui ainda a consciência da aparência como condição necessária ao estado apolíneo, de modo a evitar o efeito patológico de tudo aquilo que sofre por excesso. Quer isto dizer que a sábia tranquilidade de Apolo jaz na experimentação comedida do mundo dos sonhos de modo a tornar inteligível a realidade da existência, ao mesmo tempo que a torna passível de ser vivida. A metáfora

de Schopenhauer a respeito do «humano cativo no véu de Maya»5 permite-nos elucidar

esta imagem apolínea de serenidade: “assim como no mar convulso que, isento de todos os

4 Na antiguidade helénica não existia a noção de teoria estética enquanto preposição artística

autónoma, ou seja, “o conceito de arte na Antiguidade revestia-se de uma dimensão técnico-poética, no sentido de um saber aplicado à adequação de meios e fins e à produção de uma obra.” FRIEDRICH

NIETZSCHE, O Nascimento da Tragédia ou Mundo Grego e Pessimismo, ed. Relógio D’Água, (trad. e

notas de Teresa R. Cadete).Lisboa 1997, p.180.

5 Na língua brâmane mâyâ significa «poder mágico», considerado analogamente na perspectiva

schopenhaueriana como “uma aparência sem essência, comparável à ilusão óptica e ao sonho, um véu que rodeia a consciência humana, algo sobre o qual é igualmente falso e verdadeiro dizer que é, bem como dizer que não é.” Cf. ARTHUR SCHOPENHAUER, Sämtliche Werke, ed. W. von Löhneysen.

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limites, ergue e baixa montanhas de ondas uivando, um navegante se encontra sentado num bote, confi ando no frágil transporte, assim se encontra, no meio de um mundo de tormentos, o indivíduo calmamente sentado, apoiado e confi ando no principium individuationis.” 6 A

tranquilidade apolínea é aqui representada pela confi ança do navegante na sua pequena barca, ou seja, no estado da bela e serena aparência do mundo visível que lhe permite fl utuar à margem do abismo desmesurado da existência. Se por um lado atribuímos ao bote o princípio apolíneo da individualidade, por outro vemos «no mar convulso, isento de todos os limites» o lugar próprio do elemento irracional inerente à unidade primitiva do ser, precedente a todo e qualquer acto de abstracção: a dimensão dionisíaca. É esta a força que se ergue a partir do fundamento mais íntimo do ser humano, que transborda a fi nitude do conhecimento subjectivo do fenómeno, rompendo, em defi nitivo, os limites do principium individuationis apolíneo. Nietzsche estabelece um princípio análogo entre estas agitações dionisíacas e o êxtase sentido sob a infl uência de tudo o que é narcótico, que entorpece a consciência até ao estado de esquecimento de si própria, libertando-a do véu da ilusão e permitindo-lhe, por fi m, vislumbrar o númeno originário. “Sob a magia

do elemento dionisíaco estreita-se não apenas a união entre um ser humano e outro: também a natureza alienada, hostil ou subjugada volta a celebrar a sua festa de reconciliação com o

6 ARTHUR SCHOPENHAUER, Welt als Wille und Vorstellung, I, p.416.

2.3 Dionysus e

Satyr. séc.V a.C.

2.4 Dionysus. 480 a.C.

(36)

fi lho pródigo, o ser humano.” 7 É perante esta consumação unifi cadora que encontramos

Dioniso, o deus da fertilidade e do vinho, do excesso e do desbordamento, da fúria sexual

e do incessante fl uxo da natureza; o plano da inconsciência que em tudo é primordial.

Fundamentalmente, podemos referir-nos ao elemento dionisíaco como sendo a Vontade8

de Schopenhauer, a força cega e inesgotável que constitui a pulsão universal; por sua vez, o elemento apolíneo é a confi guração particular que o impulso dionisíaco toma no espaço e no tempo.

O que Nietzsche nos propõe é uma subversão da esfera inteligível de Platão9 em que

o mundo das ideias cede perante o espelho de Dioniso, ou seja, perante o vislumbre do «Ser verdadeiro» ou «Uno primordial», essa “entidade eternamente sofredora e

7 FRIEDRICH NIETZSCHE, Op.cit., 997, §1, p.28.

8 A Vontade, apresentada em Welt als Wille und Vorstellung (Mundo como Vontade e Representação),

consiste no entendimento metafísico schopenhaueriano da existência, referindo à realidade em si ou, por outras palavras, ao númeno kantiano. É o pulso magmático incontrolável e contraditório que experienciamos no mais profundo nível da inconsciência, a força inesgotável que constitui o cosmos perpetuando o sofrimento e a falta de sentido da vida.

9 A teoria platónica das ideias aprofunda a validez relacional do conceito científico socrático, na sua

génese universal, necessária e imutável, com o entendimento do mundo fenoménico que Heráclito caracteriza de individual, contingente e transitório. O mundo das ideias aparece então deificado enquanto realidade objectiva e exemplo moral, servindo de modelo e arquétipo às cópias imperfeitas e fugazes da realidade visível das coisas.

2.5Dioniso sentado segurando um kantharos. 520-500a.C. 2.6 Apolo e Artemis. séc.V a.C. 2.5 2.6

(37)

contraditória.” 10 E se, por um lado, a interpretação platónica negligencia a dimensão

imagética da arte, que no sistema hierárquico proposto surge diametralmente oposta ao mundo das ideias, da suprema e perfeita moral, por outro, Nietzsche inverte de certo modo essa pirâmide enfatizando a imperativa existência do verdadeiro «Não-ser», para que a esse outro «Ser verdadeiro» lhe seja assentida uma “permanente redenção, [que apenas na] sedutora visão da deleitosa aparência”, encontra “um pairar luminoso… [que

numa] contemplação indolorosa, brilha a partir de olhares distantes.” 11 Ora entendendo

este «Não-ser» como a nossa realidade empírica, concebida enquanto aparência da

Verdade latente, e valorizando o mundo onírico enquanto espectro onde o ser humano

cumpre o seu ser, “então o sonho, tem de surgir-nos como a «aparência da aparência», e

assim como uma satisfação da sede primitiva de aparência.” 12 Eis a mais pura negação da

virtude enquanto génese de conhecimento. A aparência apolínea e a pulsão dionisíaca, ao serem consideradas segundo uma iniludível complementaridade — resultante da sua mútua carência —, tornam possível a mais nobre manifestação artística. Por outras palavras, o indivíduo encontra a sua consolação metafísica ao fi ndar a busca incessante pela «Verdade» e a Vontade encontra a redenção do seu eterno sofrimento na aparência da sua aparência, ou seja, na «obra de arte total».

Assim o conhecimento é passível apenas por meio da arte mas a fi nalidade da produção artística não é a produção de conhecimento, senão a superação da vida pela transfi guração da «realidade».

Chegamos então ao entendimento global destas duas forças originárias da natureza, interessando agora verifi car de que modo estes princípios se manifestam na experiência cultural, designadamente nos modos de expressão artísticos. O impulso apolíneo é luz resplandecente que nos dá conta do mundo, dando forma às coisas, por meio da proporção harmoniosa que as predica de belas; é o princípio ordenador que submete as forças da natureza à regra, à função, ao sentido individual; é a expressão natural a todas as artes plásticas: a pintura, as artes do escultor e do arquitecto e, ainda, a arte da poesia. A criação apolínea surge-nos na vigília e produz o objecto da arte por via da intuição dos sonhos. O artista apolíneo, ao experimentar esse estado inconsciente cujas

10 FRIEDRICH NIETZSCHE, Op.cit., §4, p.38. 11 Ibidem, §4, p.38-39.

(38)

dinâmicas seriam aquelas mesmas do incessante fl uxo da vida, agarra-se ao ego13 que o

não deixa perder-se, depositando então na obra de arte os vestígios da sua experiência. A arte apolínea é assim a transfi guração da realidade e não uma representação da mesma; cobre-a de ilusão no sentido de a superar.

A manifestação artística dionisíaca refere a música, a arte universal, mãe de todas

as artes14, a dança e todas as expressões que fl uem directamente da imediaticidade

representativa e sensorial do corpo humano, para evocar um estado de abolição de toda e qualquer fi nitude, de destruição da individualidade do artista, que deixa inclusive de o ser, tornando-se ele próprio obra de arte. Neste sentido os contornos físicos e psicológicos do princípio apolíneo desvanecem-se, permitindo a «encarnação» da energia primordial do cosmos na expressão artística. Desta forma, a arte dionisíaca expressa a realidade, sendo que esse processo implica uma transfi guração simbólica da mesma, atendendo que o olhar perante a natureza «insofrível» aniquilaria por completo o homem.

Temos portanto dois pólos dinamizadores de toda a cultura dita verdadeira, sendo que, por um lado, a arte apolínea enquanto redenção que se distancia da própria realidade culmina na negação da própria vida; por outro, a arte dionisíaca que, atenta à realidade que existe além do físico e do fenómeno, abraça a vida, ainda que para tal sacrifi que a própria individualidade. Contudo, depressa nos apercebemos que uma vida plena não pode ser alcançada por nenhuma destas vias. Parafraseando Kant, concluímos que o poder de Apolo para criar formas, é vazio sem Dioniso; e que o poder de Dioniso de liberar paixões, é cego sem Apolo.

Ora, é na tragédia grega que Nietzsche identifi ca uma imperativa reconciliação destes dois impulsos, em que o elemento apolíneo é iluminado pela experiência dionisíaca, permitindo um contacto com a realidade e não a completa negação da mesma. A experimentação do mito trágico é, neste sentido, algo que promove a saúde psicológica de uma cultura, e como tal uma vida necessariamente criativa e plena de vitalidade, capaz de se adaptar a quaisquer novas condições e obstáculos. Segundo Nietzsche é nas possibilidades decorrentes do mito trágico que reside a magnifi cência da cultura

13 No sentido da proposição freudiana do estado consciente da psique humana.

14 Entenda-se aqui a perspectiva wagneriana — necessariamente desprovida de imparcialidade —

que o compositor herda nomeadamente do entendimento schopenhaueriano relativo ao fenómeno artístico musical.

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grega, é na serenidade e equilíbrio entre essa dualidade intrínseca à natureza humana — individualidade e sentido de afi nidade para com o incessante fl uxo universal, que a tudo na Natureza concede e retira a vida — que deve ser fundada a verdadeira cultura que permita ao ser humano superar o seu sofrimento pela aceitação do mesmo, sem que, para isso tenha necessidade de se refugiar no despotismo de uma cultura degenerada fundada no vazio moral e no arbítrio falacioso.

“Aqui, neste supremo risco de vontade, aproxima-se a arte, tal feiticeira redentora com poderes curativos; só ela pode transformar aquela ideia de repugnância sobre os aspectos mais horríveis ou absurdos da existência em representações, com as quais se tornara possível viver.” 15

Neste sentido podemos entender o drama wagneriano enquanto descendente directo da tragédia grega e o próprio compositor, enquanto homem trágico dessa cultura. A obra de arte do futuro procura traduzir essa condição em que “o elemento

dionisíaco, com o seu prazer primitivo apreendido junto da própria dor, é o regaço materno comum onde nascem a música e o mito trágico” 16; sendo precisamente nesta

referência que Wagner vê legitimado o seu drama musical.

15 FRIEDRICH NIETZSCHE, Op.cit., §7, p.60. 16 Ibidem, p.164.

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(41)

3

A Obra de Arte do futuro

Até agora identifi cámos no projecto wagneriano uma clara infl uência ontológica romântica, na medida em que se procura estabelecer uma unidade da vida em todas as suas dimensões: o seu empreendimento é, simultaneamente, estético, social e político, sendo que este complexo carácter de interdependência colectiva pressupõe, a priori, um compromisso individual.

Em A obra de arte do futuro e A arte e a revolução fala-nos o artista que, dotado de um entendimento erudito, procura devolver ao «homem-fi lósofo» as ideias absorvidas do ponto de vista sensível do «homem-artista». É precisamente este «homem-artista», incarnado por Wagner, que procura estender a clareza sensível do seu espírito à comunidade de todos os artistas. Privado do seu estímulo criativo originário, o artista encontrava-se subordinado aos modos desviantes e decadentes da sociedade moderna que, para além de perpetuar a institucionalização da arte, privilegiava a proliferação do luxo e do egotismo em todas as actividades humanas. Para a redenção da arte e da vida humana, Wagner aponta como solução a realização da sua obra de arte do futuro, ou seja, do renascimento de uma consciência colectiva em conformidade com a essência primordial do Homem e da Natureza.

Abracemos então a tarefa de desconstruir este ideal articulando as noções de fragmento e todo ou, ainda, estabelecendo uma noção de «totalidade fragmentária» pela dinâmica relacional entre estes conceitos, patentes em diversas directrizes do programa wagneriano.

(42)

Cultura trágica e totalidade do conhecimento

Ao fundamento da obra de arte total associamos o renascimento da cultura trágica dos gregos. Este pressuposto implica, por um lado, que a cultura socrática — amarrada ao prazer do conhecimento e à ilusão de poder, possuindo como ideal o «homem teórico» — encontre o seu término, ou ainda a sua redenção; por outro, implica que a vontade ilusória, correspondente à cultura artística apolínea, ascenda à mais nobre das ilusões: à “consolação metafísica de que sob o remoinho dos fenómenos continua a fl uir”, ou seja, à vontade trágica.1

O modelo grego, revisitado por Wagner, não se resume a uma simples nostalgia cultural e artística; o compositor entende a bela e serena existência helénica como um processo cultural e civilizacional genuíno, fundado no entendimento colectivo de uma moral natural.

O Estado civilizado moderno nunca poderia corresponder a algo mais senão a uma desfi guração desse ideal moral; o arbítrio egoísta e a vontade de poder individual que constituem as suas fundações não prestam vassalagem ao desenvolvimento natural — aquele que nasce da mais pura carência — perpetuando uma frívola cultura, uma

1 Nietzsche apresenta-nos três níveis de ilusão da vontade, por sua vez manifestados culturalmente:

estes níveis correspondem à cultura socrática ou artística, ou trágica; poderemos ainda — se nos permitirmos a exemplificações históricas — associar respectivamente uma cultura alexandrina, ou helénica, ou budista. in FRIEDRICH NIETZSCHE, O Nascimento da Tragédia, §18, pp.126-127.

3.1 The Rheingold & the

Valkyrie. Ilustração de

ARTHUR RACKHAM. 1910

3.2 Siegfried. Ilustração de

ARTHUR RACKHAM. 1910

3.3 The Rheingold & the

Valkyrie. Ilustração de

ARTHUR RACKHAM. 1910

(43)

falsa ilusão e uma existência inerte e sem sentido. Quer isto dizer que “nem uma única

virtude verdadeira pode ser acolhida… [se não estiver], por si mesma integrada nessa moral natural.” 2

Não seria plausível compreender a complexidade da visão artística de Richard Wagner

sem vislumbrar a possibilidade do renascimento do mito3, da cultura trágica enquanto

processo de desenvolvimento de uma consciência colectiva natural e estritamente necessária. Esta tendência é assumida pelo músico alemão ao escrever: “ é para a

magnífi ca arte grega que olhamos, para no seu íntimo entendimento aprendermos como tem que ser criada a obra de arte do futuro!” 4 Segundo ele, só com os helenos é que a natureza

atinge o seu júbilo artístico, só neles é que a ruptura do principium individuationis se torna fenómeno artístico. Importa reter que a ordem superior, perante a qual o grego

“emudecia por sua livre vontade”, não tem nada que ver com o poder político instituído

mas sim com a essência desse espírito colectivo, celebrada no mito trágico,5 que sob

o véu da eterna harmonia apolínea, entende e acolhe o “prazer primitivo [dionisíaco]

apreendido junto da própria dor.” 6

2 RICHARD WAGNER, A obra de arte do futuro, p.39.

3 Tendo em conta a proposição romântica do conhecimento, consequente da mediação do

«perceptível», e a ideia wagneriana de que o corpo é plataforma de conhecimento imediato pela ênfase atribuída aos sentimentos, às emoções e à imaginação, enquanto manifestações da verdade, impõe-se, então, a questão da compreensão dessa pulsão sensível: de que modo se desenvolve o entendimento da esfera divina, da magia da vida, senão por meio da interpretação do arbítrio? A resposta a este quesito é encontrada na simbologia intrínseca ao Mito. A arte romântica estabelece, na mitologia, a fórmula de representação por excelência, precisamente porque os mitos incorporam, em si mesmos, algo inarticulável, atentam a uma dimensão irracional e, como tal, ininteligível por meio do pensamento especulativo e escrupuloso.

Assim, identificamos na œuvre wagneriana um processo cultural de construções mitológicas que evoca o modelo grego, designadamente o mito trágico, cujo sentido estético e metafísico era tido enquanto meio de transcendência da finitude corpórea e intelectual do indivíduo.

4 RICHARD WAGNER, A obra de arte do futuro, p.40.

5 “O mais provável é contudo que quase todos se sintam, ao examinar-se com rigor, fragmentados pelo

espírito crítico-histórico da nossa cultura para tornar credível a seus olhos, a não ser por via erudita e através de abstracções mediadoras, a existência do mito no passado. Sem o mito, porém, qualquer cultura vê-se privada da sua força natural, saudável e criativa: só um horizonte cercado de mitos pode completar a unidade de toda uma tendência cultural.” in FRIEDRICH NIETZSCHE, Op. Cit., §23, p.160.

(44)

3.4-3.6 Die Wälkure.

Produção de ROBERT LEPAGE.

Metropolitan New York. 2013

3.7 Der Götterdämmerung.

Produção de ROBERT LEPAGE.

Metropolitan New York. 2013

3.7

3.4 3.5

(45)

Esta totalidade metafísica, determinada pela correlação dos impulsos artísticos originários — tornada evidente na tragédia e enunciada por Nietzsche —, defi ne o drama wagneriano na sua mais essencial oposição: a relação entre música e drama é precisamente inversa. A música enquanto expressão do impulso dionisíaco representa “a

verdadeira ideia do mundo, o drama apenas um refl exo dessa ideia, uma silhueta isolada da mesma.” 7 Parecer-nos-á que a ilusão apolínea no drama — “ iluminada de todos

os movimentos e fi guras” — relega o elemento primordial da música para um plano

secundário, aproveitando somente as suas intenções para clarifi cação do drama; no entanto, a totalidade do drama reside para além de qualquer fenómeno artístico apolíneo, sendo que “no efeito global da tragédia, o elemento dionisíaco recupera a

preponderância” 8: insurgindo-se contra a mera apreensão fenoménica e reestabelecendo

a verdade primordial.9

Este argumento seria, idealmente, a consequência da harmonia promovida entre dois domínios artísticos separados ou fragmentados, sendo que, com a dissociação de ambos os impulsos originários, Nietzsche aponta a causa do declínio da tragédia.

De igual forma devemos associar a esse processo, “uma degeneração e transformação do

carácter do povo grego, desafi ando-nos a uma séria refl exão acerca da necessária e estreita ligação entre arte e o povo, mito e moralidade, tragédia e estado, nos seus fundamentos.” 10

É precisamente o fi m da tragédia11 o momento catalisador de uma produção artística

fragmentária que, numa refl exão crítico-histórica wagneriana, permite inferir associações de totalidade que haviam elevado o enquadramento cultural do povo grego ao patamar que lhe corresponde. Segundo Nietzsche, aquando da morte da tragédia esquiliana, surge um vazio monstruoso, não preenchido pelo género artístico que lhe tomou o lugar — a nova comédia ática — “essa forma degenerada e penosa da sua antecessora.”

7 Ibidem, §21, p.152. 8 Ibidem, §21, p.153.

9 Ou como Nietzsche colocou: “Dioniso fala a linguagem de Apolo, Apolo porém acaba por falar a

linguagem de Dioniso; com isso se atingiu o supremo objectivo da tragédia e da arte em geral.” in FRIEDRICH NIETZSCHE, Op.cit., §21, p.153.

10 Ibidem, §23, p.162.

11 Entendida aqui, segundo Nietzsche, pelo findar de produções que corresponderiam ao auge da

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