REPATS, Brasília, V.6, nº 1, p 251-276, Jan-Jun, 2019
O Ensino Jurídico em Roberto Mangabeira Unger
The Legal Education in Roberto Mangabeira Unger
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
*Julio Edstron Secundino Santos
**Einstein Almeida Ferreira Paniago
***Fernanda Vilela de Oliveira
****RESUMO: O artigo trata do ensino jurídico no pensamento de Roberto
Mangabeira Unger. Explora as várias críticas e sugestões que se faz ao presente
modelo de ensino jurídico, como constatado por Mangabeira Unger. Tem-se uma
proposta radical, no sentido de se construir no ensino jurídico um ambiente
propício para o avanço das teses de democracia radical.
Palavras-Chave: Roberto Mangabeira Unger. Ensino jurídico. Democracia.
ABSTRACT: The paper tackles the concept of law school in the context of
Roberto Mangabeira Unger’s thought. It explores many a criticism and
suggestions towards the contemporary law school, especially in the Brazilian
realm. It considers a radical proposal, in a sense of building within the boundaries
of the law school, an auspicious environment for the advancement of the radical
democracy outlook.
Key words: Roberto Mangabeira Unger. Law School. Democracy.
Recebido em: 16/05/2019 Aceito em: 29/05/2019
* Livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. USP. Professor titular
do programa de mestrado do Uniceub.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo explorar o conceito de ensino jurídico em
Roberto Mangabeira Unger. Tem como fontes o texto Uma Nova Faculdade de Direito
no Brasil; disponível no website de Mangabeira
1, a par de apontamentos de intervenção
que Mangabeira fez no Rio de Janeiro, em palestra na Faculdade de Direito da
Fundação Getúlio Vargas.
Mangabeira nasceu no Rio de Janeiro. Leciona na Harvard Law School.
Licenciou-se de 2007 a 2009. NesLicenciou-ses dois anos ocupou uma pasta no governo Lula. Foi Ministro
de Estado Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Seu pensamento é debatido em importantes universidades do mundo. É
considerado influente pensador social contemporâneo. É reputado como teórico
originalíssimo do Direito nos Estados Unidos. Sua influência nos currículos das
faculdades de Direito daquele país é inegável. É o mais respeitado intelectual do Critical
Legal Studies, movimento que revolucionou a Filosofia do Direito nos Estados Unidos
da América, cujo auge se deu na década de 1980.
Roberto Mangabeira Unger tem desenvolvido e avançado um projeto de
democracia radical. Repudia a rendição ao destino. É antinaturalista. Não admite que
possamos viver na dependência de roteiros pré-determinados: é um antideterminista.
Não é marxista, porém suas ideias avançam e transcendem ao marxismo.
Desconcerta-nos, desconstrói, mas ao mesmo tempo apresenta um projeto construtivo.
Nesse sentido, de construção, as observações que seguem exploram as
percepções de ensino jurídico no ideário de Roberto Mangabeira Unger.
1. O ENSINO JURÍDICO EM ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Roberto Mangabeira Unger sugere que a situação contemporânea possibilite e
exija reorientação do ensino jurídico. Admite e adianta que essa reorientação seja
possível e conveniente. Mangabeira identificou três pontos de partida para um raciocínio
a respeito da reconstrução do ensino de Direito. No fim, construtivamente, propôs quatro
métodos para a composição desse novo projeto de ensino.
Mangabeira observou que muito do que diz seja resultado de reflexão nova e
provisória; lembra que não somos obrigados a compreender tudo o que escreve.
Mangabeira sugere que se concentre na criação de oportunidades por meio do Direito,
em favor da previsibilidade jurídica, que parece informar o cânon dominante. É na
insegurança que o Direito alcança vida, na medida em que ganha condições de
mostrar-se maleável e instrumental.
Mangabeira constatou e apontou para as características predominantes na cultura
jurídica hegemônica que hoje se conhece. Mencionou a teologia idealizada, que
sumariou da forma que segue:
Admite-se que o direito não pode ser concebido como um sistema fechado de regras e que o entendimento e a construção do direito dependem da atribuição de propósitos, de objetivos, e esses objetivos são entendidos, em forma idealizada, como princípios gerais e políticas (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
Mangabeira identificou também segunda característica no pensamento
jurídico contemporâneo, especialmente nas escolas de Direito; denominou esse
modelo de empirismo truncado. E esclareceu:
Quero dizer o seguinte por isso: a mais importante diferença entre o pensamento jurídico dominante no século XIX, no Atlântico Norte, e o pensamento que veio a ser dominante no curso do século XX é que, no século XIX, entendia-se que uma sociedade livre, uma economia livre, uma democracia livre seriam estabelecidas desde que se mantivesse intacto, incólume, um determinado sistema de direitos. Aqueles direitos definiam a natureza intrínseca de uma ordem econômica, política e social livre. A grande idéia transformadora do direito, no curso do século XX, veio a ser a idéia de que a realidade dos direitos, dos diretos que asseguravam as condições da autodeterminação individual e coletiva, dependia de condições empíricas. Não adiantava ter o direito em tese, se não se tinha condições práticas para exercê-lo. O direito de dormir embaixo da ponte não era direito (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
Esse empirismo truncado é o ponto de partida que Mangabeira usa para
aproximar e explicar características de Direito Público e de Direito Privado. E é
esse também o núcleo conceitual para se problematizar a multiplicação de
direitos que houve no século XX:
E, por isso, o direito e o pensamento jurídico, no curso do século XX, foram reorganizados, dialeticamente, da seguinte forma. Havia ainda um sistema de direitos, que no direito privado regia a autodeterminação individual e, no direito público, a autodeterminação coletiva. Mas agora surgiram novas disciplinas jurídicas e, dentro de cada disciplina, novas
partes do direito, destinadas a assegurar a realidade, a eficácia, as condições factuais, do exercício do direito. Essa foi a grande mudança – todo o direito, no curso do século XX foi dividido em duas partes: uma parte destinada a reafirmar o compromisso com a autodeterminação individual e coletiva, e outra parte, que tinha a ver com as condições empíricas para a realidade do exercício daqueles direitos (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
Mangabeira exemplificou a posição que assume com o Direito do Trabalho,
que qualificou como uma alternativa para a prestabilidade do uso de fórmulas
clássicas de Direito Privado:
(...) o direito do trabalho surgiu porque o direito contratual clássico foi julgado insuficiente para assegurar a realidade da forma contratual, em circunstâncias em que o empregador e o empregado tinham poderes tão desiguais. E assim foi, em geral, com todo o direito. De uma forma geral, todo o direito público, ou uma grande parte do direito público, exerce, vis à vis o direito privado, essa tarefa de exercer, ou de assegurar, a realidade das condições do exercício dos direitos. Assegurar que o direito seja efetivo, que não seja uma mentira, uma ficção. (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
Segundo Mangabeira o Direito estancou-se quando se acreditou que as
fórmulas criadas seriam necessárias, suficientes e definitivas. É aí que se tem o
chamado empirismo truncado, que avançou até certo ponto, e que não se
mostrou suficientemente tonificado para retomar o conjunto de transformações
que até então impulsionava. Nesse ponto, o referido empirismo truncado
amalgamou-se à teologia idealizada, e disso seria prova toda a (...) falação sobre
princípios, normas, políticas públicas bonitas, coletivas, maneiras de fazer o
direito parecer melhor do que é (...) (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar
o Direito no Brasil Hoje).
Mangabeira enunciou então a terceira característica dessa cultura jurídica
que reputamos dominante: a interdisciplinaridade conservadora e bem
comportada. E define a situação:
Cada vez mais, parece que o pensamento jurídico não tem conteúdo. À medida que perdemos a fé na dogmática jurídica, o conteúdo do direito precisa ser importado de fora, de todas as outras disciplinas, por exemplo, da análise econômica. E o que eu chamo de interdisciplinaridade conservadora é a idéia que nós devemos importar aquelas outras disciplinas tal como elas existem. A ciência política, tal como ela é praticada, a ciência econômica, tal como existe nas
universidades mais prestigiosas dos Estados Unidos e da Europa e tal (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
O Direito vive um complexo de Atlas (e a imagem é de Mangabeira): quer
resolver os problemas que não foram resolvidos pelos economistas, pelos
sociólogos e pelos politicólogos. Estuda-se a História do Direito, mas não se
explica o que é a historiografia, e muito menos o que seria uma historiografia
jurídica. Estuda-se a Filosofia do Direito, mas não se avança muito de uma
história simplificada das idéias jurídicas. As outras disciplinadas vêm em abono
à supremacia do Direito. Busca-se um especialista em generalidades.
Mangabeira identificou também uma quarta característica no Direito
contemporâneo, que denomina de pragmatismo, ou de instrumentalismo
envergonhado. E assim se expressou:
(...) A situação real dessa cultura jurídica tal como existe, tal como é ensinada nas faculdades de direito de elite nos EUA e na Europa hoje, é uma situação em que as pessoas não acreditam, completamente, nas premissas dessa teleologia idealizada, desse empirismo truncado, dessa interdisciplinaridade conservadora. Eles mesmos não conseguem acreditar completamente. Eles acreditam com metade de suas consciências. E, com a outra metade, tratam aquela cultura jurídica como se fosse um instrumento indispensável para promover projetos políticos benevolentes. A elite jurídica reformista não consegue, ela própria, acreditar completamente nas premissas dessa cultura. Mas, é uma cultura que desempenha, para ela, a função da mentira platônica, necessária para a salvação da humanidade. Se não fosse essa teleologia idealizada, combinada com um empirismo truncado e com a interdisciplinaridade conservadora, dizem ou pensam, as coisas seriam ainda piores. Nós, a elite jurídica, não poderíamos exercer a nossa função de purificar o direito das suas “excrescências”, em nome da nossa tarefa interpretativa (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
E porque precisamos e queremos e lutamos por um lugar (todo mundo quer
ser um ‘insider’, nas palavras de Mangabeira), sob o disfarce do purismo e da
despretensão conceitual, faz-se da faculdade de Direito um espaço para a
discussão dos problemas sociais. A dogmática é pretexto para as
idiossincrasias. Segundo Mangabeira:
Então, o que acontece, agora, nessas escolas de direito, no Atlântico Norte, sob o disfarce dessa cultura jurídica pretensiosa? É que a realidade das aulas de direito está virando uma espécie de discussão geral dos problemas da sociedade e como resolvê-los. Agora, você
pergunta, “e o direito?” É como se fosse só pretexto, porque a aula, em geral, não é sobre direito. O direito, no sentido estrito das regras, a pessoa vai decorar depois de se formar, em 3 ou 4 semanas, para passar um exame da ordem dos advogados. A aula não é sobre isso. A aula é a discussão geral dos problemas da sociedade nos EUA, nas categorias do New York Times. E, se você pergunta, por que a discussão pára em determinado ponto ou não, a resposta é: nada a ver com conceitos ou métodos, é uma coisa puramente factual. É porque ali é que está o mainstream daquela sociedade. Todos estão se olhando, uns aos outros, para se testarem e ver que ninguém fica longe demais do eixo principal, que ninguém fica lá, além do precipício, condenado à posição do “outsider” (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
Mangabeira denunciou essa situação como enigmática e perturbadora.
Com base na história do Direito norte-americano, principalmente, descreveu os
fatos a partir de uma pequena fábula. À luz dessa narrativa, descreveu três
momentos na cultura jurídica das sociedades ricas. A passagem é longa, e
inspiradora:
Eu dizia – há um momento quente, um momento da refundação: a crise, em geral provocada por guerra ou colapso econômico, que no Atlântico Norte foi o período da depressão e da guerra em meados do século XX. Aí, a sociedade é reimaginada, é reorganizada, sob pressão. Sob pressão do trauma externo. E quando os juristas atuam nesse momento de refundação, eles atuam como partes das elites partidárias e palacianas que estão metidas naqueles embates. Desde Felix Frankfurter a Carl Schmitt. Depois, vem o segundo momento, que é o momento da normalização daquela agenda criada no momento quente. Aí, os juristas têm uma outra tarefa, completamente diferente. A tarefa deles é sistematizar a agenda. Por exemplo, nos EUA, sistematizar o New Deal. E a obra principal deles consistiu em assimilar o novo corpo do direito público, de um Estado redistribuidor e regulador, minimizando o trauma imposto por esse novo corpo de direito público ao corpo pré-existente do direito privado. Quer dizer, foi uma obra ao mesmo tempo reforadora e conservadora. Assimilar o novo, mas reconciliá-lo com o antigo. E essa obra normalizadora, de alguma maneira, persiste nos EUA e na Europa até hoje. E, agora, vem o terceiro momento, que eu chamei hoje de manhã o momento do espectro. O que acontece é que a agenda criada, a luz emitida, por aquele momento de refundacão, vai ficando cada vez mais distante. À medida que fica mais distante, ela tem lições menos claras para os conflitos que as pessoas estão vivendo hoje. E, ao mesmo tempo, passa a ser mais contestada. É uma luz fraca, de uma galáxia distante, mas é a única luz que existe. Este é o contexto histórico em que prevalecem aquelas características que eu descrevi no inicio: teleologia idealizada, empirismo truncado, interdisciplinaridade conservadora e, sobretudo, instrumentalismo envergonhado, em que estão todos lá na sala de aula falando sobre os problemas gerais da sociedade, usando o direito só como pretexto. Esse é o quadro, esse é o contexto (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
Indagando o que é que temos a ver com essa narrativa, Mangabeira
adiantou-se e respondeu que no Brasil não vivemos esse processo cíclico:
apenas fingimos que avançamos ao lado da cultura jurídica ocidental, cujos
modelos copiamos, a exemplo do que os especialistas de Direito Comparado
chamam de transposições normativas. Como resultado, não nos atemos para a
necessidade das transformações institucionais. Nosso Direito é idealizado,
nossas estruturas são canonizadas. Segue a denúncia, no sentido de que a elite
que detém os meios de expressão do Direito cerceia a democracia e controla o
Direito que produz, com as desculpas de interpretá-lo e revelá-lo:
Essa é uma cultura jurídica, então, que tem três custos tangíveis, inadmissíveis, em qualquer sociedade contemporânea, mas, sobretudo, para um país como o nosso. Em primeiro lugar, tem um viés contrário à transformação institucional. Porque todo o movimento dessa cultura jurídica é de idealização do direito e da estrutura institucional. Em segundo lugar, representa o cerceamento da democracia, porque essa elite jurídica, essa elite de Estado, está usurpando as prerrogativas de uma cidadania engajada. E, em nome de interpretar o direito, está de fato controlando, limitando as coisas. E em terceiro lugar, todo esse processo que eu descrevi, os três momentos, faz com que a mudança continue a depender da crise (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
Dando início a conjunto de propostas Mangabeira prescreveu uma cultura
jurídica prioritariamente desmistificadora. Deve-se afastar das idealizações, do
discurso que qualifica o Direito como sistêmico, perfeito, lógico, coerente,
inteligente. Mangabeira afirmou que o Direito deve ser estudado como ele é,
revelando-se suas contradições, seus problemas e seus defeitos.
Mangabeira defende o experimentalismo. Propõe a superação das
aventuras ideológicas do século XX, que se esgotaram em seus próprios
conteúdos. Ao contrário do disfarce e da minimização das anomalias sugere o
aprofundamento. Retomou o eixo central de sua obra e defendeu que
reorganizemos a sociedade, sem que dependamos exclusivamente de uma
crise.
Mangabeira apresentou e enfrentou questão desconcertante: por que dar
aulas? E explicou, desconcertando-nos ao afiançar que aulas seqüestram o que
temos de mais precioso, o tempo:
Por que dar aulas? Por que ter aulas? Não é evidente que seja bom ter aulas. Eu tenho visitado muitas aulas, em muitos países, de muitas escolas, em todos os estágios do ensino. E a minha conclusão geral é que a grande maioria das aulas não deveria ser dada. Uma aula não é melhor do que nada; em geral, uma aula é pior do que nada. Porque uma aula é uma taxação, é uma tributação, do nosso recurso mais importante. A rigor, do nosso único recurso, que é o tempo. A cor, numa parede, pode ser uma coisa fantástica, mas é muito difícil pintar uma parede de uma forma superior ao branco. E é a mesma coisa com uma aula. É muito difícil obter uma aula que seja superior a um texto. Então, nós temos que nos perguntar, seriamente, quando é que uma aula pode ser melhor do que texto, ou faz coisas que os textos não fazem e, de alguma forma, incorporar essa análise no projeto pedagógico. Há, pelo menos, três coisas que podem ocorrer numa aula que não ocorrem num texto, ou não ocorrem da mesma forma, com o mesmo grau de amplitude. Ou, pelo menos nessa lista de três que vou citar, as duas últimas. O primeiro atributo que é difícil de evocar num texto é a contradição. Mas há soluções metodológicas. Cito duas famosas: uma é a invenção por Platão do diálogo, como forma do discurso filosófico, para incorporar num texto a experiência da contradição. E o segundo exemplo é o método dialético de Hegel. Não há dialogo, é uma só voz falando, mas a voz se volta contra si mesma e a transformação do pensamento e da experiência é demonstrada como uma guerra permanente e total. Então, pelo menos parcialmente, é possível num texto simular a experiência da contradição que pode ocorrer na aula. A segunda coisa que uma aula pode fazer, que, a rigor, não pode ocorrer num texto é a cooperação. Sobretudo, a espécie de cooperação que é cada vez mais importante nos destinos das sociedades e da cultura. Organizar o tipo de cooperação que é hospitaleiro a inovação permanente, aberto a inovação permanente. É a subversão de si próprio, por assim dizer. Essa é a característica do trabalho cientifico mais avançado e, cada vez mais, nós compreendemos que essa característica pedagógica pode e precisa ser antecipada para os estágios iniciais do ensino. A terceira característica de uma aula que um texto não pode ter é o mais importante e o mais difícil de descrever – e é o que eu quero chamar o espírito. O espírito é o nome que designa uma característica da humanidade. A seguinte característica: que há mais em nós, em cada um de nós individualmente e em nós coletivamente, nações e humanidade, do que há em todas as estruturas que nós criamos e habitamos. Estruturas são finitas e nós, em comparação com elas, somos infinitos. Então, a experiência do espírito é experiência da confusão, da descoberta, de algo extravasando ou sobrando, que é essencial numa pedagogia. Essa experiência está intimamente vinculada à capacitação e é a própria essência da genialidade. E é por demonstrarem o espírito que todas as crianças pequenas nos parecem geniais (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
Mangabeira apresentou então o projeto de educação jurídica que tem em
mente, e que propõe a reconstrução do ensino do Direito. Sugeriu o que
denomina de método das duas origens, de interdisciplinaridade cética, de
ampliação de repertórios institucionais e de raciocínios alternativos.
Quanto ao método das duas origens, identificou duas ordens iniciais na
concepção do Direito: uma sagrada e a outra profana. Esta última é o Direito
Público, aquela primeira, o Direito Privado, que remonta ao Direito Civil, em sua
expressão mais clássica. O Direito Privado é centrado num sistema de ideias
bem concebido, imaculado. O Direito Público (e mais especialmente o Direito
Constitucional) é decorrente da luta e dos acertos e desacertos da política. E
questionou:
(...) como pode ser isto? Como é que estas duas genealogias, ou estas duas origens do direito, a “sagrada” e a “profana”, podem coexistir, como se tivesse uma convergência entre elas? O direito dos contratos, o direito das coisas, é um sistema, é um sistema que a gente pode, em poucas semanas, dominar e, ao mesmo tempo, é o produto de uma luta política, resultado da legislação das decisões políticas. E nós supomos que as duas coisas convergem. Esse é o grande engano, é o grande mistério. É uma perplexidade básica e desconhecida do ensino atual do direito. Eu acho que é uma das maiores razões pelas quais, se de fato prestarmos atenção ao que está sendo escrito e dito, o direito é misterioso: porque é o produto do sistema e é o produto da luta, e não há nenhuma razão para uma luta resultar em um sistema. É essa confusão, é essa pretensão, é esse engano, essa mentira, em que há essa convergência natural misteriosa das duas genealogias, que ajuda a criar aquele ambiente daquilo que eu chamei a “teleologia idealizada”. Vamos acabar com isso. E uma das primeiras condições para ter um ensino desmistificado do direito é separar as duas genealogias. Para estudar o Direito Privado, o Direito das Obrigações, então, vamos estudar o sistema clássico, de idéias. Podemos fazer isto, digamos, em seis semanas. Compreender as suas principais variantes, francesa, italiana, alemã e tal, as suas bases no Direito Romano, se quisermos investir mais tempo nisso, e, depois de estudar esse sistema, vamos estudar as regras concretas, como variam nesse sistema, como são diferentes e produtos dessa luta que ocorreu na sociedade real. Não vamos fingir que há uma convergência misteriosa e predestinada entre o sistema e a luta, porque não há. Há o sistema, o sistema exerce certa influência porque fornece um vocabulário. Vamos estudar as regras, porque é cheio de acidentes e arbitrariedades e uma correlação de forças acidental e contingente, onde não pode haver sistema. Porque luta não é sistema. Eu sustento que tudo será muito mais realista e fácil de entender desta forma. Porque nós então vamos poder estudar, separadamente, essas duas genealogias (Roberto Mangabeira Unger, Como Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
A simplicidade do plano lembra a dogmática tradicional: vamos estudar as
regras, entrecortando-as com os acidentes e arbitrariedades que qualificam as
coisas da vida real. Mangabeira propõe atitude realista. É na compreensão do
modelo existente, a partir do repertório normativo que há, e em contraposição
aos problemas que se colocam, que se apreende e que explora o espaço
jurídico, em sua dimensão de campo experimental.
Importando-se também o conteúdo de outras disciplinas, exigindo diálogo
ativo entre os vários campos do saber, Mangabeira ilustrou a premissa com os
fundamentos e com a natureza da análise econômica do Direito. Especialmente,
insistiu que a tradução das instâncias econômicas para a linguagem do Direito
apresenta miríade de formulações possíveis, reforçando a percepção de que se
trabalha com construídos culturais, e não com dados acidentais.
Quanto à metodologia dos raciocínios alternativos, sugeriu que se tenha
muito claro que à pergunta o que é o Direito não cabe a mesma resposta relativa
à indagação o que deve ser o Direito. Mas também, em aparente paradoxo,
insistiu que a resposta a essas duas perguntas pode ser exatamente a mesma.
O agente do Direito desempenha papel institucional. Porém, há limites,
especialmente porque os papéis institucionais são contingentes e eles devem
ser refeitos, reorganizados, pouco a pouco, à luz daquilo que nós entendemos
que a fidelidade ao direito substantivo exige (Roberto Mangabeira Unger, Como
Ensinar o Direito no Brasil Hoje).
No entanto, ainda que dentro de limites e constrangimentos dos papéis
institucionais nos quais se investem os agentes do Direito, há ampla margem de
ação, e Mangabeira ilustrou a assertiva com o papel dos juízes norte-americanos
no implemento de direitos previstos na legislação daquele país.
Mangabeira propôs apego ao Direito constituído. O campo de ação se
desdobra nos limites da normatividade que se tem, embora esses lindes são de
intensa plasticidade. Concomitantemente, a exemplo dos europeus e dos
norte-americanos, propõe empirismo mitigado e teologia jurídica também limitada.
Mangabeira crê que esse método poderia ser implementado nas
democracias ricas do Atlântico Norte. Porém, entorpecidas pelo sonambulismo,
não se tem espaço para o experimentalismo transformador. A energia para esse
novo modelo é existente e plausível em países ansiosos de transformação, e
Mangabeira exemplifica com o Brasil. Trata-se, em suas palavras, de um projeto
de reconstrução em larga escala. Há em contrapartida uma grande pressão do
mercado. Porém, segundo Mangabeira, o projeto que imagina transcende a
esses empecilhos, na medida em que dotado de grande ambição intelectual.
As propostas de Mangabeira para o ensino jurídico são concretas. Insiste não se
tratar de utopia longínqua. Mangabeira lembra que suas propostas são factíveis para o
contexto brasileiro, conquanto que se flexibilizassem exigências curriculares que há em
vigor, e que engessam a inovação e o experimentalismo.
Mangabeira se preocupa também com a situação do ensino jurídico no mundo.
Examina os efeitos da globalização, em relação ao ensino jurídico. Faz considerações
pontuais sobre o ensino jurídico no Brasil. Propõe novo modelo de curso de Direito para
o Brasil. E o faz com base em cinco currículos distintos. Explicita objetivos, temas,
métodos, bem como explica como o modelo funcionaria.
Mangabeira reconhece que o modelo vigente é imprestável. Preocupa-se com a
frustração vivida por professores e alunos. Dá o tom de que a mudança seja necessária:
O problema do ensino de direito no Brasil é um caso extremo. Como está, não presta. Não presta, nem para ensinar os estudantes a exercer o direito, em qualquer de suas vertentes profissionais, nem para formar pessoas que possam melhorar o nível da discussão dos nossos problemas, das nossas instituições e das nossas políticas públicas. Representa um desperdício, maciço e duradouro, de muitos dos nossos melhores talentos. E frustra os que, como alunos ou professores, participem nele: quanto mais sérios, mais frustrados. A organização de uma nova escola de direito no Brasil oferece uma oportunidade para mudar esse quadro. E para trazer o Brasil, em um só salto, para a vanguarda da reforma do ensino jurídico no mundo (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
A percepção de que o modelo não presta, e de que não presta nem para ensinar
os estudantes a exercer o Direito, é realista na medida em que aferível por alguns
critérios objetivos, a exemplo dos exames que autorizam a inscrição dos interessados
nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. A proliferação de cursos preparatórios
é indicativo muito nítido dessa insuficiência curricular e organizacional.
Mangabeira lembrou certo paradoxo que marca cursos de Direito que há em vários
países do mundo, a exemplo do que se passa no Japão. É que no Japão os alunos
egressos de faculdades de muito prestígio não exercerão a advocacia, ou a judicatura
ou o magistério jurídico. Trabalharão na gestão de empresas. Desempenharão tarefas
na burocracia. Exercerão cargos políticos.
de Administração de Empresas e de Economia passaram a exercer tal papel. É fato
histórico nosso a circunstância de que faculdades de Direito preparavam a elite para os
vários cargos da política e da burocracia. Inúmeros presidentes da República passaram
pelas escolas de Direito, a exemplo de Prudente de Moraes, Campos Salles, Rodrigues
Alves, Afonso Pena, Wenceslau Brás, Epitácio Pessoa, Artur Bernardes, Washington
Luís, Getúlio Vargas, Jânio Quadros. Não é mais o que ocorre hoje.
No caso específico dos países avançados (com exceção dos países de língua
inglesa, nos quais há ensino universitário genérico e pré-profissional, o college) os
cursos de Direito funcionam como ante-sala para o exercício de cargos públicos, na
burocracia e na política. E Mangabeira critica essa situação:
A forma jurídica de que se revestem os atos do Estado e a proximidade -- ainda que às vezes tênue -- do debate doutrinário de direito -- com a discussão nacional de políticas públicas e ideologias faz do direito um campo natural em que obter essa qualificação. Nem mesmo a influência crescente de disciplinas como economia e práticas como administração de empresas empanou essa primazia do direito. Há, porém, um problema. Frente a alunos que, na sua maioria, não nutrem preocupações profissionalizantes estreitas, o conteúdo do ensino jurídico tem continuado a ser, na maior parte do mundo, o que sempre foi: um escolaticismo doutrinário e exegético, com pouco valor prático para a advocacia e menor valor ainda para o entendimento e o manejo dos pacactos ancioanis de poder. É como se, para usar uma analogia da Inglaterra do século 19, os quadros dirigentes nacionais fossem educados com ênfase na capacidade de traduzir Vergílio para o inglês e verter Wordsworth para o latim (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
O modelo é imprestável. O nível de preocupações é muito amplo, na percepção
de Mangabeira. O professor, na expressão do autor aqui estudado, apenas pronuncia
uma conferência, repleta de tecnicismos, cuja arbitrariedade é mal disfarçada pela sua
antigüidade. Segundo Mangabeira, não se tem nada, nem teoria, e muito menos prática.
O que se tem é rosário de preciosismos, multiplicação de problemas inexistentes,
miríade de situações que a vida real não contempla. Mais brilha aquele que mais exibe
a frase latina, o rodeio hermenêutico, a sutilidade bizantina, o problema de lana caprina.
Trata-se a opinião pretérita, a doutrina, com o fervor obsessivo. É o culto ao passado. É
o elogio à sabedoria dos antigos.
Mangabeira procura explicar o paradoxo, a busca da escola de Direito por quem
não vai praticá-lo, com base na história do Direito:
contradição entre o que os alunos buscam e o que os cursos de direito habitualmente oferecem. Repetidamente denunciado, o formalismo doutrinário em direito, sempre ressurgiu, qual fênix, das cinzas. Seu cerne mais persistente foi a crença na convergência natural entre dois projetos: o estudo das idéias jurídicas como um sistema que se pudesse analisar por métodos quase dedutivos e a exposição do conteúdo do direito positivo: o direito tal como construído por legisladores e juízes. Expõe-se o direito positivo de modo a fazê-lo parecer uma realização concreta, ainda que falha, daquele sistema de idéias. Pouco a pouco, essa concepção vem cedendo lugar a uma outra: de que as normas devem ser analisadas com vista aos valores, aos interesses, às políticas públicas subjacentes. Com isso, a discussão se amplia, mas não tanto quanto parece. A discussão dos objetivos é altamente "estilizada". Concede ao jurista a tarefa de melhorar o direito ao interpretá-lo, reportando-o a interesses mais gerais e diminuindo a influência das concessões aos "lobbies". E, como parte do preço desta interpretação saneadora, evitar de questionar as instituições ou de realçar a contingência e as contradições das soluções existentes (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
Oscila-se entre teoria e prática, e não se fica com nenhuma delas. Não se
livra de um modelo escolástico, e que hoje é exuberante em discussões
vibrantes, a exemplo de minudências que vêm diferenças entre regras e
princípios. Apela-se para autores alemães e norte-americanos. Robert Alexy e
Ronald Dworkin dão os parâmetros para essa interminável discussão.
Quanto ao modelo norte-americano, Mangabeira vê um outro paradoxo.
No entanto, antes da reprodução dessa impressão, seguem algumas
informações a propósito das faculdades de Direito nos Estados Unidos. O
conhecimento da estrutura e do funcionamento dessas escolas é importante
para que se entenda as posições de Mangabeira, bem como para que
entendamos o próprio Mangabeira, que tem ensinado nos Estados Unidos há
mais de 30 anos.
A educação jurídica nos Estados Unidos também se presta para o
treinamento de profissionais para manutenção e reprodução de relações
hierárquicas, bem como para legitimação do modelo capitalista vigente. As
faculdades de Direito fabricam advogados de empresa (corporate lawyers) a
peso de ouro.
Triunfa antiga concepção instrumental do Direito. Verifica-se acentuado
apego ao tecnicismo, projeto de permanente despolitização da lei, com
premissas do que seria verdadeiramente jurídico, rigoroso, importante para o
técnico. Louva-se o modelo econômico como único, estruturado, racional.
Imagina-se que o aluno é tentado a pensar como advogado (to think as a lawyer).
Trata-se de exercício, adestramento, reduzido à metáfora do skill training.
O ambiente das salas de aula é competitivo. Detentores das melhores
notas irão para as melhores bancas de advocacia, para as grandes law firms.
Vive-se em estufa repressiva. O monopólio de perguntas é do professor, que
detém a verdade, a luz, o tempo, do alto de seu pódio. A competição já é intensa
no recrutamento dos alunos, futuros bacharéis. O curso de direito é uma
pós-graduação. São necessários quatro prévios anos de faculdade, de college. As
notas são utilizadas e analisadas em rigoroso processo seletivo. Trata-se do
temido UGPA- Undergraduate Grade Point Average. Faz-se ainda um teste
chamado de LSAT- Law School Admission Test.
São medidas as habilidades do candidato, capacidade e compreensão de
leitura, compreensão de textos de maior complexidade, habilidade em redigir
com propriedade, raciocínio lógico, capacidade de processamento de
informações, habilidade para analisar e resumir, poder de argumentação crítica.
O aluno não é reprovado, é apenas pontuado. O nível dos escolhidos é muito
alto, e essa realidade reflete a dificuldade e a complexidade do processo seletivo.
Também há vagas para minorias por conta dos modelos de ações
afirmativas (affirmative actions). Há cerca de 180 faculdades de Direito
reconhecidas pela Ordem dos Advogados nos Estados Unidos. A maior parte
delas, cerca de 100, são particulares, as demais são estaduais. A primeira delas
teria surgido em 1784 quando um juiz de nome Tapping Reeve começou a
lecionar em Litchfield, no estado de Connecticut. Em 1817 fundou-se em
Cambridge, Massachusetts, a mais famosa de todas, Harvard, conhecida
inicialmente pelo rigorismo. O ensino era baseado no modelo inglês de William
Blackstone, cujos Commentaries on the Laws of England, eram ensinados em
Oxford, desde meados do século XVIII.
Harvard, onde Mangabeira ensina, é hoje a maior escola de Direito nos
Estados Unidos, contando com cerca de 1.800 alunos. Yale, em New Heaven,
Connecticut, é menos massificada, há cerca de 600 alunos. As outras faculdades
de nome seriam Chicago, Stanford, Columbia, Michigan, Nova Iorque, Virginia,
Duke, Pensilvânia, Georgetown, Berkeley, Cornell, George Washington. As
faculdades de Direito formam nichos históricos e administrativos. Juristas
egressos de Yale trabalharam com a administração de Franklyn Delano
Roosevelt (durante o New Deal) e professores de Harvard auxiliaram J.F.
Kennedy.
O curso dura em média três anos para aqueles que estudam em regime
de tempo integral (full time). No primeiro ano estuda-se um núcleo comum com
disciplinas de Processo Civil, Contratos, Propriedade, Direito Penal, Direito
Constitucional. No segundo e terceiro anos estudam-se matérias eletivas, de
escolha dos alunos, de acordo com projetos pessoais, dirigidos às exigências
dos exames de ordens de advogados, que são estaduais. Quem pretende
advogar no Novo México ou no Arizona estuda, por exemplo, Direito Indígena,
disciplina que é exigida nos exames das ordens de advogados daqueles estados.
No fim do curso o aluno está mais relaxado, pode estudar disciplinas menos
áridas, há certa flexibilidade para escolha de matérias de conteúdo menos
técnico e mais humanístico, como Filosofia e História do Direito. Estuda-se com
minudências a Suprema Corte e a história do constitucionalismo no país.
O modelo de ensino centra-se no case method. Essa metodologia fora
desenvolvida em Harvard a partir de 1870 por Christopher Columbus Langdell,
professor e reitor (dean) daquela faculdade. Tinha-se como meta reivindicar-se
a respeitabilidade científica e acadêmica dos estudos jurídicos. Langdell
aumentou a duração do curso para três anos, passou a exigir curso superior já
concluído para candidatos, estabeleceu rigoroso modelo de exames, determinou
ampliação da biblioteca, contratou professores jovens, com dedicação exclusiva.
Consagra-se um enfoque formalista do Direito. O case method parte de
prévia determinação de pesada carga de leitura para os alunos. A freqüência das
aulas é precedida de intenso estudo. O aluno vai preparado. Decisões judiciais
são rigorosamente lidas, estudadas, digeridas. Há sabatina em todas as aulas.
Professores torturam, assustam, humilham os alunos. Alguns estudantes
escondem-se. Sentam-se nas últimas filas (back-benching) ou pedem
formalmente (por bilhetes depositados na mesa do professor antes do início da
aula) para não serem argüidos ( no-hassle pass ).
Os lugares que os alunos ocupam na sala de aula, nos auditórios, são
escolhidos no primeiro de dia de aula. Os estudantes marcam seus nomes em
diagrama, que ficará em posse do professor. As secretarias (registrars) enviam
fotografias dos alunos aos professores. Esses têm na mesa, ao lado dos livros,
nome, fotografia e localização do aluno. O controle é absoluto.
O case method é implementado ao lado do método socrático (socratic
method). São as perguntas feitas pelo professor, que socraticamente dirige a
aula. O nome vem da prática da filosofia grega, imortalizada nos diálogos de
Platão, que nos pintou um Sócrates que perguntava o tempo todo,
desconcertando seus interlocutores. Era a chamada maiêutica, o parto das
idéias, no qual Sócrates obtinha opiniões, que em seguida comentava,
ridicularizava, motejava. O professor de Direito procura fazer com que o aluno
deduza princípios, regras, tendências, a partir dos casos selecionados. O aluno
deve descobrir a ratio decidendi.
No primeiro dia de aula o professor entrega aos alunos o programa,
chamado de syllabus. Há identificação de todas as atividades, leituras e exames,
do primeiro ao último dia do curso. A carga de leitura (reading load) é alta. É
identificada uma bibliografia, que é obrigatória. O aluno comprará um casebook,
que trará casos, textos, artigos, divididos em capítulos, e sucedidos por
perguntas.
Cerca de 40.000 novos bacharéis são formados pelas faculdades de
Direito norte-americanas a cada ano. As aulas começam no fim de agosto. O
primeiro semestre (fall semester) vai até janeiro, com pequeno intervalo para
festas de natal e ano novo. No fim de janeiro começa um novo semestre (spring
semester) que se encerra no início de maio. As férias de verão ocupam junho e
julho, porém geralmente os alunos estagiam em escritórios de advocacia
(summer clerkships). As vagas são disputadas por estudantes do segundo e
terceiro anos e abrem portas para a contratação que segue a cerimônia de
graduação.
Há também treinamento prático nas chamadas law clinics, escritórios de
aplicação que prestam assistência judiciária gratuita para necessitados,
carentes. Esses locais de aplicação do conteúdo aprendido em sala de aula
desenvolveram-se a partir da década de 1960 e refletem suposta humanização
do ensino jurídico. O maior privilégio para um aluno de Direito é pertencer ao
conselho editorial da revista de sua faculdade. O ingresso no conselho depende
das notas e do aproveitamento. As vagas são para alunos de terceiro ano e o
trabalho de editoração consiste em se fazer criteriosa checagem de notas de
rodapé. Escritórios há que condicionam a contratação do bacharel ao fato de o
mesmo ter pertencido ao conselho editorial da revista. Há freqüentemente júris
simulados, as moot courts.
O bacharel em Direito recebe o grau J.D.- Juris Doctor. Não há muita
procura para cursos de mestrado e doutorado. Não há exigência desses títulos
para professores nas faculdades. As escolas geralmente oferecem dois cursos
de mestrado (que duram um ano): em Direito Tributário (tax law) e em Direito
Comparado, esse último para estudantes estrangeiros, que estudam o Direito
norte-americano. Não há necessidade de confecção de dissertação e de defesa
em banca. Outorga-se o título de LL.M-
Master’s Degree in Law.
O estrangeiro detentor do título pode candidatar-se ao exame de ordem
dos advogados em onze estados norte-americanos. Trata-se de um atalho (short
cut) para o exercício da advocacia por estrangeiros nos Estados Unidos. O
doutorado tem duração mais longa, pode chegar a cinco anos, exige tese
original, chamada de dissertation, com defesa perante banca. Outorga-se o título
de S.J.D.-Doctor in Science of Law.
O aluno é treinado a sentir-se oprimido. Tem-se a impressão de que só
se aprende a quantidade de que se é capaz; a incompetência é culpa do próprio
aluno. Não há incentivo para o pensamento independente, para uma integridade
moral decorrente das próprias escolhas, assumindo-se riscos e fracassos.
Molda-se profissional liberal e agressivo, incisivo e direto. O ser humano que
disso tudo resulta pode qualificar pessoa angustiada e ansiosa, que ganha a vida
na exploração do conflito, que transcende da sociedade para a própria
individualidade, oprimida, insegura, desinteressada e talvez despreparada para
a construção de uma sociedade mais justa.
A situação do ensino de direito nos Estados Unidos mostra o outro lado do paradoxo. Nas faculdades de direito de primeira ordem dos Estados Unidos, o ensino é mais amplo, na abrangência de suas preocupações e na variedade de seus métodos, do que em qualquer outro país no mundo. O direito, pelo menos tal como estudado em algumas destas faculdades, é hoje a única disciplina nos Estados Unidos que não está sob a hegemonia de qualquer ortodoxia metodológica e ideológica. A falta de consenso, manifesta em divergências muitas vezes radicais entre os professores sobre a maneira de abordar o direito, obriga as escolas a exporem os primeiro-anistas a uma variedade de pontos de vista. Discute-se tudo -- e às vezes parece que o que se discute menos é o direito em sentido estrito. Entretanto, nesse mundo de desordem intelectual -- às vezes inibidora e às vezes instigante -- a grande maioria dos alunos continua direcionada não só para a advocacia, mas também para uma versão muito específica dela: a consultoria de grandes empresas proporcionada por grandes firmas de advogados das principais cidades do país. Nestas firmas, a premissa é que os estagiários e jovens advogados são recrutados porque são inteligentes, e até porque sabem analisar, expor e argumentar. Supõe-se, porém, que terão de aprender o ofício "on the job". Quanto mais prestígios a escola, e mais garantidos os empregos dos alunos, menor a pressão para que o professor se desvie de sua agenda de pesquisa e polêmica social para atender às preocupações profissionalizantes dos alunos. Aí está o paradoxo. Em muitos países, onde a base de alunos é menos dirigida para a advocacia, o conteúdo do ensino é mais acanhado. E nos Estados Unidos, onde a base tem um destino profissional mais estreito, o ensino nas faculdades mais influentes é o mais amplo, o menos técnico, do mundo (...) (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
Mangabeira não se desilude com o paradoxo. Não vê nenhum sinal para
retroagir. Pelo contrário, afirma que o paradoxo é espaço para mudança. É que,
no entender de Mangabeira, não haveria relação entre oferta e procura. Isto é, a
escola não oferece efetivamente o que o aluno busca; ou ainda, não está
preparada para oferecê-lo.
Em seguida, tratou do impacto da globalização no ensino jurídico.
Mangabeira se recusa a perceber um mundo normativo homogêneo. Reitera a
crença no dogma hegeliano, apropriado pelo historicismo jurídico alemão, no
sentido de que o Direito reflete o espírito de um povo (Volkgeist). E o faz na forma
que segue:
O mundo caminha para a combinação de integração econômica com diversidade política e jurídica. Apesar das idéias que advogam a convergência de todos os países para um mesmo conjunto de instituições e práticas (como faz, nas suas postulações mais radicais, a chamada doutrina neoliberal), o mundo busca manter e aprofundar um potencial de divergência. O direito, dizia Hegel na esteira de Herder, é a organização da vida de um povo em instituições. Povos
diferentes, organizações diferentes e, portanto, sistemas diferentes de direito é o que temos e, provavelmente, continuaremos a ter por mais que se multipliquem as trocas de bens, pessoas e idéias entre as nações (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
Porém, recua na recusa, na medida em que reconhece que o advogado
contemporâneo deve trabalhar num contexto transnacional. Precisa dominar
outras culturas jurídicas. E Mangabeira realisticamente indaga se a empreitada
seria possível:
Como? Não é possível, sem perder-se num enciclopedismo custoso e estéril, dominar as leis, a jurisprudência, as instituições, as tradições e os métodos de muitos países. Qual é a fórmula para economizar o esforço e maximizar o entendimento e a capacidade prática?Há hoje no mundo um repertório limitado de maneiras de organizar cada campo da vida social: o Estado e a política; as relações entre governos, empresas e trabalhadores; e os vínculos entre governos, escolas, famílias e crianças. Depois do colapso do comunismo, não veio a convergência institucional, mas o repertório se estreitou. Esse repertório está organizado como direito e como direito é reproduzido e reformado. Muda-se o mundo ampliando o repertório: acrescentando a ele uma possibilidade institucional que não existia antes. E para mudá-lo é preciso compreendê-mudá-lo e criticá-mudá-lo (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
Há repertórios, e estes explicam os modelos normativos internos que há
em cada país. O domínio do repertório, então, é condição para a compreensão
de um Direito particular. O estudante deve saber transitar do repertório
institucional geral para o núcleo normativo interno, dentro do qual desempenha
suas funções. E, para Mangabeira, não se conhece escola, no Brasil, que
prepararia o aluno para tal tarefa: traduzir o repertório geral no modelo normativo
especial.
Quanto ao ensino de Direito no Brasil, especificamente, Mangabeira
indica como problema central a fixação com abordagens enciclopédicas,
exegéticas e escolásticas. E explica:
Não se pode dizer que seja completamente sem relevância prática. Os alunos costumam aprender conceitos, métodos e regras que são de fato reproduzidos nos tribunais e nas peças que advogados e procuradores escrevem para juízes. Como seria de supor, há um círculo: as melhores escolas produzem determinado tipo de quadro, com determinada maneira de pensar e se expressar. Estas práticas prevalecem nas carreiras públicas do direito, inclusive entre o
judiciário. Sua prevalência por sua vez dá pretexto às faculdades para continuar a ensinar como ensinam. E como os países mais admirados de cultura jurídica semelhante -- os da Europa -- sofrem, em seu ensino de direito, de problemas semelhantes, o continuísmo acaba por parecer quase inevitável. Quanto mais a prática jurídica se desloca do ambiente jurisdicional para as atividades de consultoria jurídica -- inclusive e sobretudo consultoria de grandes empresas -- e quanto mais transpõem as fronteiras do Brasil e do direito brasileiro para tratar de problemas transnacionais, menos útil, mesmo para a atividade profissional, o ensino atual se revela (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
Mangabeira evidencia que os conteúdos aqui aprendidos não têm
aplicabilidade em conjuntura internacional. No entanto, reconheça-se, a grande
maioria dos egressos das faculdades de Direito no Brasil atuarão em seus
respectivos ambientes originários, na condução de advocacia doméstica,
centrada em pequenos problemas, que marcam a vida cotidiana.
Percebe-se em Mangabeira uma preocupação muito grande com os
grandes problemas, como se todo bacharel em Direito fosse necessariamente
talhado ou mesmo interessado nos grandes debates da vida pública.
Reconheça-se, há muito desinteresse. Há, realisticamente, mero interesse na
resolução de problemas imediatos, de sobrevivência, de busca de emprego que
possa garantir existência digna, a exemplo das carreiras que há no serviço
público, ou da advocacia para as grandes empresas.
Mangabeira denuncia a marginalização de advogados e de juristas
brasileiros no debate nacional:
Deixaram de ser participantes centrais. Seu lugar foi há muito tomado pelos economistas e afins, que pelo menos parecem tratar, ainda que através de prisma estreito e distorcido, dos problemas do país. Ficaram os juristas de elite reduzidos à condição de técnicos a serviço dos poderosos e endinheirados. Há uma medida provisória a editar? Vamos pô-la em linguagem com mais perspectiva de sobreviver a dúvidas e contestações. Há um negócio a realizar? Vamos enquadrá-lo dentro das formalidades da lei. Esse papel de amanuense, de escriba passivo e obediente, contrasta, de maneira chocante, com o papel norteador que os advogados e juristas desempenharam em outros períodos da história brasileira(Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
O que Mangabeira parece defender é que os agentes do Direito retomem
o elo perdido, e que novamente passemos a definir prioridades, políticas,
especialmente com a concepção de instrumentos para a reforma social.
Mangabeira lamenta o desperdício de talento que há nos cursos de Direito. E
reputa essa perda de talento ao ambiente estéril que viceja em nossas
faculdades.
De um ponto de vista mais construtivo, propõe uma estrutura básica para
um curso de Direito que reputa ideal para a realidade brasileira. Imaginou cinco
currículos. O primeiro deles é preocupado com o Direito brasileiro propriamente
dito. O segundo deles tem como foco disciplinas que reputa necessárias para
apoio e aprofundamento. O terceiro currículo é centrado em práticas do Direito.
O quarto currículo atende à globalização. Um último currículo ocupa-se de
alternativas institucionais. Segundo Mangabeira, no que se refere a aspectos
mais pontuais do projeto:
O aluno normalmente optaria por um mínimo de três e um máximo de quatro dos cinco currículos. Entretanto, se não forem reformadas as normas federais vigentes, o currículo de direito brasileiro teria de ser obrigatório. O currículo das alternativas institucionais poderia ser deslocado do curso de graduação para o de mestrado, ao qual forneceria o eixo e o diferencial. O curso poderia ser completado nos cinco anos normais. O ideal, porém, é que os mesmos cursos e créditos pudessem ser obtidos, por um esforço mais intensivo, de quatro, ou até mesmo, três anos. O encurtamento abriria espaço para um ensino universitário pré-profissional de dois anos. Estabelecida esta etapa anterior, o currículo de disciplinas de apoio seria absorvido por ela. Se o currículo das alternativas institucionais passasse para o mestrado ou o currículo das disciplinas de apoio e aprofundamento para o ensino universitário pré-jurídico, o número de currículos do curso de direito passaria de cinco para quatro (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
O projeto é ambicioso. Mangabeira pretende formar profissionais de elite.
Quer bacharéis preparados para o mundo dos negócios, os quer na
administração pública, nos postos da diplomacia. Em suas próprias palavras, o
curso de Direito atrairia os mais enérgicos e ambiciosos. A faculdade que
seguisse o plano daria um salto de qualidade, atrairia o interesse nacional.
Mangabeira pretende que se identifiquem as pessoas que se
comprometam com o seu projeto para um novo curso de Direito. Quer um núcleo
forte de professores. Pretende atraí-los de todo o país, bem como anseia
também alunos de várias origens. Evidencia-se necessidade de que se facilitem
opções de moradia. Nesse passo, inegavelmente, tem em mente os dormitórios
das faculdades norte-americanas. Tem em mente também os modelos de Recife
e de São Paulo, que no século XIX atraiam alunos de todo o país. E justifica,
especialmente quanto ao elitismo que a proposta sugere:
Não se trata de obsessão elitista. Trata-se de radicalizar na meritocracia e na inconformidade com o marasmo. O curso que idealizo não se destina a um pequeno quadro de alunos de talento extraordinário. Destina-se a um grupo potencialmente numeroso de estudantes capazes, sérios e trabalhadores. Exige um grau tanto de dedicação quanto de experimentalismo intelectual incomuns na educação brasileira. Tanto melhor. O objetivo não é apenas mudar o ensino do direito. É mudar o Brasil (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
Mangabeira recomendou aulas para grupos pequenos: entre 20 e 30
alunos. Prevê ênfase para o aprofundamento seletivo, em desfavor da ambição
enciclopédica. Sugere que se examinem conjuntos exemplares de problemas.
Defende que se faça mapeamento sumário dos temas, seguido de necessário
aprofundamento.
No que se refere a um currículo de Direito brasileiro propõe que se
estudem os seguintes campos temáticos: 1) Conceitos e Terminologia; 2)
Processo; 3) Pessoa e Família; 4) Capital e Contratos; 5) Empresa e
Trabalhador; 6) Direito Penal; 7) Estado e Política; 8) Tributação e Gasto Social.
O campo de Conceitos e de Terminologia, segundo Mangabeira,
envolveria temas introdutórios de Direito, a parte geral do Código Civil, bem
como a terminologia básica que o agente do Direito precisa dominar. O estudo
de Processo, segundo Mangabeira, envolve o Processo Civil e o Penal, bem
como soluções de arbitragem. Pretende também utilizar uma parte do curso para
o estudo das tarefas do Ministério Público.
A seção de Pessoa e Família tem como inovação o enfoque desse tema
de Direito Privado à luz do Direito Constitucional e do Direito Internacional,
Público e Privado. Quanto ao campo de Capital e Contratos tem-se como centro
os fundamentos da propriedade. Estudar-se-ia também, nesse mesmo campo, o
Direito do Consumidor; especificamente, quanto a esse último:
A responsabilidade civil e o direito do consumidor. Nessa disciplina, estudam-se as obrigações ex delicto e todas as formas de
responsabilização que possam resultar em obrigações de indenizar. Aborda-se o direito do consumidor como parte integral da problemática da responsabilidade civil. E compara-se a proteção do consumidor pelo direito civil com sua proteção através da ação reguladora do Estado (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
Empresa e Trabalhador é tema clássico de Direito Empresarial e de
Direito do Trabalho. Segundo Mangabeira, o enfoque central é a aproximação
institucional entre capital e trabalho. Há também um caveat para com as
diferenças entre empresas familiares e empresas de capital aberto.
Mangabeira dividiu o Direito Penal em três segmentos: 1) conceitos
básicos; 2) normas e práticas para o combate da delinqüência comum; 3) crimes
de colarinho branco (que Mangabeira denomina de crimes típicos de
endinheirados). Quanto ao Direito Constitucional, que é campo temático que
informa o núcleo Estado e Política:
A maior dificuldade do estudo do direito constitucional no Brasil é o violento contraste entre a profundidade e a importância dos temas em jogo e a ladainha retórica e terminológica a que se reduz grande parte do discurso constitucional. É uma versão agravada do que acontece com o escolaticismo doutrinário em todos os ramos do direito. A solução não é transformar o direito constitucional em "ciência política". É ordenar o estudo do direito constitucional em torno das grandes opções institucionais, feitas ou rejeitadas, explicitando a arquitetura profunda do desenho constitucional. Esta arquitetura pode em seguida ser colocada tanto no contexto da história da política brasileira quanto no contexto da história das idéias políticas. Com esta abordagem, a antiga disciplina de "teoria geral do Estado" perde sentido. E o estudo da Constituição pode ser mais facilmente integrada com a análise de como se organiza a política. Dentro desta análise, devem ser abordados a influência da mídia e o uso do dinheiro na política (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
O Direito Tributário seria estudado no campo Tributação e Gasto Social.
O mérito do projeto consiste basicamente em se entender a tributação em cotejo
com a sua contra-parte, isto é, com o gasto público. Não se pode estudar a
arrecadação sem que se estude o gasto, como se fossem dois nichos
independentes:
Esta parte do currículo incluirá o direito tributário. A inovação mas importante será o estudo do gasto público ao lado do estudo dos tributos. O maior defeito do estudo tradicional dos tributos nas faculdades de direito de todo o mundo é o hábito de estudar a
arrecadação independentemente do gasto. Com isso, ofusca-se o sentido da tributação e suprime-se a investigação das práticas e regras que regem o dispêndio da terça parte do produto de um país como o Brasil. Qual deve ser o método predominante no ensino deste currículo? Nem a exposição doutrinária -- instrumento preferido do escolaticismo predominante -- nem o estudo de casos -- antiga predileção das escolas de direito nos Estados Unidos -- representam a melhor solução. O método tem de guardar relação estreita com a visão que anima o projeto pedagógico. Por isso mesmo, nunca pode ser mais do que uma proposta dirigida ao corpo de professores, que o adotará ou o alterará de acordo com as idéias de cada um. O método predominante que proponho é a combinação de introduções ou mapeamentos informativos e abrangentes, pelo método convencional de exposições, seguidas por discussões, com o método intensivo, de aprofundamento seletivo e analítico de temas exemplares dentro de cada matéria. A inovação, portanto, está neste elemento intensivo, que exige explicação mais pormenorizada. Trata-se de adaptar ao ensino do direito as práticas características do ensino mais avançado das ciências. Abandonar-se-ia o enfoque enciclopédico para ter a experiência de domínio sobre um conjunto de problemas e soluções. Por exemplo, dentro da disciplina que estudaria os contratos e o capital, há um conjunto de problemas, de grande interesse intelectual e enorme importância prática, que tem a ver com as obrigações geradas por participações individuais em fundos coletivos, como os planos de saúde ou seguro e os fundos de pensão. Ensejam problemas análogos para o direito, pouco compreendidos. E testam os limites das idéias disponíveis sobre os contratos e a propriedade (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
Quanto às disciplinas de apoio e de aprofundamento Mangabeira sugere
mecanismos de superação de um estudo geral pré-universitário. Destaca a
análise microeconômica, a contabilidade, bem como um último nicho mais
abrangente, relativo ao estudo das ideologias e das instituições. Reconhece que
não se trata de uma disciplina bem definida; consequentemente, varia e depende
da qualidade de quem a ministre.
No que se refere ao currículo das práticas do Direito, Mangabeira sugere
que o público alvo seja composto de interessados nas profissões mais típicas
que se ofertam ao bacharel em Direito: advogados, juízes e promotores. Esse
currículo ocupar-se-ia com temas de redação jurídica, de consultoria, de
negociação e de práticas judiciárias. Esse último abordaria mecanismos de uso
de linguagem oral e escrita.
O currículo da globalização alcançaria o Direito Internacional Público e
Privado, o Direito do Mercosul, o Direito da Ordem Internacional do Comércio e
o que Mangabeira denomina de Direito do Capital em Movimento. Nesse último
caso,
O tema dominante é a disciplina -- ou a indisciplina -- do mercado internacional de capitais e a relação deste mercado com os Estados nacionais e a produção nacional. O tema acessório é o controle jurídico e político das correntes migratórias e a maneira de exercer ou abrandar o contraste entre a mobilidade do capital e a imobilidade do trabalho (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).
Por fim, haveria um currículo de alternativas institucionais, que parece ser
o núcleo de um projeto orientado para o estímulo ao experimentalismo.
Mangabeira sugere a exploração de alternativas institucionais, e exemplifica com
a previsão de um núcleo que estude as relações entre proprietários de empresas,
gestores, mercado acionário e mercado de capitais. A vasta experiência
internacional de Mangabeira informa o modelo imaginado:
Um exemplo conhecido quase banal é a discussão dos tipos de "corporate governance": as regras e as práticas que definem as relações entre os proprietários das empresas, seus gestores, o mercado acionário e o mercado de capitais. Tais regras e práticas convergem para compor regimes jurídicos da empresa. Compreender como funciona cada um desses regimes é começar a dominar todo um sistema de direito societário e a entender a relação entre as soluções que ele possibilidade e os problemas que a vida real dos negócios gera. Há a tese de que o modelo americano de empresas abertas, com gestores profissionais, responsáveis a acionistas difusos e preocupados em aumentar a curto prazo o valor das ações é o regime que tende a se impor em todo o mundo. A sanção de última instância contra uma gestão que, sem levar a empresa à falência, deixa de maximizar seu valor é uma aquisição hostil da empresa no mercado acionário. Os modelos alemães e japoneses, que privilegiam relações de propriedade e controle recíproco entre empresas, ou entre empresas e bancos, estariam em decadência, incapazes de sustentar aumentos constantes de eficiência e produtividade e triunfar diante da concorrência internacional aguçada (Roberto Mangabeira Unger, Uma Nova Faculdade de Direito para o Brasil).