N.Z 00 .07 • Rev isã o: 02 • Dat a: 16 -0 2-201 5 O problema
Suponha-se que, em relação a determinado prédio, se encontra registada a declaração de insolvência do respetivo titular inscrito (sendo indiferente a natureza, provisória ou definitiva, daquele registo). Neste estado de coisas, é submetido o pedido de registo da aquisição desse mesmo prédio decorrente da venda que dele se fez em processo de execução, realizada na pendência do processo de insolvência (sendo para o caso indiferente, também se diga, que lance uma tal venda executiva raízes em penhora cujo registo seja prévio ao da declaração de insolvência). Já em ocasião anterior1 tivemos ensejo de opinar no sentido de que nem a “simples” verificação do descrito contexto tabular, nem, e mais radicalmente, a “simples” constatação de que o ato de venda executiva representa violação do comando ínsito no artigo 88.º/1, do CIRE [nos termos do qual “A
declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta (…) ao prosseguimento de qualquer ação executiva (…)”], constituem circunstâncias sobre as quais, no quadro do
princípio da legalidade (cfr. art. 68.º, do CRP), deva o conservador fazer assentar, para aquele pedido (de registo da aquisição executiva), uma decisão de sentido desfavorável.
Sabe-se, porém, que a feitura do registo da aquisição executiva determina a concomitante e oficiosa feitura do (averbamento de) cancelamento dos registos relativos aos direitos que com a venda caducam, assim se dando expressão tabular ao complexo dos efeitos translativos e extintivos que nela (venda) substantivamente confluem (cfr. art. 824.º/2, do CCivil), conforme o disposto no artigo 101.º/5, do CRP (cfr., ainda, o art. 827.º/2, do CPC). Justamente a propósito da dimensão ablativa associada à tradução registal da plenitude dos assinalados
1 Cfr. parecer emitido no processo R.P. 20/2013 STJ-CT, disponível em www.irn.mj.pt, e diretamente acessível em http://bit.ly/RP20-2013.
DIVULGAÇÃO DE PARECER DO CONSELHO CONSULTIVO N.º 49/ CC /2015
N/Referência: P.º C.P. 17/2015 STJ-CC Data de homologação: 25-06-2015
Consulente: Setor Jurídico dos Serviços de Registo (STJSR) do Departamento de Gestão e Apoio Técnico-Jurídico aos Serviços de Registo (DGATJ) do IRN, I.P.
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Assunto: Registo definitivo de aquisição derivada de venda em processo executivo (contra o disposto no art. 88.º/1 CIRE) quando sobre o bem preexista registo de declaração de insolvência – de saber se está este registo (de declaração de insolvência) sujeito ao regime de cancelamento oficioso estatuido no artigo 101.º/5, do CRP. Palavras-chave: Declaração de insolvência; venda em execução; apreensão para a massa insolvente; cancelamento oficioso;
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efeitos tem sido colocada a questão de saber se, no círculo dos registos que cumpre oficiosamente cancelar, acaso também se inclui o preexistente registo da declaração de insolvência.
Sobre a concreta questão acabada de enunciar foi superiormente determinado que o Conselho Consultivo emitisse, como efetivamente passa a emitir
Pronúncia
1. Não nos equivocaremos, estamos em crer, se, como ponto de partida e pedra de toque do
tratamento da questão jurídica cuja elucidação nos compete, assentarmos na ideia de que o cancelamento prescrito no n.º 5 do art. 101.º, do CRP (e bem assim no n.º 2 do art. 827.º, do CPC), corresponde à “mera” expressão, em contexto tabular, da extinção de direitos e situações jurídicas já extratabularmente ocorrida – ou seja, se assentarmos na ideia de que não é o cancelamento registal que opera a extinção de tais direitos e situações, mas o próprio facto da venda em execução. O cancelamento, em face da extinção substantiva, é sempre pois um posterius – e também, sem dúvida, um seu corolário, ditado por um evidente imperativo de fidelidade à “verdade jurídica”: inscreve-se a aquisição do bem ou direito com a exata conformação jurídica que resulta do regime definido no artigo 824.º; e, por isso, e nessa medida, “liberto” do peso representado pelos registos atinentes aos ónus e encargos ali referidos, sendo o cancelamento o mecanismo ou instrumento tabular (o dispositivo técnico) de prover à “comunicação” dessa “libertação”.2
2. Perguntar-se-á então: impõe-se cancelar o registo da declaração de insolvência na dependência da
feitura do registo da aquisição cujo título (titulus adquirendi) seja a venda em execução, supondo que, como efeito desta venda, ex vi do art. 824.º/2 CCivil, a declaração de insolvência se tenha já extinguido?
Se tomarmos o registo da declaração de insolvência pelo seu estrito valor facial – de registo da
sentença declaratória da insolvência, portanto –, parece-nos evidente que não pode equacionar-se, como direto
e inerente efeito da venda executiva, nem a (extratabular) extinção do “facto” (ou seja, da sentença) nem, consequentemente, o concomitante cancelamento do registo. A declaração de insolvência, em si mesma, não é minimamente atingida, na sua consistência, por aquela venda.
2.1. A perspetiva, neste quadrante, terá que ser outra: a de olhar para a declaração de insolvência
como incorporando ou pressupondo o facto da apreensão para a massa insolvente3 – pelo que se se tiver que
2 Não acompanhamos assim REMÉDIO MARQUES, Curso de processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, 2000, p. 415, quando, a
propósito da extinção determinada no art. 824.º/2 CCivil, afirma que “os direitos reais sujeitos a registo só se extinguem após o cancelamento do respetivo registo”. Pela nossa parte, recusamos que o registo de cancelamento revista, por assim dizer, natureza constitutiva ao nível do efeito extintivo dos direitos.
3 O registo predial da declaração de insolvência tem por objeto os bens que integram a massa insolvente (art. 38.º/3 CIRE), a qual, nos
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entender que, realizada a venda executiva, e por mero efeito da sua realização, não pode subsistir a apreensão (do bem vendido) para a massa insolvente do devedor executado, o registo da declaração de insolvência (na medida em que “representa” também o registo da apreensão) terá que dar-se por extinto com essa venda, cabendo então aplicar, nessa lógica, o disposto no art. 101.º/5, do CRP.
Mesmo vendo as coisas pelo lado da apreensão, porém, nem assim se nos afigura possível defender que deva esse facto considerar-se extinto como imediato resultado da eventual venda executiva. Com efeito, no esquema da lei (cfr. art. 88.º/1 CIRE), está vedado fazer a venda executiva de bem apreendido para a massa; logo, como lógico corolário, não poderá a venda executiva que, contra a proibição legal, não obstante se faça, contar entre as suas consequências, naturais e legais, a da “extinção” da apreensão para a massa insolvente.4 No mesmo sentido, aliás, concorre o disposto no artigo 149.º/1, do CIRE, ao determinar que, uma vez proferida a sentença declaratória da insolvência, se proceda à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido arrestados ou penhorados.
Ou seja: quer a declaração de insolvência, proferida pelo juiz, quer a apreensão para a massa, que ao abrigo e por força daquela declaração o administrador da insolvência realiza, são, nos termos da lei, factos oponíveis a qualquer ato de qualquer execução pendente – os fins da insolvência, e os interesses que nela se procura acautelar, têm sempre prevalência sobre os termos das execuções que corram contra o declarado insolvente. Entender que, contra a legal supremacia do processo de insolvência, pudessem os factos jurídicos da insolvência (a declaração de insolvência ou a apreensão dela decorrente) claudicar em consequência dos factos jurídicos da execução, equivaleria a subverter (a contradizer, verdadeiramente) a valoração teleológica subjacente ao sistema de relacionamento interprocessual (insolvência/execução) instituído.
bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. É destes bens e direitos que, proferida a sentença declaratória da insolvência, o art. 149.º/1 CIRE determina que se proceda à imediata apreensão, efetivando-se esta nos termos definidos no art. 150.º/4 CIRE. Para JOSÉ LEBRE DE FREITAS, “Apreensão, Restituição e Venda,” in I Congresso de Direito da Insolvência, 2013, ed. e-book (escrito que
corresponde a mera atualização daqueloutro intitulado “Apreensão, restituição, separação e venda de bens no processo de falência”, que aparece reproduzido in Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, II, 2.ª ed., 2009, pp. 529 e ss.), “a função da apreensão consiste, essencialmente, em concretizar o conteúdo da massa insolvente e o objeto dos atos (de administração e de alienação) que sobre ela subsequentemente se irão realizar”, sendo-lhe subsidiariamente aplicável o regime da penhora por força da “norma geral implícita”, transversal ao ordenamento, “de acordo com a qual o regime da penhora é subsidiariamente aplicável às outras figuras de apreensão judicial.”
4 Recusar à venda executiva que envolva infração do preceito do art. 88.º/1, do CIRE, a virtualidade de fazer “cessar” a apreensão para a
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Portanto, e muito concisamente: não, a venda executiva do bem apreendido para a massa, realizada em contravenção do disposto no art. 88.º/1, do CIRE, não opera a extinção dos efeitos da declaração de insolvência nem os efeitos da apreensão para a massa insolvente, porquanto não cabem tais efeitos na
facti-species do n.º 2 do art. 824.º, do CCivil; logo, excluída que seja, quanto a tais “factos da insolvência”, a aplicação
da estatuição desta norma, excluído fica que possa o respetivo registo (da declaração de insolvência) cancelar-se nos termos do n.º 5 do art. 101.º, do CRP (e bem assim do n.º 2 do art. 827.º, do CPC).5
Termos em que, das considerações precedentes, extraímos as seguintes
Conclusões
1) Entre os imediatos efeitos da venda executiva (ação executiva singular) que se realize contra o disposto no artigo 88.º/1, do CIRE, não se inclui o da extinção, no que toca ao bem vendido, dos efeitos da declaração de insolvência ou da apreensão a que na sua sequência (cfr. art. 149.º/1, do CIRE) se tenha procedido, não cabendo aplicar a tais factos o regime de extinção estatuído no art. 824.º/2, do Código Civil.
2) Ficando tais factos a salvo do referido regime de extinção, segue-se que também não cabe aplicar, no que toca ao preexistente registo da declaração de insolvência, o regime de cancelamento oficioso estatuído no art. 101.º/5, do CRP.
5 É evidente que a permanência do registo da declaração de insolvência “desagradará” sobremaneira ao comprador na execução, que
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Parecer aprovado em sessão do Conselho Consultivo de 25 de junho de 2015.
António Manuel Fernandes Lopes, relator, Maria Madalena Rodrigues Teixeira, Luís Manuel Nunes Martins, Blandina Maria da Silva Soares, Carlos Manuel Santana Vidigal.